Filosofia da Religião
"Sobre os Deuses, não tenho possibilidades de saber se existem ou não, nem qual é a sua forma. Muitas são as razõe que me impedem tal conhecimento: a obscuridade da questão e a brevidade da vida".
Hélade, Antologia da Cultura Grega
O que é a filosofia da religião?
A filosofia da
religião é uma das áreas da Filosofia que tem como objectivo investigar por processos estritamente racionais, as
crenças religiosas fundamentais, com o fim de determinar o seu significado e de
saber se são justificadas.
A Filosofia da Religião não é:
História das religiões (A Filosofia não se reduz à história)
Teologia (nesta já se parte de um conjunto de doutrinas que não se
colocam em causa, como por exemplo: a existência de Deus, a encarnação, a
ressurreição).
A filosofia da Religião questiona:
- Será que Deus existe mesmo?
- Será que há boas razões para aceitar a existência de Deus?
A Filosofia da
Religião pretende:
- O exame critico das crenças e dos conceitos
religiosos fundamentais
- Pensar filosoficamente sobre tópicos que
surgem, relativamente à religião.
O que é que a
Filosofia da Religião examina criticamente?
1. Conceitos
religiosos fundamentais como:
Conceito de Deus
Conceito de fé
Noção de milagre
Ideia de omnipotência
A (in) compatibilidade entre a existência do Mal e o amor de Deus pelas
criaturas
- Crença de que Deus existe
- Que há vida depois da morte
- Que Deus sabe, mesmo antes de nascermos, o que vamos fazer
- Que a existência do mal é consistente com o amor de Deus pelas suas criaturas.
Ou seja....
Que crenças e problemas interessam à Filosofia da Religião?
- O problema da definição de Deus, isto é, o problema de saber se é possível fazer uma descrição coerente dos atributos normalmente afirmados de Deus; e
- O problema de saber se há boas razões para afirmar que Deus existe.
O conceito TEISTA de
Deus.
"Teismo é a tese de que há uma pessoa sem um corpo (um espirito) que é
eterno, livre, capaz de fazer qualquer coisa, conhecer tudo, é perfeitamente
bom, é o objecto apropriado de adoração humana e obediência, o criador e o
sustento do universo. Cristãos, judeus e muçulmanos são todos, neste sentido, teistas".
Richard Swinburne (1993)
A que se referem as principais religiões como
o judaísmo, cristianismo e islamismo, quando falam de Deus?
Quando estas falam de Deus estão a referir-se
ao Deus Teista que é um Deus com os seguintes predicados:
Omnipotente (pode fazer tudo)
Omnisciente (sabe tudo)
Sumamente bom (moralmente perfeito)
Criador
Pessoa (e não uma força da natureza).
Tanto o cristianismo, o judaísmo e o
islamismo defendem a existência deste Deus teísta com estes
predicados, ainda que lhe deem nomes diferentes.
A concepção teista de Deus distingue-se de outras,
- Deismo (Deus
é o criador mas não intervém nem se importa com a criação);
- Panteismo (Deus não é distinto do mundo)
Mas será que o Deus Teísta Existe?
Quais os argumentos?
Que falácias a favor e contra
a existência de Deus?
No exame critico deverá ter-se como ideal uma argumentação que seja válida, sólida e cogente!
O que se entende por crença justificada na Física?
Entende-se que uma crença está justificada quando as provas a seu favor mostrem que essa crença é verdadeira ou bastante provável.
Exemplo: Um astrónomo
comunica à comunidade científica que as suas investigações o levam a pensar que
existe um planeta, até então desconhecido, entre Neptuno e Plutão. O astrónomo
que faz esta afirmação pode ser muito reputado, mas é óbvio que nenhum outro
astrónomo a vai considerar verdadeira a menos que ele a justifique. Os outros
astrónomos vão querer saber que provas tem ele a favor dela e só a considerarão
verdadeira se essas provas forem tais que mostrem que ela é verdadeira ou, pelo
menos, bastante provável. Em princípio, as provas que o astrónomo pode utilizar
são de dois tipos: argumentos e indícios empíricas. Neste caso, dado o conteúdo
da afirmação, mesmo que os argumentos fossem muito fortes seria pouco provável
que os astrónomos se contentassem apenas com argumentos. Eles só considerariam a
afirmação provada quando tivessem acesso a dados empíricos favoráveis, por
exemplo, imagens do planeta obtidas por telescópio.
E na Filosofia da Religião?
A situação não é muito diferente em filosofia da religião. Para que uma afirmação seja aceite ela tem de passar por um processo de justificação semelhante. A diferença principal está em que a maior parte das crenças religiosas não podem, ao contrário das afirmações sobre planetas, ser justificadas por intermédio de indícios empíricas. Não é possível provar, devido à própria natureza de Deus, por meios empíricos a Sua existência. É por essa razão que a investigação dessa crença pertence à filosofia e não à ciência. Para percebermos melhor isto temos de abordar a questão da definição de Deus.
Qual a natureza de Deus? Como definir Deus?
O problema da definição ou da natureza de Deus é um problema complexo e difícil. Por esse motivo, a nossa abordagem será forçosamente breve. Contudo, podemos dizer que envolve duas questões principais. Uma, a da definição propriamente dita, isto é, a questão de saber que propriedades devem ser atribuídas a Deus; e outra, a de saber se essas propriedades podem ser descritas de modo a serem combinadas numa definição coerente de Deus.
Que teorias respondem à definição de Deus?
A primeira questão deu origem a duas doutrinas filosoficamente mais relevantes, o teísmo e o deísmo, que embora tenham elementos em comum diferem em certos aspectos de forma importante.
O que é o teísmo?
"Teismo é a tese de que há uma pessoa sem um corpo (um espirito) que é eterno, livre, capaz de fazer qualquer coisa, conhecer tudo, é perfeitamente bom, é o objecto apropriado de adoração humana e obediência, o criador e o sustento do universo. Cristãos, judeus e muçulmanos são todos, neste sentido, teistas".
Richard Swinburne (1993)
O teísmo é a concepção da natureza de Deus segundo a qual Deus é um ser pessoal, espiritual, imutável, omnipresente, criador do universo, transcendente (que está fora do espaço e do tempo), omnipotente (que pode tudo), omnisciente (que sabe tudo), sumamente bom e necessário. Os teístas admitem a revelação, por intermédio, por exemplo, de um livro sagrado como a Bíblia ou o Corão, ou de milagres e profecias, e pensam que Deus intervém no mundo, assegurando a sua existência contínua.
O conceito TEISTA de Deus.
A que se referem as principais religiões como o judaísmo, cristianismo e islamismo, quando falam de Deus?
Quando estas falam de Deus estão a referir-se ao Deus Teista que é um Deus com os seguintes predicados:
Omnipotente (pode fazer tudo)
Omnisciente (sabe tudo)
Sumamente bom (moralmente perfeito)
Criador
Pessoa (e não uma força da natureza).
Tanto o cristianismo, o judaísmo e o islamismo defendem a existência deste Deus teísta com estes predicados, ainda que lhe deem nomes diferentes.
A concepção teista de Deus distingue-se de outras,
- Deismo (Deus é o criador mas não intervém nem se importa com a criação);
- Panteismo (Deus não é distinto do mundo)
O que é o deísmo?
Os deístas, recusam-se a aceitar qualquer forma de revelação como fonte de
conhecimento de Deus. Para eles, os únicos conhecimentos legítimos da natureza
de Deus são os que derivam de processos racionais de investigação. O deísmo,
tal como o teísmo, afirma que existe um Deus pessoal e transcendente, que criou
o mundo e que estabeleceu as leis que o regem, mas, ao contrário do teísmo,
nega que Deus intervenha no curso dos acontecimentos do mundo seja de que
maneira for e que responda às preces e necessidades humanas.
Serão estas as únicas respostas à natureza de Deus?
Estas não são, no entanto, as únicas concepções sobre a natureza de Deus. Outras formas de conceber a sua natureza são, por exemplo, o panteísmo, que identifica Deus com o universo físico, e o panenteísmo, a crença de que Deus está dentro de tudo e não apenas do universo físico.
Distinga ateísmo e agnosticismo?
Além destas perspectivas
sobre Deus, que diferem apenas na forma como concebem Deus, há também aquelas
que, como o ateísmo, negam a existência de Deus, ou, como o agnosticismo,
afirmam ser impossível saber se Deus existe.
Relacione teísmo e religião?
De todas estas concepções, o teísmo é de longe a perspectiva mais comum, visto que subjaz às três grandes religiões monoteístas do mundo, o Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo. Por este motivo, sempre que daqui em diante nos referirmos a Deus, estamos implicitamente a assumir que se trata de Deus tal como entendido nessas religiões.
Será possível fazer uma descrição coerente dos atributos normalmente afirmados de Deus?
O segundo problema, o da coerência dos atributos divinos, é ainda mais
difícil e intrincado que o primeiro. Por isso, iremos apenas indicar dois
exemplos, o paradoxo da pedra e o problema do mal, para dar uma ideia da sua
complexidade.
O que é o Paradoxo da Pedra?
Se aceitarmos a concepção teísta da natureza de Deus, um dos seus atributos é a omnipotência. Deus é todo-poderoso, Deus pode tudo ou, pelo menos, tudo o que seja logicamente possível. Significa isso que Deus pode também criar uma pedra que não possa levantar? Se pode criar tal pedra, então há uma coisa que Deus não pode fazer, a saber, levantar a pedra. Se Deus não a pode criar, também há algo que Deus, apesar de sumamente poderoso, é incapaz de fazer. As soluções propostas para este paradoxo têm sido muito diferentes e nem todas elegantes, mas estudá-las está para além do que nos propusemos fazer, por isso, não temos de nos preocupar com elas.
O que é o Problema do Mal?
O problema do mal representa ainda uma dificuldade maior. Ele tem
constituído ao longo dos séculos uma das maiores dores de cabeça para os
teístas e o principal argumento dos ateus contra a existência de Deus. O
problema resulta directamente da combinação de várias propriedades que são
atribuídas a Deus pela definição teísta. Como vimos, os teístas dizem que Deus
é, entre outras coisas, criador do universo, omnipotente, omnisciente e
sumamente bom. Mas, nesse caso, como é possível o mal que indiscutivelmente
existe no mundo? Parece decorrer do facto de Deus ter estas propriedades que
não deveria existir qualquer mal. Aparentemente, um criador que seja
omnisciente, sumamente bom e omnipotente, tem forçosamente de saber que o mal existe,
de não querer que haja mal e de poder impedi-lo. Então, como se explica o mal?
