A teoria da justiça de John Rawls
Problema
Há crianças vendidas por pais extremamente pobres a quem tem dinheiro e
falta de escrúpulos para as comprar; pessoas cujo rendimento não permite fazer
mais do que uma refeição por dia; jovens que não têm a menor possibilidade de
adquirir pelo menos a escolaridade básica; cidadãos que estão presos por terem
defendido as suas ideias. Perante casos destes sentimos que as nossas intuições
morais de justiça e igualdade não são respeitadas. Surge assim a pergunta: Como
é possível uma sociedade justa? Este problema pode ter formulações mais
precisas. Uma delas é a seguinte: Como deve uma sociedade distribuir os seus
bens? Qual é a maneira eticamente correcta de o fazer? Trata-se do problema da
justiça distributiva. A pergunta que o formula é a seguinte: Quais são os
princípios mais gerais que regulam a justiça distributiva? A teoria da justiça
de John Rawls é a resposta mais influente a este problema. Esta lição irá
sujeitar à tua avaliação crítica os argumentos em que se apoia e algumas
objecções que enfrenta.
Teoria
A teoria de Rawls constitui, em grande parte, uma reacção ao utilitarismo
clássico. De acordo com esta teoria, se uma acção maximiza a felicidade, não
importa se a felicidade é distribuída de maneira igual ou desigual. Grandes
desníveis entre ricos e pobres parecem em princípio justificados. Mas na
prática o utilitarismo prefere uma distribuição mais igual. Assim, se uma
família ganha 5 mil euros por mês e outra 500, o bem-estar da família rica não
diminuirá se 500 euros do seu rendimento forem transferidos para a família
pobre, mas o bem-estar desta última aumentará substancialmente. Isto
compreende-se porque, a partir de certa altura, a utilidade marginal do
dinheiro diminui à medida que este aumenta. (Chama-se “utilidade marginal” ao
benefício comparativo que se obtém de algo, por oposição ao benefício bruto:
achar uma nota de 100 euros representa menos benefício para quem ganha 20 mil
euros por mês do que para quem ganha apenas 500 euros por mês.) Deste modo, uma
determinada quantidade de riqueza produzirá mais felicidade do que infelicidade
se for retirada dos ricos para dar aos pobres. Tudo isto parece muito sensato,
mas deixa Rawls insatisfeito. Ainda que o utilitarismo conduza a juízos
correctos acerca da igualdade, Rawls pensa que o utilitarismo comete o erro de
não atribuir valor intrínseco à igualdade, mas apenas valor instrumental. Isto
quer dizer que a igualdade não é boa em si — é boa apenas porque produz a maior
felicidade total.
Por consequência, o ponto de partida de
Rawls terá de ser bastante diferente. Rawls parte então de uma concepção geral
de justiça que se baseia na seguinte ideia: todos os bens sociais primários —
liberdades, oportunidades, riqueza, rendimento e as bases sociais da
auto-estima (um conceito impreciso) — devem ser distribuídos de maneira igual a
menos que uma distribuição desigual de alguns ou de todos estes bens beneficie
os menos favorecidos. A subtileza é que tratar as pessoas como iguais não
implica remover todas as desigualdades, mas apenas aquelas que trazem desvantagens
para alguém. Se dar mais dinheiro a uma pessoa do que a outra promove mais os
interesses de ambas do que simplesmente dar-lhes a mesma quantidade de
dinheiro, então uma consideração igualitária dos interesses não proíbe essa
desigualdade. Por exemplo, pode ser preciso pagar mais dinheiro aos professores
para os incentivar a estudar durante mais tempo, diminuindo assim a taxa de
reprovações. As desigualdades serão proibidas se diminuírem a tua parte igual
de bens sociais primários. Se aplicarmos este raciocínio aos menos favorecidos,
estes ficam com a possibilidade de vetar as desigualdades que sacrificam e não
promovem os seus interesses.
