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terça-feira, 17 de setembro de 2019

Racionalismo de Descartes




O racionalismo de Descartes


1. Vida e obra

René Descartes nasceu em 31 de março de 1596, na pequena cidade de La Haye, atualmente Descartes, em França. Em 1606 entrou para o colégio jesuíta de La Flèche, onde estudou gramática, retórica, dialética, matemática e filosofia escolástica, dominante na época, e que consistia num misto dos ensinamentos da Bíblia e da filosofia e ciência de Aristóteles. Depois de sair de La Flèche, em 1614, frequentou a Universidade de Poitiers, onde, em 1616, obteve a licenciatura em Direito. Querendo ver o mundo, a partir de 1618, viajou alguns anos pela Europa como soldado. Durante este período, fez as suas primeiras investigações sobre matemática e física e, em 1619, enquanto retido pelo Inverno, na Alemanha, teve a visão de uma ciência ou método universal e, na noite de 10 de novembro, três sonhos sucessivos convenceram-no da aprovação divina para o seu projeto. Sabendo que era ainda demasiado jovem e imaturo para poder levar a cabo este projeto, decide esperar alguns anos e dedica-se a viajar (Alemanha, Suíça, Itália) e a resolver problemas matemáticos e físicos de caráter prático, até que, em 1628, redige as Regras para a Direção do Espírito, obra sobre o método, que ficará inacabada e só será publicada depois da sua morte. Em 1629 abandona definitivamente a França e instala-se na Holanda, onde vive até 1649. Aí dedica-se principalmente à física e escreve o Tratado do Mundo, em que defende uma conceção mecanicista da realidade, mas que retira de publicação ao saber da condenação de Galileu pela Inquisição, em 1633, por defender a teoria heliocêntrica de Copérnico. Em 1637, publica em francês três ensaios, Dióptrica, Meteóricos e Geometria, em que expõe o essencial da sua física e do que é agora conhecido como geometria analítica, uma descoberta sua, que faz acompanhar pelo Discurso do Método, uma espécie de prefácio em que explica o seu percurso intelectual e o método que está na origem das teorias apresentadas nos ensaios que constituem a obra. Quatro anos mais tarde, em 1641, publica em latim a sua obra-prima filosófica, as Meditações sobre Filosofia Primeira, em que expõe os fundamentos metafísicos da sua física e da sua biologia. A obra circulou primeiro em manuscrito entre vários filósofos e cientistas da época, que escreveram objeções a que Descartes depois respondeu. Em 1644 publica os Princípios da Filosofia, obra que é uma espécie de súmula da sua filosofia e da sua ciência, e que ele pretendia ver substituir os compêndios sobre Aristóteles nas escolas. A última obra publicada durante a sua vida foi o Tratado das Paixões da Alma, que saiu em 1649, e é o fruto da troca de correspondência com a princesa Isabel da Boémia acerca das relações entre a alma e o corpo. Nesse mesmo ano Descartes troca a Holanda pela Suécia a instâncias da rainha Cristina, que queria aprender a sua filosofia. As lições de filosofia da rainha decorriam, no entanto, às 5 da manhã e Descartes, de saúde frágil e habituado a passar as manhãs na cama, não suportou o rigoroso inverno sueco, contraiu pneumonia e morreu a 11 de fevereiro de 1650.

2. O projeto de Descartes
2.1 Contexto histórico

O interesse do Renascimento pela cultura clássica tornou acessível aos europeus o pensamento não-aristotélico da Antiguidade. As ideias de Platão e das principais escolas filosóficas do período helenístico — o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo —, que durante séculos tinham permanecido mais ou menos esquecidas ou ignoradas, devido à enorme influência de Aristóteles sobre o pensamento medieval, tornaram-se conhecidas e discutidas nos centros cultos da Europa, e tiveram um profundo impacto sobre o pensamento europeu dos séculos XVI e XVII. O mesmo aconteceu com o pensamento de Pirro de Élis, que se tornou conhecido através das obras de Sexto Empírico e esteve na origem do ressurgimento do ceticismo. De igual modo, as ideias de Epicuro, apresentadas por Lucrécio, no poema Rerum Natura, tornaram-se populares nesta época e estiveram na base do reaparecimento de conceções mecanicistas e atomistas da matéria e do mundo.1
Estes dois factores provocaram o enfraquecimento da conceção medieval do mundo, que era ainda dominante nas principais universidades da Europa, e levaram Descartes a pensar que esta conceção era completamente inadequada.

2.2 A rejeição do pensamento aristotélico-medieval


Quais as razões de Descartes para rejeitar a forma medieval de compreender e explicar o mundo?

Em primeiro lugar, Descartes achava as teorias dos filósofos medievais duvidosas e incertas, isto é, que, uma vez que não tinham o grau de certeza que ele considerava necessário para que fossem conhecimento, era possível duvidar da sua verdade. Segundo ele, isto seria a uma consequência da teoria do conhecimento que as suportava, que tinha também as suas raízes no pensamento de Aristóteles, e afirmava que todo o conhecimento tem origem na experiência.2 Ao contrário daquilo que pensavam os medievais, Descartes não pensava que a experiência pudesse garantir a verdade das nossas crenças e, portanto, julgava que a experiência não constitui uma base sólida e segura para o conhecimento.

Em segundo lugar, Descartes discordava completamente da metafísica tradicional. Como a maioria das pessoas da época, ele aceitava as crenças essenciais do Cristianismo — a existência de Deus e a imortalidade da alma —, mas recusava o essencial da metafísica de Aristóteles e dos medievais, que dependia de vários tipos de causas e de um infindável número de substâncias e de distinções conceptuais, de que Descartes não via nem a necessidade nem a utilidade.3 Embora não recuse a noção de substância, ele vai aceitar apenas dois tipos de substâncias e eliminar a maior parte do aparato conceptual medieval.

Por último, Descartes recusa também a ciência medieval, em particular, a física, que é, no essencial, uma vez mais, a de Aristóteles. Esta física recorria a diferentes tipos de causas para explicar os objetos. Uma estátua, por exemplo, tem uma causa formal (a forma da estátua), uma causa material (a matéria de que é feita), uma causa eficiente (o artista), e uma causa final (o propósito ou finalidade com que é feita), que em última instância determina o que ela é. A física de Aristóteles é, por este motivo, uma física finalista: tudo o que acontece é explicado pelo seu propósito ou finalidade. Descartes recusa esta explicação por intermédio de causas finais e substitui-a por uma física mecanicista, que, tal como a física atual, aceita apenas a causa eficiente e explica os fenómenos a partir de um número muito reduzido de leis da natureza.
Podemos sintetizar as principais diferenças entre o pensamento medieval e o de Descartes no quadro seguinte:
PENSAMENTO MEDIEVAL
DESCARTES
Filosofia do conhecimento
O conhecimento (mesmo o matemático) tem origem nos sentidos.
O conhecimento tem origem na razão e é constituído por verdades indubitáveis.
Metafísica
A realidade é constituída por um grande número de substâncias.
A realidade é constituída por um pequeno número de substâncias.
Ciência
Qualitativa e finalista. Os acontecimentos são explicados com base em vários tipos de causas.
Quantitativa e mecanicista. Usa apenas a causa eficiente e um pequeno número de leis da natureza para explicar os objetos físicos e os seres vivos.


2.3 A filosofia como uma árvore


O que acabámos de ver levou Descartes a estabelecer como objetivo substituir a conceção aristotélico-medieval do mundo — empirista, finalista e geocêntrica — por uma nova conceção do mundo — racionalista, mecanicista e heliocêntrica. Para concretizar este objetivo, ele formula um conjunto de teorias de caráter científico sobre o mundo, o homem e os animais, que depois procura fundamentar com uma teoria do conhecimento e uma metafísica radicalmente diferentes das medievais. Esta conceção do saber, em que as diferentes ciências são justificadas pela metafísica, é bem ilustrada pela famosa metáfora da árvore:

[A] Filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física, e os ramos que saem do tronco são todas as outras ciências que, se reduzem a três principais: a Medicina, a Mecânica e a Moral. (…)
Ora, como não é das raízes nem do tronco das árvores que se colhe os frutos, mas apenas das extremidades dos ramos, a principal utilidade da Filosofia depende daquelas suas partes que são aprendidas em último lugar. (Princípios de Filosofia, p. 22.)

