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domingo, 10 de março de 2019

Cultura e juizos éticos





Cultura e juízos éticos

(...) Algumas pessoas pensam que o relativismo ético se segue do facto de as culturas terem padrões diferentes. Ou seja, pensam que a seguinte inferência é válida:

1. Culturas diferentes têm códigos morais diferentes.
2. Logo, nada está objectivamente certo e errado. No que respeita à ética, os padrões de sociedades diferentes são tudo o que existe.

Contudo, isto é um erro. 
Do simples facto de as pessoas discordarem quanto a um assunto, não se segue que não haja uma verdade sobre esse assunto. Quando pensamos em questões que não são éticas, isto é óbvio. As culturas podem discordar quanto à Via Láctea - algumas pensam que é uma galáxia; outras pensam que é um rio no céu -, mas não se segue daí que não exista um facto objectivo sobre a natureza da Via Láctea. O mesmo se pode dizer da ética.

1. Se duas culturas discordam quanto a uma questão ética, pode-se explicar isto dizendo que uma delas está enganada. É fácil ignorar este facto se pensarmos apenas em exemplos como padrões de vestuário e práticas de casamento. Estes podem realmente não passar de questões de costume local. A violação, a escravatura e o apedrejamento podem ser diferentes.
O resultado de tudo isto é que, embora devamos respeitar as outras culturas, isso não oferece qualquer razão para nos abstermos sempre de fazer juízos sobre as suas práticas. Podemos ser tolerantes e mostrar respeito, mas pensar que as outras culturas não são perfeitas. No entanto, há outra razão para pensar que é impróprio fazer juízos.

2. A segunda ideia problemática é a de que todos os padrões para fazer juízos são relativos à cultura. Se dizemos que a violação de Mukhtar Mai foi errada, parece que estamos a usar os nossos padrões para julgar as suas práticas. Do nosso ponto de vista, a violação foi errada, mas quem poderá dizer que o nosso ponto de vista é correcto? Podemos dizer que os líderes tribais estão enganados, mas eles podem dizer com a mesma legitimidade que nós estamos enganados. Há assim um impasse, e parece não haver forma de ultrapassar as acusações mútuas.

Formulado mais explicitamente, este segundo argumento diz-nos o seguinte:
1. Se temos uma justificação para dizer que as práticas de outra sociedade são erradas, tem de existir um padrão do certo e do errado a quem possamos apelar e que não derive simplesmente da nossa própria cultura. O padrão a que apelamos tem de ser culturalmente neutro.
2. Mas não existem padrões morais culturalmente neutros. Todos os padrões são relativos a uma ou outra sociedade.
3. Logo, não podemos ter uma justificação para dizer que as práticas de outra sociedade são erradas.

Será isto correcto? 
Parece plausível, mas na verdade existe um padrão culturalmente neutro do certo e do errado e não é difícil dizer que padrão é esse. Afinal, a razão pela qual criticamos a violação e o apedrejamento não é a de estas acções serem «contrárias aos padrões americanos». Também não criticamos essas práticas por elas serem de algum modo más para nós. A razão pela qual fazemos a crítica é o facto de Mukhtar Mai e Amina Lawal estarem a ser maltratadas - as práticas sociais em questão são más, não para nós, mas para elas. Deste modo, o padrão culturalmente neutro é o de a prática social em questão ser benéfica ou prejudicial para as pessoas que são afectadas por ela. As boas práticas sociais beneficiam as pessoas; as más práticas sociais prejudicam as pessoas.

Este critério é culturalmente neutro no sentido relevante. Em primeiro lugar, não implica um favoritismo por algumas culturas. Pode ser aplicado da mesma forma a todas as sociedades, incluindo a nossa. Em segundo lugar, a fonte do princípio não reside no interior de uma cultura particular. Pelo contrário, o bem-estar dos seus membros é um valor intrínseco à vida de qualquer cultura viável. É um valor que tem de ser adoptado em alguma medida e sem ele uma cultura não existe. É uma condição prévia da cultura, e não uma norma contingente que surge nela. É por esta razão que nenhuma sociedade pode considerar irrelevante este tipo de crítica. A sugestão de que uma prática prejudica as pessoas nunca pode ser afastada com a alegação de que constitui um padrão estranho «trazido de fora» para julgar as práticas de uma cultura.

Problemas da Filosofia, James Rachels, 
Gradiva -(Colecção Filosofia Aberta- pp. 241-4)


Lola

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