O problema do livre-arbítrio
O problema do
livre-arbítrio, um dos mais antigos e intratáveis da filosofia, começa com uma
certa inadequação terminológica. A expressão portuguesa
"livre-arbítrio", assim como a expressão "liberdade da
vontade", que é tradução do inglês "freedom of the will", são
enganosas, pois nem o juízo nem a vontade são os factores preponderantes. Menos
comprometida seria a expressão "liberdade de decisão" ou
"liberdade de escolha" ou, melhor ainda (posto que mais abrangente),
"liberdade de acção". Feita essa advertência terminológica, passemos
à exposição do problema. Ele diz respeito ao conflito existente entre a
liberdade que temos ao agir e o determinismo causal.
Podemos introduzi-lo
considerando as três proposições seguintes:
1. Todo o evento é causado
2. As nossas acções são livres.
3. Acções livres não são causadas.
A proposição 1 parece
geralmente verdadeira: cremos que no mundo em que vivemos para todo evento deve
haver uma causa. A proposição 2 também parece verdadeira: quando nos observamos
a nós mesmos, parece óbvio que as nossas decisões e acções são frequentemente
livres. Também a proposição 3 parece verdadeira: se as nossas acções fossem
causalmente determinadas, elas não poderiam ser livres.
O problema do livre-arbítrio surge quando percebemos que as três proposições acima formam um conjunto inconsistente, ou seja: não é possível que todas elas sejam verdadeiras! Se admitimos que todo evento é causado e que a acção livre não é causalmente determinada (que as proposições 1 e 3 são verdadeiras), então não somos livres, posto que as nossas acções são eventos (a proposição 2 é falsa).
Se admitimos que as nossas acções são livres e que como tais elas não são causalmente determinadas (que 2 e 3 são proposições verdadeiras), então não é verdade que todo o evento seja causado (a proposição 1 é fa1sa). E se admitimos que todo o evento é causado e que somos livres (que as proposições 1 e 2 são verdadeiras), então deve haver algo de errado com a ideia de liberdade expressa na proposição 3.
Cada uma dessas alternativas possui um nome e foi classicamente defendida.
A primeira delas é chamada de
determinismo; ela consiste em negar a verdade da
proposição 2, ou seja, que somos realmente livres.
Ela foi mantida por
filósofos como Espinosa, Schopenhauer e Henri d'Holbach.7
A segunda alternativa chama-se
libertismo: ela não tem problemas em admitir que o mundo
ao nosso redor é causalmente determinado, mas abre uma excepção para muitas de
nossas decisões e acções, que sendo livres escapam à determinação causal.
Com isso o libertismo
rejeita a validade universal do determinismo expressa pela proposição 1.
Essa é a posição de
Agostinho, Kant e Fichte.
Finalmente há o compatibilismo,
que tenta mostrar que a liberdade de ação é perfeitamente compatível com o
determinismo, rejeitando a ídéia de liberdade expressa na proposição 3.
Historicamente, Hobbes, Hume
e Mill foram famosos defensores do compatibilismo. 4
No que se segue, quero
considerar isoladamente cada uma dessas soluções, argumentando finalmente a
favor do compatibilismo.
1. Determinismo
O determinismo parte da consideração de que,
da mesma forma que podemos sempre encontrar causas para os eventos fisicos que
nos cercam, podemos sempre encontrar causas para as nossas acções, sejam elas
quais forem. Com efeito, sendo como somos produtos de um processo de evolução
natural, seria surpreendente se as nossas acções não fossem causadas do mesmo
modo que o são outros eventos biológicos, tais como a migração dos pássaros e o
fototropismo das plantas. Mesmo que o princípio da causalidade não seja
garantido e que no mundo da microfísica ele tenha sido inclusive colocado em
dúvida, no mundo humano, constituído pelas nossas acções, pensamentos, decisões,
vontades, esse princípio parece manter-se plenamente aceitável.
