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quarta-feira, 1 de maio de 2024

Filosofia da Arte: O que é a Arte?

 


Filosofia da Arte: 

O que é a Arte?


 I A questão sobre o que é a arte constitui um dos temas centrais do pensamento filosófico. Arthur C. Danto, um filósofo norte‑americano, recentemente falecido, considerava mesmo que filosofia e arte se exigiam mutuamente . Poder-se-ia dizer, em termos metafóricos, que seriam como um par de uma dança. E porquê? Porque a discriminação do que é real e do que não é, da realidade e da aparência, mesmo que seja para a contestar, constitui o nervo do pensamento filosófico. Ora, a natureza da arte constitui o lugar privilegiado em que aparência e realidade se entrecruzam. Não devemos, deste modo, estranhar que a questão remonte à Antiguidade Clássica, em particular às reflexões feitas por Platão, na República, posicionando a arte na esfera da estrita aparência, e por Aristóteles, na Poética, mostrando o valor da arte no conhecimento do real, reflexões retomadas, a seu modo, no pensamento medieval, seja por Santo Agostinho, nas Confissões, sobre o ritmo e a música, ou por São Tomás de Aquino, na caracterização das propriedades da beleza artística. Mas, por duas ordens de razões, a interrogação sobre o que é a arte alcançou facetas completamente novas na época contemporânea. A primeira razão prende-se com a constituição da estética como disciplina filosófica. Não devemos, assim, estranhar a importância que Kant lhe confere na Crítica do Juízo, em particular na delimitação da esfera dos objectos pertencentes às belas-artes4 . 

Por sua vez, a estética pós-kantiana tornou-se, no essencial, uma teoria da arte. Vejam-se a este propósito as considerações sobre a obra de arte realizadas por autores como Hegel, Schelling, Schopenhauer, entre outros. A arte não só passou a ser sistematicamente escrutinada, como a própria filosofia da arte se tornou numa alínea, um capítulo da ideia da própria ideia de sistema filosófico. Por seu turno, no mundo anglo-saxónico, desde Joseph Addison a Clive Bell, senão mesmo até aos nossos dias, a questão da arte torna-se progressivamente a preocupação estética central. A segunda razão prende-se com a revolução artística ocorrida no Modernismo, nomeadamente quando um cânone estético de criação e apreciação das obras de arte passa a ser contestado. Como sublinha a filósofa e professora de estética americana, Cynthia Freeland, tornou-se trivial colocar a questão: “mas será arte?” (“but is it art?”)5 . 

A esfera dos objectos artísticos foi, de tal modo, ampliado no Modernismo, que a busca de um denominador comum entre todas obras designadas como artísticas passou a ser um desafio intelectual a que a filosofia não poderia ficar indiferente. São famosos os exemplos, alguns caricatos, outros meio macabros, que dão corpo a esta interrogação – mas será arte? – e que estão longe de se esgotar na Fonte de Marcel Duchamp, típica obra da postura dadaísta sobre a arte. 

