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domingo, 26 de março de 2023

Problema do Livre arbítrio

 




O problema do livre-arbítrio


O problema do livre-arbítrio, um dos mais antigos e intratáveis da filosofia, começa com uma certa inadequação terminológica. A expressão portuguesa "livre-arbítrio", assim como a expressão "liberdade da vontade", que é tradução do inglês "freedom of the will", são enganosas, pois nem o juízo nem a vontade são os factores preponderantes. Menos comprometida seria a expressão "liberdade de decisão" ou "liberdade de escolha" ou, melhor ainda (posto que mais abrangente), "liberdade de acção". Feita essa advertência terminológica, passemos à exposição do problema. Ele diz respeito ao conflito existente entre a liberdade que temos ao agir e o determinismo causal.

Podemos introduzi-lo considerando as três proposições seguintes:

1. Todo o evento é causado

2. As nossas acções são livres.

3. Acções livres não são causadas.

A proposição 1 parece geralmente verdadeira: cremos que no mundo em que vivemos para todo evento deve haver uma causa. A proposição 2 também parece verdadeira: quando nos observamos a nós mesmos, parece óbvio que as nossas decisões e acções são frequentemente livres. Também a proposição 3 parece verdadeira: se as nossas acções fossem causalmente determinadas, elas não poderiam ser livres.

O problema do livre-arbítrio surge quando percebemos que as três proposições acima formam um conjunto inconsistente, ou seja: não é possível que todas elas sejam verdadeiras! Se admitimos que todo evento é causado e que a acção livre não é causalmente determinada (que as proposições 1 e 3 são verdadeiras), então não somos livres, posto que as nossas acções são eventos (a proposição 2 é falsa). 

Se admitimos que as nossas acções são livres e que como tais elas não são causalmente determinadas (que 2 e 3 são proposições verdadeiras), então não é verdade que todo o evento seja causado (a proposição 1 é fa1sa). E se admitimos que todo o evento é causado e que somos livres (que as proposições 1 e 2 são verdadeiras), então deve haver algo de errado com a ideia de liberdade expressa na proposição 3. 

Cada uma dessas alternativas possui um nome e foi classicamente defendida.

A primeira delas é chamada de determinismo; ela consiste em negar a verdade da proposição 2, ou seja, que somos realmente livres.

Ela foi mantida por filósofos como Espinosa, Schopenhauer e Henri d'Holbach.7

A segunda alternativa chama-se libertismo: ela não tem problemas em admitir que o mundo ao nosso redor é causalmente determinado, mas abre uma excepção para muitas de nossas decisões e acções, que sendo livres escapam à determinação causal.

Com isso o libertismo rejeita a validade universal do determinismo expressa pela proposição 1.

Essa é a posição de Agostinho, Kant e Fichte.

Finalmente há o compatibilismo, que tenta mostrar que a liberdade de ação é perfeitamente compatível com o determinismo, rejeitando a ídéia de liberdade expressa na proposição 3.

Historicamente, Hobbes, Hume e Mill foram famosos defensores do compatibilismo. 4

No que se segue, quero considerar isoladamente cada uma dessas soluções, argumentando finalmente a favor do compatibilismo.

1.   Determinismo

 O determinismo parte da consideração de que, da mesma forma que podemos sempre encontrar causas para os eventos fisicos que nos cercam, podemos sempre encontrar causas para as nossas acções, sejam elas quais forem. Com efeito, sendo como somos produtos de um processo de evolução natural, seria surpreendente se as nossas acções não fossem causadas do mesmo modo que o são outros eventos biológicos, tais como a migração dos pássaros e o fototropismo das plantas. Mesmo que o princípio da causalidade não seja garantido e que no mundo da microfísica ele tenha sido inclusive colocado em dúvida, no mundo humano, constituído pelas nossas acções, pensamentos, decisões, vontades, esse princípio parece manter-se plenamente aceitável.

