sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Mulheres e Filosofia





AS MULHERE S ENTRAM NA FILOSOFI A


Maria Luísa Ribeiro Ferreira
Universidade de Lisboa



1. A entrada das mulheres na filosofia do séc. X X

Momentos antes  de  morrer Sócrates  despede-se dos  amigos dos filhos e da família. O relato  tocante  que  Platão nos  deixa  no Fédon  é por demais  conhecido. No entanto,  há nele uma breve referência que passa despercebida  à maior  parte  dos  leitores:  a ordem  dada  pelo  filósofo  para que  as  mulheres se retirem1 . Ausentes em todo o diálogo preparatório da morte,  o mandadas sair  quando  esta  vai concretamente  ocorrer,  como se só os discípulos, homens  todos  eles,  pudessem assistir  ao suicídio forçado  do  filósofo,  do  mesm modo  que  só eles  acompanharam  as  suas diatribes oratórias na cidade.
Este  abandono  (imposto) das  mulheres no que  respeit à  filosofia, retrata  bem o estatuto  que  as mesmas ocuparam no pensamento ocidental
-  a ausência. Uma ausência o deliberada mas  compulsiva, o expressa mas  subrepticiamente justificada por razões outras  que o a filosóficas.
A  saída das  mulheres, ordenada  por  Sócrates, é aceite  pelos  discípulos  deste como  algo de natural.  Há um silêncio conivente dos  filósofos para  os  quai a  condição  feminina se  circunscreve  ao  espaço privado, enquanto  a  filosofi é  um  acontecimento  público,  mesm quand se desenrola  nuquarto  e diz respeito  ao acto  íntimo de morrer.  Um silêncio que  se mantém ao longo de séculos. Intercalada por algumas intervenções femininas, a voz  dominante da  filosofia  é masculina. O que  é problemático para  as  suas actuais  cultoras. De facto, como dizer às mulheres que  hoje  se  interessam por filosofia  -  estudiosas,  professoras,  investigadoras,  estudantes -  que  o existem, enquanto  mulheres, na  mente  dos filósofos?  Como  fazê-las aceitar  a universalidade do conceito de homem,


1      Fédon,  116 b.
  

pelo  qua o  designadas? Com convencê-las  de  que   tudo  o  qu as identifica  enquant diferentes,  é desinteressante para  a filosofia? E que reacção esperar por  parte  de  quem  permanentemente  se  defront com o silenciamento, a anulação ou a secundarização de temáticas que  considera relevantes?
Com algumas  excepções, os filósofos m olhado  as mulheres  de um modo negativo,  ou, quanto  muito, condescendente2. A tese platónica difundida  no  Timeit,  segundo a qual  a mulher  representa uma  forma  inf rior  d humanidade3,  perdur até  Freud,   que retomando  Aristóteles, entende a mulher  como  um homem  castrado.
Com  o  século  X X est situação  altera-se, e podemo dizer  que  a partir  dos  anos sessenta ocorre  uma  mutação nas  relações entre  a filosofia e as mulheres. Os movimentos feministas que então ganham  força, sobretudo  nos  EU A e países dlíngua inglesa,  levam  ao incremento dos Women  Studies  ou Gender  Studies,  incluindo-os de pleno  direito nos curricula universitários e nos projectos  de investigação. A filosofia, essa "disciplina  recalcitrante"4     que  dificilmente  se  abre  à inovação, sofre  no nosso século o impacto  deste "boom". Uma  das  mudanças  manifesta-se em  nova maneira de  aprecia o  pensamento dos  filósofos mediante chaves de  leitura  que  permitem uma  visão diferent das  suas teses, nomeadamente no que  respeita  à consistência interna  das  mesmas. Como diz Nancy  Tuana5 , o basta interpretar certos  sistemas procurando neles a  parte  (geralmente  mínima) que  consagraàs mulheres. É preciso  articular  o que  é dito sobre esta  temática com a totalidade de um pensamento, de  modo  a que  o resultad global  do mesmo  seja  congruente.  O que nem sempre acontece.
Uma  outra  linha de investigação, ainda  ligada  à história da  filosofia, pretend restituir  a voz a filósofas  do passado,  dando-lhes visibilidade e mostrando o impacto  que  tiveram.  Habitualmente catalogadas  como  discípulas deste ou daquele  nome  sonante, começa-se a reconhecer nelas um pensamento autónomo, expresso através dos  meios  em que  lhes  era  possível divulgá-lo, quer  se trate  de ensaios, de tratados,  ou simplesmente de cartas.
Um outro campo  que tem dado frutos releva temáticas tipicamente femininas,  habitualmente o trabalhadas pelos  pensadores tradicionais e


2       Par aprofundar  est temática  veja-se Maria  Luisa  Ribeiro  Ferreira (org.)  O  que  os Filósofos   pensam   sobre  as  Mulheres,   Lisboa,  Centro  de  Filosofia  da  Universidade  de Lisboa,  1998.
3       Timeu,  41 d-42  d.
4       O  termo   c  usado por  Christin Battersby.  num  artigo  qu intitula  "Philosophy:  The
Recalcitrant Discipline",  Women:  A  Cultural  Review,  3, n° 2 (1992).
5       Nancy  Tuana,  Woman  and  the History  of Philosophy, New  York, Parago House 1992.



agor redescobertas nas  potencialidades  filosóficas  que  encerram. Nele se  inclui uma  abundante  literatura consagrada  a questões como  o nascimento,  a relação maternal, o cuidado  com os outros,  o modo  feminino de fazer  ética, epistemologia, ontologia, lógica.
Antes  de  considerarmos algumas destas questões, esclareceremos o que  vulgarmente se entende por  filosofias  feministas e filosofias  no feminino, de modo a obviar equívocos.