O meu exemplo preferido é inegavelmente a obra “O Embaixador” do artista belga Francis Alÿs e que consistiu no envio de um pavão vivo à Bienal de Veneza de 20016 . Segundo o artista, o pavão teria uma dupla função: representaria o artista nesse evento, ao mesmo tempo que se exibia como obra. Um dos aspectos fascinantes desta “criação” é que ela traduz uma ideia muito cara, e que me parece correcta, de Danto, a saber, que este tipo de obra, sem dúvida, provocatório, deve ser entendido como uma atitude do artista em relação ao mundo da arte. Muitas obras de arte parecem estar mais interessadas em apresentarem-se como manifestos ou proclamações sobre o mundo da arte do que se constituírem como objectos artísticos dados à contemplação ou, mesmo, à performance humana. São vários os motivos que explicam a surpresa, mas, também, a distância do público em relação a um número muito significativo de criações artísticas desde os anos 20. Seria possível fazer uma distinção entre as reacções à arte no Modernismo e no Pós-Modernismo, as primeiras marcadas pelo carácter esotérico e hermético das suas criações, enquanto que as segundas assentes na própria dificuldade em diferenciar o objecto artístico do artefacto mais comum e banal. Mas, em termos sistemáticos, diria que existem três razões fundamentais para esse distanciamento ou mesmo mal-estar. Uma das razões dessa distanciação prende-se com o surgimento de obras que parecem enaltecer o único sentimento que, segundo Kant, não poderia ser objecto de sentimento estético, o asco7 . Kant admitia, sem qualquer problema, que se pudessem criar obras de enorme beleza, suscitando um prazer desinteressado, sobre temas e objectos que se avistados naturalmente seriam feios e horríveis. Mas considera que uma obra que suscite asco entra em curto-circuito consigo mesma, na medida em que exige como estético aquilo mesmo que nega. Ora, no mundo contemporâneo são apresentadas obras artísticas que procuram explorar os sentimentos de morbidez, de mal-estar e de alguma crueldade. A título de exemplo, referiria a obra do artista e anatomista alemão Gunther von Hagens que fabricou estátuas a partir de cadáveres humanos, através de uma técnica inventada por ele, chamada “plastinação” (Plastination). Inicialmente o projecto era científico com vista a estudos de anatomia, mas Von Hagens rapidamente se apercebeu do seu potencial artístico. Este é apenas um caso da criação de obras artísticas envoltas em morbidez e repulsa, que, nalguns casos, ultrapassa o limiar do que eticamente permissível. A segunda razão do mal-estar prende-se com obras de arte que são assumidamente banais, que aparentemente não parecem suscitar qualquer interesse. O problema não está naturalmente na simplicidade do tema, mas, antes, por se apresentarem explicitamente como desinteressantes. Muitas delas são “ready-mades” ou objectos encontrados, outras parecem que querem sublinhar a banalidade das mesmas, a um ponto tal que por vezes são indiscerníveis de objectos da vida quotidiana. Por vezes, a sua criação parece não implicar qualquer esforço ou então, pelo contrário, envolver um zelo significativo que surge como desproporcionado em função do resultado obtido. Citaria, como exemplo, uma obra de um escultor inglês, Roger Hiorns, que apresentou na galeria Tate Modern, em Londres, uma criação que é apenas um aglomerado de pó. Mas para o realizar o artista teve que desfazer o motor de um avião a jacto. O esforço foi titânico, mas o resultado foi descrito, por muitos, como uma sala a precisar de ser aspirada. Na perspectiva do autor, a obra longe de ser desprovida de sentido, manifesta o princípio universal da entropia de todas as entidades materiais. A terceira razão do mal-estar prende-se com o tipo de obras que claramente visam transcender qualquer apreciação estética. Não me estou a referir a obras que transcendem as habituais categorias estéticas de beleza e de sublime. Como mostrou Nick Zangwill, no seu artigo sobre o conceito de estética, existem muitos mais juízos estéticos do que a mera valoração de algo como belo ou sublime. Ajuizamos que as coisas são belas ou feias, ou que têm ou não valor estético ou mérito estético. Chamemos veredictivos a esses juízos. (Classifico os juízos de beleza e de valor estético conjuntamente.) Também ajuizamos que as coisas são mimosas, desairosas, graciosas, garridas, delicadas, equilibradas, calorosas, arrebatadas, soturnas, desengraçadas e tristes. A estes juízos chamemos juízos estéticos substantivos. Os objetos e eventos acerca dos quais fazemos juízos veredictivos e substantivos incluem tanto objectos naturais como obras de arte.8 Ora, existem obras de arte criadas intencionalmente para transcenderem qualquer apreciação estética, seja ela veredictativa ou substantiva. Como exemplo, cito o caso da obra de Joseph Kosuth, considerada por muitos como o início da arte conceptual, One and three chairs (1965). Não foi Kosuth que fez a cadeira de madeira, nem a fotografia exposta é dele, nem muito menos é da sua autoria a definição de “cadeira”, retirada de um dicionário. Trata-se assim de uma obra conceptual em que o crucial se encontra no sentido ou significado e não tanto na reacção estética. “A arte é fazer sentido” (Art is making meaning), – é assim que Kosuth responde à nossa questão sobre o que é a arte9 . 