Mas será que o Deus Teísta Existe?
Quais os argumentos?
Que falácias a favor e contra a existência de Deus?
Como provar a existência de Deus? Que argumentos foram formulados?
Sabemos agora como os crentes costumam definir Deus. Mas isso por si só não
é uma garantia de que Deus exista. Para provar a existência de Deus, os filósofos
e os teólogos formularam ao longo dos tempos um número considerável de
argumentos. São alguns desses argumentos que vamos estudar em seguida. O
primeiro destes argumentos procura provar que a existência de Deus se segue
necessariamente da sua definição.
O que é o argumento ontológico?
A primeira prova da existência de Deus que vamos ver é o argumento
ontológico. Desde que foi apresentado pela primeira vez por Santo Anselmo, no
século XI, este argumento tem deixado muitos filósofos perplexos. O argumento
parece tudo menos convincente, mas não é fácil saber onde está o seu defeito.
O argumento ontológico é um argumento a priori. Na verdade, de todos os
argumentos a favor da existência de Deus que vamos ver, o argumento ontológico
é o único a priori. Todos os outros argumentos são a posteriori. Os termos a
priori e a posteriori distinguem dois tipos de proposições. As proposições a
priori são aquelas cuja verdade pode ser estabelecida a partir apenas do
significado dos termos que entram nelas e das leis da lógica. Por exemplo,
sabemos que a proposição “o quadrado é a figura geométrica com quatro lados e
quatro ângulos iguais” é verdadeira sem recorrer à experiência. Bem entendido,
precisamos sempre da experiência para saber o significado de algumas palavras
usadas na frase, mas uma vez isso sabido podemos determinar o valor de verdade
da proposição meramente a partir das leis da lógica. Por oposição, as
proposições a posteriori são aquelas cuja verdade só pode ser estabelecida
recorrendo à experiência. Uma proposição como “A Lua é redonda” é deste tipo.
Portanto, dizer que um argumento é a priori equivale a dizer que é constituído
apenas por proposições a priori e isto, por sua vez, equivale a dizer que a
verdade das proposições que o constituem pode ser determinada sem recorrer à
experiência.
O que pretende o argumento ontológico?
Se aplicarmos isto ao argumento ontológico, isso significa que esse
argumento pretende estabelecer a existência de Deus a partir da mera análise do
conceito de Deus, sem utilizar qualquer evidência com origem na experiência. A ideia
é que própria noção de Deus implica que Deus existe, tal como a ideia de
triângulo implica uma figura de três lados cujos ângulos somam 180 graus, pelo
que falar de Deus e negar a sua existência é tão contraditório quanto falar de
triângulos e recusar que a soma dos seus ângulos perfaçam 180 graus.
Santo Anselmo e o Argumento Ontológico.
Santo Anselmo apresentou o argumento pela primeira vez no capítulo 2 do
livro Proslogion. Aí, ele começou por definir Deus como “alguma coisa maior do
que a qual nada se pode pensar” (aliquid quo nihil maius cogitari possit).
É importante perceber bem o significado da palavra “maior” nesta definição.
Anselmo não está a dizer que Deus é a coisa maior que existe. “Maior” não tem
aqui o significado comum de “maior em tamanho”, mas de maior em valor ou maior
em perfeição. Assim, ao dizer que Deus é “alguma coisa maior do que a qual nada
se pode pensar”, Santo Anselmo está a dizer que Deus é “alguma coisa com mais
valor (ou mais perfeição) que se pode pensar”. Esta é uma definição muito geral
de Deus, que especificamente nada diz sobre os seus atributos. Podemos, no
entanto, assumir que é outra maneira de expressar a definição teísta de Deus,
embora, para os fins de Santo Anselmo, isso seja irrelevante. Tudo aquilo de
que ele precisa para o seu argumento é desta definição geral, que afirma que
quaisquer que sejam os atributos de Deus, ele possui-os em grau absoluto. Desta
forma, Santo Anselmo não se limita a dizer que Deus tem certos atributos no
grau mais elevado que podemos conceber, mas que ele tem todas as qualidades ou
perfeições que podemos conceber em grau absoluto. É este o verdadeiro
significado da definição de Santo Anselmo.
Estabelecida a definição de Deus, Santo Anselmo avança para a segunda fase
do argumento. Algumas pessoas (como o insipiente do Salmo, 14, 1 da Bíblia),
dizem que Deus não existe. As pessoas que fazem esta afirmação podem dessa
forma estar a negar que Deus exista na realidade, mas não podem negar que ele
exista na mente, uma vez que para negar a existência de qualquer coisa é
necessário compreender aquilo de que se nega a existência, isto é, é preciso
ter uma ideia disso na mente. Por exemplo, para negares que existam fantasmas
tens de ter na tua mente uma ideia de fantasma. Sem uma ideia de fantasma
ser-te-ia impossível negar a existência de fantasmas. Ora, isto também é
verdadeiro para as pessoas que negam que Deus exista. Para o poderem fazer têm
de ter na sua mente uma ideia de Deus. Assim, mesmo que o insipiente da Bíblia
ou um ateu digam “Não há Deus”, para que o possam dizer, têm de ter nas suas
mentes uma ideia de Deus.
Santo Anselmo está agora em condições de passar para a última fase do seu
argumento. Será que Deus tem apenas esta existência mental que tanto o crente
como o ateu lhe reconhecem? Não, porque se Deus existisse apenas na mente,
seria possível conceber um Deus maior, que existisse não apenas na mente mas
também na realidade, uma vez que o que quer que, para além de existir na mente,
exista também na realidade é maior (no sentido explicado acima de ter mais
valor ou maior perfeição) do que aquilo que exista apenas na mente. Mas isto é
impossível, visto que, como Deus é, por definição, “aquilo maior do que o qual
nada se pode pensar” nada pode ser maior que Deus. Portanto, Deus existe não
apenas na mente mas também na realidade.
Nesta última fase do argumento ontológico, Santo Anselmo faz uma a redução
ao absurdo. A redução ao absurdo que Santo Anselmo faz é a seguinte:
Primeira premissa: Se “aquilo maior do que o qual nada se pode pensar”
existisse apenas na mente, seguir-se-ia que “aquilo maior do que o qual nada se
pode pensar” seria aquilo mesmo maior do que o qual alguma coisa se pode
pensar.
Segunda premissa: Mas, isto, em virtude da própria definição de Deus, é
impossível.
Conclusão: Portanto, é forçoso concluir que “aquilo maior do que o qual
nada se pode pensar” existe não só na mente como também na realidade.
O argumento ontológico completo é, em esquema, o seguinte:
Primeira premissa (definição de Deus): Deus é “alguma coisa maior do que a
qual nada se pode pensar”.
Segunda premissa: Mesmo aqueles que negam a existência de Deus têm Deus na
sua mente.
Terceira premissa: Aquilo que existe na mente e na realidade é maior do que
aquilo que existe apenas na mente.
Quarta premissa (primeira premissa da redução ao absurdo): Se “aquilo maior
do que o qual nada se pode pensar” existir apenas na mente, segue-se que
“aquilo maior do que o qual nada se pode pensar” é aquilo mesmo maior do que o
qual alguma coisa se pode pensar.
Quinta premissa (segunda premissa da redução ao absurdo): É
autocontraditório que “aquilo maior do que o qual nada se pode pensar” seja
aquilo maior do que o qual alguma coisa se pode pensar.
Conclusão (da redução ao absurdo): Portanto, “aquilo maior do que o qual
nada se pode pensar” existe tanto na mente como na realidade.
Conclusão:
Portanto, Deus existe necessariamente.
Criticas ao Argumento Ontológico:
A- Gaunilo e a ilha perfeita
Uma das principais críticas ao argumento de Santo Anselmo veio de um monge
seu contemporâneo, chamado Gaunilo de Marmoutier. Gaunilo defendeu que o
argumento não pode ser bom, uma vez que tem consequências absurdas. Para o
mostrar, ele socorreu-se da ideia de ilha perfeita. A sua estratégia consistiu
em substituir o conceito de Deus no argumento de Santo Anselmo pelo de ilha
perfeita e retirar daí a conclusão — obviamente absurda — de que a ilha
perfeita existe. Eis como ele raciocina:
Ora, se uma pessoa me dissesse que uma tal ilha existe, eu perceberia
facilmente as suas palavras, nas quais não há nenhuma dificuldade. Mas
suponhamos que ela ia ao ponto de me dizer, como se isso resultasse de uma
inferência lógica, “Não podes continuar a duvidar de que esta ilha, que é
melhor do que todas as terras, existe algures, uma vez que não tens dúvidas de
que ela está no teu entendimento. E visto que é melhor não existir apenas no
entendimento, mas existir tanto no entendimento como na realidade, por esta
razão ela tem de existir. Porque se não existisse, qualquer terra que existisse
de facto seria melhor que ela; e assim a ilha que já compreendeste ser a melhor
não seria a melhor.
Se um homem tentasse provar-me por um raciocínio destes que esta ilha
existe de facto, e que não se devia continuar a duvidar da sua existência, eu,
ou acreditava que ele estava a gracejar, ou não saberia quem deveria considerar
como o maior tolo: eu, se tivesse aceite esta prova; ou ele, se ele supusesse
que tinha estabelecido com alguma certeza a existência desta ilha. Pois ele
deve mostrar primeiro que a hipotética excelência desta ilha existe enquanto um
facto real e indubitável, e de forma alguma como um objecto irreal, ou um
objecto cuja existência é incerta, no meu entendimento. (Gaunilo, “A Favor do
Insipiente”)
Para Gaunilo, portanto, o facto de podermos definir um ser como o maior que
se pode pensar não significa que esse ser exista. Se isso fosse verdade, o
argumento ontológico provaria não apenas que a ilha perfeita existe, mas tudo o
que quiséssemos provar que existe, bastando para tal que definíssemos essa
coisa como perfeita. Poderíamos, assim, provar que a namorada perfeita existe,
que o namorado perfeito existe, que a sogra perfeita existe e, até, que o Diabo
perfeito existe!
B- Kant: a “existência” não é um predicado
Um outro crítico do argumento de Santo Anselmo foi Immanuel Kant. Na
Crítica da Razão Pura, a sua obra mais importante, Kant atacou a ideia de que a
existência é uma perfeição de Deus.