De facto, admitimos que as
decisões ou acções humanas são causadas. Alguns poderão dizer que Napoleão
invadiu a Rússia por livre decisão da sua vontade. Mas os historiadores
consideram parte do seu ofício encontrar as causas, procurando esclarecer as
motivações e circunstâncias que o induziram a tomar essa funesta decisão.
Na determinação das nossas acções, as causas imediatas podem ser externas (alguém decide parar o carro diante de um sinal vermelho) ou internas (alguém resolve tomar um refrigerante), sendo geralmente múltiplas e por vezes muito difíceis de serem rastreadas.
No entanto, teorias biológicas e psicológicas (especialmente. a psicanálise) sugerem que as nossas acções são sempre causadas; "Fiz isso sem nenhuma razão" raramente é aceite como desculpa. Com base em considerações como essas, a conclusão do filósofo determinista é a de que o livre-arbítrio na verdade não existe, posto que se a acção fosse realmente livre ela não seria determinada por outros factores independentes dela mesma. A liberdade que parecemos ter ao tomarmos as nossas decisões é pura ilusão, produzida por uma insuficiente consciência das suas causas.
Mesmo quando
pensamos que poderíamos ter agido de outro modo, o que queremos dizer não é que
éramos realmente livres para agir de outro modo, mas simplesmente que teríamos
agido de outro modo se o sentimento mais forte tivesse sido outro, se
soubéssemos aquilo que agora sabemos etc.
O
argumento a favor do determinismo pode ser assim
esquematizado:
1. Todo o evento é causado.
2. As acções humanas são eventos.
3. Portanto, todas as acções humanas são
causadas.
4. As acções humanas só são livres
quando não são causadas.
5. Portanto, as acções humanas não são
livres.
A posição determinista
encontra, porém, dificuldades. Não é só o sentimento de que somos livres que
perde a validade. Também o sentimento de arrependimento ou remorso parece
perder o sentido, pois como se justifica que nós possamos arrependernos das
nossas acções, se não fomos livres para escolhê-las? Também a responsabilidade
moral perde a validade. Se nas nossas acções somos tão determinados como uma
pedra que cai ao ser solta no ar, faz tão pouco sentido responsabilizar uma
pessoa pelos seus actos quanto faz sentido responsabilizar a pedra por ter
caído. Tais dificuldades levam-nos a considerar a posição oposta.
2. Libertismo
O libertista rejeita o determinismo por considerar as conclusões acima inaceitáveis. Ele também rejeita a primeira premissa do argumento determinista. O princípio da causalidade, enunciável como "Todo o evento tem uma causa", não parece ter a sua validade universal garantida. Certamente, esse princípio é extremamente útil, valendo em geral para o mundo que nos circunda e mesmo para muitas de nossas acções.
Mas nada nele garante que a sua validade seja universal. Não podemos pensar que A = ~A ou que 1 + 1 = 3, mas podemos perfeitamente conceber um evento no universo surgindo sem nenhuma causa. A isso o libertarista poderá adicionar que nós simplesmente sabemos que somos livres. Há uma grande diferença entre um comportamento reflexo e um comportamento resultante da decisão da vontade. Nós sentimos que no último caso somos livres, que podemos decidir sempre de outro modo. Para justificar essa posição, o libertista costuma lançar mão de uma teoria da acção, tal como foi defendida por Richard Taylor ou por Roderick Chisholm.
Segundo essa teoria às vezes, ao menos, o agente causa os seus actos sem qualquer mudança essencial em si mesmo, não necessitando de condições antecedentes que sejam suficientes para justificar a acção. Isso acontece porque o eu é uma entidade peculiar, capaz de iniciar uma acção sem ser causado por condições antecedentes suficientes! Você poderá perguntar-se como isso é possível. A resposta geralmente oferecida é que não pode haver explicação. Para responder a uma pergunta como essa teríamos de interrogar o próprio eu, considerando-o objectivamente. Mas, como quem deve considerar objectivamente o eu só pode ser aqui o próprio eu, isso é impossível.