Mas como existem muitos modos de “fazer sentido”, sem passar por obras artísticas, é duvidoso que nos contentemos com esta resposta. Bastariam estes exemplos para compreendermos como não é fácil responder à interrogação que nos motiva. Não nos parece muito razoável, como atitude filosófica, considerar que, relativamente às obras referidas, não estamos em face de genuínas obras de arte. Há uma diferença crucial entre os juízos de gosto, formulado, por exemplo, por um crítico de arte, e a conceptualização filosófica. Se assim não for, a conhecida declaração do artista americano Barnett Newman justifica‑se totalmente: “a estética está para os artistas como a ornitologia está para os pássaros”10. II Para lá das dificuldades apontadas, a constituição da filosofia da arte enfrenta diferentes obstáculos que são, cada um a seu modo, temas de estudo e de investigação. O primeiro deles prende-se com o facto de não ser fácil encontrar um ponto comum entre as diferentes formas de expressão artística. Não é, à primeira vista, óbvio o que há de comum entre a pintura e a música, o cinema e a poesia, só para dar alguns exemplos. Uma pintura e um improviso musical pouco parecem ter em comum, embora sejam assumidos pacificamente como pertencentes a um mesmo conjunto, a que se chama “arte”. Veja-se, a este título, a distinção feita por Nelson Goodman entre artes autográficas e alográficas. Nas artes autográficas, qualquer cópia da obra é uma falsificação (pintura, escultura, gravura, são bons exemplos); pelo contrário nas artes alográficas, a interpretação, a performance, é um elemento crucial na realização da obra. O manuscrito de Haydn não é uma instância mais genuína da partitura do que uma cópia impressa esta manhã, do mesmo modo que a performance da noite passada não é menos genuína do que a première [...]. Pelo contrário, mesmo a cópia mais exacta de uma pintura de Rembrandt são falsificações e não instâncias novas da obra.11 O segundo tema refere‑se às diferentes significações que a palavra “arte” assumiu ao longo da história. Na civilização europeia antiga, o conceito de arte era, no essencial, perspectivado como um ofício, como uma técnica, que poderia oscilar entre a arte dos saberes (as artes liberais ou arte dos “homens livres”) e a arte dos servos e artesãos. A arte era, no essencial, uma técnica. No séc. XVIII a arte tornou-se “bela” e passou-se a fazer a 10 Citado por Warburton 2003: 4. 11 Goodman 1976: 112-113. 144 distinção entre os ofícios e as belas-artes. Mas, como sublinha Arthur C. Danto, a propósito das célebres caixas Brillo de Andy Warhol: “Não podia ter sido arte há cinquenta anos. Mas também não podia haver, por analogia, seguros de voo na Idade Média ou correctores etruscos de máquinas de escrever. O mundo tem de estar preparado para certas coisas, e isto tanto se aplica ao mundo real, como ao mundo de arte.”12 O terceiro tema diz respeito à visão antropológica da arte. Com efeito, é difícil, numa primeira análise, falar de uma unidade da experiência artística se tivermos em atenção a diversidade cultural da humanidade. Larry Shiner, professor de filosofia e de história da arte da Universidade de Illinois, sustenta mesmo – refiro‑me ao seu livro, The Invention of Art13 – que a visão corrente da existência de uma esfera de objectos artísticos, i.e. de arte enquanto arte, constituiu uma invenção recente na história da humanidade. Daí a surpresa de muitas comunidades indígenas e tradicionais quando se confrontaram com o facto de os museus ocidentais apresentarem como obras de arte taças e tapetes da sua cultura, mas excluírem canoas e arpões. Num outro exemplo, Larry Shiner, sublinha que, nas culturas tradicionais africanas, os chamados “objectos artísticos” depois de usados em rituais mágicos são embrulhados e escondidos. A arte é, neste último caso, pura magia. Segundo Shiner, a arte enquanto arte é coetânea da constituição de museus, na medida em que estes descontextualizam as obras que apresentam. Pinturas que, no passado, eram usadas com uma função religiosa explícita subitamente vêem-se lado a lado com outras obras pictóricas criadas com finalidades bem distintas e, deste modo, são assumidas como pertencentes ao mesmo horizonte de sentido. Não é por acaso, assinala Larry Shiner que a disciplina de estética como investigação filosófica seja contemporânea da nova configuração das obras de arte proporcionada pelos museus, a um ponto tal que as obras passam a ser referenciadas como belas-artes. O quarto e último tema refere‑se à própria definição filosófica de arte. A questão conceptual sobre o que é a arte coloca-se se tivermos em atenção a visão normativa da arte, i.e. as concepções que, ao definirem o que é arte, são levadas a considerar que existem realmente propriedades intrínsecas presentes nas diferentes obras, tornando-as passíveis de serem que classificadas como sendo formas de arte. As teorias a que me refiro são as mais tradicionais e nelas se incluem todas aquelas para quem a arte é, por exemplo, uma questão de expressão, de forma ou de representação. Estas concepções distinguem entre formas autênticas e inautênticas de expressão artística. A título de exemplo, veja-se a crítica de Collingwood à arte designada pelo autor como mágica (como é o caso dos hinos desportivos cantados nos jogos) e a arte como entretenimento (como é o caso dos filmes feitos com o objectivo de despertar emoções, sejam elas de alegria ou de terror)14. Nesta visão, apesar da palavra “arte” ser constantemente utilizada em sentidos muitos distintos, apenas num, numa significação muito específica, é que tem sentido falar‑se de arte autêntica. Retomando a visão de Collingwood, há arte quando há a clarificação imaginativa das nossas emoções, o que o conduz, por exemplo, à afirmação contra‑intuitiva segundo a qual muitas das peças teatrais de Shakespeare não deveriam ser perspectivadas como sendo arte genuína. Em face desta dificuldade, é possível surpreender duas atitudes fundamentais, a primeira que considera ser possível definir o que é uma obra de arte, a segunda que recusa tal definição, defendendo que o máximo que conseguimos é detectar uma “semelhança familiar” entre os objectos artísticos. Um exemplo de uma teoria que vê a arte como “semelhança familiar” é a concepção estética proposta pelo filósofo Morris Weitz, claro discípulo do chamado “segundo Wittgenstein”. A palavra “arte” não designa nenhum conceito determinado, mas é apenas uma etiqueta para traduzir uma putativa unidade entre diferentes formas de expressão artística, análoga às semelhanças que podemos detectar entre os membros de uma mesma família. Esta noção wittgensteiniana de “semelhança familiar» é esclarecida por Nigel Warburton através do seguinte exemplo: Pense-se numa família [...] cujos membros são consanguíneos. Um dos irmãos pode partilhar o temperamento do pai, e a cor dos olhos e do cabelo. Outro irmão pode ser mais parecido com a mãe em termos de cor de cabelo, mas não ter a mesma cor dos olhos. Um terceiro pode ter o sorriso da mãe mas os olhos do avô. Não há provavelmente uma única característica distintiva que seja partilhada por toda a família de indivíduos geneticamente relacionados mas, apesar disso, quando conhecemos membros desta família conseguimos reconhecer instantaneamente que estão relacionados entre si. O que nos permite fazê-lo é um padrão de semelhanças que se cruzam e se sobrepõem. Esta é a base da noção de Wittgenstein das semelhanças de família.