De facto, admitimos que as decisões ou acções humanas são causadas. Alguns poderão dizer que Napoleão invadiu a Rússia por livre decisão da sua vontade. Mas os historiadores consideram parte do seu ofício encontrar as causas, procurando esclarecer as motivações e circunstâncias que o induziram a tomar essa funesta decisão.

Na determinação das nossas acções, as causas imediatas podem ser externas (alguém decide parar o carro diante de um sinal vermelho) ou internas (alguém resolve tomar um refrigerante), sendo geralmente múltiplas e por vezes muito difíceis de serem rastreadas. 

No entanto, teorias biológicas e psicológicas (especialmente. a psicanálise) sugerem que as nossas acções são sempre causadas; "Fiz isso sem nenhuma razão" raramente é aceite como desculpa. Com base em considerações como essas, a conclusão do filósofo determinista é a de que o livre-arbítrio na verdade não existe, posto que se a acção fosse realmente livre ela não seria determinada por outros factores independentes dela mesma. A liberdade que parecemos ter ao tomarmos as nossas decisões é pura ilusão, produzida por uma insuficiente consciência das suas causas. 

Mesmo quando pensamos que poderíamos ter agido de outro modo, o que queremos dizer não é que éramos realmente livres para agir de outro modo, mas simplesmente que teríamos agido de outro modo se o sentimento mais forte tivesse sido outro, se soubéssemos aquilo que agora sabemos etc.

O argumento a favor do determinismo pode ser assim esquematizado:

1. Todo o evento é causado.

2. As acções humanas são eventos.

3. Portanto, todas as acções humanas são causadas.

4. As acções humanas só são livres quando não são causadas.

5. Portanto, as acções humanas não são livres.

A posição determinista encontra, porém, dificuldades. Não é só o sentimento de que somos livres que perde a validade. Também o sentimento de arrependimento ou remorso parece perder o sentido, pois como se justifica que nós possamos arrependernos das nossas acções, se não fomos livres para escolhê-las? Também a responsabilidade moral perde a validade. Se nas nossas acções somos tão determinados como uma pedra que cai ao ser solta no ar, faz tão pouco sentido responsabilizar uma pessoa pelos seus actos quanto faz sentido responsabilizar a pedra por ter caído. Tais dificuldades levam-nos a considerar a posição oposta.

2.   Libertismo

O libertista rejeita o determinismo por considerar as conclusões acima inaceitáveis. Ele também rejeita a primeira premissa do argumento determinista. O princípio da causalidade, enunciável como "Todo o evento tem uma causa", não parece ter a sua validade universal garantida. Certamente, esse princípio é extremamente útil, valendo em geral para o mundo que nos circunda e mesmo para muitas de nossas acções. 

Mas nada nele garante que a sua validade seja universal. Não podemos pensar que A = ~A ou que 1 + 1 = 3, mas podemos perfeitamente conceber um evento no universo surgindo sem nenhuma causa. A isso o libertarista poderá adicionar que nós simplesmente sabemos que somos livres. Há uma grande diferença entre um comportamento reflexo e um comportamento resultante da decisão da vontade. Nós sentimos que no último caso somos livres, que podemos decidir sempre de outro modo. Para justificar essa posição, o libertista costuma lançar mão de uma teoria da acção, tal como foi defendida por Richard Taylor ou por Roderick Chisholm. 

Segundo essa teoria às vezes, ao menos, o agente causa os seus actos sem qualquer mudança essencial em si mesmo, não necessitando de condições antecedentes que sejam suficientes para justificar a acção. Isso acontece porque o eu é uma entidade peculiar, capaz de iniciar uma acção sem ser causado por condições antecedentes suficientes! Você poderá perguntar-se como isso é possível. A resposta geralmente oferecida é que não pode haver explicação. Para responder a uma pergunta como essa teríamos de interrogar o próprio eu, considerando-o objectivamente. Mas, como quem deve considerar objectivamente o eu só pode ser aqui o próprio eu, isso é impossível. 