Assim, para ele, a metafísica constitui o fundamento último de todo o conhecimento. É da metafísica que se deduzem os princípios fundamentais da física, da qual derivam, por sua vez, todas as outras ciências. Note-se, no entanto, que a utilidade da Filosofia está nas ciências cujos conhecimentos têm uma aplicação prática. A metafísica e a filosofia do conhecimento podem fornecer os fundamentos indubitáveis do conhecimento, mas a importância da filosofia está nos conhecimentos que permitem melhorar a forma como os seres humanos vivem.



2.4 Conhecimento e fundacionalismo


Descartes pensava ser possível responder ao desafio dos céticos e mostrar que existe conhecimento. Para o fazer, ele vai defender duas teses fundamentais.

A primeira é a tese de que só as crenças de cuja verdade não é possível duvidar são conhecimento. Por exemplo, a afirmação «Ou o Porto ou o Sporting, ou o Benfica ganham a Liga na próxima época» não constitui conhecimento. Embora a probabilidade de esta afirmação ser verdadeira seja muito elevada — uma vez que são geralmente estes clubes que ganham a Liga —, é sempre possível que seja falsa. E se é sempre possível que seja falsa, não podemos estar absolutamente seguros da sua verdade, e, portanto, não constitui um conhecimento.4 E, obviamente, afirmações falsas também não constituem conhecimento. Só as afirmações cuja verdade é indubitável são conhecimento.

A segunda tese que Descartes vai defender é o fundacionalismo. A ideia base do fundacionalismo é a de que justificamos as nossas crenças apelando a outras crenças que são mais básicas, até chegarmos a crenças tão básicas que não seja possível ou razoável procurar justificá-las através de outras crenças. Assim, de acordo com o fundacionalismo há dois tipos de crenças, as básicas, ou fundacionais, e as não-básicas, ou não-fundacionais. As crenças não-fundacionais são crenças que, para que sejam consideradas conhecimento, têm de ser justificadas por outras crenças. As crenças fundacionais, evidentemente, são as crenças que justificam as crenças não-fundacionais. Para o fundacionalismo, o conhecimento é como um edifício de crenças, em que as crenças mais básicas suportam as outras, da mesma forma que os andares inferiores de um edifício suportam os outros.5
Embora haja várias formas de fundacionalismo, o de Descartes tem uma característica que é essencial para o seu projeto de justificação das ciências, a saber, as crenças básicas são autoevidentes, isto é, são verdades indubitáveis. Assim, todas as crenças que sejam delas derivadas corretamente, ou que sejam corretamente justificadas por seu intermédio, são também verdades indubitáveis e, por isso, conhecimento. Dito isto, é fácil perceber qual a resposta de Descartes ao argumento da regressão infinita dos céticos: o conhecimento existe, porque é possível evitar a regressão infinita, uma vez que há crenças que, por serem autoevidentes não precisam que outras crenças as justifiquem, e podem justificar as crenças que precisam de justificação. É fácil também perceber a estratégia de Descartes para provar que existe conhecimento: partir de princípios indubitáveis e raciocinar de modo a que tudo o que seja derivado desses princípios seja também indubitável. A estratégia de Descartes vai, portanto, consistir em colocar na base do seu sistema verdades absolutamente indubitáveis e, a partir delas, deduzir todas as outras verdades, de modo a garantir que sejam também indubitáveis. Partindo de verdades indubitáveis, Descartes pretende dar uma base completamente sólida ao conhecimento — evitando, assim, o defeito que apontou ao saber medieval —, e, ao mesmo tempo, eliminar a objeção dos céticos, pois essas verdades não precisam de ser justificadas e justificam todas as outras que seja possível deduzir delas por processos de raciocínio corretos. Esta estratégia de Descartes é claramente inspirada na Matemática e, em particular, na geometria de Euclides (c. 300 a. C.). Na obra Elementos, Euclides, a partir de cinco axiomas básicos, considerados autoevidentes, prova um grande número de propriedades das figuras e dos sólidos geométricos. Como Lars-Göran Johansson diz:
A contribuição de Euclides foi mostrar que as matemáticas do seu tempo (e outras mais) poderiam ser logicamente deduzidas de um pequeno número de axiomas, isto é, de afirmações que eram obviamente verdadeiras e não exigiam justificação adicional. As matemáticas tornaram-se uma ciência dedutiva: a partir de premissas seguras (axiomas) inferia-se conhecimento novo usando regras lógicas precisas. Isto é o mesmo que dizer que uma prova matemática confere certeza. Euclides foi tão bem sucedido com o seu método axiomático-dedutivo que durante um longo período de tempo este método foi considerado o arquétipo de como a ciência deveria proceder. (…)As matemáticas axiomáticas de Euclides conduziram a um ideal, o ideal da ciência axiomática, que pode ser caracterizado do seguinte modo:

·         A ciência visa atingir conhecimento certo, não meras crenças ou opiniões.
·         Começa estabelecendo axiomas, isto é, verdades tão óbvias que não requerem justificação adicional.
·         A seguir deduz destes axiomas novas verdades usando métodos lógicos precisos.
(Lars-Göran Johansson, Philosophy of Science for Scientists, Cham: Springer, 2016, p. 9.)

O projeto filosófico de Descartes segue de perto este modelo. Para o concretizar, ele precisa de encontrar uma ou mais crenças capazes de desempenhar um papel similar ao que os axiomas desempenham na geometria de Euclides. O próximo passo de Descartes vai ser, portanto, encontrar essas verdades indubitáveis.



3. A dúvida metódica
3.1 Começar de novo desde os primeiros fundamentos


Como vai Descartes proceder para encontrar as verdades indubitáveis de que necessita para justificar as suas teorias científicas?
Temos muitas crenças, umas triviais, outras importantes, umas verdadeiras, outras falsas e estamos habituados a rever e a abandonar as nossas crenças à medida que descobrimos que são por alguma razão insatisfatórias. Talvez já tenhamos acreditado que o Sol se move no céu de este para oeste todos os dias, mas quando nos mostraram que isso não corresponde à realidade abandonámos essa crença. Fizemos o mesmo com muitas outras crenças. E estamos dispostos a voltar a fazê-lo se, e quando, soubermos que uma crença é falsa. Esta forma de proceder é apropriada aos nossos objetivos. Estamos, em geral, satisfeitos com as nossas opiniões, porque elas permitem-nos responder adequadamente à maior parte das solicitações do dia a dia e, por isso, só as revemos em caso de estrita necessidade.
Esta estratégia, no entanto, não serve o propósito de Descartes de fundar as ciências em bases completamente sólidas e seguras. Para realizar este objetivo, ele precisa de encontrar verdades absolutamente indubitáveis a partir das quais possa, ordenadamente, deduzir outras verdades, que, por isso, ficamos a saber serem também indubitáveis. Ora, para encontrar estas verdades, pensa Descartes, é necessário investigar metodicamente todas as crenças, começando pelas mais básicas ou fundamentais, usando como princípio só aceitar como verdadeiras as opiniões de que não haja a mínima razão para duvidar. Só deste modo, é possível eliminar as opiniões que se revelem incapazes de resistir à dúvida, quer porque sejam falsas quer porque a sua verdade não é indubitável.
Descartes não pensa, portanto, que todas as nossas opiniões sejam falsas. Ele admite que muitas das nossas crenças de que é possível duvidar sejam verdadeiras. Mas como o seu objetivo é encontrar verdades indubitáveis, qualquer opinião da qual haja razões para duvidar, por insignificantes que sejam, pode ser abandonada como se fosse falsa. Também não pensa que seja necessário percorrer todas as opiniões uma a uma e mostrar que são duvidosas ou falsas, o que seria, evidentemente, impossível de fazer. Ele pensa que basta atacar os fundamentos ou princípios dos quais as nossas opiniões derivam para pôr em questão todas essas opiniões. Se esses princípios se revelarem duvidosos ou falsos, então é óbvio que todas as opiniões que deles dependem são também duvidosas ou falsas.6 As crenças que se revelem capazes de superar este teste indubitabilidade — isto é, das quais seja absolutamente impossível duvidar — constituem as bases sólidas nas quais todo o conhecimento vai ser fundado. É nisto que consiste o método cartesiano da dúvida.