2.  Filosofias  feministas,  filosofías  no  feminino.  Será  o  feminismo uma filosofia?

Os  termos  filosofia  e feminista conotam-se  habitualmente com uma multiplicidad de  significados. Parece-nos  útil,  par evitar  equívocos, apresentar muito  sucintamente o modo  como  utilizamos estes  conceitos no presente artigo.
Por feminismo  designamos  um conjunto de movimentos diversificados  que  se  manifestam  em  reflexões  e actuações  sobr a  situação  das mulheres com o objectivo muito concreto de compreender a condição feminina  e de  lutar em prol da sua  plena  realização6 . Uma filosofia   feminista  debruça-se  essencialment sobr o  tema  dos  direitos  da  mulher, tendo  como  fim último denunciar abusos, identificar  preconceitos lar injustiças7 .  É uma  designação abrangente  pois  inclui uma  multiplicidade de  perspectivas.
Sendo objectivo imediato da filosofia  feminista uma  modificação do "status quo" e uma intervenção social reivindicativa,  por vezes mesmo agressiva, perguntar-se-á se é legítimo entendê-la como uma disciplina filosófica. De igual modo  se considera paradoxal na filosofia  feminista o seu  carácter particular, concreto e situado,  contrastando com a objectividade e universalidade da  filosofia8 .
Questões  como  estas o  impedem que  consideremo filosóficos certo contributos do  pensamento  feminista. Na  verdad ele situam-se de pleno  direito no campo  da filosofia,  pelo  tipo de  questões  levantadas, pela  linguagem em  que  se  formulam  tais  questões, pelos  conceitos que manuseiam, pelas correntes em que  se  integram. A base que  sustenta as teorias  feministas é crítica, argumentativa e racionalmente fundamentada. As pretensões defendidas assentam (ou deveriam assentar) numa  reflexão


6       Abordaremos algumas correntes essenciais do feminismo no ponto  3. deste artigo.
7       As diferenças  aqui  focada entr filosofia  feminista e filosofia  no  feminino segue de perto   o  que  escrevemos  em  "Espinosa,  Hobbes  e  a  Condição  Feminina",  O  que  os filósofos   pensam sobre  as mulheres, pp.  111 e segs.
8        Vj  Emanuela  Bianchi  (org.)  Is  Feminist   Philosophy  Philosophy?,    Evanston,  Illinois, Northwestern University  Press, 1999, p. XV .



sobre  problemas inequivocamente filosóficos, poderíamos mesmo  dizer problemas  clássicos da  tradição ocidental, como  por  exemplo a questão antropológica do que é um ser humano, ou as temáticas metafísicas da essência ou natureza, ou da identidade e da  diferença.
Uma filosofia no feminino, cruzando-se muitas  vezes com uma  filosofia  feminista, nã o tem o carácter aguerrido desta, o se  afirma  como movimento,  o visa  imediatamente alteração sociais.  É certo  que  o tra• balho  que  desenvolve é o material  consistente que  as  feministas  utilizam para  dar força aos  seus argumentos e para  racionalizar as suas pretensões. Sendo seu  objectivo dar  visibilidade às mulheres num  domínio em  que aparentemente  tiveram  um estatut de  sombras, a sua  tarefa  é eminentemente  reconstrutiva, quer  desvelando  a presença oculta  (porque indirecta) da mulher  na história da filosofia, quer  destacando no território  filosófico coordenadas  femininas que  dele  estiveram afastadas,  quer  mostrando a produção  filosófic da mulheres  pel divulgação  de  texto qu por várias razões se mantiveram desconhecidos.  Numa  palavra,  uma  filosofia no  feminino inclui todas as  linhas  que  permitam releva a presença da mulher  na  filosofia.
Note-se que  as próprias designações de filosofia  feminista e de  filosofia  no  feminino o o pacíficas.  A título de  exemplo apresentamos duas perspectivas -  a de Mary Warnock e de Geneviève Lloyd -  que manifestam uma  total discordância quanto  à relação  feminismo/filosofia e  sobretudo quanto  ao  tema  da especificidade de  uma  filosofia  no  feminino.
Warnock  tem-se preocupado em divulgar mulheres filósofas  mas contest uma  "gendered  philosophy"9 . Para  ela,  a filosofia  tem determinadas exigências como  por  exemplo a generalização, a racionalização, a explicação, a significação,  a argumentação. Ora  o sexo  e o género o desempenham  qualquer papel  num discurso deste tipo. Segundo Warnock, a especificidade das  várias filosofias  deriva  de diferenças individuais.  A prova  é que  ao longo dos tempos  houve  mulheres  filósofas.
Geneviève Lloyd, sustentando uma posição contrária, defende  o carácter próprio de uma  filosofia  feminina bem como  a necessidade de o tornar  evidente. Em  The Man of Reason10      acompanha  a génese da  razão ocidental  que  considera masculinizada, fazendo  o levantamento dcertos estereótipos filosóficos  em que  triunfa  uma  maneira  masculina de  ver o mundo  e de o problematizar. A ela opõe um novo modo  de perspectivar o real, numa  busca de parâmetros diferentes dos até então usados.