Tentar interrogar o próprio eu é tentar, como o barão de Münchausen, alçar-se sobre si mesmo pondo os pés sobre a própria cabeça. O eu da teoria da acção é um eu esquivo [...]. Ele é um eu autodeterminador, capaz de iniciar acções sem ser causado. Somos, quando agimos, semelhantes ao deus aristotélico: somos causas não causadas, motores imóveis.

O argumento que conduz à teoria da acção tem a forma:

1. Não é certo que todo o evento é causado.

2. Sabemos que as nossas acções são frequentemente livres.

3. As acções humanas livres não podem ser causadas.

4. Portanto, a acção humana não precisa de ser causada.

Embora essa solução preserve a noção de livre agência, ela tem o inconveniente de explicar o obscuro pelo que é mais obscuro ainda, qeu é um mistério a ser aceite sem questionamento. A pergunta que permanece é se não há uma solução mais satisfatória. A solução que veremos a seguir, o compatibilismo, é hoje a mais aceite, sendo uma maneira de tentar preservar as vantagens das outras duas sem as correspondentes desvantagens.

3.   Compatibilismo:

Segundo o compatibilismo, também chamado de determinismo moderado ou reconciliatório, nós permanecemos livres e responsáveis, mesmo sendo causalmente determinados nas nossas ações. 

O raciocínio que conduz ao compatibilismo tem a forma: 

1. Todo o evento é causado. 

2. As acções humanas são eventos. 

3. Portanto, todas as ações humanas são causadas. 

4. Sabemos que as nossas acções são às vezes livres. 

5. Portanto, as acções livres são causadas. 

Um bom exemplo de argumento em defesa do compatibilismo é o de Walter Stace, para quem nós confundimos o significado da noção de liberdade na sua conexão com o determinismo. Segundo Stace, o determinista acredita que a liberdade da vontade é o mesmo que a capacidade de produzir acções sem que elas sejam determinadas por causas. Mas isso é falso. Se assim fosse, uma pessoa que se comportasse arbitrariamente, mesmo que contra a sua própria vontade, seria um exemplo de pessoa livre. Mas o comportamento arbitrário não é visto como um comportamento livre. 

A diferença entre a vontade livre e a vontade não-livre não deve residir, pois, no facto de a segunda ser causalmente determinada e a primeira não. Além disso, tanto no caso de acções livres como no caso de acções não-livres, nós costumamos encontrar determinações causais, como mostram os seguintes exemplos, os três primeiros tomados do texto de Stace:

 

 

A. Actos livres

B. Actos não-livres

 

1

Gandi passa fome porque quer libertar a Índia.

Um homem passa fome num deserto porque não há comida.

 

 

2

 

Uma pessoa rouba um pão porque está com fome

Uma pessoa rouba porque o seu patrão a obrigou.

 

 

 

3


Uma pessoa assina uma confissão

Uma pessoa assina uma confissão porque porque quer dizer a verdade. foi submetida a tortura.

 

 

 

4

Uma pessoa decide abrir uma garrafa de champanhe porque quer brindar ao Ano Novo.

Uma pessoa toma uma dose de aguardente, mesmo contra a sua vontade, porque é alcoólica.

 

 

5


Uma pessoa abre a janela porque faz calor.


Uma pessoa abre a janela por efeito de sugestão pós-hipnótica.

 

 

 

6


Um membro de uma equipa de cinema explode uma bomba para efeitos de filmagem


Um psicopata explode uma bomba porque ouve vozes que o convenceram a realizar essa ação.

 

 

 

Note-se que a palavra "porque", que denota causalidade, é comum a ambas as colunas.

Assim, a coluna A não difere da coluna B pelo facto de não podermos encontrar causas das acções, decisões e volições dos agentes. E às causas apresentadas podemos adicionar ainda outras, como razões psicológicas e biográficas de Gandi, o costume de brindar ao Ano Novo abrindo uma garrafa de champanhe etc. Mesmo nos casos de decisões arbitrárias (como quando alguém decide lançar uma moeda no ar para que a sorte decida o que deve fazer), a decisão de escolher arbitrariamente também possui alguma causa.