Mas esta concepção geral ainda não é uma
teoria da justiça satisfatória. A razão é que a ideia em que se baseia não
impede a existência de conflitos entre os vários bens sociais distribuídos. Por
exemplo, se uma sociedade garantir um determinado rendimento a desempregados
que tenham uma escolaridade baixa, criará uma desigualdade de oportunidades se
ao mesmo tempo não permitir a essas pessoas a possibilidade de completarem a
escolaridade básica. Há neste caso um conflito entre dois bens sociais, o
rendimento e a igualdade de oportunidades. Outro exemplo é este: se uma
sociedade garantir o acesso a uma determinada escolaridade a todos os seus
cidadãos e ao mesmo tempo exigir que essa escolaridade seja assegurada por uma
escola da área de residência, no caso de uma pessoa preferir uma escola fora da
sua área de residência por ser mais competente e estimulante, gera-se um conflito
entre a igualdade de oportunidades no acesso à educação e a liberdade de
escolher a escola que cada um acha melhor.
Como podes ver, a concepção geral de
justiça de Rawls deixa estes problemas por resolver. Será então indispensável
um sistema de prioridades que justifique a opção por um dos bens em conflito. E
nesse caso, se escolhemos um bem em detrimento de outro, é porque temos uma
razão forte para considerar um dos bens mais prioritário do que outro. Nesse
sentido, Rawls divide a sua concepção geral em três princípios:
Princípio da liberdade igual:
A sociedade deve
assegurar a máxima liberdade para cada pessoa compatível com uma liberdade
igual para todos os outros.
Princípio da diferença:
A sociedade deve
promover a distribuição igual da riqueza, excepto se a existência de
desigualdades económicas e sociais gerar o maior benefício para os menos
favorecidos.
Princípio da oportunidade justa:
As desigualdades
económicas e sociais devem estar ligadas a postos e posições acessíveis a todos
em condições de justa igualdade de oportunidades.
Estes três princípios formam a concepção de justiça de Rawls. Mas por si só
estes princípios não resolvem conflitos como os que viste. Se queres ter uma
espécie de guia nas tuas escolhas, é preciso ainda estabelecer uma ordem de
prioridades entre os princípios. Assim, o princípio da liberdade igual tem
prioridade sobre os outros dois e o princípio da oportunidade justa tem
prioridade sobre o princípio da diferença. Atingido um nível de bem-estar acima
da luta pela sobrevivência, a liberdade tem prioridade absoluta sobre o
bem-estar económico ou a igualdade de oportunidades, o que faz de Rawls um
liberal. A liberdade de expressão e de religião, assim como outras liberdades,
são direitos que não podem ser violados por considerações económicas. Por
exemplo, se já tens um rendimento mínimo que te permite viver, não podes
abdicar da tua liberdade e aceitar a restrição de não poderes sair de uma
exploração agrícola na condição de passares a ganhar mais. Outro exemplo que a
teoria de Rawls rejeita seria o de abdicares de gozar de liberdade de expressão
para um dia teres a vantagem económica de não te serem cobrados impostos.
Em cada um dos princípios mantém-se a
ideia de distribuição justa. Assim, uma desigualdade de liberdade, oportunidade
ou rendimento será permitida se beneficiar os menos favorecidos. Isto faz de
Rawls um liberal com preocupações igualitárias. Considera mais uma vez alguns
exemplos. Um sistema de ensino pode permitir aos estudantes mais dotados o
acesso a maiores apoios se, por exemplo, as empresas em dificuldade vierem a
beneficiar mais tarde do seu contributo, aumentando os lucros e evitando
despedimentos. Outro caso permitido é o de os médicos ganharem mais do que a
maioria das pessoas desde que isso permita aos médicos ter acesso a tecnologia
e investigação de ponta que tornem mais eficazes os tratamentos de certas
doenças e desde que, claro, esses tratamentos estejam disponíveis para os menos
favorecidos.