3.2 Primeiro nível da dúvida: o argumento das ilusões dos sentidos


A maioria das pessoas pensa que o conhecimento tem origem nos sentidos e que os sentidos são absolutamente fiáveis. Os filósofos costumam chamar a este ponto de vista muito popular realismo de senso comum.7 O realismo de senso comum é constituído por duas teses fundamentais:
a) a realidade existe de forma contínua e independente de nós;
b) conhecemos a realidade tal como ela é diretamente pelos sentidos.
O realismo de senso comum corresponde ao nosso ponto de vista de todos os dias. De uma maneira geral, raciocinamos e agimos assumindo que existe um mundo composto por objetos físicos, que os nossos sentidos nos mostram exatamente como são. Se vemos um amigo nosso vestido com umas calças de ganga e uma camisola vermelha não duvidamos de que o nosso amigo tenha, de facto, umas calças de ganga e uma camisola vermelha vestidas. A teoria do conhecimento medieval, como já vimos, está de acordo com esta crença de senso comum, segundo a qual os sentidos são fiáveis e, portanto, uma fonte adequada de conhecimento. Dado isto, é natural que Descartes comece a investigação sistemática das nossas crenças pelas que têm origem nos sentidos e que o primeiro argumento a que recorre, o argumento das ilusões dos sentidos, tanto vá pôr em questão o realismo de senso comum como a tradição filosófica vigente. Nas Meditações sobre a Filosofia Primeira, Descartes apresenta este argumento do modo seguinte:

Porém, descobri que eles [os sentidos] por vezes nos enganam, e é de prudência nunca confiar totalmente naqueles que, mesmo uma só vez, nos enganaram. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 107.)

O argumento das ilusões dos sentidos tem por objetivo duvidar da fiabilidade dos sentidos, isto é, pôr em causa que os sentidos são fiáveis e que nos mostrem os objetos físicos como eles efetivamente são, e, como nos mostra o texto de Descartes, consiste em afirmar que os sentidos enganam-nos, para daí concluir que os sentidos não são fiáveis. Descartes dá exemplos deste tipo de enganos:

Com efeito, algumas vezes, mostravam-se de perto como quadradas torres que de longe me parecem redondas, e enormes estátuas que se elevam nos seus terraços não me pareciam grandes, vistas do rés-do-chão. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 205.)

Nestes e em outros casos semelhantes, os sentidos dão-nos informações contraditórias. A conclusão a tirar destes casos, pensa Descartes, é que nenhuma crença com origem nos sentidos é indubitável, uma vez que, mesmo quando os sentidos não nos enganam, o facto de às vezes nos enganarem impede-nos de ter a certeza da sua verdade. Por outras palavras, os sentidos não são uma fonte de conhecimento acerca da natureza dos objectos físicos, porque nenhuma crença com origem nos sentidos, mesmo quando verdadeira, está infalivelmente justificada.


3.3 Segundo nível da dúvida: o argumento dos sonhos


O argumento das ilusões dos sentidos levanta dúvidas quanto à fiabilidade das nossas perceções em algumas ocasiões especiais. Mas, na maior parte das situações, podemos nós objetar, temos absoluta certeza da verdade das informações que os sentidos nos fornecem. Posso eu duvidar de que estou agora no meu escritório, sentado à secretária, a escrever no computador? Percebe-se que duvidemos das sensações que nos mostram as torres como redondas ou as estátuas como pequenas, pois temos muitas outras sensações que estão em conflito com elas. Mas isso não acontece, nem parece poder acontecer, agora que inequivocamente percepciono as estantes e os livros, a secretária e o computador, e todos os objetos que constituem o meu escritório. Como poderia duvidar de que estou no meu escritório, sentado à secretária, a escrever no computador quando os meus diferentes sentidos inequivocamente o confirmam? A resposta a esta objeção, que põe em causa a eficácia do argumento das ilusões dos sentidos, é o argumento dos sonhos.

Com efeito, quantas vezes me acontece que, durante o repouso noturno, me deixo persuadir de coisas tão habituais como que estou aqui, com o roupão vestido, sentado à lareira, quando, todavia, estou estendido na cama e despido! Mas agora, observo este papel seguramente com os olhos abertos, esta cabeça que movo não está a dormir, voluntária e conscientemente estendo esta mão e sinto-a; o que acontece quando se dorme não parece tão distinto. Como se não me recordasse de já ter sido enganado em sonhos por pensamentos semelhantes! Por isso, se reflito mais atentamente, vejo com clareza que vigília e sono nunca se podem distinguir por sinais seguros […]. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 108.)

Já todos sonhámos que algo está a acontecer, para depois descobrirmos tratar-se apenas de um sonho. As imagens mentais que temos em certos sonhos são tão idênticas às com origem nos objetos que somos levados a pensar que aquilo que estamos a sonhar é real. Só quando acordamos é que, retrospetivamente, percebemos ter-se tratado apenas de um sonho. Descartes pensa que esta semelhança entre as perceções sonhadas e as reais mostra que, com base nos sentidos, não é possível distinguir de forma absolutamente segura o sono da vigília e, consequentemente, estarmos certos de que as perceções que estamos agora a ter representam adequadamente à realidade.
Este argumento de Descartes tem sido tão mal entendido que é conveniente tentar explicá-lo bem. A principal dificuldade talvez seja que tendemos a pensar imediatamente que temos a certeza de estar agora acordados e que nunca nos ocorreu, quando acordados, que pudéssemos estar a dormir e a sonhar. Mas será que temos mesmo a certeza? Podemos estar convencidos de que agora estamos acordados, mas estarmos convencidos de que algo é verdadeiro e termos a certeza de que é verdadeiro são duas coisas diferentes. Aquilo que o argumento de Descartes pretende mostrar é que os nossos pensamentos em alguns sonhos são tão semelhantes aos pensamentos que temos quando acordados, que, se compararmos apenas esses pensamentos uns com os outros, não podemos ter a certeza absoluta de que uns são sonhos e os outros são reais. E se não podemos ter a certeza absoluta de que os nossos pensamentos atuais são reais, então não podemos dizer que sabemos ou conhecemos, porque, como já vimos, para Descartes, só aquilo de que estamos absolutamente certos é saber ou conhecimento.
Imaginemos que alguém nos apresenta duas imagens exatamente iguais da Ponte 25 de Abril, em Lisboa, e nos diz que uma foi tirada com uma câmera fotográfica e a outra produzida com um software extremamente poderoso, capaz de originar imagens em tudo semelhantes às melhores fotografias das melhores câmeras. Ao olharmos atentamente para as duas imagens vemos que nada as distingue, que são em tudo iguais. Podemos estar absolutamente seguros de qual é a fotografia? Não, mesmo que alguém nos tenha fortemente convencido de que uma delas é a fotografia. O mesmo se passa, pensa Descartes, com as nossas perceções que representam a realidade e com o conteúdo de alguns dos nossos sonhos. São tão idênticos que mesmo quando estamos firmemente convencidos de que umas representam a realidade e as outras não, não podemos estar absolutamente seguros disso.
Por consequência, mesmo quando acredito firmemente estar sentado à secretária e a escrever no computador, não posso estar absolutamente seguro de que é isso de facto o que está a acontecer. É, portanto, logicamente possível que esteja a dormir e a sonhar, e que nada daquilo em que acredito naquele momento esteja realmente a acontecer. Claro que é muito improvável e não acreditamos por um momento que seja verdade. Isso, no entanto, não afeta o argumento de Descartes, que depende apenas da possibilidade de algo ser verdade, não de que o seja efetivamente. Se é logicamente possível que eu esteja a dormir e a sonhar, então não é uma verdade indubitável que esteja sentado à secretária e a escrever no computador.
O argumento das ilusões dos sentidos põe em causa a nossa confiança nos sentidos, porque estes às vezes enganam-nos. No entanto, o próprio Descartes reconhece que isso acontece apenas em alguns casos muito especiais e que, portanto, o argumento das ilusões dos sentidos não é suficiente para mostrar que os sentidos não são a origem de verdades indubitáveis. O argumento dos sonhos responde a esta dificuldade, levando a dúvida mais longe ao chamar a atenção para que não existe nenhum critério que permita distinguir com absoluta certeza quando estamos acordados de quando estamos a sonhar, o mesmo é dizer, as nossas perceções reais das nossas perceções ilusórias dos sonhos. É óbvio que para efeitos práticos do dia a dia a distinção que fazemos entre sonho e vigília é adequada. Mas agora pretendemos saber se pela experiência podemos chegar a verdades indubitáveis e, para isso, nenhuma dúvida pode subsistir. Ora, se não posso estar completamente certo de que não estou a dormir e a sonhar, também não posso estar seguro da verdade de nenhuma crença com origem na experiência e, portanto, a experiência não é nunca uma fonte de verdades indubitáveis.