Esta ideia tem um papel importante no argumento ontológico, uma vez que é
ela que permite a Santo Anselmo dizer que um ser que existe na mente e na
realidade é maior do que um ser que existe apenas na mente e que, como Deus é,
por definição, “alguma coisa maior do que a qual nada se pode pensar”, Deus tem
de existir não apenas na mente, mas também na realidade. Isto significa que a
existência é um atributo, propriedade ou predicado, que faz parte da definição
de Deus.
O que é um predicado? Os predicados são termos que expressam propriedades
das coisas. Por exemplo, numa frase como “o céu é azul”, “céu” é o sujeito e “é
azul” é o predicado. É fácil ver que existem muitos outros predicados, como “é
alto”, “é grande”, etc. Os predicados são geralmente usados para definir e
caracterizar coisas. Quando, por exemplo, dizemos “o quadrado é a figura
geométrica com quatro lados e quatro ângulos iguais” estamos a usar os
predicados “figura geométrica”, “quatro lados iguais” e “quatro ângulos iguais”
para definir quadrado. Do mesmo modo, quando dizemos que Deus é omnipotente,
omnisciente, etc., estamos a usar os predicados “é omnipotente”, “é
omnisciente”, etc. para definir Deus.
Ora, o que Kant contesta é que possamos usar a existência do mesmo modo.
Para ele, a existência não é um predicado, porque ao dizermos que uma coisa
existe não estamos a atribuir nenhuma propriedade ou qualidade particular a
essa coisa. E se não estamos a atribuir nenhuma propriedade ou qualidade a uma
coisa, a palavra “existência” não se refere a nada, pelo que não existe a
qualidade da existência e, portanto, a existência não pode ser algo que Deus
tenha de possuir para ser Deus. E se a existência não é algo que Deus tenha de
possuir para ser Deus, não podemos concluir, com base na definição de Deus como
“alguma coisa maior do que a qual nada se pode pensar”, que Deus tem de
existir. De forma muito resumida, o argumento de Kant é o seguinte:
Primeira premissa: Aquilo que não acrescenta nada à definição de uma coisa
não faz parte da definição dessa coisa.
Segunda premissa: Dizer que Deus existe não acrescenta nada à definição de
Deus.
Conclusão: Logo, a existência não faz parte da definição de Deus (não é um
predicado).
Conclusão: Logo, não podemos concluir a partir dessa definição que Deus
existe.
O processo é, do seu ponto de vista, antes ao contrário. Temos de
estabelecer a existência de algo para podermos dizer depois como é. Se existe
um ser perfeito, então ele tem de existir, tal como se existe um triângulo, ele
tem de ter três ângulos.
Síntese
Argumento Ontológico - Anselmo de Cantuária
(1033-1109)
A característica mais invulgar deste
argumento é o facto de se basear apenas em premissas cuja verdade, a serem
verdadeiras, poderá ser conhecida sem apelar à experiência: a simples análise
do conceito de Deus que todos somos capazes de formar nas nossas mentes,
poderá demonstrar a sua existência na realidade.
É um argumento por redução ao
absurdo: juntando às restantes premissas a proposição de que Deus não
existe na realidade, gera-se uma contradição (pois o tal ser maior do que o
qual nenhum outro é possível, teria de ter outro ser superior maior que Deus),
pelo que essa proposição Deus não existe na realidade- é falsa - Deus
existe.
Na versão clássica de Santo Anselmo parte-se
da definição de Deus como "ser maior do que o qual nada pode ser
pensado" - um ser que acumula todas as perfeições que existam, que detém
todas as propriedades positivas e nenhuma negativa, de tal modo, que seja o
máximo possível da perfeição.
A partir desta definição conclui-se que Deus
existe na realidade, pois se Deus não existisse ou se apenas existisse no
pensamento, mas não na realidade, não seria aquele ser maior do que o qual nada
pode ser pensado.
- é um argumento a
priori (sem apelar à experiência)
Formalizando este raciocínio:
1. Deus existe no
pensamento (isto é, pode ser concebido como ideia, quer exista ou não na
realidade)
2. Deus é um ser
possível
3. Se Deus existe no pensamento e não na realidade, então um ser mais perfeito
do que Deus é concebível.
4. Deus não existe na realidade (hipótese da redução ao absurdo).
5. Se Deus não existe na realidade, então pode haver um ser maior que ele.
6.Há um ser que é
existindo no pensamento e na realidade é maior do que o Deus que existe só no
pensamento mas a quem falta a existência na realidade. Mas, não é
concebível um ser mais perfeito do que Deus, nem que Deus não exista na
realidade.
4. Logo, Deus existe
na realidade e no pensamento.
Objecções:
A. Pode provar-se
coisas que não existem
- Gaunillo (994- 1083), um monge beneditino
da Abadia de Marmoutier em Tours, França apresentou uma primeira critica
em que seguindo a mesma estrutura argumentativa do argumento ontológico de
Santo Anselmo , pode provar-se coisas que não existem. Para mostrar isto, Gaunillo
definiu "Ilha Perfeita" como uma ilha maior do que a qual nada maior
pode ser pensado e conclui, pelas mesmas razões de Santo Anselmo, que essa ilha
meramente imaginária também existe na realidade.
Formalizando o
argumento de Gaunillo:
1. A Ilha Perfeita existe no pensamento
2. Se a ilha perfeita existe no pensamento e não na realidade, então uma ilha
mais perfeita do que a ilha perfeita é concebível
3. Mas não é concebível uma ilha mais perfeita do que a ilha perfeita
4. Logo, a ilha perfeita existe na realidade.
Deste modo, chega-se a uma conclusão estranha
com base na mesma estrutura do argumento ontológico. Como não há qualquer ilha
perfeita, na forma como Gaunillo a definiu, alguma das premissas terá de ser
falsa. Embora Gaunillo não tenha identificado, com precisão, qual o erro,
filósofos posteriores tentaram-no fazer.
O que é o argumento cosmológico?
O argumento cosmológico, ao contrário do argumento ontológico, é um
argumento a posteriori. Isto significa que procura provar a existência de Deus
a partir das nossas observações do mundo e não, como o argumento ontológico, a
partir da mera análise lógica da definição de Deus.
O argumento cosmológico é muito antigo. Entre os seus defensores
encontram-se Platão, Aristóteles, Descartes, Locke, e muitos teólogos actuais,
mas a versão mais famosa do argumento é a que São Tomás de Aquino apresenta nas
suas ‘Cinco Vias’ para provar a existência de Deus. O argumento cosmológico,
mais do que um argumento específico, é um tipo de argumento e, por isso, as
três primeiras vias de São Tomás constituem outras tantas formas do argumento
cosmológico. A ‘Primeira Via’ baseia-se na noção de movimento; a segunda na de
causa; e a terceira, na de contingência. Das três, a versão mais comum e
intuitiva é a segunda. Por esse motivo, é essa que vamos estudar.
O argumento da causa (ou da causa primeira, como às vezes também é
designado) pode ser enunciado da seguinte forma:
Tudo o que acontece tem uma causa ou agente activo e esta causa ou agente
também tem uma causa. Contudo, não pode haver uma regressão infinita nas
cadeias de causas. Porque se não houvesse uma causa primeira, não existiriam
causas subsequentes e, portanto, também não existiriam nenhuns dos efeitos
actualmente existentes. Assim, as cadeias de causas e efeitos causados implicam
uma causa primeira ou uma causa que não seja causada por nada, isto é, Deus.
Este argumento é muito simples e elegante e, por isso, muito persuasivo.
Contudo, é conveniente que olhemos para ele com um pouco mais de atenção. A sua
primeira premissa é a seguinte:
Tudo o que acontece tem uma causa ou agente activo e esta causa ou agente
também tem uma causa.
Esta premissa limita-se a afirmar algo que é do conhecimento comum e que a
observação nos revela no dia-a-dia vezes sem conta: tudo o que acontece tem uma
causa. Isto é tão evidente que não levanta qualquer dificuldade. O mesmo não se
pode dizer da segunda premissa:
Não pode haver uma regressão infinita nas cadeias de causas.
Esta premissa, ao contrário da primeira, faz uma afirmação para a qual não pode ser apresentada qualquer evidência empírica conclusiva. Conhecemos, claro, muitas cadeias causais completas e nesses casos não temos quaisquer dúvidas de que tiveram começo. Mas, há muitas cadeias das quais só conhecemos um pequeno fragmento ― aquele constituído pelas causas e efeitos que pudemos observar ―, e nestes casos é impossível ter a certeza, com base apenas na experiência, que a cadeia teve um começo. Por este motivo, a experiência é insuficiente para estabelecer a segunda premissa e São Tomás tem de recorrer a um argumento.
Este
argumento é uma redução ao absurdo com a seguinte forma:
Primeira premissa: Se não houvesse uma causa primeira (isto é, se houvesse
uma regressão infinita nas causas), não existiriam causas subsequentes nem, por
consequência, os efeitos que actualmente existem.
Segunda premissa (premissa subentendida): Existiram as causas subsequentes
e os efeitos actuais existem.
Conclusão: Portanto, não pode haver uma regressão infinita de causas.
Estabelecida, desta forma, a segunda premissa, a conclusão segue-se naturalmente dela e da primeira.
Assim, o argumento completo é o seguinte:
Primeira premissa: Tudo o que acontece tem uma causa ou agente activo e
esta causa ou agente também tem uma causa.
Segunda premissa (primeira premissa da redução ao absurdo): Se não houvesse
uma causa primeira (isto é, se houvesse uma regressão infinita nas causas), não
existiriam causas subsequentes nem, portanto, os efeitos actualmente
existentes.
Terceira premissa (segunda premissa da redução ao absurdo — premissa
subentendida): Existiram as causas subsequentes e os efeitos actuais existem.
Conclusão (da redução ao absurdo): Não pode haver uma regressão infinita de
causas.
Conclusão:
Portanto, tem de existir uma “causa primeira”, isto é, Deus.
Criticas ao Argumento Cosmológico:
Se este argumento tem tido muitos defensores, tem tido também muitos críticos. Hume e Kant são dois dos seus mais importantes críticos.