As liberdades básicas a que Rawls dá
atenção são os direitos civis e políticos reconhecidos nas democracias
liberais, como a liberdade de expressão, o direito à justiça e à mobilidade, o
direito de votar e de ser candidato a cargos públicos.
A parte mais disputável da teoria de
Rawls é a que diz respeito à exigência de distribuição justa de recursos
económicos — o que se compreende. Uma vez resolvido o problema dos direitos e
liberdades básicas nas sociedades democráticas liberais, o grande problema com
que estas sociedades se deparam é o de saber como devem ser distribuídos os
recursos económicos — trata-se do problema da justiça distributiva. Ora, como
essa exigência de distribuição justa é expressa pelo princípio da diferença,
serão submetidos à tua avaliação crítica os argumentos de Rawls em defesa desse
princípio.
Argumentos
Rawls apresenta dois argumentos a favor do princípio da diferença: o
argumento intuitivo da igualdade de oportunidades e o argumento do contrato
social hipotético.
O argumento intuitivo
da igualdade de oportunidades
Este argumento apela à tua intuição de que o destino das pessoas deve
depender das suas escolhas, e não das circunstâncias em que por acaso se
encontram. Ninguém merece ver as suas escolhas e ambições negadas pela
circunstância de pertencer a uma certa classe social ou raça. Intuitivamente
não achamos plausível que uma mulher, pelo simples facto de ser mulher,
encontre resistências à possibilidade de liderar um banco. Estas são
circunstâncias que a igualdade de oportunidades deve eliminar. Ora, estando
garantida a igualdade de oportunidades, prevalece nas sociedades actuais a
ideia de que as desigualdades de rendimento são aceitáveis independentemente de
os menos favorecidos beneficiarem ou não dessas desigualdades. Como ninguém é
desfavorecido pelas suas circunstâncias sociais, o destino das pessoas está nas
suas próprias mãos. Os sucessos e os falhanços dependem do mérito de cada um,
ou da falta dele. É assim que a maioria pensa.
Mas será que esta visão dominante da
igualdade de oportunidades respeita a tua intuição de que o destino das pessoas
deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas circunstâncias em que se
encontram? Rawls pensa que não. Por esta razão: reconhecendo apenas diferenças
nas circunstâncias sociais e ignorando as diferenças nos talentos naturais, a visão
dominante terá de aceitar que o destino de um deficiente seja determinado pela
sua deficiência ou que a infelicidade de um QI baixo dite o destino de uma
pessoa. Isto impõe um limite injustificado à tua intuição. Se é injusto que o
destino de cada um seja determinado por desigualdades sociais, também o será se
for determinado por desigualdades naturais. Afinal, a tua intuição vê a mesma
injustiça neste último caso. Logo, como as pessoas são moralmente iguais, o
destino de cada um não deve depender da arbitrariedade dos acasos sociais ou
naturais. E neste caso não poderás aceitar o destino do deficiente ou da pessoa
com um QI baixo.
O que propõe Rawls em alternativa? Que a
noção comum de igualdade de oportunidades passe a reconhecer as desigualdades
naturais. Como? Dispondo a sociedade da seguinte maneira: quem ganha na
“lotaria” social e natural dá a quem perde. De acordo com Rawls, ninguém deve
beneficiar de forma exclusiva dos seus talentos naturais, mas não é injusto
permitir tais benefícios se eles trazem vantagens para aqueles que a “lotaria”
natural não favoreceu. E deste modo justificamos o princípio da diferença.
Concluindo, a noção dominante de igualdade de oportunidades parte da intuição
de que o destino de cada pessoa deve ser determinado pelas suas escolhas, e não
pelas suas circunstâncias; mas esta mesma intuição consistentemente considerada
obriga a que aquela noção passe a incluir as desigualdades naturais. O que daí
resulta é precisamente o princípio da diferença. Como ninguém parece querer
abdicar do pressuposto da igualdade moral entre todas as pessoas, Rawls defende
que o princípio que melhor dá conta desse pressuposto é o princípio da
diferença.