3.4 Terceiro nível da dúvida: o argumento do Deus enganador ou do génio maligno


O argumento das ilusões dos sentidos e o argumento dos sonhos levam o mais longe possível as dúvidas acerca das nossas opiniões com origem nos sentidos. Se Descartes tivesse apenas por objetivo mostrar que nenhuma crença com origem nos sentidos é uma verdade indubitável, não precisaria de recorrer a nenhum outro argumento. Uma vez admitida a possibilidade de estarmos a sonhar, todas as nossas crenças com origem nos sentidos podem ser ilusórias. Mas Descartes não quer apenas mostrar que os sentidos não são uma fonte de verdades indubitáveis; ele quer também estender a dúvida às crenças com origem na razão, que são, para muitas pessoas, a fonte de verdades indubitáveis. O exemplo mais óbvio de crenças com origem na razão é o das Matemáticas. A verdade de proposições, como, por exemplo, 2 + 2 = 4, não é determinada através da experiência e, portanto, estas proposições não são postas em questão pelo argumento dos sonhos. Como o próprio Descartes diz, quer estejamos acordados quer estejamos a dormir, dois mais três são sempre cinco e um quadrado tem sempre apenas quatro lados. Assim, para duvidar das proposições da Matemática, e em particular, da Aritmética e da Geometria, Descartes vai recorrer a um outro argumento: o argumento do Deus enganador ou do génio maligno.

Todavia, está gravada no meu espírito uma velha crença, segundo a qual existe um Deus que pode tudo e pelo qual fui criado tal como existo. Mas quem me garante que ele não procedeu de modo que não houvesse nem terra, nem céu, nem corpos extensos, nem figura, nem grandeza, nem lugar, e que, no entanto, tudo isto me parecesse existir tal como agora? E mais ainda, assim como concluo que os outros se enganam algumas vezes naquilo que pensam saber com absoluta perfeição, também eu me podia enganar todas as vezes que somasse dois e três ou contasse os lados de um quadrado. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp. 110–111.)

Descartes coloca agora a possibilidade de um Deus que é ao mesmo tempo criador, sumamente poderoso e enganador. Um Deus assim pode ter-nos criado de forma a que nos enganemos sempre que raciocinemos mesmo em relação àquilo que nos parece completamente evidente.
Descartes usa este argumento com dois objetivos distintos. Em primeiro lugar, estender a dúvida à existência das realidades físicas exteriores, uma vez que um Deus sumamente poderoso e enganador tem a capacidade de fazer com que toda a existência seja uma espécie de sonho ou criação nossa; e, em segundo lugar e principalmente, mostrar que as proposições com origem na razão, como as da Matemática, não são verdades indubitáveis, uma vez que Deus pode ter-nos criado de modo a que nos enganemos sempre que façamos uma operação matemática simples.
Este é um argumento muito forte, uma vez que consiste em colocar a hipótese da existência de um deus, ou génio maligno, capaz de fazer o que quer que seja. É evidente que Descartes nunca acreditou que um deus com estas caraterísticas pudesse existir, mas, uma vez mais, a mera possibilidade é tudo aquilo de que necessita. Se não podemos mostrar que a hipótese do Deus enganador é falsa, então não podemos estar absolutamente certos da verdade de nenhuma das nossas opiniões, seja das que têm origem na experiência, como a existência do mundo, seja das que têm origem na razão, como as verdades da Aritmética e da Geometria.
DÚVIDA METÓDICA
Níveis de dúvida
Resumo dos argumentos
Argumento das ilusões dos sentidos
"Os sentidos enganam-nos algumas vezes.
Logo, os sentidos não são fiáveis."
Argumento dos sonhos
"Não é possível distinguir com clareza o sono da vigília.
Logo, os sentidos e a experiência não podem ser a fonte de verdades indubitáveis."
Argumento do Deus enganador
"Podemos ter sido criados por um Deus enganador de modo a acreditar convictamente que aquilo que é falso é verdade.
Logo, temos razões para duvidar da existência da realidade física e das verdades da Matemática."


3.5 Caracterização da dúvida


A duvida metódica corresponde à parte negativa, ou destrutiva, do pensamento de Descartes. Esta parte tem um papel absolutamente essencial no seu projeto. Segundo Descartes, a dúvida tem três vantagens principais:
  • libertar-nos dos preconceitos;
  • desviar o espírito dos sentidos;
  • impedir-nos de duvidar do que reconhecemos ser verdadeiro.
Descartes pensava que em criança adquirimos muitos preconceitos — como, por exemplo, que os sentidos nos permitem conhecer a realidade tal como ela é — que, se não forem corrigidos, manter-se-ão na idade adulta. A dúvida metódica liberta-nos desses preconceitos, ao mostrar que, ao contrário do que pensamos, os sentidos não são um fundamento adequado para as nossas crenças.
Um segundo benefício que Descartes atribui à dúvida metódica é o de afastar a mente dos sentidos. Se refletirmos um pouco nos três argumentos que constituem o essencial da dúvida, perceberemos que eles têm, de facto, este efeito ao apresentarem razões cada vez mais fortes para que duvidemos da verdade das perceções sensoriais. Isto está de acordo com a posição filosófica de Descartes que desvaloriza o papel dos sentidos em favor da razão.
Por último, diz Descartes, a dúvida prepara-nos para reconhecer a verdade. A dúvida, ao libertar-nos dos preconceitos e ao afastar-nos dos sentidos, cria as condições para que o espírito descubra em si próprio as verdades indubitáveis que não foi capaz de encontrar fora de si, na realidade que o rodeia.
Deste modo, a dúvida metódica prepara o caminho para a parte construtiva da filosofia de Descartes, em que os seus aparentes resultados céticos, como veremos, são superados. Dada a sua relevância no pensamento de Descartes é frequente dizer-se que a dúvida é:
  • metódica, porque procede de forma organizada e sistemática à investigação das nossas crenças, baseada no princípio que só é verdadeiro aquilo de que não houver nenhuma razão para duvidar;
  • hiperbólica, ou exagerada, porque considera como falso aquilo de que há razões para duvidar e inventa razões para duvidar, como os argumentos dos sonhos e do Deus enganador;
  • radical, porque põe em causa os princípios ou fundamentos do pensamento tradicional (os sentidos e a razão) e incide, em princípio, sobre todas as nossas crenças;
  • provisória, porque não é um fim em si mesmo, como a dúvida cética, mas um meio para alcançar a primeira certeza.

4. O cogito
4.1 Eu penso, logo existo

Como acabámos de ver, a dúvida põe em questão as crenças que têm por base seja os sentidos seja a razão. Nem a razão nem os sentidos, portanto, são capazes de fornecer verdades indubitáveis. A conclusão a tirar parece ser óbvia: o conhecimento não é possível. O projeto de investigação das nossas crenças, aparentemente, em vez de descobrir verdades indubitáveis que fundem as nossas convicções acerca do mundo e garantam a sua verdade, mergulha-nos no mais profundo ceticismo. Descartes — parece daí resultar — não é apenas um cético, mas o mais extremo e radical dos céticos.
Mas é Descartes, de facto, um cético? Não. O objetivo dos céticos é mostrar que não existe conhecimento. O objetivo de Descartes é o oposto: provar que existe conhecimento, isto é, crenças de cuja verdade estamos completamente seguros. O ceticismo é, portanto, apenas aparente, o resultado provisório da estratégia de Descartes para mostrar que existem verdades indubitáveis. Descartes descreve a forma como chega à primeira verdade deste tipo a partir da dúvida do seguinte modo:

[N]otei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de todo necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava. (Discurso do Método, pp. 50–51.)

O raciocínio de Descartes é o seguinte: mesmo que tudo aquilo em que acredita seja duvidoso ou falso, como a dúvida sugere, há pelo menos uma coisa que tem de ser verdadeira para que possa duvidar, a saber, a sua própria existência e, portanto, a sua existência é uma verdade indubitável. Isto é, Descartes está convencido de que o pensamento não pode existir por si só, e como o pensamento existe — uma vez que a dúvida é uma forma de pensamento —, tem de existir necessariamente uma entidade em que o pensamento ocorra. Essa entidade é o «eu», cuja existência é, portanto, uma verdade indubitável. É por isso que Descartes pode afirmar «Eu penso, logo, existo». Descartes não é, portanto, um cético. Ao contrário dos céticos, que, como vimos anteriormente, constroem argumentos com o objetivo de mostrar que não é possível justificar racionalmente nenhuma das nossas crenças, Descartes usa a dúvida com o objetivo contrário, isto é, como um meio para certeza. Ao levar a dúvida ao extremo, tornando-a hiperbólica, a impossibilidade da dúvida torna-se evidente, pois no próprio ato da dúvida descobrimos a verdade indubitável da nossa existência. Esta descoberta vai ser usada por Descartes como o ponto de partida do seu projeto filosófico-científico.