Tentar interrogar o próprio eu é tentar, como o barão de
Münchausen, alçar-se sobre si mesmo pondo os pés sobre a própria cabeça. O eu
da teoria da acção é um eu esquivo [...]. Ele é um eu autodeterminador, capaz
de iniciar acções sem ser causado. Somos, quando agimos, semelhantes ao deus
aristotélico: somos causas não causadas, motores imóveis.
O
argumento que conduz à teoria da acção tem a forma:
1. Não é certo que todo o
evento é causado.
2. Sabemos que as nossas
acções são frequentemente livres.
3. As acções humanas livres
não podem ser causadas.
4. Portanto, a acção humana
não precisa de ser causada.
Embora
essa solução preserve a noção de livre agência, ela tem o inconveniente de
explicar o obscuro pelo que é mais obscuro ainda, qeu é um mistério a ser
aceite sem questionamento. A pergunta que permanece é se não há uma solução
mais satisfatória. A solução que veremos a seguir, o compatibilismo, é hoje a
mais aceite, sendo uma maneira de tentar preservar as vantagens das outras duas
sem as correspondentes desvantagens.
3. Compatibilismo:
Segundo o compatibilismo, também chamado de determinismo moderado ou reconciliatório, nós permanecemos livres e responsáveis, mesmo sendo causalmente determinados nas nossas ações.
O raciocínio que conduz ao compatibilismo tem a forma:
1. Todo o evento é causado.
2. As acções humanas são eventos.
3. Portanto, todas as ações humanas são causadas.
4. Sabemos que as nossas acções são às vezes livres.
5. Portanto, as acções livres são causadas.
Um bom exemplo de argumento em defesa do compatibilismo é o de Walter Stace, para quem nós confundimos o significado da noção de liberdade na sua conexão com o determinismo. Segundo Stace, o determinista acredita que a liberdade da vontade é o mesmo que a capacidade de produzir acções sem que elas sejam determinadas por causas. Mas isso é falso. Se assim fosse, uma pessoa que se comportasse arbitrariamente, mesmo que contra a sua própria vontade, seria um exemplo de pessoa livre. Mas o comportamento arbitrário não é visto como um comportamento livre.
A diferença entre a vontade
livre e a vontade não-livre não deve residir, pois, no facto de a segunda ser
causalmente determinada e a primeira não. Além disso, tanto no caso de acções
livres como no caso de acções não-livres, nós costumamos encontrar
determinações causais, como mostram os seguintes exemplos, os três primeiros
tomados do texto de Stace:
|
A. Actos livres |
B. Actos não-livres |
1 |
Gandi passa fome porque quer libertar a
Índia. |
Um
homem passa fome num deserto porque não há comida. |
2 |
Uma pessoa rouba um pão porque está com fome |
Uma
pessoa rouba porque o seu patrão a obrigou. |
3 |
Uma pessoa assina uma confissão |
Uma
pessoa assina uma confissão porque porque quer dizer a verdade. foi submetida
a tortura. |
4 |
Uma pessoa decide abrir uma garrafa de
champanhe porque quer brindar ao Ano Novo. |
Uma
pessoa toma uma dose de aguardente, mesmo contra a sua vontade, porque é
alcoólica. |
5 |
Uma pessoa abre a janela porque faz calor. |
Uma
pessoa abre a janela por efeito de sugestão pós-hipnótica. |
6 |
Um membro de uma equipa de cinema explode
uma bomba para efeitos de filmagem |
Um psicopata explode uma bomba porque ouve
vozes que o convenceram a realizar essa ação. |
Note-se
que a palavra "porque", que denota causalidade, é comum a ambas as
colunas.
Assim,
a coluna A não difere da coluna B pelo facto de não podermos encontrar causas
das acções, decisões e volições dos agentes. E às causas apresentadas podemos
adicionar ainda outras, como razões psicológicas e biográficas de Gandi, o
costume de brindar ao Ano Novo abrindo uma garrafa de champanhe etc. Mesmo nos
casos de decisões arbitrárias (como quando alguém decide lançar uma moeda no ar
para que a sorte decida o que deve fazer), a decisão de escolher
arbitrariamente também possui alguma causa.