O argumento do
contrato social hipotético
Imagina que não conheces o teu lugar na sociedade, a tua classe e estatuto
social, os teus gostos pessoais e as tuas características psicológicas, a tua
sorte na distribuição dos talentos naturais (como a inteligência, a força e a
beleza) e que nem sequer conheces a tua concepção de bem, ignorando que coisas
fazem uma vida valer a pena. Mas não és o único que se encontra nesta posição
original; pelo contrário, todos estão envoltos neste véu de ignorância. Rawls
afirma que esta situação hipotética descreve uma posição inicial de igualdade e
nessa medida este argumento junta-se ao argumento intuitivo da igualdade de
oportunidades. Ambos procuram defender a concepção de igualdade que melhor dá
conta das nossas intuições de igualdade e justiça. De seguida, Rawls levanta a
questão central: Que princípios de justiça seriam escolhidos por detrás deste
véu de ignorância? Aqueles que as pessoas aceitariam contando que não teriam
maneira de saber se seriam ou não favorecidas pelas contingências sociais ou
naturais. Nessa medida, a posição original diz-nos que é razoável aceitar que
ninguém deve ser favorecido ou desfavorecido.
Apesar de não sabermos qual será a nossa
posição na sociedade e que objectivos teremos, há coisas que qualquer vida boa
exige. Poderás ter uma vida boa como arquitecto ou poderás ter uma vida boa
como mecânico e parece óbvio que estas vidas particulares serão bastante
diferentes. Mas para serem ambas vidas boas há coisas que terão de estar
presentes em qualquer uma delas, assim como em qualquer vida boa. A estas
coisas Rawls chama bens primários. Há dois tipos de bens primários, os sociais
e os naturais. Os bens primários sociais são directamente distribuídos pelas
instituições sociais e incluem o rendimento e a riqueza, as oportunidades e os
poderes, e os direitos e as liberdades. Os bens primários naturais são
influenciados, mas não directamente distribuídos, pelas instituições sociais e
incluem a saúde, a inteligência, o vigor, a imaginação e os talentos naturais.
Podes achar estranho que as instituições sociais distribuam directamente
rendimento e riqueza, mas segundo Rawls as empresas são instituições sociais.
Ora, sob o véu de ignorância, as pessoas
querem princípios de justiça que lhes permitam ter o melhor acesso possível aos
bens sociais primários. E, como não sabem que posição têm na sociedade,
identificam-se com qualquer outra pessoa e imaginam-se no lugar dela. Desse
modo, o que promove o bem de uma pessoa é o que promove o bem de todos e
garante-se a imparcialidade. O véu de ignorância é assim um teste intuitivo de
justiça: se queremos assegurar uma distribuição justa de peixe por três
famílias, a pessoa que faz a distribuição não pode saber que parte terá; se
queremos assegurar um jogo de futebol justo, a pessoa que estabelece as regras
não pode saber se a sua equipa está a fazer um bom campeonato ou não. Imagina
os seguintes padrões de distribuição de bens sociais primários em mundos só com
três pessoas:
Mundo 1: 9, 8, 3;
Mundo 2: 10, 7, 2;
Mundo 3: 6, 5, 5.
Mundo 2: 10, 7, 2;
Mundo 3: 6, 5, 5.
Qual destes mundos garante o melhor acesso possível aos bens em questão?