4.2 Sou uma substância pensante

O que é este «eu» que a dúvida mostrou que existe? A resposta de Descartes é que o eu é uma coisa pensante (res cogitans). Esta resposta, no entanto, implica uma nova questão: o que é uma coisa pensante?

Em primeiro lugar, uma coisa pensante é uma substância, isto é, algo que pode existir de per si, que não depende de qualquer outra coisa para existir. Em sentido estrito, apenas Deus é uma substância, pois apenas Deus não depende de nenhuma outra coisa para existir. Mas, Descartes usa também o termo «substância» para referir aquilo que é independente de tudo exceto de Deus. O eu que pensa, ou como muitas vezes também é designado, o cogito é uma substância neste sentido secundário da palavra.

Em segundo lugar, dizer que o eu é uma substância pensante é dizer que tem como propriedade essencial ser pensamento. O que é, então, o cogito? Uma entidade que é puro pensamento. É por isso que Descartes lhe chama também algumas vezes espírito, alma, intelecto, ou razão.
Há uma terceira substância, para além de Deus e da alma, a saber, a matéria (res extensa) ou o corpo, cuja propriedade essencial é a extensão. Normalmente pensamos nos corpos como tendo caraterísticas que percebemos pelos sentidos: uma certa cor, uma certa sensação táctil, um certo odor, etc. Contudo, para Descartes, isso não constitui verdadeiramente propriedades dos corpos. Segundo ele, os corpos não têm nem cor, nem odor, nem sabor, nem nenhuma das outras coisas que percebemos pela perceção. Isto é particularmente claro no caso da audição. Percebemos sons, mas os físicos ensinam-nos que os sons não existem, apenas a vibração das moléculas que compõem a matéria. Assim, Descartes, como outros pensadores do seu tempo, distingue entre propriedades primárias e propriedades secundárias dos objetos.8 As qualidades secundárias, como as cores, os odores, os sabores, etc., não são propriedades reais dos objetos, mas o resultado da interação da nossa mente com os objetos. As qualidades primárias, tamanho, forma e movimento, são propriedades que pertencem realmente aos objetos. Descartes pensa que estas propriedades podem ser reduzidas a uma única, a extensão, e considera-a a propriedade essencial da matéria.

4.3 O que é o pensamento?

Vimos acima que, segundo Descartes, o eu é pensamento. Em que consiste o pensamento? Descartes responde a essa questão nas Meditações:

Mas o que sou eu então? Uma coisa pensante. O que quer isto dizer? Quer dizer: uma coisa que duvida, que compreende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que também imagina, e que sente. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 124.)

Como vemos, Descartes inclui coisas muito diferentes no pensamento. A inclusão das sensações entre os constituintes do pensamento pode parecer estranho, dado que Descartes, através da dúvida metódica, rejeitou como duvidoso ou falso tudo o que tem origem nos sentidos. Mas o que Descartes está aqui a incluir no pensamento não é o acontecimento físico de ver, ouvir, etc., que se passa nos nossos órgãos sensoriais, mas aquilo que ocorre na nossa mente e cuja origem costumamos atribuir a esses órgãos e aos objetos físicos. Quer existam ou não objetos físicos — coisa que, neste momento, não sabemos devido ao argumento do Deus enganador —, temos «imagens» mentais que associamos a esses objetos, como acontece quando sonhamos. São essas imagens mentais que Descartes inclui no pensamento. Outra forma de expressar a mesma ideia é dizer que o pensamento é tudo aquilo de que temos consciência, isto é, tudo aquilo que sabemos estar a ocorrer no momento no nosso eu.


4.4 Sou diferente do meu corpo

Ao refletirmos sobre aquilo que somos, pensa Descartes, constatamos ainda que não é possível duvidar da nossa existência enquanto pensamento embora seja possível duvidar da existência do nosso corpo. Daqui Descartes tira duas conclusões importantes:
  • a alma e o corpo são substâncias completamente distintas
  • a alma é mais fácil de conhecer do que o corpo
O seu raciocínio, que apresenta no Discurso do Método, é o seguinte:

Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existisse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu existia; (…) compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é. (Discurso do Método, pp. 51–52.)

Apesar de diferentes, o pensamento e o corpo encontram-se juntos no ser humano. No entanto, como são completamente incompatíveis (uma vez que um é puro pensamento e o outro pura extensão), Descartes tem grandes dificuldades em explicar como se articulam (por exemplo, como os acontecimentos no nosso corpo dão origem a acontecimentos na alma e vice-versa). Esta conceção do homem — e do universo — como composto por duas substâncias completamente distintas é conhecida como o dualismo de Descartes e está na origem do problema mente-corpo, estudado em filosofia da mente.9

4.5 Aquilo que conheço com clareza e distinção é indubitavelmente verdadeiro

O que faz do «Eu penso, logo existo» uma verdade indubitável, e, por isso, um conhecimento, é a clareza e distinção com que é aprendido pela nossa mente. Isto fornece a Descartes o critério para determinar quando uma qualquer proposição é uma verdade indubitável: a clareza e distinção. Mas, em que condições é uma ideia clara e distinta? A resposta de Descartes é a de que uma ideia é clara quando a razão, sem qualquer participação dos sentidos, nos mostra que ela é verdadeira sem a mínima possibilidade de erro; e é distinta quando não se confunde com nenhuma outra ideia.
A clareza e distinção fornecem a Descartes o critério para determinar quando uma ideia constitui um conhecimento. Qualquer ideia que a mente perceba com clareza e distinção é indubitável. O cogito pode a partir de agora — e isto é de imensa importância para todo o projeto de Descartes — analisar os seus pensamentos e determinar aqueles que são claros e distintos. São essas ideias claras e distintas que vão constituir os fundamentos — as crenças fundacionais — a partir dos quais Descartes vai deduzir a sua nova ciência, que é assim também indubitável e, portanto, inquestionavelmente conhecimento.

4.6 Intuição e dedução

As ideias claras e distintas são conhecidas por intuição. O que pode ser corretamente derivado daquilo que conhecemos por intuição é conhecido por dedução.10 Assim, Descartes atribui duas funções cognitivas principais à mente, a intuição e a dedução, a que correspondem duas formas de conhecimento, o conhecimento intuitivo e o conhecimento dedutivo. Temos um conhecimento por intuição quando a nossa razão percebe imediatamente, sem qualquer raciocínio e sem qualquer dúvida que algo é verdade. Conhecemos por intuição verdades autoevidentes, como, por exemplo, «Eu existo» ou «um triângulo tem apenas três lados» e «duas coisas iguais a uma terceira são iguais». Conhecemos algo por dedução quando a partir de proposições que conhecemos por intuição inferimos uma outra proposição que é também de certeza absoluta verdadeira, como, por exemplo, quando a partir da definição de triângulo inferimos que a soma dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos.
Operações da mente
Explicação
Exemplos
Intuição
A mente, diretamente e sem qualquer raciocínio, percebe claramente e distintamente algo como verdadeiro.
Eu existo; eu penso; 
um triângulo tem apenas três lados.
Dedução
A mente infere outras verdades a partir das que conhece por intuição.
Tudo o que deduzimos das verdades conhecidas por intuição, como, por exemplo, que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos, que se deduz da definição de triângulo.

