Páginas

domingo, 10 de novembro de 2019

Descartes: Textos


                              
                              Descartes
                   Itinerário Filosófico

A. Projecto e dúvida

Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que fiz [na Holanda, para onde me retirara]; porque são tão metafísicas e tão pouco vulgares que não agradarão talvez a toda a gente. E todavia vejo-me de certo modo obrigado a falar-vos delas, para que se possa avaliar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes. De há muito tinha notado que, pelo que respeita à conduta, é necessário algumas vezes seguir como indubitáveis opiniões que sabemos serem muito incertas, como já atrás foi dito. Mas agora, que resolvera dedicar-me apenas à descoberta da verdade, pensei que era necessário proceder exactamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se após isso acaso ficaria qual­quer cousa nas minhas opiniões que fosse inteiramente indubitável.


B. Razões para duvidar e o cogito

Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, eu quis supor que nada há que seja tal como eles o fazem imaginar. E, porque há homens que se enganam ao raciocinar, até nos mais simples temas de geometria, e neles cometem para­logismos, rejeitei como falsas, visto estar sujeito a enganar-me como qualquer outro, todas as razões de que até então me ser­vira nas demonstrações. Finalmente, considerando que os pensa­mentos que temos quando acordados nos podem ocorrer tam­bém quando dormimos, sem que neste caso nenhum seja verdadeiro, resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma cousa. E notando que esta verdade - eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos seriam impo­tentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.

C. Alma e corpo
Depois, examinando atentamente que cousa eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo e que não havia qualquer mundo ou qualquer lugar onde eu existisse; mas que, apesar disso, não podia admitir que não existia; e que antes, pelo con­trário, por isso mesmo que pensava, ao duvidar da verdade das outras cousas, tinha de admitir como muito evidente e muito certo que existia; ao passo que bastava que tivesse deixado de pensar para não ter já nenhuma razão para crer que existia, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro; por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natu­reza é apenas o pensamento, que para existir não tem necessi­dade de nenhum lugar nem depende de nenhuma cousa material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, mais fácil mesmo de conhecer que este, o qual, embora não existisse, não impediria que ela fosse o que é. 

D. Critério de verdade                 
Depois disso, considerei duma maneira geral o que é indispensável a uma proposição para ser verdadeira e certa; porque, como acabava de encontrar uma com esses requisitos, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E tendo notado que nada há no eu penso, logo existo, que me garanta que digo a verdade, a não ser que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia admitir como regra geral que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente; havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as cousas que concebemos distintamente.
Depois, tendo reflectido que duvidava, e, por consequência, o meu ser não era inteiramente perfeito, pois claramente via que o conhecer é uma maior perfeição que o duvidar, lembrei-me de procurar donde me teria vindo o pensamento de alguma cousa de mais perfeito do que eu era; e conheci com evidência que deveria ter vindo de alguma natureza que fosse efectivamente mais perfeita.

E. Deus e as provas da sua existência
Não me era difícil saber donde me teriam vindo os pensamentos que tinha de muitas outras cousas exteriores a mim, como do céu, da terra, da luz, do calor e de muitas outras, por­que, não notando neles nada de superior a mim, podia admitir que, caso fossem verdadeiros, dependiam da minha natureza, do que ela tem de perfeito; e no caso de serem falsos era de mim ainda que dependeriam, vindos do nada, isto é, do que de imperfeito existe na minha natureza. Mas o mesmo não acontecia já com a ideia dum ser mais perfeito do que o meu; porque tê-la formado do nada era manifestamente impossível; e, porque não repugna menos admitir que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito do que admitir que do nada alguma cousa proceda, não podia também aceitar que tivesse sido criada por mim próprio. De maneira que restava apenas admitir que tivesse sido posta em mim por um ser cuja natureza fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que mesmo tivesse em si todas as perfeições que eu poderia idealizar, isto é, que fosse Deus, para tudo dizer numa palavra. ­
A isso acrescentei que, visto conhecer algumas perfeições que não possuía, não era o único ser que existia (empregarei aqui, se o consentirdes, alguns termos de escolástica), mas que necessariamente devia existir algum outro mais perfeito, do qual dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que possuía. Porque, se eu fosse o único ser, independente de qualquer outro, e de mim próprio tivesse recebido todo esse pouco pelo qual participava do ser perfeito, teria podido dar a mim próprio, pela mesma razão, todo o muito que reconhecia faltar-me, e ser dessa maneira eu próprio infinito, imutável, omnisciente, omnipotente, em suma ter todas as perfeições que atribuía a Deus.
[…]

F. O mundo
Depois disso, quis ainda pensar outras verdades, e, tomando por tema a matéria dos geómetras, a qual concebia como um corpo contínuo, ou, um espaço indefinidamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em muitas partes, que podem ter diversas formas e grandezas, pois os geómetras supõem tudo isto na sua matéria, revi algu­mas das suas demonstrações mais simples. E, tendo notado que essa grande certeza, que todos lhes atribuem, se funda apenas em serem compreendidas com evidência, segundo a regra por mim há pouco indicada, notei também que nada existia nelas que me garantisse a existência dos objectos a que se referem.
Porque, por exemplo, eu compreendia bem que sendo dado um triângulo, é necessário que os seus três ângulos sejam iguais a dois ângulos rectos; mas, apesar disso, nada via que me garan­tisse que no mundo existe qualquer triângulo. Ao passo que, voltando a examinar a ideia dum ser perfeito, notava que a existência está contida nessa ideia, do mesmo modo, ou mais evidentemente ainda, que na dum triângulo está compreendido serem os seus três ângulos iguais a dois rectos, ou na esfera serem todos os seus pontos equidistantes do centro; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo como qualquer demons­tração de geometria que Deus, que é esse ser perfeito, é ou existe.
[…]
Enfim, se há ainda quem não se persuada bem da existência de Deus e da alma com as razões que apresentei, quero dizer-lhes que é menos certa a existência de todas as outras cousas, de que se julgam talvez mais seguros, como ter um corpo, existirem astros e uma terra e outras cousas semelhantes. (…)
Na verdade, em primeiro lugar, aquilo mesmo que há pouco adoptei como regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras as cousas que concebemos muito clara e distintamente, não é certo senão porque Deus é ou existe, ser perfeito de que nos vem tudo que em nós existe. Donde se segue que as nossas ideias ou noções, cousas reais que provêm de Deus, não podem deixar de ser verdadeiras na medida em que são claras e distintas. (…)
[…]

G. As Ideias
Note-se que digo razão, e não imaginação ou sentidos. Porque, embora vejamos o sol muito claramente, não devemos julgar por isso que ele tenha a grandeza que lhe vemos; e podemos à vontade imaginar distintamente uma cabeça de leão unida ao corpo duma cabra, sem que tenhamos de concluir, por isso, que no mundo existem quimeras: porque a razão não garante que seja verdadeiro o que assim vemos ou imaginamos. Mas garante-nos bem que todas as nossas ideias ou noções devem ter algum fundamento verdadeiro; porque não seria possível que Deus, que é inteiramente perfeito e verídico, as tivesse posto em nós sem isso.
[…]

DESCARTES, R. (1637) Discurso do Método. 
Lisboa: Sá da Costa, 1973, IV Parte




                                                Lola


Sem comentários:

Enviar um comentário