Lembra-te que te encontras envolto no véu de ignorância. Arriscas ou jogas pelo
seguro? Tentas maximizar o melhor resultado possível ou tentas maximizar o pior
resultado possível? Rawls responde que a tua intuição de justiça te conduzirá
ao mundo 3. A escolha racional será essa. A estratégia de Rawls é conhecida
como “maximin”, dado que procura maximizar o mínimo. (Repara que a soma total
de bens sociais do mundo 1 é 20, ao passo que no mundo 3 a soma total é apenas
16. Por outras palavras, o mundo 3 é menos rico do que o mundo 1, mas mais
igualitário.) Nessa medida, defende que devemos escolher, de entre todos as
situações possíveis, aquela em que a pessoa menos favorecida fica melhor em
termos de distribuição de bens primários. É verdade que os outros dois padrões
de distribuição têm uma utilidade média mais alta. (A utilidade média obtém-se
somando a riqueza total e dividindo-a pelas pessoas existentes. A utilidade
média do mundo 1 é 6,6 e a do mundo 3 é de apenas 5,3.) Todavia, como só tens
uma vida para viver e nada sabes sobre qual será a tua posição mais provável
nos outros dois padrões, a escolha do mundo 3 é mais racional e ao mesmo tempo
mais compatível com as tuas intuições de igualdade e justiça. E o que diz o
princípio da diferença? Diz precisamente que a sociedade deve promover a
distribuição igual da riqueza, excepto as desigualdades económicas e sociais
que beneficiam os menos favorecidos. Afinal, parece que nenhuma das
desigualdades dos mundos 1 e 2 traz benefícios para os menos favorecidos.
Objecções
A teoria de Rawls não
compensa as desigualdades naturais
A concepção comum de igualdade de oportunidades não limita a influência dos
talentos naturais. Rawls tenta resolver essa falha através do princípio da
diferença. Assim, os mais talentosos não merecem ter um rendimento maior e só o
têm se com isso beneficiarem os menos favorecidos. Mas talvez Rawls não tenha
resolvido o problema. Talvez a sua teoria da justiça deixe ainda demasiado
espaço para a influência das desigualdades naturais. E nesse caso o destino das
pessoas continua a ser influenciado por factores arbitrários.
Rawls define os menos favorecidos como
aqueles que têm menos bens sociais primários. Imagina agora duas pessoas na
mesma posição inicial de igualdade: têm as mesmas liberdades, recursos e
oportunidades. Uma das pessoas tem o azar de contrair uma doença grave, crónica
e incapacitante. Esta desvantagem natural implica custos na ordem dos 200 euros
por mês para medicação e equipamentos. O que oferece a teoria de Rawls a esta
pessoa? Como esta pessoa tem os mesmos bens sociais que a outra e os menos
favorecidos são definidos em termos de bens sociais primários, a teoria de
Rawls não prevê a possibilidade de a compensar. Sobre as desigualdades
naturais, apenas é dito que os mais agraciados em talentos pela natureza podem
ter um rendimento maior se com isso beneficiarem os menos favorecidos.
O princípio da diferença assegura os
mesmos bens sociais primários a esta pessoa doente, mas não remove os encargos
causados, não pelas suas escolhas, mas pela circunstância de ter contraído uma
doença grave, crónica e incapacitante. A crítica à concepção dominante de
igualdade de oportunidades devia ter levado Rawls ao princípio de que as
desigualdades naturais, tal como as sociais, devem ser compensadas. Não se vê
justificação para tratar as limitações naturais de maneira diferente das
sociais. Logo, as desvantagens naturais devem ser compensadas (equipamento,
transportes, medicina e formação profissional subsidiadas). A teoria de Rawls
enfrenta a objecção de não reconhecer como desejável a tentativa de compensação
destas desvantagens.
A teoria de Rawls leva
a que certas escolhas subsidiem injustamente outras
A intuição que está por detrás da objecção anterior diz-te que não é justo
responsabilizar as pessoas pelas circunstâncias em que por acaso se encontram:
um deficiente não é responsável pela sua deficiência e um doente crónico pela sua
doença crónica. O outro lado da mesma intuição diz-te agora que não é justo
desresponsabilizar as pessoas pelas suas escolhas. Mais uma vez, o recurso a um
exemplo pode ajudar-te a compreender melhor o que está em jogo.