4.7 O cogito é uma verdade de razão


O «Eu penso, logo existo» é, uma verdade a que chegamos pela razão. É a razão, e não os sentidos, que nos revelam a nossa própria existência como uma verdade indubitável. Como o cogito é o modelo que permite reconhecer outras verdades indubitáveis — tudo o que conhecemos com clareza e distinção —, que são a base a partir da qual o conhecimento se vai desenvolver, o conhecimento tem origem na razão e não nos sentidos. Isto faz de Descartes um racionalista, e constitui outro ponto em que rompe com o pensamento tradicional que, como já vimos, fazia dos sentidos a origem do conhecimento.11
Mas, o que carateriza o racionalismo de Descartes? Em primeiro lugar, o facto de o conhecimento ter origem na razão e não nos sentidos; a razão, ao contrário dos sentidos, fornece-nos verdades indubitáveis, como o cogito, que conhecemos por intuição. Em segundo lugar, o facto de o verdadeiro conhecimento ser o racional e não o empírico. E, por último, o facto de sermos capazes de chegar a partir dessas verdades, por dedução, a outras verdades que são igualmente indubitáveis.
Podemos resumir as características do cogito que acabámos de ver no quadro seguinte:
COGITO
Primeira verdade indubitável
A primeira crença que resiste à dúvida: para que eu possa duvidar tenho de existir.
Ponto de partida do saber
Como primeira verdade indubitável, vai ser a partir dela que a reconstrução do saber se vai fazer.
Substância pensante
Existe por si próprio e tem como propriedade essencial o pensamento (duvidar, compreender, afirmar, negar, querer, imaginar, sentir).
Distinto do corpo e melhor conhecido do que ele
Posso ter a certeza da minha existência enquanto alma, mas posso duvidar da existência do meu corpo.
Claro e distinto
Conhecido sem possibilidade de erro pela razão e que não se confunde com nenhuma outra coisa.
Critério de verdade
Todas as crenças que, como o eu penso, logo existo, são claras e distintas são verdades indubitáveis.
Conhecido por intuição
Conhecido imediatamente como verdadeiro pela razão, sem o recurso a inferências ou raciocínios.


5. Deus

A descoberta do cogito permite a Descartes fundar em bases sólidas o que foi posto em causa pela dúvida metódica e, por extensão, a sua ciência mecanicista. Mas, em si mesmo, o cogito não constitui um grande avanço. Tudo o que Descartes provou até agora foi que uma substância que consiste unicamente no pensamento existe. Tanto quanto sabemos nesta altura, é perfeitamente possível que para além do cogito e dos seus pensamentos nada mais exista, uma posição hipotética a que os filósofos chamam solipsismo.12 Para avançar e superar o solipsismo, Descartes precisa de provar que existem outras entidades para além do cogito.
A sua estratégia para atingir este fim vai ter três partes. Na primeira, Descartes vai provar que Deus existe. Descartes precisa de o fazer não apenas para afastar o solipsismo mas sobretudo para poder provar que aquilo que conhecemos com clareza e distinção é verdade. Na segunda, vai mostrar que dessa existência se segue a fiabilidade da razão e, portanto, que aquilo que conhecemos clara e distintamente é indubitável. Por último, Descartes vai mostrar que o mundo físico existe. Comecemos pela primeira.


5.1 O argumento da perfeição ou da marca

A maior parte dos argumentos tradicionais para provar a existência de Deus são a posteriori. Partem de um facto acerca do mundo e pretendem provar que Deus existe. Descartes, no entanto, não pode usar esta estratégia, porque a existência do mundo físico foi posta em suspenso pela dúvida metódica. Por isso, para provar a existência de Deus, o cogito tem de recorrer apenas às ideias que encontra em si próprio. Ora, o cogito encontra em si muitas ideias, como, por exemplo, aquelas cuja origem normalmente atribuímos a objetos exteriores. Mas também encontra em si outras ideias como a ideia de Deus ou de perfeição, isto é, de

[…] uma certa substância infinita, independente, sumamente inteligente, omnipotente, e pela qual foram criados quer eu mesmo, quer tudo o resto que existe. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp. 151–152.)

Como tudo tem uma causa, a ideia de Deus também tem uma causa. A estratégia de Descartes para provar a existência de Deus vai, portanto, consistir em determinar qual a causa desta ideia de Deus, que o cogito descobre em si. Costumamos atribuir a origem das nossas ideias aos objetos físicos com os quais contactamos. Contudo, como vimos, é logicamente possível que essas ideias tenham origem no próprio cogito, uma vez que tanto quanto sabemos, o cogito pode criar as ideias que temos dos objetos físicos. É isso que acontece nos sonhos. Outras ideias são fruto da nossa imaginação, como acontece com as ideias de unicórnio e de dragão. Poderá a ideia de Deus ter também origem no cogito?
A resposta de Descartes é não. Porque, segundo ele, tem de haver tanta realidade na causa de uma ideia quanto na própria ideia. A ideia de Deus é a ideia de um ser perfeito. Se o cogito fosse a causa da ideia de ser perfeito, não seria possível explicar as perfeições que Deus tem e que o cogito não tem, uma vez que, sendo imperfeito, tem menos realidade que a ideia de Deus. Seria, por isso, o mesmo que dizer que essas perfeições não têm causa, o que é absurdo. Portanto, ao contrário das outras ideias que o cogito encontra em si, a ideia de Deus não pode ser criada pelo cogito. Qual pode, então, ser a causa dessa ideia? Apenas algo que tenha tanta realidade quanto a ideia de Deus. Ora, só Deus tem a realidade necessária para ser a causa da ideia de Deus. A causa da ideia de Deus é, portanto, o próprio Deus e, por isso, Deus existe. Podemos apresentar o argumento de Descartes do seguinte modo:
  1. O cogito tem em si a ideia de Deus.
  2. A ideia de Deus tem de ter uma causa.
  3. Tem de haver tanta realidade na causa de uma ideia quanto na própria ideia.
  4. Se a ideia de Deus tivesse origem no cogito, haveria menos realidade na causa do que no efeito.
  5. O cogito não pode ser a causa da ideia de Deus.
  6. Logo, Deus é a causa da ideia de Deus.
Descartes pensa que cada uma das premissas deste argumento é uma verdade clara e distinta e que, portanto, demonstrou — no sentido matemático, isto é, indubitavelmente — que Deus existe. O primeiro passo do cogito para fora de si próprio está assim dado. O cogito não está sozinho. A análise que fez das suas ideias revelou a existência indubitável de Deus.

5.2 Ideias inatas, adventícias e factícias

A ideia de Deus é aquilo a que Descartes chama uma ideia inata, e, como todas as ideias inatas, foi colocada em nós por Deus, pelo que é como a marca do criador na sua obra. As ideias inatas são ideias com as quais já nascemos e que a mente descobre por si própria, não tendo, portanto, origem na experiência, como são o caso, além da ideia de Deus, do cogito, das verdades autoevidentes da Aritmética e da Geometria e, de uma maneira geral, de muitas ideias que conhecemos por intuição e que são claras e distintas. Além das ideias inatas, existem também as ideias adventícias, que têm origem nas sensações, como as ideias de casa, árvore, etc., e as ideias factícias, ou forjadas, que são as que a nossa imaginação cria a partir das ideias adventícias.13
TIPOS DE IDEIAS
Inatas
Colocadas por Deus em nós e com as quais já nascemos.
Deus, cogito, substância, corpo ou matéria, triângulo.
Adventícias
As que têm origem nos nossos sentidos.
Sol, Lua, árvore, livro.
Factícias
As que têm origem na imaginação.
Centauro, quimera, ciclope.

6. Erro, verdade e mundo
6.1 Deus não é enganador

O que sabe neste momento o cogito? Sabe duas coisas: que existe e que Deus existe. O solipsismo não tem, portanto, razão de ser, uma vez que o cogito não é tudo o que existe. Este conhecimento, no entanto, não permite ainda recuperar as crenças que a dúvida metódica pôs em suspenso — as verdades da Matemática e a crença no mundo exterior —, mas permite definitivamente afirmar que a hipótese de um Deus enganador não tem razão de ser. Descartes está finalmente em condições de afastar o mais poderoso dos argumentos que constituem a dúvida metódica e, por isso, ele escreve:

[R]econheço que é impossível que ele me engane alguma vez, porque em toda a falácia ou logro se descobre alguma imperfeição. E embora poder enganar pareça ser uma certa prova de subtileza de espírito ou poder, querer enganar atesta, sem dúvida nenhuma, malícia ou fraqueza de espírito: o que, por isso, não pertence a Deus. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 166.)

Em resumo, Deus não é enganador, porque enganar é uma imperfeição e Deus é perfeito. Não podemos, contudo, concluir daqui imediatamente que as nossas crenças fundamentais acerca do mundo são verdadeiras, uma vez que, tanto quanto sabemos, o nosso próprio espírito pode ser a sua causa. No entanto, como veremos, a estratégia de Descartes para provar a verdade destas crenças vai passar por explorar as consequências de Deus ser perfeito e, por isso, não ser enganador.