A. Hume: tudo o que acontece tem uma causa?
Dissemos atrás que a primeira premissa do argumento cosmológico, que afirma
que “Tudo o que acontece tem uma causa ou agente activo e esta causa ou agente
também tem uma causa”, é aceite por toda a gente, mas isto não é correcto. A
crença na causalidade foi desafiada por David Hume, no século XVIII. No seu
primeiro livro, Um Tratado da Natureza Humana, Hume submeteu a relação de causa
e efeito a uma análise rigorosa. É essa análise que constitui a objecção ao
argumento cosmológico que vamos agora ver.
Hume pensa que aceitamos como evidente a crença de que “tudo tem uma causa”
não porque ela seja evidente ou possa ser demonstrada, mas porque a nossa mente
é constituída de forma a que pensemos que existe uma ligação entre o
acontecimento a que chamamos causa e o acontecimento a que chamamos efeito.
Um exemplo ajudar-nos-á a perceber melhor a ideia. Imaginemos que alguém dá
uma bola de borracha a um bebé. Como o bebé nunca brincou com uma bola desse
tipo, não tem maneira de saber que se a deixar cair, ela vai saltar. A pessoa
que ofereceu a bola ao bebé dirá, pelo contrário, que espera ver a bola saltar,
porque o bebé, ao deixar cair a bola, fará com que (causará que) ela salte, ou
porque existe uma conexão necessária entre a queda da bola de borracha e a bola
saltar. Essa pessoa diz isto porque já viu muitas vezes bolas de borracha
caírem e saltarem e nunca teve experiência de uma situação em que isso não
tenha ocorrido.
Mas, o que na sua experiência está na origem dos conceitos de causa e de
conexão necessária? Ela viu a bola cair muitas vezes e o bebé apenas uma. Mas
isso significa apenas que viu muitas vezes uma bola de borracha cair e em
seguida saltar. Não que tenha visto algo que o bebé, por ter visto uma bola
cair e saltar apenas uma vez, não tenha visto. Portanto, tal como na
experiência do bebé, nada há na experiência dessa pessoa que possa dar origem a
estes conceitos. Mas, então, se a causa e a conexão necessária nunca foram
directamente observadas, donde derivam as suas ideias?
A resposta de Hume é que, embora a experiência repetida de acontecimentos
semelhantes não revele nenhuma ligação causal entre deixar a bola cair e a bola
saltar, essa experiência, no entanto, leva a que a mente forme o hábito ou o
costume de esperar ver a bola de borracha saltar quando cai. Assim, acreditar
que A causa B, ou que existe uma conexão necessária entre A e B, é o mesmo que
dizer que as nossas mentes são constituídas de maneira a que, tendo nós tido
experiência de A e B sempre juntos, quando vemos A esperemos que se siga B e
que, quando vemos B presumamos que foi antecedido por A. A nossa experiência
gera, deste modo, o hábito de esperar, a expectativa de que a A se siga B, e a
nossa consciência deste hábito é a ideia de conexão necessária. Contudo, em vez
de percebermos que esta conexão é apenas uma determinação da nossa mente ― um
mecanismo psicológico ―, atribuímo-lo ao mundo que nos rodeia e supomos que
percebemos conexões necessárias que existem nas coisas de forma completamente
independente de nós. Mas, claro, isto é um erro, porque não temos nenhuma
justificação para afirmar que estas conexões existem na realidade e não apenas
na nossa cabeça.
É fácil perceber o efeito devastador desta crítica para o argumento
cosmológico. Como a esmagadora maioria de nós, São Tomás considera que a
existência de causas é uma evidência constantemente confirmada pela nossa
experiência e observação do mundo. Contudo, se Hume tem razão, nada há na
observação e na experiência que possa dar origem à ideia de causa. Quando
dizemos que existe uma conexão necessária entre A e B, de tal modo que A é a
causa de B, isso é apenas o resultado de uma mera tendência psicológica para
ligar os dois acontecimentos e, tanto quanto sabemos, pode não ter nenhuma
correspondência na realidade. Portanto, ao dizer que “tudo tem uma causa”, São
Tomás limitou-se a afirmar aquilo que, para ser aceite, precisava de ter
provado. E na ausência de provas não há nenhuma razão para aceitar como
verdadeira uma premissa que até pode ser falsa.
Hume: o universo é causa de si
próprio
A maior parte das críticas de Hume directamente dirigidas à religião
encontram-se nos seus Diálogos sobre a Religião Natural. Iremos
ver com mais detalhe algumas dessas críticas quando estudarmos o argumento do
desígnio, mas Hume também critica nessa obra a ideia de que Deus seja a causa
de tudo o que existe.
Vamos pôr de lado a objecção anterior e assumir que o argumento cosmológico
prova, de facto, que existe uma primeira causa. Como vimos, São Tomás afirma
que essa causa é Deus. Por que razão é Deus a causa primeira? Porque, pensa
ele, uma vez que é causa de si próprio, Deus cumpre o requisito, exigido pelo
argumento, de ser uma causa que não tem uma causa. Mas será que só Deus cumpre
este requisito? David Hume pensa que não. Ele sugere que o universo também pode
ser causa de si próprio e, portanto, é completamente injustificado procurar
fora do universo uma causa para o universo:
Mas se paramos e não avançamos mais, por que razão ir tão longe? Por que
não parar no mundo material? Como podemos dar-nos por satisfeitos sem
prosseguir in infinitum? E, no fim de contas, que satisfação existe nessa
progressão infinita? (…) Se o mundo material se apoia num mundo ideal similar,
este mundo ideal deve apoiar-se nalgum outro, e assim por diante,
infinitamente. Seria melhor, portanto, nunca olhar para além do mundo material
actual. Ao supor que contém em si mesmo o princípio da sua ordem, afirmamos que
é de facto Deus e quanto mais cedo chegarmos a esse Ser divino tanto melhor.
Quando ides um passo além do sistema mundano, apenas excitais uma disposição
inquisitiva que será sempre impossível satisfazer. (David Hume, Diálogos
sobre a Religião Natural, pp. 53–54)
São Tomás pensa que Deus é a causa primeira. Mas para Hume esta conclusão é arbitrária, uma vez que uma alternativa igualmente plausível é que o universo seja a sua própria causa. Esta alternativa tem ainda a vantagem de ser mais simples, visto que não pressupõe nenhuma entidade sobrenatural. Repare, no entanto, que Hume não está a afirmar que esta é a alternativa verdadeira. Para os seus propósitos ele não precisa de ir tão longe quanto, como veremos, irá Darwin. Tudo o que precisa fazer é mostrar que essa hipótese pode ser verdadeira e, portanto, que não podemos ter a certeza de que a causa do mundo seja Deus.
B. Kant: o princípio da causalidade só se aplica à experiência sensível
A crítica de Immanuel Kant é de natureza bastante diferente e baseia-se em conclusões a que ele chegou em outras partes da sua filosofia. Lembremo-nos de que o argumento cosmológico pretende passar da existência de causalidade no mundo para uma causa incausada. Kant, no entanto, pensa que este passo não é válido. O princípio da causalidade, a relação de causa e efeito, é aquilo a que ele chama na Crítica da Razão Pura, um conceito puro do entendimento. Uma das características destes conceitos é poderem apenas ser correctamente aplicados ao que nos é dado na experiência sensível. Sempre que os aplicamos fora deste domínio, deixamos de ter a garantia da verdade das conclusões a que chegamos por seu intermédio. Assim, podemos aplicar o princípio da causalidade ao movimento de duas bolas numa mesa de bilhar e dizer que o movimento da primeira bola é causa do movimento da segunda porque as duas bolas são entidades do mundo sensível, isto é, são coisas que conhecemos por intermédio dos sentidos. Mas não é isto que acontece no argumento cosmológico. No argumento cosmológico, uma vez que Deus está fora do mundo da experiência, o princípio da causalidade é usado para partindo da experiência sensível ir além dessa mesma experiência. Por este motivo, embora o argumento nos permita colocar a hipótese de que existe um ser não causado, não prova, como quer São Tomás de Aquino, que esse ser existe de facto.
Síntese
Argumento Cosmológico (da causa primeira ou causal) - S. Tomás de Aquino
- Parte da observação que tudo que
existe tem uma causa
- Baseia-se em alguma informação
acerca do modo como o mundo é
- começa-se com factos simples acerca do
mundo, como o facto de nele haver coisas cuja existência é causada por outras
coisas e daí concluir que tem de haver uma primeira causa, ou seja, Deus
- É um argumento a
posteriori
Formulação:
1. Existem coisas no mundo
2. Se existem coisas no
mundo, então tais coisas foram causadas a existir por alguma outra coisa
3. Se as coisas do mundo
foram causadas a existir por alguma outra coisa, então ou há uma cadeia causal
que regride infinitamente ou há apenas uma primeira causa que é a origem da
cadeia causal
4. Mas não há uma cadeia
causal que regride infinitamente
5. Logo, há apenas uma
primeira causa (a que chamamos Deus) que é a origem da cadeia causal.
Objecções:
Falácia do Falso Dilema- Na premissa 3 há um
falso dilema na medida em que apresenta apenas duas opções para explicar as
coisas que existem no mundo quando podemos pensar em mais possibilidades, por
exemplo, a opção de existirem primeiras várias causas diferentes e, deste modo,
a conclusao não poderia ser a de que há apenas uma causa primeira. Porque é que a existencia
de várias causas não é plausivel?
Poderá haver uma cadeia
causal infinita - Em
relação à premissa 4, poderemos dizer que S. Tomás de Aquino argumenta que
se não existe uma primeira causa, também não existe qualquer cadeia causal e
nada existiria, ou seja, deixaria de haver tudo o que é causado por essa causa
primeira. Por isso, conclui que as cadeias causais não podem regredir
infinitamente, como se lê na premissa 4. Porém há aqui um problema que é o da
definição pois uma cadeia causal que regride infinitamente não tem uma primeira
causa. Portanto, é falso que, se retirassemos a causa primeira (se ela não
existir), a cadeia causal e tudo o que existe no mundo deixaria de existir.
Não implica o Deus Teista - Em relação à
conclusão, mesmo que se possa concluir que existe uma causa primeira, nada
garante que essa causa seja o Deus teista, ou seja, a primeira causa da cadeia
causal não precisa de ter os atributos tradicionais do teismo, como a
omnipotencia, a omnisciencia ou a suma bondade.
Qual foi a causa de
Deus? - se tudo tem uma causa, Deus também a tem.
