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domingo, 20 de outubro de 2019

Descartes: Cogito, Deus e Mundo




Descartes
Cogito, Deus e Mundo



Cogito

Descartes recorreu a argumentos cépticos como um instrumento para chegar ao conhecimento seguro. Apesar de o fazer, Descartes não é um céptico. Vejamos, por exemplo, o argumento do sonho e o argumento do génio maligno. No primeiro, Descartes defende que não é possível fazer a distinção entre estar acordado e estar a sonhar, porque podes sonhar que estás a fazer um teste para te certificares de que estás acordado. No segundo, a suposição de um génio maligno bastante poderoso que se empenha em enganar-te mesmo quando acreditas que 2 + 2 = 4, leva-te a suspender o juízo em relação às verdades lógicas e matemáticas, por mais simples que sejam. Mas por mais que tentes duvidar da tua existência, supondo que estás apenas a sonhar ou a ser enganado por um génio maligno que te leva a pensar que existes, terás nesse momento a certeza de que alguma coisa existe para que ocorra a atividade de duvidar. Terá de haver um sonhador para sonhar a sua própria existência e um enganado para ser enganado. Descartes conclui que, enquanto pensar que está a ser enganado por um génio maligno, terá de existir como ser pensante. Trata-se do famoso cogito ergo sum (penso; logo, existo).
Através de argumentação a priori, Descartes obteve conhecimento acerca de algo que realmente existe: ele próprio como ser pensante. Para compreenderes melhor o que garante este conhecimento teremos de analisar a certeza implicada pelas crenças "Estou a pensar" e "Existo". Em primeiro lugar, ambas são incorrigíveis, o que se define do seguinte modo: se alguém acredita que está a pensar ou que existe, então não pode estar errado. Em segundo lugar, têm a propriedade de ser auto-verificáveis, a qual contribui para a incorrigibilidade e se define do seguinte modo: se alguém afirma estas proposições, então essa afirmação é verdadeira.
Vejamos melhor o que isto quer dizer. Considera a proposição expressa pela frase P: "Estou a pensar". Se pensares que P é falsa, exprimes nesse momento uma contradição. Mas não se trata de uma contradição lógica porque "Eu não estou a pensar" e "Eu não existo" não são falsas em todas as circunstâncias possíveis devido à sua forma lógica, como acontece com a proposição expressa pela frase "O mar tem peixes e o mar não tem peixes"; como é óbvio, em estados do mundo em que eu não existisse, aquelas proposições seriam verdadeiras. As negações de "Estou a pensar" e de "Existo" derrotam-se a si próprias do ponto de vista pragmático, auto-falsificam-se no preciso momento em que são ditas, e não devido à sua forma lógica; podemos compará-las à proposição expressa pela frase "Estou ausente" dita por ti quando o teu professor de filosofia faz a chamada. Assim, sempre que alguém diz ou mentalmente concebe "Estou a pensar" e "Existo", as proposições expressas por estas frases terão de ser verdadeiras. Mas estas não são verdades lógicas como "Chove ou não chove" ou verdades analíticas como "Nenhum solteiro é casado"; são verdades pragmáticas, as quais se definem por se auto-falsificarem quando alguém afirma a sua negação.



Deus

Chegado aqui, Descartes pode dizer que tem certezas na primeira pessoa acerca de si próprio como eu pensante. Mas isto é pouco. Subsiste a questão de saber se o mundo exterior existe. Daí que Descartes precise de uma ligação ou "ponte" que lhe permita vencer a distância entre este eu pensante e o mundo. A premissa "Deus existe e não é enganador" irá desempenhar esse papel. Ora, a existência deste Deus que não é enganador precisa, por sua vez, de ser provada. Sem essa prova não há maneira de refutar o cepticismo. Descartes teria nesse caso apenas umas quantas verdades acerca de si próprio e nada mais seria seguro. Destruindo a hipótese do génio maligno ao estabelecer a existência de um Deus sumamente bom e sábio, Descartes obtém a garantia absoluta de que o mundo é como pensamos que é, na condição de usarmos corretamente as faculdades com que Deus equipou o homem.
Para o fazer, Descartes apresenta argumentos a priori a favor da existência de Deus que supõe conclusivos. Esses argumentos são a priori porque se baseiam na ideia de Deus que Descartes descobre em si apenas com a ajuda da razão. O facto de Descartes não ter optado por argumentos a posteriori a favor da existência de Deus quando os tinha à sua disposição, poderá mais uma vez indicar a importância que depositava no uso da razão. Neste contexto, esses argumentos não serão analisados. O que é importante saberes é que, segundo Descartes, também este conhecimento de Deus resulta do raciocínio, e não da experiência; Deus, tal como o Cogito, não pode ser provado recorrendo à observação. Nenhum indício sensorial ou experimental pode mostrar que as proposições "Existo como ser pensante quando estou a pensar" e "Deus existe" são verdadeiras, ou justificar que acredites nelas.

Mundo 

Sustentado o mundo no pilar de Deus, Descartes irá tratar das coisas físicas. A questão que o ocupa é a de saber qual é a natureza das coisas físicas. Para isso, sujeita à nossa consideração o seguinte exemplo. Temos um pedaço de cera com uma certa forma, tamanho, cor, perfume; através dos sentidos, temos experiência destas propriedades; mas se o aproximares do fogo, estas propriedades alteram-se, embora o pedaço de cera seja o mesmo. Logo, estas propriedades não pertencem à natureza ou essência da cera. Isto quer dizer que a experiência não me permite captar a essência da cera e o mesmo sucede com qualquer outra coisa física. Deste modo, só o raciocínio descobre a essência da cera; assim, a cera muda de forma, tamanho, cor, perfume e o mesmo se dirá de qualquer outra propriedade de que temos experiência através dos sentidos; mas se deixar de ser uma coisa extensa no espaço deixará de ser o que é. Logo, a extensão pertence à sua essência e à de qualquer outra coisa física.



Conclusão

O que somos e o que temos perante nós e como o conhecemos? Temos um eu pensante que funciona sobretudo de maneira dedutiva, um mundo cuja essência é extensão e um Deus que é a garantia do bom uso das nossas capacidades racionais. Nas suas propriedades essenciais, o eu e o mundo são conhecidos a priori. 


Questões de reflexão

A.  Descartes estabelece a existência de Deus para justificar a confiança nas nossas capacidades racionais; mas, por sua vez, as nossas capacidades racionais justificam a existência de Deus. Este argumento é questionável? Porquê?

B.  Discute a seguinte afirmação: "Se Descartes levasse consistentemente a dúvida filosófica até ao fim, a própria noção de dúvida seria suspensa e o seu pensamento ficaria paralisado."

Faustino Vaz, Crítica na Rede / Arte de Pensar




                                                Lola

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