6.2 O erro

Para já, porém, temos de lidar com outro problema. Se Deus é perfeito — e, portanto, não é enganador — e fomos criados por Deus, como se explica o erro, isto é, como se explica que façamos juízos falsos? Como se explica que o erro seja possível num universo criado por um Deus, que é sumamente bom, sábio e poderoso?14
Descartes explica o erro distinguindo dois tipos de pensamentos, os que dependem do entendimento e os que dependem da vontade ou livre-arbítrio. Embora aquilo que conhecemos pelo entendimento seja indubitavelmente verdade, o nosso entendimento é limitado, pois há muita coisa que é incapaz de compreender, ao contrário do intelecto divino, que compreende tudo. Por outro lado, a nossa vontade tem uma capacidade infinita e pode escolher afirmar ou negar algo que o nosso entendimento não compreende completamente e levar-nos assim ao erro:

Então, de onde nascem os meus erros? Apenas e unicamente de que, como a vontade tem um campo mais lato que o entendimento, não a contenho dentro dos mesmos limites, mas também a estendo às coisas que não compreendo: por ser indiferente a elas, a vontade deflete facilmente do bom e do bem e, deste modo, não só erro como também peco. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp. 173.)

Os erros resultam desta assimetria entre o nosso entendimento e a nossa vontade. Os erros acontecem quando a vontade afirma ou nega uma proposição que o entendimento não compreende completamente e resultam, assim, do nosso livre-arbítrio. Isto explica, por um lado, por que erramos e, por outro, mostra que Deus, embora nos tenha criado, não é o responsável por esses erros.

6.3 Deus como garantia de verdade

Podemos evitar fazer juízos que são falsos? Podemos evitar o erro? Sim, se evitarmos fazer juízos sobre o que percebemos apenas de forma obscura e confusa — sobre aquilo de que haja dúvidas da sua verdade, como, por exemplo, o que conhecemos pelos sentidos —, e usarmos corretamente o nosso entendimento e a nossa vontade. Podemos evitar o erro se limitarmos os nossos juízos àquilo que conhecemos com clareza e distinção. Mas o que garante que aquilo que conhecemos com clareza e distinção é verdade? A resposta de Descartes é Deus. Como Deus é perfeito, isto é, não é enganador, podemos confiar nas faculdades racionais com que Ele nos dotou e na verdade daquilo que conhecemos por intermédio dessas faculdades quando corretamente aplicadas. Deus é, assim, a garantia de que aquilo que conhecemos clara e distintamente é verdade, porque é a garantia da nossa razão:

[A]quilo mesmo que há pouco tomei como regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras as coisas que concebemos muito clara e distintamente, só é certo porque Deus é ou existe. (Discurso do Método, p. 59.)

Para mostrar que as proposições da Matemática, apesar da sua evidência, não são indubitáveis, a dúvida metódica, e em particular o argumento do Deus enganador, pôs em questão a fiabilidade da nossa razão: podemos ter sido criados por um Deus enganador, com uma razão tal que nos enganemos mesmo acerca das verdades mais simples e evidentes. O facto de Deus não ser enganador mostra que esta hipótese é falsa e, portanto, que podemos confiar na nossa razão desde que a usemos corretamente, isto é, desde que só façamos juízos sobre aquilo que conhecemos com clareza e distinção. Assim, embora a primeira verdade indubitável a que chegamos seja o cogito, a crença em Deus é a crença mais básica e fundamental, porque é Deus a garantia última da nossa existência e do nosso conhecimento.
Em resumo, Deus garante a fiabilidade das nossas faculdades racionais, quando bem utilizadas, e não há, razões para duvidarmos das verdades simples e evidentes da Aritmética e da Geometria. Mas, podemos dizer o mesmo das outras crenças, em particular da nossa crença na existência do mundo físico, que a dúvida também pôs em suspenso?

6.4 O mundo

Descartes pensa que é possível provar que a crença na existência do mundo é verdadeira. Para o fazer, ele usa um procedimento semelhante ao que utilizou para provar a existência de Deus: constatar que temos certas ideias e perguntar quais as suas causas. Ele raciocina do seguinte modo:
O cogito tem em si ideias que associa com objetos físicos. Qual é a causa dessas ideias? Uma resposta possível a esta pergunta é que estas ideias têm origem no cogito. Mas, diz Descartes, o cogito não pode ser a causa destas ideias, porque elas são produzidas sem a sua cooperação e frequentemente contra a sua vontade (temos perceções de objetos físicos mesmo quando não queremos). No entanto, temos uma grande propensão para acreditar que a causa das ideias que temos, por exemplo, de uma certa casa ou árvore, é uma dada casa ou árvore, que existe exterior e independentemente de nós. Ora, se as causas destas ideias não fossem estes corpos físicos, Deus seria enganador, dado que nos teria criado com a propensão a crer que estas nossas ideias têm como causa os objetos físicos e não seria isso o que aconteceria. Mas, como já vimos, Deus é perfeito e, por isso, não pode ser enganador. Portanto, termos esta propensão pode apenas significar que são os corpos físicos a causa destas ideias e, consequentemente, que os corpos físicos existem:

Ora, não sendo Deus enganador, é absolutamente manifesto que ele não introduz em mim essas ideias, nem imediatamente por si próprio, nem também por meio de outra criatura […] Porque, não me tendo Deus dado absolutamente nenhuma faculdade para conhecer isto, mas, pelo contrário, uma grande propensão para crer que elas são emitidas pelas coisas corpóreas, não vejo por que se possa compreender que ele não é enganador, se estas ideias fossem emitidas por outras que não as coisas corpóreas. E, portanto, as coisas corpóreas existem. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp. 209.)

Em resumo, Deus é o nosso criador e não é enganador. Temos uma grande propensão para atribuir a objetos físicos a causa das nossas ideias de objetos físicos. Portanto, os objetos físicos são a causa dessas ideias e, claro, existem objetos físicos.
Descartes conseguiu, assim, recuperar todas as crenças que a dúvida colocou em suspenso. E embora os nossos sentidos não sejam nunca de inteira confiança, é possível provar a verdade das nossas crenças mais fundamentais se, em vez de darmos primazia aos sentidos, como normalmente fazemos, nos guiarmos pela razão.
Poderemos pensar que ganhámos muito pouco ao fazermos este trajeto. Afinal, já acreditávamos que as proposições das Matemáticas são verdadeiras e que o mundo exterior existe. Contudo, há uma diferença substancial entre a posição em que nos encontrávamos no começo e a atual. Na altura, acreditávamos que essas crenças eram verdadeiras, mas não sabíamos efetivamente que o eram. Agora, com a garantia divina, não apenas acreditamos mas sabemos que as nossas crenças são verdadeiras. Passámos da mera crença para o conhecimento e isso, para Descartes, é uma diferença substancial porque passámos a ter a certeza da verdade daquilo em que acreditamos.

7. Críticas

Ao iniciarmos o estudo de Descartes, vimos que o seu objetivo era formular uma teoria do conhecimento que só aceitasse como tal as crenças que fossem indubitáveis. Se Descartes, como pretende, tiver sido bem sucedido, ele provou que as proposições fundamentais da metafísica — o cogito, Deus e o mundo — são verdades indubitáveis, e está agora em condições de deduzir delas os princípios fundamentais da sua física mecanicista.
Mas terá Descartes sido bem sucedido? Desde o início, os seus críticos chamaram a atenção para dificuldades importantes no seu pensamento. A mais famosa é, sem dúvida, o chamado Círculo Cartesiano. As outras objeções são de David Hume.


7.1 O Círculo Cartesiano

Esta objeção foi formulada pela primeira vez por Antoine Arnauld (1612–1694), um teólogo e filósofo francês, contemporâneo de Descartes, nas objeções que escreveu às Meditações sobre a Filosofia Primeira:

Resta-me apenas uma dificuldade, que é a de saber como o autor se pode defender de cometer um círculo, quando diz que estamos certos de que as coisas que concebemos claramente e distintamente são verdadeiras apenas porque Deus é ou existe.
Porque não podemos estar certos de que Deus existe a não ser porque nós concebemos isso muito claramente e muito distintamente; portanto, antes de estarmos certos da existência de Deus, devemos estar certos de que as coisas que concebemos claramente e distintamente são todas verdadeiras. (Antoine Arnauld, “Quatrièmes objections” in René Descartes, Descartes: Oeuvres et lettres, Paris: Gallimard, 1992, p. 435 (trad. Álvaro Nunes).