 Para Weitz, termos como “arte” inscrevem-se claramente neste âmbito. Segundo esta visão, a única unidade da arte que se poderia detectar seria uma semelhança entre as obras em causa. Outros objectarão afirmando que mesmo que não se consiga dar uma definição consensual do que é uma obra de arte, nada impede que nos esforcemos por a encontrar, a não ser que consideremos à partida que a palavra “arte” corresponde a um conceito vazio. Neste âmbito, detectamos duas posições bem distintas que traduzem a defesa ou não de propriedades intrínsecas perceptíveis nas obras de arte, i.e. propriedades detectáveis que transformam um mero artefacto numa obra de arte. Do lado do não, encontramos aqueles que sustentam teorias ditas institucionais, também designadas como processuais, no limite, culturais, centradas em propriedades extrínsecas e relacionais, por exemplo afirmando que uma obra é artística se, e só se, o mundo da arte de determinada cultura o assumir como tal – e assinale-se que, no âmbito da mundo da arte, não se incluem apenas os críticos de arte, os estetas, os filósofos da arte, os artistas consagrados, o público, mas, também, aqueles que aspiram ao reconhecimento pelos seus pares, isto é, os autores das obras. O que é comum a estas teorias é a necessidade de um “baptismo”, i.e. de um evento no qual alguém com autoridade assume determinado artefacto como obra de arte. Do lado do sim, podemos surpreender aqueles que consideram ser possível descortinar nas obras de arte elementos intrínsecos que lhe são comuns. Provavelmente a tese mais conhecida, neste âmbito, é a teoria de Clive Bell sobre a forma significante como o denominador comum de todas as expressões artísticas visuais17.Habitualmente estas teorias são funcionalistas, na medida em que pensam que a arte tem uma função, por exemplo, a de clarificar as nossas emoções ou de suscitar uma emoção estética. Neste confronto entre propriedades intrínsecas e extrínsecas defenderemos a necessidade de se encontrar uma posição intermédia. A nosso ver não é possível descartar duas propriedades extrínsecas das obras de arte. A primeira é que o conceito de arte é uma noção histórica; a segunda, que é uma noção cultural. Mas importa precisar o que afirmamos sob pena de cairmos num historicismo ou num relativismo em relação à compreensão filosófica da natureza da arte. O que se entende por arte está dependente do contexto histórico em que se vive. Não só as noções sobre “o que é a arte?» vão variando ao longo do tempo como é impossível, se me é permitida a metáfora, “saltar sobre a própria sombra”, o que significa que um olhar totalmente an‑histórico sobre as criações da humanidade é mais a expressão de um desejo do que uma realidade. Mas se a noção de arte é histórica, de tal modo que a visão que se tem hoje sobre o mundo artístico é muito diferente daquela que existia, por exemplo, no romantismo, na renascença ou na Idade Média, é também um facto que, qualquer cada um de nós, pode olhar para o passado e reconhecer nessas obras a expressão da visão que temos hoje de arte. É essa a razão que, por exemplo, os poemas homéricos são um caso paradigmático de criação poética qualquer que seja a época. Não existe qualquer contradição. A Idade Média pode ter entendido a arte como ofício enquanto nós podemos seguir a intuição de Collingwood em Principles of Art segundo a qual a técnica e ofício não são condições necessárias para que haja criação artística. Basta pensar na importância hoje dada à espontaneidade e ao improviso na própria criação. Mas nada impede de olharmos para criações do passado, por exemplo obras da Idade Média, e reconhecermos nelas o que apreciamos hoje. Os caçadores-recolectores de Chauvet poderiam não ter teóricos de arte nem apreciarem a sua arte apenas como arte, mas isso não significa que não possamos fazê-lo hoje em relação às suas criações geniais. O facto da arte ser um conceito histórico não impede que não possamos atravessar as barreiras do tempo e reconhecer como nossas obras que certamente foram criadas com uma intencionalidade bem distinta. Como ponto final, vejamos agora a questão da relação entre arte e cultura. Não foi por acaso que Clive Bell pôde formular, no princípio do século XX, um