O universo poderá ser incriado e eterno -
a possibilidade de que tudo o que existe tem uma causa é compativel com a
possibilidade de um mundo sem um principio nem fim, um mundo que exista desde
sempre (como as séries infinitas de númerosem qualquer das direcções)
Argumento Cosmológico - O
que diz a Bíblia?
A Bíblia diz-nos
que foi Deus que criou os céus e a Terra, que é eterno e infinito, que governa
eternamente, que é a primeira causa e que criou o universo apenas pela sua
vontade.
A Bíblia diz-nos, desde o primeiro versículo, que Deus criou o universo. “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gênesis 1:1). “...o SENHOR, porém, fez os céus” (1 Crônicas 16:26). Sabemos que Deus não é em Si uma parte física do universo. 2 Crônicas 2:6 diz: “...visto que os céus e até os céus dos céus o não podem conter”. Sabemos também que o “SENHOR, Deus Eterno” (Gênesis 21:33) é eterno e infinito. “Ele, em seu poder, governa eternamente” (Salmo 66:7). A Bíblia ensina claramente que Deus é a Primeira Causa sem causa anterior e que Ele criou o universo apenas pela Sua vontade.
O que é o argumento do desígnio ou teleológico?
Como o argumento cosmológico, o argumento do desígnio é um argumento a
posteriori. Por essa razão, tal como o argumento cosmológico, o argumento do
desígnio também pretende provar a existência de Deus a partir do mundo. Ainda
assim, há dois importantes aspectos que distinguem estes dois argumentos. O
primeiro é que o argumento cosmológico é um argumento dedutivo, ao passo que o
argumento do desígnio é um argumento não-dedutivo. Isto significa que, mesmo
que o argumento do desígnio seja um argumento não-dedutivo forte, não prova de
forma definitiva que Deus existe e que o máximo que pode conseguir é mostrar
que a probabilidade de ele existir é elevada. O segundo aspecto é que, embora
ambos os argumentos pretendam provar a existência de Deus a partir do mundo, o
argumento cosmológico parte de certos factos empíricos considerados evidentes ―
como a existência de causalidade ― para concluir que Deus tem necessariamente
de existir, ao passo que o argumento do desígnio se baseia na comparação do
mundo com outras coisas que exibem desígnio, para concluir que, tal como essas
coisas têm um autor, também o mundo tem um autor.
De todas as provas da existência de Deus, o argumento do desígnio é,
histórica e filosoficamente, a mais importante. É a quinta via das “Cinco Vias”
que S. Tomás expõe na Suma Teológica, mas já se encontra em Da Natureza dos
Deuses, de Cícero ― que a atribui aos estóicos ―, praticamente nos termos em
que a vamos estudar, e antes ainda em Aristóteles, Platão e mesmo Anaxágoras.
Nos séculos XVIII e XIX, devido aos progressos de ciências como a astronomia e
a biologia, que descobriram sistemas cuja complexidade parecia não poder ser o
resultado das meras forças cegas da natureza, a prova tornou-se muito popular
entre os cientistas e os filósofos, tendo, daí para cá, sido objecto de intenso
interesse. É uma versão moderna desta prova que, nos Estados Unidos, está na
base da recente pretensão de que a teoria do desígnio inteligente seja ensinada
nas aulas de Biologia das escolas públicas.
É habitual distinguir duas versões do argumento do desígnio. Quando o
argumento tem por base a ordem do mundo, por exemplo, a regularidade do sistema
solar, diz-se que se trata de uma versão nomológica, da palavra grega nomos,
que significa norma ou lei. Quando tem por base a adequação de algo aos fins,
por exemplo, a adequação de um órgão dos seres vivos à função que desempenha,
diz-se que se trata da versão teleológica, da palavra grega telos, que
significa fim ou propósito. O argumento do desígnio pode, portanto, conforme os
casos, ser uma tentativa de provar a existência de Deus a partir da ordem do
mundo (versão nomológica do argumento) ou a partir da existência de um
propósito ou fim (versão teleológica do argumento).
A versão mais famosa do argumento do desígnio é a de William Paley no livro
Teologia Natural, publicado em 1802. Paley expõe o argumento mais ou menos
nestes termos:
Supõe que ao atravessares um bosque vês uma pedra e te interrogas acerca da
sua origem. Poderias explicá-la facilmente recorrendo a meras causas geológicas
e meteorológicas, como os movimentos da crosta terrestre, o vento, o calor, a
chuva. Mas, se em vez de uma pedra encontrasses um relógio, não poderias fazer
o mesmo. A razão está em que o relógio é um objecto complexo, constituído por
rodas dentadas, engrenagens, molas, etc. (o relógio de Paley era do começo do
século XIX), que operam em conjunto para dar as horas, de tal modo que a mínima
alteração na organização das suas partes afectaria os resultados obtidos. Seria
absurdo supor que um objecto com este nível de complexidade e ajustamento
pudesse ter origem nas meras forças da natureza. Por conseguinte, o relógio tem
de ter por origem um ser inteligente: o relojoeiro. Paley estende depois este
raciocínio ao universo e aos objectos naturais nele existentes. Chama a atenção
para os indícios de desígnio nos organismos e nos órgãos naturais e, em
particular no olho humano. Estas entidades naturais revelam um nível de
organização, de ajustamento e de complexidade ainda maior que o do relógio,
pelo que, tal como o relógio, devem a sua existência a um ser inteligente,
Deus, que os criou.
Podemos resumir o argumento de Paley da seguinte forma:
Primeira premissa: O relógio tem as suas diversas partes organizadas e
ajustadas de modo a atingir um dado fim ou propósito, revela, portanto,
desígnio, pelo que tem de ter um criador inteligente, o relojoeiro que o fez.
Segunda premissa: O universo e os organismos vivos são muito semelhantes
aos relógios, isto é, também revelam desígnio.
Conclusão: Portanto, também o universo e os organismos vivos têm um criador
inteligente, que é Deus.
Na primeira premissa, Paley limita-se a afirmar algo que todos nós
aceitamos sem dificuldade: o relógio, dada a sua complexidade e organização,
revela desígnio e o desígnio, por sua vez, implica a existência de um autor
inteligente. Na segunda premissa, Paley compara favoravelmente o universo com o
relógio ou, de uma forma mais geral, os objectos naturais com os objectos
fabricados pelos homens: os objectos naturais, tal como os objectos fabricados
pelos homens, revelam desígnio. Uma vez isto estabelecido, a conclusão segue-se
com naturalidade: tal como o desígnio dos objectos fabricados pelos homens
exige um autor inteligente, também o desígnio dos objectos naturais exige um
autor inteligente, que é Deus.
A premissa crucial deste argumento é a segunda. É ela que, ao comparar os
objectos fabricados pelos seres humanos com os objectos naturais, permite
concluir que também estes objectos têm um criador. Não é de admirar, portanto,
que uma das críticas ao argumento se centre nesta premissa.
Hume: a analogia é fraca
Por um capricho do destino, as principais críticas ao argumento do desígnio
já tinham sido feitas vinte e três anos antes do livro de William Paley ter
sido publicado, numa obra póstuma de David Hume, os Diálogos sobre a Religião
Natural, que aparentemente Paley desconhecia. Nessa obra, Hume submete o
argumento do desígnio a objecções que muitos especialistas ainda hoje
consideram definitivas. São algumas dessas objecções que vamos agora ver.
Uma das críticas de Hume ao argumento do desígnio é dirigida à analogia entre os objectos produzidos pelos seres humanos e os objectos naturais. Segundo Hume, quanto maior for a semelhança entre os objectos que o argumento por analogia compara mais forte é a analogia. Quando a semelhança entre os objectos é total, a força do argumento é máxima e nesses casos é possível a partir daquilo que sabemos acerca de uns objectos concluir algo acerca dos outros com toda a certeza. Quando isso não acontece, a analogia é fraca e tão mais fraca quanto maiores as diferenças entre os objectos comparados. Diz Hume:
“Observámos milhares e milhares de vezes que uma pedra cai, que o fogo queima, que a terra tem solidez; e quando uma nova instância desta natureza ocorre, tiramos sem hesitar a inferência habitual. A exacta semelhança dos casos dá-nos a certeza absoluta de um acontecimento semelhante e nunca desejamos nem procuramos uma evidência mais forte. Mas, sempre que vos afasteis, por pouco que seja, da similaridade dos casos, diminuís proporcionalmente a evidência e podeis por fim reduzi-la a uma analogia muito fraca, que está manifestamente sujeita ao erro e à incerteza”. (Diálogos, p. 30).
O que Hume está aqui a fazer é a enunciar as condições que um argumento por analogia tem de cumprir para ser bom: 1) as semelhanças entre os objectos comparados têm de ser fortes; 2) quanto menos diferenças relevantes entre os objectos existirem melhor; 3) as semelhanças têm de ser relevantes para aquilo que se quer concluir com o argumento. Ora, pensa Hume, o argumento do desígnio não cumpre estas condições. O universo é muito diferente de qualquer objecto produzido pelo homem, pelo que a analogia é, assim, extremamente fraca e, embora existam semelhanças, as diferenças são tão gritantes que é impossível ter a certeza da verdade da conclusão.
“A dissimilitude ― diz Hume ― é tão impressionante que o máximo a
que podeis aspirar neste ponto é a uma suposição, uma conjectura, uma presunção
a respeito duma causa similar”. (Diálogos, p. 31).
Hume: outras fontes possíveis de
ordem
Admitamos por um momento para efeitos de argumentação que a analogia entre
objectos naturais e artificiais é forte e o argumento do desígnio prova que os
objectos naturais têm de ter um criador. Significa isso que esse criador é um
ser com um pensamento e uma razão semelhantes ao pensamento e à razão dos seres
humanos, isto é, Deus, como os pensadores teístas afirmam? Hume não está
convencido disso. Uma vez que, tanto quanto sabemos, o pensamento e a razão são
causa de apenas um pequeno número de acontecimentos no universo e que há outras
causas na natureza que também dão origem a objectos com uma complexidade e uma
organização idênticas às dos objectos produzidos pelos seres humanos, é
possível que o desígnio que os objectos naturais revelam tenha origem numa
causa com propriedades muito diferente das nossas.
Hume explora esta ideia em duas direcções diferentes, nenhuma delas
implicando a existência de um ser sobrenatural.