Imagina duas pessoas que trabalham na
mesma empresa de electrodomésticos. Têm, por isso, os mesmos recursos
económicos. Mas também têm em comum os mesmos talentos naturais e antecedentes
sociais. Uma delas é apaixonada por futebol e gasta uma parte razoável do seu
rendimento nas deslocações permanentes que faz para apoiar o seu clube. Somadas
as outras despesas inevitáveis de uma família, nada sobra. Por vezes esta
família tem de recorrer a apoio social do estado. A outra resolveu estudar
sistemas eléctricos depois do expediente normal de trabalho. Após um período de
estudo, compra o equipamento necessário e resolve vender os seus serviços de
electricista das seis da tarde às nove da noite. Com muitas horas de trabalho,
esforço e competência, duplica o rendimento inicial. O princípio da diferença
diz que as desigualdades de rendimento são permitidas se beneficiarem os menos
favorecidos. Que consequência tem a sua aplicação a este caso? A consequência
de fazer o apaixonado por futebol beneficiar do rendimento do electricista
esforçado.
Isto viola a tua intuição de justiça.
Parece obviamente justo compensar custos não escolhidos (doenças, deficiências,
etc.), mas é obviamente injusto compensar custos escolhidos. E é isso o que
acontece neste caso; o princípio da diferença leva a que o electricista
esforçado pague do seu bolso a escolha que faz e ainda subsidie a escolha do
apaixonado por futebol. Corrói assim a igualdade em vez de a promover: cada um
tem o estilo de vida que prefere, mas um vê o seu rendimento aumentado e o
outro vê o seu rendimento diminuído através dos impostos com que subsidia o
outro. Rawls afirma que a sua teoria da justiça tem a preocupação de regular as
injustiças que resultam das circunstâncias, e não das escolhas. Mas porque não
faz a distinção entre desigualdades escolhidas e desigualdades não escolhidas,
o princípio da diferença viola a tua intuição de que é justo que cada um seja
responsável pelos custos das suas escolhas. A não ser assim, que sentido fazem
ainda o esforço e a ambição das nossas escolhas pessoais?
As duas objecções precedentes foram
apresentadas pelo filósofo Ronald Dworkin. Dada a sua importância central,
Dworkin formulou uma teoria que visa explicitamente dar-lhes resposta.
A objecção do jogador
de basquetebol
Esta objecção foi apresentada pelo filósofo Robert Nozick. Ao contrário das
duas objecções anteriores, não procura melhorar o princípio da diferença de
maneira a que respeite cabalmente as nossas intuições morais de igualdade e
justiça. O objectivo de Nozick é antes derrubar o princípio da diferença e
fazer assentar em bases sólidas o seu princípio da transferência — tudo o que é
legitimamente adquirido pode ser livremente transferido. Para isso, formula o
contra-exemplo que é a seguir submetido à tua avaliação.
Wilt Chamberlain é um jogador de basquetebol
em alta. A sociedade em que vive distribui a riqueza segundo o princípio da
diferença ou segundo o princípio “a cada um segundo as suas necessidades”, ou
então segundo o princípio que achares mais correcto — escolhe o princípio que
quiseres. A esta distribuição de riqueza vamos chamar D1. Depois de
várias propostas, Wilt Chamberlain decide assinar o seguinte contrato com uma
equipa: nos jogos em casa, recebe 25 cêntimos por cada bilhete de entrada. A
emoção é grande. Todos o querem ver jogar. Chamberlain joga muito bem. Vale a
pena pagar o bilhete. A época termina e 1 milhão de pessoas viu os jogos.
Chamberlain ganhou 250 000 euros. O rendimento obtido é bem maior que o
rendimento médio. Gera-se assim uma nova distribuição de riqueza na sociedade em
questão, a que vamos chamar D2.
