Kant & Stuart Mill
Immanuel Kant
pensava que as consequências boas ou más das ações não deviam ser tidas em
conta na sua avaliação moral. Para ele, o imperativo categórico era uma forma
de avaliar moralmente as ações completamente independente das suas
consequências. Contudo, há quem pense que a única interpretação plausível do
imperativo categórico é consequencialista. John Stuart Mill apresentou deste
modo essa objeção contra Kant:
"Kant,
esse «homem notável, cujo sistema de pensamento permanecerá por muito tempo
como um dos marcos na especulação filosófica, estabelece, realmente, no tratado
em questão [a Fundamentação da Metafísica dos Costumes], um primeiro
princípio universal como origem e fundamento da obrigação moral; é este: “Age
de tal maneira que a regra da tua ação possa ser adotada como lei por todos os
seres racionais”. Mas quando começa a deduzir deste preceito qualquer um dos
deveres reais da moralidade, fracassa, de forma quase grotesca, em demonstrar
que haveria qualquer contradição, qualquer impossibilidade lógica (para não
dizer física), da adoção por todos os seres racionais das regras de conduta
mais revoltantemente imorais. Tudo o que demonstra é que
as consequências da sua adoção universal seriam de tal ordem que
ninguém escolheria sofrê-las.»
John Stuart
Mill, Utilitarismo,
Gradiva,
Lisboa,
2005, pág. 47.
O utilitarismo de Mill e
a teoria deontológica de Kant
Tal como em Kant, também em Mill há um princípio básico a partir do
qual as nossas acções devem regular-se para terem valor moral. Enquanto em Kant
esse princípio era o do “cumprimento do dever pelo próprio dever”, em Mill esse
princípio é o de “produzir a máxima felicidade possível para o maior número
possível de pessoas”. Mas em relação a este mesmo princípio, existem diferenças
entre a teoria ética de Kant e a de Mill.
Enquanto em Kant averiguar a moralidade das nossas acções era perguntar
pela razão por que agimos de uma determinada forma, pela intenção com que
fazemos aquilo que fazemos (sendo a acção moral em Kant, aquela que cumpre ou
respeita o dever pelo próprio dever), em Mill perguntar pelo valor moral da
acção é perguntar pelas consequências que resultaram da acção.
A teoria utilitarista veio deste modo permitir solucionar algumas das
principais críticas que eram dirigidas à teoria ética de Kant, em concreto,
dando-nos uma resposta para o problema das regras morais absolutas e para o
problema dos casos conflito, assim como para o problema da ausência de
compaixão ou afectividade na realização de algumas das nossas acções.
Em relação ao problema das regras morais absolutas, a que a teoria
ética de Kant não soube dar uma resposta satisfatória quando confrontada com a
situação de ter de mentir para salvar a vida de uma pessoa, a teoria
utilitarista diria que nos é permitido mentir desde que essa nossa decisão
promova a felicidade sobre o maior número de pessoas possível do que em relação
à decisão de não mentir ou de dizer a verdade.
Uma pessoa que foi
colocada perante o dilema de ter de mentir e salvar a vida de uma pessoa e
dizer a verdade e pôr em causa a vida de uma pessoa, o utilitarista resolvia
esta situação optando por mentir e provavelmente salvar a vida de uma pessoa.
Mentir e provavelmente salvar a vida de uma pessoa causa menor dor ou
sofrimento (neste caso, sobre a pessoa em fuga) do que dizer a verdade e pôr em
causa a vida de uma pessoa.
Assim, confrontado com esta situação, o utilitarista mentiria,
obedecendo desse modo ao princípio da sua teoria que diz: “Deves procurar agir
de modo a promover a felicidade sobre o maior número de pessoas.”
A grande diferença na
resolução desta situação entre a teoria ética de Kant e a de Mill é que em Kant
as regras morais são absolutas (são para ser cumpridas em todas as
circunstâncias da nossa existência), enquanto em Mill não existem regras morais
absolutas.
Em relação ao problema dos casos - conflito, dos casos em que estamos
perante uma situação em que temos duas possibilidades de acção e qualquer uma
dessas duas alternativas é moralmente incorrecta, o utilitarista escolheria
aquela que promovesse a máxima felicidade para o maior número possível de
pessoas.
Se bem se lembra da situação que foi apresentada, os pescadores
holandeses apenas tinham duas opções: ou mentiam ao chefe do barco patrulha
nazi e salvavam a vida dos tripulantes judeus e as deles mesmos ou diziam a
verdade e originavam a morte dos tripulantes judeus e até a sua própria morte.
Perante esta situação, o defensor da teoria ética de Kant não sabia por qual
das duas possibilidades de acção se decidir, porque qualquer uma das duas
opções, “mentir” ou “matar” (ainda que de forma indirecta), é moralmente
incorrecta. Concretamente da perspectiva ética de Kant, são acções que
desrespeitam as ordens da nossa razão.
O utilitarista resolvia este imbróglio ou enredo em que tinha caído o
defensor da ética kantiana, optando por mentir ao chefe do barco patrulha nazi.
Entre mentir e salvar a vida dos tripulantes judeus e dizer a verdade e causar
a mais do que certa morte de todos os tripulantes do barco, a opção que causa
uma menor dor ou sofrimento ao maior número de pessoas é certamente a primeira,
a de mentir e salvar a vida dos tripulantes.
Em relação à situação de ajudar os outros por um sentimento de piedade
ou compaixão, acção que o defensor da ética kantiana considerava sem valor
moral, o utilitarista diria que a acção teria valor moral desde que promovesse
a felicidade nas pessoas que nós ajudamos, independentemente de ter sido ou não
provocada por um sentimento de compaixão.
In Platano Editora
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