Este é um ponto de grande importância e tem de ser explicado em detalhe. A
questão da existência de Deus pode ser vista apropriadamente como o conflito
entre duas concepções antagónicas acerca da origem do universo. Segundo uma
dessas concepções, o universo é a obra de um ser espiritual com propriedades
intelectuais do mesmo tipo mas imensamente superiores às dos seres humanos.
Podemos chamar a este ponto de vista uma concepção espiritualista da origem do
universo. De acordo com a outra concepção, o universo tal como o conhecemos é o
resultado das forças da natureza, sem a intervenção de qualquer ser espiritual
exterior e, por consequência, sem qualquer desígnio ou propósito. A este ponto
de vista podemos chamar uma concepção naturalista do universo. O argumento do
desígnio e, de uma maneira geral, todas as provas da existência de Deus são
tentativas de provar a concepção espiritualista. Uma forma de pôr em causa esta
concepção espiritualista, no que diz respeito ao argumento do desígnio, é
mostrar que a analogia em que se apoia é fraca. A outra é mostrar que, tendo em
conta os dados disponíveis, a hipótese naturalista é igualmente possível. É
isso que Hume vai fazer agora, como dissemos, em duas direcções diferentes.
A primeira dá origem àquilo a que podemos chamar a hipótese da geração e da
vegetação. Segundo essa hipótese, a ordem e o desígnio dos objectos naturais,
embora se assemelhem aos produtos da actividade humana, assemelham-se também
aos efeitos dos animais e das plantas, pelo que podem ter origem em causas
desse tipo. O mundo pode ser o resultado de princípios como o instinto, a
geração e a vegetação, que são princípios que operam no seu interior, e não de
um agente inteligente sobrenatural semelhante a nós. De acordo com isto, o
mundo pode ser, por exemplo, um grande vegetal, que produz em si mesmo certas sementes
que ao serem disseminadas no caos circundante originam novos mundos, ou um
animal, do qual os cometas são os ovos. Hume, claro, não está a dizer que é
isto que acontece de facto. O que ele pretende dizer é que os dados de que
dispomos não permitem determinar qual a origem do universo e nessa situação a
hipótese da geração e da vegetação é igualmente possível e, por isso, o
argumento do desígnio não prova que Deus existe.
A outra hipótese é mais interessante porque é ― sabemo-lo hoje ― não só
possível mas, com as alterações que Hume introduz, plausível. Trata-se da
hipótese epicurista. Esta hipótese foi sugerida pelo filósofo grego Epicuro e é
uma hipótese estritamente materialista e mecanicista, isto é, que faz todas as
mudanças no universo dependerem da matéria de que é constituído e das forças
físicas que agem sobre essa matéria. De acordo com ela, o universo é infinito ―
não tem princípio nem fim ― e é constituído por um grande número de partículas
indivisíveis. O movimento ao acaso dessas partículas, num tempo infinito,
produziu o universo ordenado e complexo em que vivemos. O mundo não foi,
portanto, criado pelos deuses ou concebido por eles com um propósito. Os
próprios deuses são o produto do universo material e são completamente
indiferentes ao seu funcionamento e à vida humana.
Hume faz, como ele diz, reviver esta hipótese com ligeiras alterações,
tornando o número de partículas que constituem o universo finito:
E se, por exemplo, eu fizesse reviver a velha hipótese EPICURISTA? Este
sistema é geralmente considerado ― e creio que com inteira justiça ― o mais
absurdo alguma vez proposto; apesar disso, não sei se, com algumas alterações,
não se pode fazer com que apresente uma ténue aparência de probabilidade. Em
vez de, como fez EPICURO, supor a matéria infinita suponhamo-la finita. Um
número finito de partículas é apenas susceptível de transposições finitas e,
numa duração eterna, tem de ocorrer que cada ordem ou posição possível seja
tentada um número infinito de vezes. Por conseguinte, este mundo, com todos os
seus acontecimentos, mesmo os mais insignificantes, foi antes produzido e
destruído e será novamente produzido e destruído, sem quaisquer limites ou
restrições. Ninguém que tenha uma concepção dos poderes do infinito em
comparação com os do finito, duvidará alguma vez desta determinação. (Diálogos, pp.
83–84)
Uma vez mais, o objectivo de Hume não é afirmar que esta hipótese é
verdadeira, mas realçar a impossibilidade, dado o estado actual do nosso
conhecimento sobre o universo, de determinar qual das duas hipóteses rivais ― a
que afirma que o universo é a criação de Deus e a que afirma que ele é produto
das meras forças da natureza ― é verdadeira. Embora muitas pessoas, ao
aperceberem-se da ordem e complexidade do universo, sejam tentadas a pensar que
o universo tem origem numa entidade superior, num deus, a hipótese epicurista,
tal como a hipótese da geração e da vegetação, é consistente com o que sabemos
acerca do mundo e, portanto, tão possível quanto a hipótese teísta, que o
argumento do desígnio pretende provar.
Em resumo, segundo Hume, não existe nenhuma boa razão para preferir a
explicação teísta a qualquer uma destas explicações alternativas. Tanto a
hipótese teísta como as outras explicam igualmente bem a ordem e o desígnio que
o universo revela. É aqui que reside a força desta objecção de Hume.
Hume utilizou a hipótese materialista e mecanicista para produzir uma
explicação alternativa para o desígnio que o mundo revela. Darwin foi mais
longe e explicou os seres vivos segundo esta alternativa naturalista. É essa
explicação e a razão pela qual constitui uma objecção ao argumento do desígnio
que vamos agora ver.
Darwin: a selecção natural resolve o
problema
Como Hume mostrou, uma forma de pôr em causa o argumento do desígnio, é fornecer uma explicação alternativa para a complexidade que o mundo por toda a parte revela. Foi isso que Darwin fez, embora ele não estivesse particularmente interessado no argumento do desígnio ou na questão da existência de Deus, mas sim naquilo a que chamou “o mistério dos mistérios”, o problema da origem dos seres vivos. Apesar disso, a solução que encontrou para este problema constitui por si só uma crítica ao argumento do desígnio tão poderosa que Richard Dawkins pôde escrever que “o que Hume fez foi criticar a lógica da utilização do desígnio aparente da natureza como evidência positiva para a existência de Deus. Não apresentou qualquer explicação alternativa para o desígnio aparente, antes deixou a questão em aberto. Um ateu, anteriormente a Darwin, poderia dizer, seguindo Hume:
“Não tenho explicação para o complexo desígnio biológico. Tudo o que sei é que Deus não é uma boa explicação, portanto, temos de aguardar e ter esperança de que alguém apareça com uma melhor”. Não posso deixar de sentir que uma tal posição, embora logicamente válida, deixaria uma sensação de insatisfação e que, ainda que o ateísmo pudesse ser logicamente defensável antes de Darwin, só Darwin tornou possível ser-se um ateu intelectualmente realizado”. (Richard Dawkins, O Relojoeiro Cego, p. 24).
Vejamos primeiro em
que consiste a solução de Darwin e depois de que forma ela afecta esse
argumento.
Até Darwin, a teoria aceite para explicar a diversidade dos organismos
vivos era a da criação especial divina, isto é, a ideia de que Deus tinha
criado os seres vivos tal como existem actualmente. No entanto, as descobertas
geológicas e biológicas da época foram dando origem ao sentimento de que esta
teoria era insatisfatória e, antes mesmo de Darwin, houve quem defendesse que
as espécies não são fixas mas evoluem. Um dos primeiros a defender a evolução
das espécies foi o próprio avô de Darwin, Erasmus Darwin (1731–1802). Ele
pensava que as espécies actualmente existentes nem sempre tinham existido e que
outras existentes no passado tinham entretanto deixado de existir e para
explicar a mudança propôs uma teoria idêntica à proposta mais ou menos na mesma
altura por Jean-Baptiste de Lamarck (1744–1829) e que ficou conhecida por
lamarkismo. De acordo com essa teoria, os seres vivos adquirem durante a vida
certas características que transmitem depois aos descendentes. O lamarkismo
nunca foi suficientemente convincente para ter aceitação geral e, no tempo de
Darwin, a maior parte dos biólogos, geólogos, etc., incluindo o próprio Darwin,
pensavam que o criacionismo era verdadeiro. O primeiro acontecimento a
contribuir para que tudo isto mudasse foi a viagem que Darwin efectuou, em
1831, a bordo do navio HMS Beagle. O Beagle tinha por missão estudar a costa
sul-americana. Darwin foi convidado para participar na viagem na qualidade de
naturalista de bordo e nos cinco anos que durou a expedição, teve a
oportunidade de estudar atentamente espécies e habitats completamente
desconhecidos na Europa. De tudo o que viu, nada intrigou mais Darwin do que os
animais das ilhas Galápagos ― um conjunto de ilhas ao largo da costa
sul-americana com uma fauna muito diferente da fauna desse continente e
suficientemente afastadas umas das outras para que as espécies de uma ilha
pudessem comunicar com as de outra ilha. Os tentilhões, em particular, chamaram
a atenção de Darwin. Estas aves diferiam de ilha para ilha, perfeitamente
adaptadas ao habitat de cada ilha, com, por exemplo, bicos diferentes consoante
o alimento dominante na ilha fosse sementes, frutos ou insectos. Para Darwin, a
única explicação plausível para isto passava por admitir que os animais
evoluíam de modo a adaptarem-se às condições do seu habitat.
No entanto, isto não resolvia completamente o problema, porque, tal como
aconteceu com o seu avô, Darwin tinha ainda de encontrar um mecanismo que
explicasse como é que a evolução se dá. E encontrou-o na obra de Thomas
Malthus. Thomas Malthus (1766–1824) tinha publicado, em 1798, o Ensaio sobre as
Populações, no qual afirmava que a população humana cresce numa proporção
geométrica enquanto os meios de subsistência crescem numa proporção aritmética,
resultando numa pressão sobre os recursos ambientais que origina a pobreza, a
fome e a guerra. Darwin aplicou esta ideia não apenas aos seres humanos, mas a
todos os seres vivos e fez dela o princípio que está por detrás do mecanismo da
selecção natural: nascem mais seres vivos do que aqueles que o meio ambiente
pode sustentar pelo que os seres vivos dotados de variações que favoreçam a
sobrevivência sobrevivem e os outros não. Com o tempo, este processo faz as
espécies evoluírem e produz novas espécies.
Vejamos um pouco mais em detalhe como a selecção natural funciona.