princípio global de interpretação das obras artísticas independentemente das culturas que as fizeram emergir. O contexto é conhecido. Nos finais do século XIX sucediam‑se as exposições universais e esse facto não foi indiferente para a criação artística. É conhecida a observação de Debussy segundo a qual se inspirou na música javanesa e nas suas escalas musicais exóticas para criar as suas próprias composições. O chamado primitivismo enquanto categoria estética do modernismo tornava-se dominante em todas as formas de expressão como é o caso da pintura de Gauguin ou a dança de Nijinsky. A globalização dava os seus principais passos e isso permitia um olhar transversal à arte para lá das identificações artísticas. E assim Clive Bell poderá dizer em Arte: Que qualidade é comum a Santa Sofia e aos vitrais de Chartres, às esculturas mexicanas, a uma taça persa, a tapetes chineses, aos frescos de  Giotto em Pádua e às obras-primas de Poussin, de Piero della Francesca e de Cézanne? Apenas uma resposta parece possível – forma significante. Em cada, linhas e cores combinados de um certo modo, certas formas e relações de formas, suscitam as nossas emoções estéticas.18 Pouco importa neste momento o valor da hipótese de Bell sobre a “forma significante”. O que se deve sublinhar, desde já, é o surgimento das condições que permitem que se possa olhar para as obras de arte de diferentes culturas como um todo. A ideia de um denominador comum à arte tornava- -se não só credível como desejável. Não se segue, no entanto, daqui, a ideia de que a criação artística seja independente da cultura que a fez nascer. Os primeiros passos na criação de uma civilização mundial é que criaram a ilusão de que tal era possível, mas também permitiram a possibilidade de uma reflexão filosófica em torno do denominador comum da arte para lá das diferenças culturais. A raiz cultural da arte não inviabiliza, antes exige um estudo comparatista sobre a experiência da arte. Neste âmbito, a investigação mais interessante foi feita pelo filósofo e antropólogo americano, Richard L. Anderson, no seu livro sobre as irmãs de Calíope. Esta última, em grego, significa literalmente “a da bela voz” e é a primeira das musas, estando associada à poesia épica de Homero. Com esta referência, Anderson quis simbolizar a arte no Ocidente. As irmãs de Calíope são naturalmente as visões alternativas ao modelo de arte que vingou na cultura ocidental. Cynthia Freeland, sintetiza o projecto de Anderson do seguinte modo: “Será que as culturas que existem no mundo partilham um conceito de “arte”? No seu livro Calliope’s Sisters, um estudo da arte em onze culturas mundiais, Richard Anderson (um antropólogo especializado em arte ou “etno-esteticista”) defende que nós podemos encontrar algo semelhante à arte em todas as culturas: algumas coisas são apreciadas pela sua beleza, pela sua forma sensível, assim como pela técnica de criação e são valorizadas em termos não-utilitários.” Como é evidente, seria despropositado, no contexto, deste artigo, mostrar os matizes e cambiantes que envolvem as diferentes concepções de arte (seja dos San ou dos Yoruba em África, dos Navajo na América, dos Aborígenes da Austrália, ou das culturas tradicionais da Índia e do Japão) nem muito menos discutir a metodologia seguida pelo autor tanto na escolha como na análise das culturas referidas. O facto de algumas delas não possuírem um conceito explícito de arte não significa que não o tenham implícito – quanto muito pode ser relevante o facto de não sentirem necessidade de o explicitar. Importa, antes, considerar a proposta de Anderson sobre a natureza da arte. Arte é, nas palavras do autor, “sentido culturalmente relevante, habilidosamente codificado num medium sensorial e que nos afecta.”21 Julgo que estamos em face de uma boa definição de arte e que tem a estranha particularidade de unificar concepções contemporâneas de arte – como as de Danto – e aquelas que nos foram sugeridas pelo Romantismo Alemão. Danto dir-nos-á que a arte é “sentido incarnado” (embodied meanings) do mesmo modo que os românticos alemães nos falarão de arte como símbolo. Afinal, a palavra símbolo em alemão, Sinnbild, significa “imagem de sentido” i.e. sentido sensível. 