Por que razão é este caso um
contra-exemplo ao princípio da diferença? Dado que cria uma enorme
desigualdade, Nozick pergunta por que razão esta nova distribuição de riqueza é
injusta. Na situação D1, as pessoas tinham um rendimento legítimo e
não havia protestos de terceiros para que se redistribuísse a riqueza. Nenhuma
questão se levantava acerca do direito de cada um controlar os seus recursos.
Depois as pessoas escolheram dar 25 cêntimos do seu rendimento a Chamberlain e
gerou-se a distribuição D2. Haverá agora lugar a reclamações de
terceiros que antes nada reclamavam e que continuam a ter o mesmo rendimento?
Que razão há para se redistribuir a riqueza? Que razão tem o estado para
interferir no rendimento de Chamberlain cobrando-lhe impostos elevados?
Se concordas com Nozick e aceitas que a
situação D2 é legítima, então o seu princípio da transferência
está mais de acordo com as tuas intuições do que princípios redistributivos
como o princípio da diferença. Mas se assim for, o que fazer em relação às
desigualdades naturais que condenam à indigência pessoas cujos talentos
naturais não são rentáveis no mercado? Nozick aceita que temos intuições
poderosas a favor da compensação de desigualdades não escolhidas; o problema é
que os nossos direitos particulares sobre as nossas posses e rendimentos não
deixam espaço para direitos gerais. A propriedade é absoluta. E se o é, que
meios materiais tem o estado para garantir outros direitos? É a ti que cabe
fazer um juízo sobre este problema.
Questões de revisão
- A que
problema responde a teoria de Rawls?
- Que
resposta dá o utilitarismo ao problema da justiça distributiva? Que erro
vê Rawls nessa resposta?
- Achas
que a teoria de Rawls propõe que todas as desigualdades sejam removidas?
Porquê?
- O que
leva Rawls a estabelecer um sistema de prioridades entre os seus
princípios de justiça?
- Por que
razão Rawls é um liberal?
- Por que
razão Rawls é um liberal igualitário?
- Quais
são as premissas e qual é a conclusão do argumento intuitivo da igualdade
de oportunidades?
- Qual é
o ponto de partida do argumento do contrato social hipotético?
- O véu
da ignorância funciona como um teste de justiça. Porquê?
- Que
conclusão retira Rawls do argumento do contrato social hipotético?
- Em que
razão se baseia a objecção segundo a qual a teoria de Rawls não compensa
as desigualdades naturais?
- Uma das
objecções à teoria de Rawls diz que esta é insensível às escolhas e
ambições pessoais. Por que razão o diz?
- Que conclusão retira Nozick do contra-exemplo do jogador de basquetebol?
Questões de discussão
- "O
princípio da liberdade igual implica equiparar a propriedade para que uns
— os ricos — não tenham mais liberdade que outros — os pobres. Mas nesse
caso o princípio da diferença entra em contradição com o princípio da
liberdade." Concordas? Porquê?
- Discute
a seguinte afirmação: “Dar liberdade às pessoas impede qualquer restrição
às posses individuais de propriedade”.
- "Cobrar
impostos para redistribuir a riqueza aumenta a liberdade dos mais pobres
porque lhes dá acesso a um leque de escolhas que de outra forma não
teriam." Concordas? Porquê?
- "Se
o estado não redistribuir a riqueza cobrando impostos, os pobres
perpetuarão a pobreza e os ricos perpetuarão a riqueza. Mas se o estado
cobrar impostos em função da riqueza, os ricos ficam com menos capacidade
de investimento e os pobres terão menos hipóteses de sair da
pobreza." Como reagiria Rawls a estas afirmações? E Nozick?
- Qual
dos princípios responde melhor à tua intuição de justiça, o princípio da
diferença de Rawls ou o princípio da transferência de Nozick? Porquê?
In Critica
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