Imaginemos que num grupo de zebras capazes de correr a cerca de 55 Km/h, surge
uma zebra capaz de correr a 56 Km/h, uma pequena diferença, mas que representa
uma vantagem adaptativa significativa para a zebra que a possui. Devido a ser
capaz de correr um pouco mais depressa, essa zebra tem mais possibilidades de
escapar aos predadores (que correm também a cerca de 55 Km/h) e de se
reproduzir. Imaginemos agora que os descendentes desta zebra herdam esta
característica da sua progenitora e correm também a 56 Km/h. Também eles vão
usufruir das mesmas vantagens adaptativas. Os predadores, tendencialmente,
capturarão as zebras menos velozes e as mais velozes terão mais possibilidades
de se reproduzirem. A consequência última deste processo é que, com o tempo,
todas as zebras do grupo correm a 56 Km/h.
Por que razão constitui a selecção natural, uma objecção ao argumento do desígnio?
Porque explica a complexidade dos organismos vivos sem recorrer ao
propósito ou ao desígnio e, portanto, sem uma causa inteligente sobrenatural
que seja a origem deste desígnio. Por outras palavras, a teoria da selecção
natural explica os organismos vivos por uma causalidade mecânica e não por uma
causalidade pessoal e mental. O olho humano, que, segundo Paley, por si só
seria prova de um desígnio e de um criador inteligente, é afinal explicado por
um processo natural. O desígnio da natureza é, portanto, um desígnio aparente e
não real.
Síntese
Argumento Teleológico (ou do
Desígnio) - S. Tomás de Aquino
O argumento
teleológico (do grego telos - "finalidade" ou
"propósito") baseia-se numa analogia entre o universo e um
artefacto humano como um relógio ou uma máquina.
Muitas das coisas que
existem no universo provocam em nós sentimento de surpresa por manifestarem
ordem e desígnio
Procura, então,
mostrar-se que seja o que for que produziu o universo, tem de ser um ser
inteligente
Podemos fazer uma
comparação: durante um passeio encontramos um relógio no chão - esse relógio é
composto por diferentes partes que, por estarem ajustadas, assinalam o dia e a
hora e podemos questionar: ou o relógio foi concebido por um relojoeiro ou
formou-se por acaso. Como o relógio tem uma função(assinalar a hora e o dia)
seria surpreendente que este se tivesse auto-formado.
A hipótese que melhor
explica os fenómenos observados é a hipótese do relojoeiro e não a hipótese do
mero acaso.
Formalizando este
raciocínio num silogismo disjuntivo:
1. As características especificas do relógio encontrado devem-se a um
relojoeiro ou devem-se ao acaso
2. Mas tais características não se devem ao acaso
3. Logo, tais características devem-se a um relojoeiro.
NOTA:
é esta a estrutura que é utilizada nas várias versões do argumento
teleológico!
Agora, se em vez do
relógio, partirmos de evidencias ou observações - as maravilhas da
natureza:
Os
seres vivos e os seus órgãos (por exemplo, o olho) exibem uma estrutura
intrincada, com desempenho de funções complexas (como a visão).
Tendo em conta essas
maravilhas da natureza, temos duas hipóteses para explicar esse fenómeno: ou os
seres vivos foram criados por Deus ou formaram-se por acaso. Provavelmente, as
maravilhas da natureza são menos surpreendentes se foram concebidas por Deus do
que se foram concebidas por acaso. Assim, as maravilhas da natureza confirmam a
hipótese de Deus em detrimento da hipótese do acaso. Podemos
concluir, por isso mesmo, que os dados ou observações sobre as maravilhas da
natureza confirmam a existência de Deus.
Formalizando este
raciocínio num silogismo disjuntivo:
1. As maravilhas da
natureza devem-se ou a uma concepção de Deus ou devem-se ao acaso
2. Mais tais
maravilhas não se devem ao acaso
3. Logo,
tais
maravilhas devem-se a uma concepção de Deus.
Objecção:
falácia do falso dilema
Na premissa 1 há uma
falácia informal do falso dilema pois alem das hipóteses de Deus e do acaso, há
uma terceira hipótese muito relevante:
Darwinismo
Os
seres vivos resultam de um processo de evolução por selecção natural.
Ora, a hipótese do darwinismo parece constituir uma melhor explicação para dar
conta das maravilhas da natureza do que a hipótese Deus. Assim, o darwinismo
põe em causa o argumento teleológico na versão formulada.
Porém, há uma nova versão do argumento teleológico que não é afectada pela
anterior critica baseada no darwinismo.
Nova
versão do argumento teleológico
Numa nova versão do
argumento teleológico, em vez de se partir da evidencia das maravilhas da
natureza, parte-se de uma evidencia diferente, nomeadamente da observação
do universo como altamente estruturado com parâmetros precisamente definidos.
A esse propósito, há
quem observe que se a explosão inicial do BIG BANG diferisse em força por tão
pouco quanto uma parte de 10 elevado a 60, o universo ou teria colapsado sobre
si mesmo ou teria expandido muito rapidamente, não permitindo que as estrelas
se formassem. Além disso, se a força nuclear forte, a força que liga protões e
neutrões num átomo, bem como se a gravidade e a força eletromagnética fossem
ligeiramente mais fortes ou mais fracas, a vida seria impossível.
Assim, na nova versão do argumento teleológico parte-se dos seguintes dados:
Afinação
minuciosa
As
constantes físicas estão minuciosamente afinadas para a existência da vida
Tendo em conta a
afinação minuciosa, temos as seguintes hipóteses para explicar esse fenómeno:
Designer - a
afinação minuciosa do universo deve-se a um designer sobrenatural: a um Deus.
Acaso - A
afinação minuciosa do universo é fruto do acaso.
Ora:
- se
o universo for resultado do acaso, será surpreendente
ele ter as características de afinação minuciosa. Podemos estabelecer uma
analogia: tal como é surpreendente que uma seta atirada ao acaso acerte no
circulo central de um alvo, também se o universo for um mero fruto do acaso
será bastante surpreendente que esteja tão precisamente afinado para a vida.
- se
o universo for resultado de algum tipo de designer inteligente, não
será surpreendente ele ter as características de afinação minuciosa - pois se
supomos que a vida em geral (mesmo a racional e consciente) é algo bom, então
não será surpreendente que um designer inteligente e sobrenatural, tendo os
atributos tradicionais do teísmo (omnipotência e sumamente bom), tenha criado
um universo minuciosamente afinado para a vida.
Poderemos, então,
afirmar o seguinte:
- a probabilidade de o universo exibir as características da afinação
minuciosa, tendo resultado do acaso, é baixa.
- a probabilidade de o universo exibir as características da
afinação minuciosa, tendo resultado de um designer inteligente, não é baixa.
- É mais provável que o universo tenha constantes minuciosamente afinadas para
a vida se houver um designer do que se for fruto do acaso.
- Portanto, a afinação minuciosa do universo dá razão para acreditar em
Deus.
Formalizando
este raciocínio num silogismo disjuntivo:
1. A afinação minuciosa do universo deve-se a um designer ou ao acaso
2. Mas não se deve ao acaso
3. Logo,
deve-se a um designer.
Será este um bom argumento?
Objecções:
Falácia do Falso
Dilema - está presente na premissa 1 pois as hipóteses do designer e
do acaso não são as únicas hipóteses possíveis e relevantes para explicar a
evidencia da afinação minuciosa - pode existir uma terceira hipótese:
Multiverso
Existem
muitos universos distintos: muitos dominios do espaço-tempo que divergem entre
si em virtude de terem constantes fisicas ou leis naturais diferentes.
Assim, entre os vários
universos, acabará por surgir, por mero acaso, um universo em que as
constantes assumem os valores correctos para a existencia da vida.
Admitida esta pluralidade de universos, a afinação minuciosa não será
surpreendente.
Leia
o seguinte texto:
(...) O britânico
Stephen Hawking tinha postulado em 1980 (juntamente com o norte-americano James
Hartle) que o Big Bang tinha criado não só o nosso Universo, como também
universos infinitos, com diferentes leis entre si. Como, em teoria, tudo seria
possível num universo paralelo, não haveria maneira de garantir que as leis da
física seriam as mesmas do que aquelas que se aplicam ao nosso cosmos.
Este último trabalho de
investigação desenvolvido por Hawking antes da sua morte, a 14 de
Março deste ano, aponta uma solução para este problema, dizendo que o nosso
Universo é apenas um entre muitos universos parecidos, que se regem pelas
mesmas leis.(...)
In
Público, 3 de Maio de 2018
- Não se prova a
existência do Deus teísta - um problema que atinge as várias versões do
argumento teleológico tem a ver com a ideia de que com o argumento em
consideração sabemos pouco sobre a natureza do designer:
- será que a afinação
minuciosa do universo se deve apenas a um Deus ou é um trabalho colaborativo de
vários deuses?
-Talvez o designer em
questão tenha poder suficiente para criar um universo favorável à vida, mas
será omnipotente, omnisciente, ou moralmente perfeito? Será alguém
com quem podemos estabelecer uma relação pessoal, por exemplo, através
da oração?
- O argumento da afinação minuciosa, por si só, não consegue responder a estes
desafios. Será esta uma objecção boa ou má?
Esta prova parece limitativa pelas seguintes razões:
- Mesmo que aceitemos
que as analogias provam que um ser inteligente criou o universo, esta prova não
demostra que este seja o Deus do teismo.
- Tal não implica que
o criador seja omnipotente (embora tenha de ser poderoso), nem omnisciente, nem
bondoso, nem que tenha de ser eterno (poderá já ter morrido), nem mesmo que
seja só um - para uma tão grande criação, seria até bem mais provável que, por
analogia, com o que vemos na terra, resulte da colaboração entre vários
cocriadores.
Deus e o problema do
Mal
Acredito que Deus criou coisas em
perfeição última, apesar de não nos parecer isso ao considerar partes do
Universo. É um pouco como o que acontece na música e na pintura, pois as
sombras e dissonâncias melhoram verdadeiramente as outras partes, e o autor
sábio de tais obras obtém destas imperfeições particulares um benefício tão
grandioso para a perfeição total do seu trabalho que é muito melhor dar-lhes
espaço do que tentar passar sem elas. Assim, temos de acreditar que Deus não
teria permitido o pecado nem teria criado coisas que sabe que irão pecar, se
não tivesse obtido delas um bem incomparavelmente maior que o mal que daí
resulta.