9       Mary Warnock, Women  Philosophers,   London, Everyman, 1996.
1  0        Geneviève  Lloyd,  The  Man   of  Reason.   Male   and  Female   in  Western    Philosophy,
London,  Routiedge, 1984.



Referenciámos estas posições porque  embor tenham  um objectivo comum - a divulgação do pensamento de mulheres - divergem profundamente quanto  ao modo  de fazer  filosofia.  Mas  quer  nos  sintamos mais perto  de Warnock quer  dêmos razão a Lloyd, é inegável que  a perspectiva  filosófica  tem  estado presente nos  estudos sobr as  mulheres  pois muitos  dos  temas que  preocupam os  diferentes feminismos o de cariz filosófico. E a actualidade dos  mesmos  de modo algum anula  o seu entro• samento com a história e com a tradição.


3. Os diferentes  feminismos

Uma dificuldade, comum  a todos  os que contactam com estes temas é a multiplicidade  de orientações e de movimentos que,  sob a designação de  femininos ou de  feministas, se digladiam entre  si ou pelo  menos  sustentam,  sobre  temáticas comuns, posicionamentos diferentes.
Squisermos optar  por  uma taxionomia genérica, podemos seguir  a proposta  de  Janet Radcliff  Roberts"  que  distribui  a  multiplicidade de orientações feministas em dois grandes grupos:  liberais  e radicais. O feminismo  liberal,  também designado por igualitário, ou mesmo  tradicional, engloba  as correntes que defendem a igualdade. E um movimento eminentemente  reivindicativo,  que  ao  constatar  a menoridade  a que  as mulheres m sido  sujeita exige  para  elas  uma uniformidade de direitos. Enquanto parte  desfavorecida  da  sociedade,  a mulher  tem que  ser  defendida numa  luta que  só terminará quando  o seu estatuto  social  e político for considerado equivalente ao do homem.  Note-se que o feminismo igualitário pode  ser (e tem sido) defendido quer por homens  quer por mulheres, assentando  em valores  universais que todos  deverão partilhar. É uma  orientação que  se inicia na Idade  Moderna, na qual  se destacam os pensadores iluministas.  Relevamos como  figura  cimeira  Mary Wollstonecraft com  as suas obras A  Vindication ofthe   Rights  ofMen   e A  Vindication  ofthe   Rights of Women, publicadas respectivamente em 1790 e 1792.
O feminismo  radical,  como  o nome  indica, apela  para  uma  alteração de  princípios, defendendo  uma  nova  maneir de  estar no  mundo  e uma profund mudança  social  e  cultural.  Os  direito das  mulheres  surgem como  lógica  consequência dessa mudança. Por  sua  vez  ela  processa-se porque  os valores  femininos se impõem, podendo dizer-se  que  é a reavaliação positiva  dos  mesmo que  conduz  a uma  outra  mundividência. De um modo geral o feministas radicais  as correntes que pretendem uma transformação social  a partir  de  valências diferentes das  (predominantement masculinas)  que  prevalecem  na  nossa cultura.  A  sexualidade  é


Janet Radcliff  Roberts,  The  Sceptical   Feminist.  A  Philosophical    Enquiry,   London, Harmondsworth,  1994,  p. 385  esegs.

um questão  central nomeadament a  sexualidade  masculina,  muitas vezes entendida como  um constructo, como  uma  forma  de  poder  que  se perpetua para  que o domínio dos homens  se mantenha. Daí a crítica à heterosexual idade  e a tónica colocada na "sisterhood", nas  redes ou grupos de  mulheres. O  feminismo radical  sofre um  incremento considerável a partir dos  anos sessenta, tendo  como  marco  fundante o livro de Betty Frie- dan, The Feminine Mystique, cuja primeira edição data de 1963.
Sesta  divisão em dois  grupos  nos  parecer  redutora, podemos optar pela  perspectiva de Judith  Evans,  identificando uma gama  mais  ampla  de orientações, com particular realce  para  as "escolas" liberais, radicais, culturais,  socialistas e pós-modernas12 . Temos  assim  o feminismo   liberal, o feminismo  radical   e  o feminismo  socialista   a  defender  a  igualdade, enquanto que os feminismos cultural e pós-moderno  acentuam a diferença.
Nas  suas primeiras manifestações, o feminismo liberal  sustenta que, para  além das  óbvias diferenças biológicas, há uma homogeneidade  entre os comportamentos femininos e masculinos. Para  quem  segue esta  linha, as  diferenças  psicológicas,  linguísticas,  morais ou  outras o socialmente  construídas, decorrendo do género e o do sexo.  Daí a defesa de uma  igualdade de  oportunidades para  as  mulheres, exigindo para  elas  as mesmas regalias  que  a sociedade  ocidental confere  aos  homens. A partir dos  anos sessenta, embora  as pretensões de  igualdade se mantenham, ¬
-se  alguma  relevância  à diferença,  realçando-se certas características e tarefa femininas que  o valorizadas. As mulheres j á o pretendem "ser como  os homens". O seu  objectivo é que os valores  femininos sejam  considerados.  Exemplifica est posiçãoentre  outras Susan Okin,  Alice Rossi,  Nathalie Bluestone, para  além das j á mencionadas  Betty Friedan  e Janet Radcliff Richards.
O feminismo  radical  tem as  suas representantes mais  conhecidas na nova  esquerda  americana, iniciando-se na  luta pelos  direitos  dos  negros, contra  o regime  capitalista e contra  as  instituições sociais  e políticas em que  este se  escuda. A  luta  pela  emancipação da  mulher  é parte  de  um processo mais  vasto  no  qual  se  combatem todos  o tipos  de  opressão  - racial, classista, étnica, etc.
Tal como as feministas liberais, também as defensoras do feminismo radical consideram irrelevantes as diferenças sexuais  por ficarem circunscritas  à relação sexual  propriamente dita  e ao  facto  de  só a mulher poder  ter filhos. Contudo, diferentemente das feministas igualitárias, as feministas  radicai inscrevem-se  num  processo revolucionário  par o qual  defendem  uma  liderança  feminina pois  "sisterhood  i powerful"13 .