A objeção de Arnauld pode ser expressa em poucas palavras: Descartes afirma que Deus é a garantia da verdade do que conhecemos com clareza e distinção, mas ao mesmo tempo usa a clareza e distinção para provar a existência de Deus (uma vez que as premissas da sua prova da existência de Deus são por ele consideradas claras e distintas). Descartes, deste modo, raciocina em círculo e, portanto, comete uma falácia da petição de princípio.
Se esta objeção for correta, como muitos pensam, o seu efeito para a filosofia de Descartes é devastador. Ao contrário do que afirma, Descartes não provou a existência de Deus nem a verdade do que percebemos clara e distintamente e, portanto, não tem nenhum fundamento absolutamente certo para o conhecimento. O seu projeto cai pela base.

7.2 A dúvida metódica é impossível

Como vimos, o projeto filosófico de Descartes começa pela dúvida. No entanto, para que a dúvida seja eficaz, o seu alcance deve ser universal e estender-se tanto às nossas crenças como às nossas faculdades racionais.15
Hume apresenta duas objeções a este projeto. Em primeiro lugar, diz ele, este ceticismo extremo é impossível. Agir de acordo com os requisitos da dúvida metódica está para além daquilo que os seres humanos são capazes. A dúvida metódica é, portanto, pura e simplesmente impraticável. Em segundo lugar, mesmo que a dúvida fosse praticável, não seria possível ir para além dela sem usar as faculdades racionais que a dúvida põe em questão. Isto é, se a dúvida fosse praticável, seria inultrapassável, uma vez que qualquer tentativa de a superar implicaria o uso das próprias faculdades a que a dúvida se aplica. Hume conclui daqui que o projeto de Descartes não é de todo exequível.

7.3 Não temos provas da existência do eu

A crença na existência do cogito ou «eu penso» é fundamental ao projeto de Descartes. É pela análise do eu, enquanto puro pensamento, que Descartes prova a existência de Deus e recupera como verdades das quais está absolutamente certo — e não como meras crenças — tudo o que a dúvida metódica pôs em questão. Ele pensa ter provado sem margem para dúvidas, como condição de possibilidade da própria dúvida, que o eu existe. Hume está também aqui em completo desacordo com Descartes. Hume pensa que não temos, nem podemos ter, nenhuma ideia de eu. Segundo ele, todas as nossas ideias têm origem em impressões. Contudo, não temos nenhuma impressão que possa estar no origem da ideia de eu. Tudo o que encontramos quando olhamos para nós próprios é uma sucessão de perceções particulares, de calor de frio, de prazer e dor e nunca uma perceção do eu. Para Hume, portanto, o eu, tal como o entendemos, não existe. De facto, ele pensa que, de acordo com a experiência, tudo o que podemos dizer é que a mente, ou eu, é uma espécie de feixe ou coleção de perceções. Se Hume tiver razão, o cogito é apenas uma ficção e, portanto, não pode ter o papel absolutamente essencial que Descartes lhe atribui na sua filosofia.

7.4 Não é possível provar a existência do mundo

O último passo da filosofia de Descartes consistiu em provar a existência do mundo exterior e ele julga tê-lo feito ao argumentar que as ideias cuja causa atribuímos a objetos físicos têm, de facto, essa causa. No entanto, Hume nega que seja possível provar a existência do mundo exterior. Ele aceita, como Descartes, a distinção entre a realidade e as nossas perceções, isto é, entre o objeto físico e a sua representação mental, mas defende que só temos experiência direta das representações na nossa mente, não dos objetos físicos, suas supostas causas, e, que, portanto, não é possível ter experiência da relação causal entre as nossas representações mentais e os objetos que supostamente elas copiam e representam. Deste modo, não temos qualquer razão para afirmar que os objetos físicos são a causa das nossas perceções e, portanto, que existem objetos físicos. Mesmo que admitamos a possibilidade da dúvida metódica e a existência do cogito, se não for possível provar a existência do mundo físico, a filosofia e a ciência de Descartes estão condenadas ao fracasso.
Se aceitarmos estas críticas, o projeto de Descartes está em sérias dificuldades. Um dos interesses da filosofia de Descartes está no facto de constituir uma tentativa de construir uma teoria do conhecimento com base no pressuposto de que uma crença tem de poder ser justificada de forma indubitável para ser conhecimento. O seu fracasso é também o fracasso desta conceção de conhecimento. Mas, não sendo possível ter conhecimento, não será possível termos crenças racionalmente justificadas, isto é, crenças verdadeiras racionalmente justificadas, embora não de forma indubitável? Os filósofos empiristas britânicos tendem a pensar que sim. John Locke (1632–1704), por exemplo, restringe aquilo que podemos conhecer a número muito limitado de crenças — a nossa existência, a existência de Deus e alguns princípios fundamentais da ética, mas pensa que é possível com base na experiência justificar as nossas crenças de forma provável. Terá Locke razão?

Álvaro Nunes

Bibliografia de apoio

·             Almeida, Aires, Dicionário Escolar de Filosofia, Lisboa: Plátano Editora, 2003 (Versão online: http://criticanarede.com/dicionario.html).
·             Alquié, Ferdinand, A Filosofia de Descartes, Lisboa: Editorial Presença, 1993.
·             Blackburn, Simon, Pense: Uma Breve Introdução à Filosofia, Lisboa: Gradiva, 2001, Cap. 1.
·             Cottingham, John, A Filosofia de Descartes, Lisboa: Edições 70, 1989.
·             Descartes, René, Discurso do Método, Lisboa: Edições 70, 2013.
·             Descartes, René, As Paixões da Alma, Lisboa: Fim do Século Edições, 2009.
·             Descartes, René, Meditações sobre a Filosofia Primeira, Coimbra: Livraria Almedina, 1992.
·             Descartes, René, Princípios de Filosofia, Lisboa: Edições 70, 2006.
·             Descartes, René, Regras para a Direcção do Espírito, Lisboa: Edições 70, 1989.
·             Kenny, Anthony, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa: Temas e Debates, 1999, Cap. 11.
·             Scruton, Roger, Breve História da Filosofia Moderna, Lisboa: Guerra e Paz, 2010, Cap. 3.

Notas

  1. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a entrada «mecanicismo». 
  2. Os medievais expressavam esta ideia com o adágio «nada existe no intelecto que não esteja primeiro nos sentidos». 
  3. Forma substancial e acidental, potência e ato, etc. 
  4. Algo pode ser improvável e possível. Pode ser muito improvável que lhe saia o Euromilhões, mas não é impossível. Caso contrário, não jogaria. 
  5. Naturalmente, a designação desta teoria é muito posterior a Descartes. 
  6. A metáfora da casa é aqui particularmente apropriada. Tal como numa casa basta derrubar as fundações para que tudo o resto caia. Também no conhecimento humano, afirma Descartes, basta destruir os princípios de que tudo o resto deriva. 
  7. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a entrada «realismo ingénuo». 
  8. Em rigor, Descartes não usa estas designações, mas a distinção aparece em várias das suas obras. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a entrada «qualidades primárias e secundárias». 
  9. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a entrada «dualismo/monismo». 
  10. Hoje, em vez de «corretamente derivado», diríamos «validamente deduzido». De acordo com a lógica dedutiva podemos estar seguros da verdade da conclusão de um raciocínio se esta for validamente deduzida de premissas verdadeiras. Na verdade, o que Descartes está a fazer é a estabelecer que apenas os raciocínios dedutivos — ao contrário dos indutivos — fornecem verdades indubitáveis e, portanto, conhecimentos. As premissas verdadeiras de Descartes são, obviamente, aquilo que conhecemos por intuição, as ideias claras e distintas. Deste modo, Descartes identifica o conhecimento com demonstração; isto é, é conhecimento aquilo que podemos deduzir por processos dedutivos válidos de proposições que são indubitáveis e indisputáveis. 
  11. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a entrada «racionalismo». 
  12. Ver no Dicionário Escolar de Filosofia a entrada «solipsismo». 
  13. Estes tipos de ideias correspondem às faculdades da razão, sensação e imaginação. 
  14. Este problema tem semelhanças evidentes com o chamado problema do mal: como se explica o mal num universo criado por Deus, que é sumamente bom, sábio e poderoso? 
  15. Recordemos que o argumento do Deus enganador é dirigido às nossas faculdades racionais: Deus pode ter-nos feito com faculdades tais que nos enganemos mesmo nas operações mais simples. 
Álvaro Nunes

In Critica





 Lola 

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