(Leibniz, “Diálogo sobre a Liberdade Humana e a Origem do Mal”,
pp. 115)
O problema do mal pretende responder ao seguinte problema:
- Será compatível a existência de Deus e
a existência de Mal no mundo?
- A existência do Mal no mundo parece ser um forte indicia contra a
existência de Deus.
- Algumas pessoas poderiam argumentar nesse
sentido, que a existência da Guerra da Ucrânia , por exemplo, mostra que Deus
não existe ou ele não é bondoso e/ou onipotente
- Há vários tipos de mal no mundo:
a) MAL MORAL: que tem origem nas acções humanas, como por
exemplo, os assassinatos, torturas e roubos;
b) MAL NATURAL: não tem origem nas acções humanas, como por
exemplo, terramotos, tsunamis e algumas doenças.
- William Rowe (1931 – 2015) defende uma versão forte da
incompatibilidade entre a existencia de Deus e do Mal no mundo – Argumento
Probabilístico do Mal.
- Segundo o autor podemos distinguir:
a) MAL JUSTIFICADO é aquele que se não existir leva a que se
perca um bem maior. Exemplo: uma má acção (mal) que é perdoada (bem maior do
perdão).
b) MAL NÂO JUSTIFICADO é aquele que se não existir não leva a
que se perca um bem maior- é um mal sem sentido, gratuito. Exemplo: o
sofrimento de todoa os animais na guerra da Ucrânia que, por não terem livre
arbítrio, não pode fazer uso deste bem e, deste modo, coloca-se a questão: Será
que Deus poderia, com facilidade, ter evitado o sofrimento destes animais?
- Assim, alguns dos males do nosso mundo, como o exemplo acima citado,
parecem gratuitos.
- Segundo o ateismo a existencia do MAL
GRATUITO não é improvável pois se o mal gratuito continua a existir isso
parece evidenciar que Deus não existe.
- Segundo o teismo, a existencia do
MAL GRATUITO é muito improvável - pois se o Deus teista existe, sendo este
omnipotente, omnisciente e moralmente perfeito, ele sabe, quer e tem o poder
para iliminar os males gratuitos ou sem sentido.
- Então, o facto de constatarmos a existencia
do MAL GRATUITO poderá ser uma forte razão para se preferir o ateismo ao
teismo?
Assim:
- O problema do mal (também conhecido como
teodiceia) e uma das críticas mais antigas à existência de Deus como ser
omnipotente (que tudo pode) e benevolente (que é bom).
- o argumento procura mostrar que a existência do
mal no mundo não é compatível com a ideia de um Deus benevolente e omnipotente.
Algumas pessoas poderiam argumentar nesse sentido,
que a existência da Guerra da Ucrânia , por exemplo, mostra que Deus não existe
ou ele não é bondoso e/ou omnipotente.
A teodiceia de Leibniz (1646-1716)
- O problema do mal (também conhecido como
teodiceia) e uma das críticas mais antigas à existência de Deus como ser
omnipotente (que tudo pode) e benevolente (que é bom).
- o argumento procura mostrar que a existência
do mal no mundo não é compatível com a ideia de um Deus benevolente e
omnipotente.
- Uma das teodiceias mais importantes foi
desenvolvida por Leibniz - por teodiceia entende-se uma resposta à questão de
saber por que motivo Deus permite o mal já que nenhum mal é justificável.
- A estrutura
argumentativa é a seguinte:
Deus criou o melhor dos
mundos possíveis
O melhor dos
mundos possíveis tem males (partes indesejáveis)
Logo,
Deus permite o mal.
(pois o melhor dos mundos possíveis não implica um mundo sem males)
Mas não
seria possível pensar um mundo com menos mal?
- Segundo Leibniz,
considerando todas as coisas, não temos justificação para poder afirmá-lo pois
não poderemos saber se é possível criar um mundo melhor sem esses aspectos
negativos, dado que não sabemos quais as conexões entre estes e outros
aspectos do mundo.
- Se pudéssemos evitar o
sofrimento, teríamos um mundo melhor mas não temos forma de saber se essa
mudança deixaria ou não o mundo inalterado, ou se, em vez disso, tornaria as
coisas piores.
- Deus tem razões para
permitir a existência do mal no mundo, não existindo, deste modo, males
gratuitos ou injustificados.
Poderá o livre arbítrio justificar a existência do
Mal?
Como conciliar a existência do Mal e do livre arbítrio?
Segundo Peter
Van Inwagen, USA, 1942) na sua obra The Problem of Evil…
- Deus fez o mundo e isso foi muito bom.
- Uma parte indispensável da bondade que ele
escolheu foi a existência de seres racionais: seres auto conscientes capazes de
amor e pensamento abstrato, e com o poder de livre escolha entre cursos de ação
alternativos contemplados.
- Essa última característica dos seres
racionais, a livre escolha ou livre-arbítrio, é um bem.
- Mas mesmo um ser
onipresente é incapaz de controlar o exercício do poder de livre escolha, já
que uma escolha que fosse controlada não
seria verdadeiramente livre.
- Se eu tenho uma livre
escolha entre ir ao concerto dos U2 e fazer
uma visita de voluntariado a Kiev, nem mesmo Deus pode
garantir que vou escolher a segunda hipótese.
- Pedir a Deus que
me dê livre escolha entre ir ao concerto dos U2 ou fazer uma visita de
voluntariado a Kiev e que garanta que eu escolha ir ao concerto dos U2 em vez
de fazer uma visita de voluntariado a Kiev é pedir que Deus realize o
intrinsecamente impossível.
- Tendo esse poder de
livre escolha, alguns ou todos os seres humanos o usaram mal e produziram uma
certa quantidade de mal.
- O livre-arbítrio,
porém, é um bem suficientemente grande para que sua existência exceda os males
que têm resultado e que resultarão do seu abuso: e Deus previu isso.
O Fideísmo de
Blaise Pascal (1623-1662)
Fideísmo – o que é?
- Será racional acreditar
em Deus?
- O fideísmo é uma
posição que defende que a fé e a razão são incompatíveis e que só a fé permite
acreditar em Deus: Só
a fé nos pode pôr em contacto com Deus;
- A falta de boas
razões para acreditar na existência de Deus não é
uma boa razão para não ter fé.
- Assim,
a fé na existência de Deus não pode
ser justificada com argumentos.
- Segundo Pascal mesmo
sem argumentos a favor da existência de Deus, segundo uma racionalidade
prudencial, (não
conduz à verdade, justifica crenças práticas ou ajuda as pessoas em situações
terminais, por exemplo) acreditar que Deus existe pois essa é a
melhor "aposta" - é aquela que traz mais vantagens para nós, até
mesmo do ponto de vista de benefícios práticos.
- A posição de que se
pode acreditar, legitimamente em Deus sem qualquer racionalidade epistémica (aquela que é
justificada e permite chegar a novas crenças verdadeiras) designa-se fideísmo.
- O propósito de Pascal
não é provar se Deus existe ou não existe tal como acontece nos
argumentos tradicionais mas sim afirmar que, tendo em conta os custos e
benefícios para a nossa vida, apostar e acreditar na existência de Deus é uma
felicidade plena.
Formalizando o argumento
de Pascal
1. Ou Deus existe ou não
existe
2. Se Deus existe,
estaremos melhor como crentes em Deus do que como não crentes
3. Se Deus não existe ,
acreditar e não acreditar é o mesmo
4. Logo,
acreditar que
Deus existe é um resultado melhor /do que não acreditar em Deus)
Objeções à aposta de Pascal
Em primeiro lugar, Pascal está enganado na sua
crença de que devemos apostar contra ou a favor da existência de Deus. Podemos optar por
permanecer nas margens, como faz o agnóstico. Claro que nesse caso podemos
perder o prémio, se houver um prémio, por termos apostado incorretamente. Mas
Pascal não pode provar que há tal prémio.
Em segundo lugar, a aposta não é tão simples
como Pascal pensou porque há um número indefinido de possíveis criadores. O Deus cristão
comum em quem Pascal apostou é apenas um deles. Assim, o número de
possibilidades para apostar é muito maior do que duas e os jogadores racionais
não têm a possibilidade de escolher mesmo que queiram escolher um Deus ou
outro. Por outras palavras, se a aposta de Pascal faz sentido, será tão
razoável apostar num deus-lua ou deus-sol como no Deus judeu, cristão ou
muçulmano.
E, finalmente, não há prova ou razão para supor que ganhamos um prémio se apostarmos no Deus que de facto exista. Porque não podemos pressupor sem razões que Deus recompense os crentes ou que puna os descrentes. (De facto, em última análise o próprio Pascal apelou à revelação ou fé). Pelo contrário, as intuições de muitos de nós dizem precisamente o contrário talvez porque quando nos tentamos pôr no lugar de Deus, percebemos que estaríamos inclinados a considerar que a crença baseada na aposta de Pascal é hipócrita. Deus, se existir, pode impressionar-se bem mais com a honestidade daqueles que não conseguiram apostar (acreditar) na ausência de provas do que com aqueles que acreditam porque pensam que é prudente fazê-lo.
Howard
Kahane, Há boas razões para acreditar que Deus existe? In Crítica
Outras reflexões acerca de O
Fideísmo de Pascal....
1. Será que Deus
beneficia de igual modo os crentes que têm fé por interesse na recompensa dos
crentes que têm fé desinteressada e honestamente?
2. Pascal refere o Deus
teísta - mas não poderemos considerar outras hipóteses de divindade como,
por exemplo, o Deus deísta que não dá qualquer recompensa?
3. Será que a fé
religiosa se pode basear num cálculo para obter os melhores resultados no que
concerne a custos e benefícios?
5. Não parece esta
concepção revelar uma devoção religiosa egoísta , interesseira e,
moralmente, muito desprezível?
6. Será que Deus aprovaria uma atitude de fé
baseada no cálculo?
7. Será que a crença em Deus é voluntária como defende Pascal? (A crença segundo Pascal está sob controlo voluntário e livre).
William Alston (1921 - 2009) considera que não
temos o poder de decidir se acreditamos ou não em Deus apenas por decidir
faze-lo.
trabalho elaborado tendo por base o texto de Álvaro Nunes
https://criticanarede.com/anunesfilosofiadareligiao.html
(O sublinhado é nosso)
Senhora da Mó, Arouca, 26 de Março de 2024.
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