1  2       Judit Evans Feminist    Theory   Today.   An  Introductton  to  Second   Wave    Feminism,
London,  Sage Publications, 1995.
1  3        É o título de  uma  colectânea, organizada por  Robin  Morgan. Sisterhood   is    Powerful.
New York, Vintage  Books,  1970.

o  particularmente representativas  desta  corrent Shulamit Firestone e Juliet  Mitchell. Apesar  da  diversidade e especificidade das  suas teorias, partilham   entr si  o  ideal  de  uma  democracia  participada e  um  certo basismo  que contest as elites,  os líderes e as hierarquias.
O feminismo  socialista   constitui-se  num tentativa de  atende ao papel  que  as  mulheres poderão desempenhar numa  democracia, considerando-as  em  paralelo   com  outro grupo desfavorecidos.  Iris  Marión Young  é uma  figura paradigmática desta linha pois  o seu  percurso inicia¬
-s com  um  radicalismo revolucionário  encaminhando-s progressivamente  para  um socialismo humanista.
O feminismo cultural  integra  as diferentes escolas que com maior  ou menor  ênfase realçam a especificidade e universalidade de uma cultura feminina positivamente re-avaliada.  Trata-s de  um  movimento essen- cialista  e separatista,  que  o pretende mudar  o mundo  mas  sim dar mais força às mulheres, realçando as características do seu  universo. A maternidade,  a aproximação com a natureza e com a terra, a defesa da ecologia e  de  uma  ética do cuidado  ("ethic  of care")  o preocupações das  participante desta linha, sem  dúvida aquela  onde  o peso da filosofia  mais  se faz  sentir.  Nela  destacamos os  trabalhos  de  Mary  Daly,  Sarah  Rudick, Andrée  Collard,  Adrienne Rich  bem  como  da  psicóloga Carol  Gilligan pela  atenção dada  a um pensamento moral especificamento feminino.
Os feminismos pós-modernos   o designados deste modo por se terem constituído  sob  a  influência  de  Derrida   e  Lyotard,  especialmente  pelo contributo  por eles  dado  à fragmentação do eu e à perda  de identidade. O relativismo  destes e de outros  pensadores que se empenharam no ataque às grandes narrativas e na rejeição das  leituras privilegiadas do real, constituiu um repto  para  a causa  feminista, levand à desconstrução dos  conceitos "essenciais" de homem  e de mulher,  bem como à contestação das  clássicas oposições natureza/cultura, sexo/género, masculino/feminino. Se  a proclamad mort do  sujeit humano,  professad pelo pós-modernos,  pode representar  uma ameaça séria à causa feminista, também é verdade  que esta se  amplifica  pois  ganha voz  múltiplos  grupo que  se  assumem  como diferentes -  lésbicas, mulheres negras, facções políticas, etc.  o  particularmente importantes nesta linha as obras de Judith  Butler14 , no que representam  de ataque ao conceito de género e ao contributo  prestado à desconstrução dos  conceitos de  "igualdade" e de  "diferença". Em França as teses de Luce Irigaray15 , profundamente influenciadas por Derrida,  o significativas  desta escola visand a construção de  uma  subjectividade feminina o constrangida pela lógica masculina dominante.


Judith  Butler,  Gender   Trouble:   Feminism and  the  Subversion of  Identity,   New  York and  London, Routledge, 1990.
Vj .  especialmente de  Luce  Irigaray, Ce sexe qui n' en est pas  un, Paris,  Minuit, 1977.