A diferença notada por Stace entre as acções livres da coluna A e as não-livres da coluna B é que as primeiras são voluntárias, enquanto as segundas não. Daí que ele defina a diferença entre a vontade livre e não-livre como residindo no facto de que as acções derivadas da vontade livre são voluntárias, enquanto as ações derivadas da vontade não-livre são involuntárias, no sentido de se oporem à nossa vontade ou de serem independentes dela.

Se Gandi passa fome para libertar a Índia, se alguém rouba um pão por estar com fome, essas são acções livres, posto que voluntárias; mas se uma pessoa assina uma confissão sob tortura ou toma uma dose de aguardente contra a sua vontade, essas são acções que se opõem à vontade dos agentes, por isso mesmo não são livres. Embora a explicação de Stace seja geralmente bem-sucedida, ela não se aplica satisfatoriamente a alguns casos.

No exemplo B-5 a pessoa abre a janela porque o hipnotizador lhe disse que meia hora após ser acordada da hipnose deveria abrir a janela, sem se lembrar de que faz isso por decisão do hipnotizador (curiosamente, se interrogada, a pessoa submetida a esse tipo de experiência costuma fornecer uma razão qualquer, como a de que está sentindo calor). Nesse caso a pessoa realiza a acção voluntariamente, pensando que o faz por livre e espontânea vontade, embora na verdade o faça seguindo a instrução de quem a hipnotizou.

No exemplo B-6, o psicopata também age voluntariamente, e o mesmo poderíamos dizer de casos de fanáticos, de neuróticos e, em geral, de pessoas presas a valores e padrões de conduta excessivamente rígidos, que sofrem por isso limitações na capacidade de livre deliberação, apesar de agirem voluntariamente. A acção livre deve aproximar-se de um ideal de racionalidade plena, o que aqui está longe de ser o caso.

Na minha opinião a diferença mais importante entre os casos apresentados, nas colunas A e B é que em B, em que a acção não é livre, o agente age sob restrição, coerção ou limitação externa (exemplos 1, 2, 3 e 5) ou interna (exemplos 4 e 6), enquanto nos casos da coluna A, em que a ação é livre, o agente age motivado por razões não-limitadoras ou "plenas". É diflcil explicar o que sejam razões não limitadoras, mas a idéia é intuitiva: considere a diferença entre as razões de Gandi e as razões de quem age por sugestão pós-hipnótica, por força de um delírio psicótico ou de uma crença fanática; mesmo não-admiradores de Gandi admitiriam que as suas razões são comparativamente menos limitadoras, menos restritivas, mais legítimas. Admitindo essa distinção de grau entre razões limitadoras e não-limitadoras, chegamos a uma definição inerentemente negativa da acção livre, que é mais abrangente do que a de Stace: A acção livre é aquela em que o agente não é restringido fisicamente, nem coagido na sua vontade, nem limitado na sua racionalidade ao realizá-la. [...] Será que o compatibilismo resolve o problema do livre-arbítrio?

Cláudio Costa Retirado de Uma Introdução Contemporânea à Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 267-275 (adaptado por Aires Almeida)

Perguntas de compreensão do texto:

1. Explique o problema do livre-arbítrio.

2. Explique a posição dos deterministas.

3. Explique a posição dos libertistas.

4. Explique a posição dos compatibilistas.

5. Apresente uma razão invocada pelos deterministas a favor da sua posição.

6. Apresente uma objecção ao determinismo.

7. Apresente uma razão invocada pelos libertistas a favor da sua posição.

 8. Apresente uma objecção ao libertismo.

9. Apresente uma razão invocada pelos compatibilistas a favor da sua posição.

10. Dê, de acordo com os compatibilistas, um exemplo seu de um acto livre e outro de um acto não-livre.

11. Por que razão um dos actos referidos na resposta anterior é livre e o outro não?



LOLA

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