A
diferença notada por Stace entre as acções livres da coluna A e as não-livres
da coluna B é que as primeiras são voluntárias, enquanto as segundas não. Daí
que ele defina a diferença entre a vontade livre e não-livre como residindo no
facto de que as acções derivadas da vontade livre são voluntárias, enquanto as
ações derivadas da vontade não-livre são involuntárias, no sentido de se oporem
à nossa vontade ou de serem independentes dela.
Se
Gandi passa fome para libertar a Índia, se alguém rouba um pão por estar com
fome, essas são acções livres, posto que voluntárias; mas se uma pessoa assina
uma confissão sob tortura ou toma uma dose de aguardente contra a sua vontade,
essas são acções que se opõem à vontade dos agentes, por isso mesmo não são
livres. Embora a explicação de Stace seja geralmente bem-sucedida, ela não se
aplica satisfatoriamente a alguns casos.
No
exemplo B-5 a pessoa abre a janela porque o hipnotizador lhe disse que meia
hora após ser acordada da hipnose deveria abrir a janela, sem se lembrar de que
faz isso por decisão do hipnotizador (curiosamente, se interrogada, a pessoa
submetida a esse tipo de experiência costuma fornecer uma razão qualquer, como
a de que está sentindo calor). Nesse caso a pessoa realiza a acção
voluntariamente, pensando que o faz por livre e espontânea vontade, embora na
verdade o faça seguindo a instrução de quem a hipnotizou.
No
exemplo B-6, o psicopata também age voluntariamente, e o mesmo poderíamos dizer
de casos de fanáticos, de neuróticos e, em geral, de pessoas presas a valores e
padrões de conduta excessivamente rígidos, que sofrem por isso limitações na
capacidade de livre deliberação, apesar de agirem voluntariamente. A acção
livre deve aproximar-se de um ideal de racionalidade plena, o que aqui está
longe de ser o caso.
Na
minha opinião a diferença mais importante entre os casos apresentados, nas
colunas A e B é que em B, em que a acção não é livre, o agente age sob
restrição, coerção ou limitação externa (exemplos 1, 2, 3 e 5) ou interna
(exemplos 4 e 6), enquanto nos casos da coluna A, em que a ação é livre, o
agente age motivado por razões não-limitadoras ou "plenas". É diflcil
explicar o que sejam razões não limitadoras, mas a idéia é intuitiva: considere
a diferença entre as razões de Gandi e as razões de quem age por sugestão
pós-hipnótica, por força de um delírio psicótico ou de uma crença fanática;
mesmo não-admiradores de Gandi admitiriam que as suas razões são
comparativamente menos limitadoras, menos restritivas, mais legítimas.
Admitindo essa distinção de grau entre razões limitadoras e não-limitadoras,
chegamos a uma definição inerentemente negativa da acção livre, que é mais
abrangente do que a de Stace: A acção livre é aquela em que o agente não é
restringido fisicamente, nem coagido na sua vontade, nem limitado na sua
racionalidade ao realizá-la. [...] Será que o compatibilismo resolve o problema
do livre-arbítrio?
Cláudio
Costa Retirado de Uma Introdução Contemporânea à Filosofia. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, pp. 267-275 (adaptado por Aires Almeida)
Perguntas
de compreensão do texto:
1.
Explique o problema do livre-arbítrio.
2.
Explique a posição dos deterministas.
3.
Explique a posição dos libertistas.
4.
Explique a posição dos compatibilistas.
5.
Apresente uma razão invocada pelos deterministas a favor da sua posição.
6.
Apresente uma objecção ao determinismo.
7.
Apresente uma razão invocada pelos libertistas a favor da sua posição.
8. Apresente uma objecção ao libertismo.
9.
Apresente uma razão invocada pelos compatibilistas a favor da sua posição.
10.
Dê, de acordo com os compatibilistas, um exemplo seu de um acto livre e outro
de um acto não-livre.
11.
Por que razão um dos actos referidos na resposta anterior é livre e o outro
não?
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