4. Haverá uma filosofia feminina?

As múltiplas correntes que  referimos o respondem ao problema da especifidade  de  uma  filosofia  feminina ou feminista. Revelam sobretudo orientações divergentes ou complementares mas deixam em aberto uma questão: será que  as  mulheres fazem  filosofia  de  um modo  diferente dos seus colega filósofos?
O  "modus  philosophandi", temática  recorrente  no  universo filosó• fico,  é hoje  recolocado pelas feministas. Mas o é uma questão pacífica. A  discussão  d um filosofi feminina divide  a investigadoras  que levantam problemas quanto  à diversidade de metodologias e quanto à relevância do sexo  na  produção filosófica.  Shá vozes  que,  em sintonia com Wamock, respondem negativamente a esta  última questão, outras  há como  Janic Moulton 1 6       ou  Sara Rudick1 7    que  defendem  um filosofia feminina  autónoma e específica.
Moulton denuncia um modelo  de  filosofia  que  valoriza  a agressividade e a utiliza como  método. Por  isso  contest aquilo  que  designa  por "método de  contenda" ("adversary  method") que  usa  o raciocínio dedutivo para  derrotar  teses, esquecendo outras  formas  de argumentação mais dialogantes. O "adversary method" tem-se imposto  como  modelo  dominante  do filosofar.  Moulton  critica-lhe a sobrevalorização dos  processos dedutivos, a fragmentação dos  problemas com vista a uma melhor  análise dos  mesmo e o uso de contra  exemplos. No artigo em causa, admite  que o  recurs ao  contra   exemplo possa  ser  um  meio  efica par derrotar adversários mas considera-o uma  maneira  deficiente de pensar pela  inviabilidade  de o aplicarmos a situações complexas. Como alternativa propõe uma  atenção aos  pressupostos gerai e  às teses abrangentes, nas  quais esses exemplos se  enquadram.
A  perspectiva de  Moulton  permite-nos reflectir  sobre  o método ou métodos filosóficos. O realce  que  dá ao processo hermenêutico leva-nos a confrontar diferentes modelos de trabalho  filosófico e a perceber que é possível  faze filosofia  de  um  modo  o  agonístico,  nã o bélico,  pela valorização das  diferentes experiências e vivências18 .
Sarah  Rudick  é (tal como Moulton) uma profissional d filosofia, entendendo  esta  como  um discurso racional  e argumentativo que  secun- dariza  ou  mesmo  afast a emoção. Mas  quand se  debruça sobre  obser-


6        Janic Moulton,  " A paradigm of philosophy: the  adversary  method" em  Anne  Garry and  Marilyn Pearsal (eds.),  Women, Knowledge and  Reality.  Explorations   in  Feminist Philosophy,    London. Routledge, 1996, pp. 5-20.
7        Sarah  Rudick.  Maternal   Thinking. Towards  a Politics  of Peace.  Boston.  Beacon  Press.
1989.
8         Note-se  qu o  model qu Moulton  contesta    tern  com paño  d fund  filosofía analítica.

vações feitas  sobre  mulheres e homens  que  cuidam  de crianças e sobre  o papel  social  das  mães. Rudick  conclui  que  as  funções  ligadas  às  tarefas maternais -  por  ela  designadas como  "mothering" -  poderão dar  azo  a uma maneira  específica de pensar: o pensamento maternal ("maternal thinking").  Neste razão e  paixão  inter-actuam fortemente  pois  há  que reflectir  e  agir  em  situações  ond a carg emotiva..é  por  vezes muito intensa uma  tese que  ilustra  sobremaneira  a passagem de  uma  experiência vivida para  a conceptualização e teorização da  mesma tornando bem  evidente que  as  actividades comuns  e aparentemente  triviais podem conduzir  à reflexão  filosófica.
Moulton  e Rudick  o duas vozes  entre  muitas  outras  que  se debruçaram sobre  o modo feminino de fazer  filosofia, um problema que se insere no tema  mais  vasto  de  uma escrita  feminina. Menos  polémica é a questão da especificidade das  temáticas. De facto,  é possível apontar  no século X X alguns  núcleos de filosofemas sobre  os quais  as mulheres se m particularmente  debruçado. E o caso da  ontologia na qual  a temática do feminismo radica,  pelo  relevo  dado  ao conceito de natureza humana. Quer  consideremos  a homogeneidade desta, quer  a entendamos  de  um modo  bipolar em função do sexo  ou do género, quer  a neguemos ou a fragmentemos, a natureza  humana  é sempr um marco  incontornável, a partir do qual  se levantam outras  questões. E é na  abordagem da natureza feminina que  surgem dois problemas clássicos que nenhuma das orientações feministas ignora: o da igualdade e da diferença e o da relação sexo / género.
Também  no  domínio da  lógica  verificamos como  o  importantes para  o pensamento  feminista os  temas da  razão e da  racionalidade bem como  o da argumentação. No que respeita  à ética, há toda  uma  controvérsia relativa  à universalidade dos  valores  morais  e à possível existência de uma  moral feminina com os seus parâmetros próprios, colocando a tónica na  contextualização e no  envolvimento e despresando a abstracção e a generalização. No que  concerne à antropologia temos  questões relativas à identidade individual, ao  sujeito  humano  e a uma  possível  diferenciação do  pensamento  feminino.  Também a epistemologia tem sido  uterreno profícuo nos  debates feministas, nomeadamente no que  se refere  ao papel do  género na  captação do real,  à legitimidade de  um método  científico universal  e ao  peso da  masculinidade na construção científica.  Por fim , relativamente à ecologia e à filosofia  da natureza há correntes feministas com  visões muito próprias, nomeadamente  na aproximação feita  entre  as mulheres e a natureza,  englobando-as  numa  mesm opressão que  sobre elas  tem pesado ao longo dos  tempos.
o pretendendo esgotar a questão, apresentamos de  seguida  algumas  temáticas  que  a possa ilustrar.  A escolh das  mesmas apenas se justifica  pelo  interesse pessoal com  a plena  consciência de  que  muitos campos  foram  omitidos.