Referências 

Anderson, R.L. 2004. Calliope’s Sisters. A Comparative Study of Philosophy of Art. 

Englewood Cliffs: Prentice Hall. Bell, C. 1914. Art. London: Chatto & Windus. 

Collingwood, R.G. 1958. The Principles of Art. Oxford/New York: Oxford University Press. 

Danto, AC. 1964. “The Artworld”. The Journal of Philosophy 61, 19 (15. Outubro.1964), 571-584. 

Danto, A.C. 1981. The Transfiguration of a common‑place. 

A Philosophy of Art. Cambridge/Mass./London: Harvard University Press. Freeland, C. 2001. 

But is it Art? Oxford: Oxford University Press. Lyon C. 1988. 

Contemporay Art in Context. New York: MoMA. Shiner, L. 2001. 

The Invention of Art. Chicago/London: The University of Chicago Press. Warburton, N. 2003. 

The Art Question. Oxford/New York: Routledge. 

Weitz, M. 1956. “The Role of Theory in Aesthetics”. 

The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 15, 27-35. 

Zangwill, N. 1998. “The concept of the aesthetic”. European Journal of Philosophy 6 (1), 78-93. 21 Anderson 2004: 238.


Carlos João Correia

 (Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa)

(https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/40523/1/CarlosJoaoCorreia_Philosophica_50.pdf)


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