Cultura e juízos éticos
(...)
Algumas pessoas pensam que o relativismo ético se segue do
facto de as culturas terem padrões diferentes. Ou seja, pensam que a seguinte
inferência é válida:
1. Culturas
diferentes têm códigos morais diferentes.
2. Logo,
nada está objectivamente certo e errado. No que respeita à ética, os padrões de
sociedades diferentes são tudo o que existe.
Contudo,
isto é um erro.
Do simples facto de as pessoas discordarem quanto a um assunto,
não se segue que não haja uma verdade sobre esse assunto. Quando pensamos em
questões que não são éticas, isto é óbvio. As culturas podem discordar quanto à
Via Láctea - algumas pensam que é uma galáxia; outras pensam que é um rio no
céu -, mas não se segue daí que não exista um facto objectivo sobre a natureza
da Via Láctea. O mesmo se pode dizer da ética.
1. Se duas culturas discordam
quanto a uma questão ética, pode-se explicar isto dizendo que uma delas está
enganada. É fácil ignorar este facto se pensarmos apenas em exemplos como
padrões de vestuário e práticas de casamento. Estes podem realmente não passar
de questões de costume local. A violação, a escravatura e o apedrejamento podem
ser diferentes.
O resultado
de tudo isto é que, embora devamos respeitar as outras culturas, isso não
oferece qualquer razão para nos abstermos sempre de fazer juízos sobre as suas
práticas. Podemos ser tolerantes e mostrar respeito, mas pensar que as outras
culturas não são perfeitas. No entanto, há outra razão para pensar que é
impróprio fazer juízos.
2. A segunda
ideia problemática é a de que todos os padrões para fazer juízos são
relativos à cultura. Se dizemos que a violação de Mukhtar Mai
foi errada, parece que estamos a usar os nossos padrões para
julgar as suas práticas. Do nosso ponto de vista, a violação
foi errada, mas quem poderá dizer que o nosso ponto de vista é correcto?
Podemos dizer que os líderes tribais estão enganados, mas eles podem dizer com
a mesma legitimidade que nós estamos enganados. Há assim um impasse, e parece
não haver forma de ultrapassar as acusações mútuas.
Formulado
mais explicitamente, este segundo argumento diz-nos o seguinte:
1. Se temos
uma justificação para dizer que as práticas de outra sociedade são erradas, tem
de existir um padrão do certo e do errado a quem possamos apelar e que não
derive simplesmente da nossa própria cultura. O padrão a que apelamos tem de
ser culturalmente neutro.
2. Mas não
existem padrões morais culturalmente neutros. Todos os padrões são relativos a
uma ou outra sociedade.
3. Logo, não
podemos ter uma justificação para dizer que as práticas de outra sociedade são
erradas.
Será isto
correcto?
Parece plausível, mas na verdade existe um padrão culturalmente
neutro do certo e do errado e não é difícil dizer que padrão é esse. Afinal, a
razão pela qual criticamos a violação e o apedrejamento não é a de estas acções
serem «contrárias aos padrões americanos». Também não criticamos essas práticas
por elas serem de algum modo más para nós. A razão pela qual fazemos a crítica
é o facto de Mukhtar Mai e Amina Lawal estarem a ser maltratadas - as práticas
sociais em questão são más, não para nós, mas para elas. Deste modo, o padrão
culturalmente neutro é o de a prática social em questão ser benéfica ou
prejudicial para as pessoas que são afectadas por ela. As boas práticas sociais
beneficiam as pessoas; as más práticas sociais prejudicam as pessoas.
Este
critério é culturalmente neutro no sentido relevante. Em primeiro lugar, não
implica um favoritismo por algumas culturas. Pode ser aplicado da mesma forma a
todas as sociedades, incluindo a nossa. Em segundo lugar, a fonte do princípio
não reside no interior de uma cultura particular. Pelo contrário, o bem-estar
dos seus membros é um valor intrínseco à vida de qualquer cultura viável. É um
valor que tem de ser adoptado em alguma medida e sem ele uma cultura não
existe. É uma condição prévia da cultura, e não uma norma contingente que surge
nela. É por esta razão que nenhuma sociedade pode considerar irrelevante este
tipo de crítica. A sugestão de que uma prática prejudica as pessoas nunca pode
ser afastada com a alegação de que constitui um padrão estranho «trazido de
fora» para julgar as práticas de uma cultura.
Problemas da
Filosofia, James
Rachels,
Gradiva -(Colecção Filosofia Aberta- pp. 241-4)
Lola
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