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5. Natureza humana/natureza feminina

Uma das  grandes questões levantadas pelos  feminismos continua a ser a da  igualdade e da  diferença.  As fortes  críticas a perspectivas  essencia- listas,  na ameaça fixista e determinista que  encerram, levam a que o termo "naturez feminina" tenh sido  praticamente  proscrito,  substituído  por outros,  considerados menos  polémicos como é o caso de "identidade".
Na  sequência de  algumas pensadoras  que  o temem  o conceito de "natureza"  pois  o  entendem  como  algo  de  dinâmico e de interactivo19 , manteremos o termo  em causa e formulamos a questão do seguinte  modo: é lícito falar de natureza humana  em geral ou teremos  que a diferenciar sexualmente, distinguindo uma natureza feminina e outra  masculina?
O feminismo trouxe  achegas suplementares para  o problema filosófico da natureza humana. De facto,  as diferentes "escolas" tomaram posições firmes  no j á clássico debate entre  "es s ene i alistas",  que defendem ser a natureza dada, e "existencialistas", partidários de que  ela é construída. Entre  as  orientações radicais  ganha  sentido  a ideia de  uma  "essência" ou naturez feminina,  conotad positivamente,  a  qua pretendem  impor como  modelo  cultural benéfico. As feministas liberais  defendem a andro- ginia procurando   homogeneiza mulhere  homens    nu modelo comum.  També m  as  orientações marxistas enfatizam a igualdade, preocupando-se sobretudo com a realização de uma  natureza humana  na qual as diferenças sexuais  poucpesam.  Já as orientações pós-modernas questionam a universalidade do sujeito  humano  (feminino  ou masculino), acentuando  as  divergências, relevando a convivência de múltiplas orientações e dando  voz às minorias sexuais.
O tema  de uma  natureza feminina tem raízes no  mundo  grego, nomeadamente  em Platão e Aristóteles, altamente responsáveis pelo modo como  a mulher  foi subsequentemente representada na  filosofia ocidental. Na verdade, encontramos nestes filósofos orientações que mais  tarde  serão retomadas discutidas  e  contestadas  no  debate  sobr a  igualdade  e  a diferença. Referimo-nos concretamente aos posicionamentos que  defendem a androginia, a bi-polaridade / complementaridade, e a diferença.
A defesa de um género humano  uno e homogéneo, remonta  a Platão, quando  pela  boca  de Aristófanes nos relata  o mito do andrógino e a partir dele  traça  a  génese  do  desej sexua e do  amor20 .  Hoje  a temática da androginia é recorrente em certas orientações feministas. As  defensoras de  um feminismo igualitário tomam  como  ponto  de referência a humanidade em  geral,  advogando  um estilo  de  vida  semelhante  para  homen e


E  o  caso de  Mary  Midgley,  Beast  and  Man-  The  Roots   of  Human   Nature,  London, Routledge, 1979.
Banquete,    189 a-193  d.

mulheres.  Consideram  que  para  além  das  óbvias  diferenças  biológicas o é possível identificar  outras.  As divergências de temperamento e comportamento que  tradicionalmente se  detectam dever-se-iam exclusivamente a factore sociais  e culturais.
A  causa da  diferença  encontra  em  Aristóteleum  lídimo  defensor pois  a ontologia aristotélica preza  as dicotomias. O par forma / matéria é um da suas manifestações,  da  qua s segue outras    sexualmente conotadas  como  é o caso da oposição masculino / feminino,  activo / passivo, razão / paixão, e outras  do mesmo  teor21 . Note-se que  os  elementos constantes  no  binómio  homem/mulher  o  desigualmente  valorizados pelo estagirita pois  a menoridade feminina é sempre  enfatizada: a mulher sendo naturalmente inferior  é feita  para  obedecer ao homem22 ; ela é um homem  incompleto23 ; o seu corpo  é mais fraco  e imperfeito24 , etc.,  etc.
Trata-s de um debate que  os feminismos contemporâneos retomam invertendo a positividade dos papéis. De facto  as feministas culturais enaltecem  a  benignidade  de  uma  cultura  feminina entendendo-a  mais próxima da natureza e enfatizando os valores  de solidariedade e dparticipação nela  presentes. Mas  mesmo  entre  elas  há vozes  discordantes, que nos chamam a atenção para o perigo de dogmatizar o tema da natureza feminina,  entendendo-a  como  algo de  estático25 . Há também quem  alerte para  o perigo  de  identificar  o natural  com o eticamente válido. A controvérsia  estende-se ao  próprio  tema  da  diferença  dado  que  considerar  a mulher  diferente é pressupor a existência de parâmetros avaliativos relativamente aos  quai ela  é  confrontada.  que  mais  uma  vez  levaria  a atender  ao pressuposto  masculino como padrão de  referência.
Para  concluir  esta  breve  incursão no tema  da  diferença  lembramos que  ela  o  se  esgota no  par  homem  /  mulher  pois  o só falamo de diferenças  entre  sexos como  também no  interior  destes. As  orientações feministas de  inspiração marxista o sobretudo sensíveis à diversidade de etnias  (brancas e negras),  de classes (baixa,  média e alta), de comportamentos  sexuai (lésbicas  e  heterossexuais),  etc.  etc.  E  há  aind que considerar  as  diferenças  individuais,  que  tornam  único  cad indivíduo. Como  diz Elisabeth Spelman "though ali women  are  women,  no woman is only a woman"26 .

2  1         Carol  Goulcl, Beyond  Domination. New  Perspectives   on  Women  and  Phdosophy, New
Jersey, Rowman & Littlefield, 1984,  pp.  69-71.
 2        Política,   1254 b 6-14.
 3         Geração  dos Animais, 737 a 27-28.
 4        Ibidem,  727 a 24-25.
2  5         Sobr est temática  é excelente  a análise  de  Diana  Fnss, EssentiaUy   Speaking, New
York and London, 1980.
 6        Elisabeth  Spelman  (ed.)   Inessential    Woman,  London, Th Women's Press,  1990, p. 187.
                                                                                           


6. A reivindicação de uma outra  ética

Fará  sentido  atende ao  sexo  e ao  género no  que  respeit à ética e aos  comportamentos  morais Poder-se-á  faiar  de  uma  moral  masculina oposta  a (ou diferente de) uma moral feminina? Tal como  noutras  temáticas  filosóficas,  também neste campo  o pensamento  feminista é diversificado.  H á quem  denuncie o predomínio de  valore masculinos na moral do  ocidente, essencialmente  conotada  com a racionalidade e com a abstracção; há quem  saliente  e mesm sobrevalorize um modo  feminino de pensar o valores propondo  uma  sociedade  diferente  ond os  juízos morais  se  legitimam  em função de  situações concretas; há quem  defenda uma  universalidade de  valores  considerando ser  neles irrelevante o peso do sexo  ou do género.
A investigação de Carol  Gilligan no início dos  anos oitenta2  constitui um marco,  o só pela  contestação empreendida à génese dos  princí• pios  morais   e  à  universalidade do mesmos,  como  pela  polémica  que provocou  e pela  literatura abundante  que  a partir  dela  surgiu.  Aluna  de Kohlberg,  Gilligan contest os  modelos aplicados por  este psicólogo no estudo  da génese do pensamento  moral. Partindo dos  estudos piagetianos sobre  a cognição e tomando como  pano  de fundo  as teorias  filosóficas de Kant  e Rawls,  Kohlberg constrói uma  escala de  desenvolvimento moral, destacando nela  seis  estádios. No primeiro,  os indivíduos movem-se num universo regido  pelos  critérios de recompensa  e de castigo,  privilegiando a obediência como  valor  supremo. sexto  estádio, o mais  alto,  é o da universalidade  ética.  Nele  a justiça  identifica-se com  a imparcialidade ("fairness") dando-se  particular relevo  a princípios racionais e  abstractos28 . Entre  o primeiro e o último há outros  escalões, orientados por valores éticos específicos.
Curiosamente,  na  aplicação  desta escala a  mulheres,  verificou-se qu a  maioria  nã o  ultrapassava  o  terceiro   estádio,  aquel em  qu as opções morais  se regem  pela  concordância interpessoal e pela  obediência às  norma vigentes  Est aparente  "menoridade" ética  intriga  Gilligan, levando-a a procurar razões mais satisfatórias. Negando a explicação freudiana  d um  superego  feminino inferio porqu dependente  das paixões,  a  defensora  de  "um voz  diferente" questiona  a  validade do modelo  conceptual seguido  por Kohlberg,  demonstrando que  os  estádios nele considerados se perspectivaram em função de um ponto de vista predominantemente  masculino. Deste  modo,  as respostas dadas pelas mulheres o revelam  qualquer inferioridade mas  sim u desfasamento


2  7         Carol  GilliganIn  a  Different  Voice,  Cambridge, Massachusetts,  Harvar University
Press, 1982.
2  8         Lawrcnce Kohlberg,  Essays   on  Moral   Development, San  Francisco,  Harpe & Row,
1981,2vols
                                                              
de perspectivas, visto o ter sido considerada a diferença de género na elaboração  de  uma  escala de  valores A  "gende theory"  aplicad ao plano  moral,  alerta-nos  pois  par a  especificidade  de  u pensamento feminino.  Este,  mais  do  que  a universalidade e a abstração, destaca os aspectos concretos e contextuais, dando  um particular relevo  ao  envolvimento  com os outros.  O paradigma em que  se integra  é o da relação, ele• gendo  como  significativa  a relação e / filho,
O pensamento  morai  masculino acentua  a imparcialidade, a objectividade  e o distanciamento. O indivíduo é considerado na sua  autonomia, por vezes mesmo  na oposição ao outro. Elege  como  referência a transacção, privilegia  as  relações de tipo contratual, acentu os direitos  susceptíveis de  promover o indivíduo. Nas  situações dilemáticas utilizadas por Kohíberg para  detectar  a génese do pensamento  moral, atende-se à objectividade,  ao  valor  da justiça e à abstracção. o valores  que  se  adequam ao público masculino pois  sintonizam com os critérios e as referências do mesmo.  Tal o acontece quando  se aplicam  à população feminina. Esta é  sensível a dimensões afectivas e relacionais como  por  exemplo a res• ponsabilidade, o empenhamento pessoal a atenção aos  outros.  Assim,  ao analisarem as situações dilemáticas propostas, as mulheres o as des- contextualizam, antes  se  envolvem nelas,  mostrando-se  particularmente tocadas pelas situações concretas e o por princípios gerais  e abstractos. Da í    facto   d poucas  alcançarem  o  último  estádio  n escala  de Kohíberg.
O estudo  empreendido por Gilligan, nomeadamente o inquérito que realizou  a um grupo  de mulheres confrontadas  com a questão do aborto, levou-a   a  considerar  a  existêncide  uma  ética  feminina do  "cuidado" ("ethic  of care"),  assente na  capacidade  de compreensão, de empatia, de preocupação com os outros  ("caring") e de amor.  Tal "ética do cuidado" considera as  atitude de  generalização abstracta  e de  o envolvimento como  verdadeiros obstáculos para  a compreensão da problemática moral.
A partir  das  conclusões de  Gilligan o debate acendeu-se e as posições extremaram-se. As feministas radicais  usaram  as conclusões desta psicóloga para  denunciar uma moral masculina -  a "ética da justiça" - alicerçada  na  competição,  analisando  os  problemas  de  um  modo  abstracto,  normalizando deveres e direitos.  A ela  opõem uma  "ética do cuidado",  baseada na atenção ao outro, na relação e nos  afectos.
Quer  nos  situemos  na  perspectiva  de  Gilligan quer  a  contestemos (e a contestação foi grande  mesmo  dentro  dos  movimentos feministas), é inegável que  o seu  livro veio chamar  a atenção para  a excessiva valorização racional  no  plano  ético, em  detrimento de  elementos  afectivos que também deverão ser  tomados em conta.  A exigência de  "uma  voz  dife• rente",  em todos  os planos  e sobretudo no ético, mostrou  que  a  formalidade e  o carácter abstracto  do  pensamento  que  habitualmente valoriza-

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mos  nã o pode  colocar-se como  critério moral  absoluto. Alertou-nos para as  implicações de um excessivo peso atribuído ao valor da  neutralidade. Foi  sobretudo  importante para  uma  re-avaliação positiva  de  práticas do cuidado.  Com  el certas  actividades atribuídas  às  mulheres  e  muitas vezes  desvalorizadas pelo  seu  carácter gratuito  (cuidar  de  crianças, de doentes de  idosos,  etc) , revestiram-se da maior  importância, constituindo-se como  elementos primordiais para  a determinação quer  de conceitos quer  de critérios éticos.


7. Uma razão feminina?
Dado  que  o tema  da  razão ocupa  um  lugar  dominante n filosofia europeia, compreende-se  que  as  feministas  se  tenham  debruçado  sobre ele.  Destacamos  a perspectiva de  Geneviève Lloyd como  paradigmática das  críticas a um humanismo predominantemente masculino e à identificação entre  masculinidade e racionalidade. Num artigo  dos  anos oitenta, "The  man  of reason", cuja linhas  de  força desenvolveu num  livro mais tarde  publicado com o mesmo  nome29 , Lloyd debruça-se sobre  o conceito de razão, criticando a sua  colagem a perspectivas  masculinizantes e pro- pondo-se  repensá-lo de  um  modo  diferente. Tal  como  outra filósofas, entende que  a racionalidade tem  sido  considerada  de  um modo  estreito poi tem  privilegiado determinado modelos  epistemológicos  qu de modo  algum  a esgotam.  o modelos que  sobrevalorizam a perspectiva formal,  restringindo a razão aos  princípios lógicos e contribuindo para  o estabelecimento de dicotomias rígidas. Neles  a razão afirma-se numa oposição à paixão, à imaginação e à sensibilidade, sendo estas relegadas par o  plano  do  irracional e  combatidas  como  actividades intelectualmente  menores, associadas ao feminino.
A aliança entre  racional  e masculino tem uma  longa  história, sendo Aristóteles,  como   atrás  referimos,  um  do maiore responsáveis  pelo afastamento  da mulher.  Ora, longe de ser combatido, tal preconceito con• solidou-se na  época moderna e fez  durante  muito  tempo  parte  do nosso "inconsciente filosófico". De facto,  o conceito de racionalidade que  herdámos  e  qu hoj algumas  feministas  denunciam  foi  veiculado  pelo modelo  epistemológico proposto por  Descartes.  Para  o autor  da  Medita• ções   Metafísicas  a  razão  é  a  centelh divina  no  homem    a  marca impressa por Deus  na criatura  humana  - que  o distingue dos  outros  seres vivos e lhe permite  ter acesso à verdade. O conhecimento filosófico é um meio privilegiado  de conduzir a razão. A sua  verdade  é avaliada  pela  evidência clara  e distinta  dos  princípios racionais em que  assenta. A dedução é valorizada como  caminho epistemológico correcto, aceitando-se  o


 9         Vj . nota  10.



isomorfismo  entre  razão e realidade. As Regulae  surgem como  panaceia para  o erro,  como  garantia de conhecimento seguro, fundamentado numa intuição  racional, clara  e distinta. A  res  cogitans distingue-se radicalmente  da res extensa, reforçando-se a dicotomia platónica entre  espírito e matéria e erradicando-se  definitivamente da  mente  todo  o elemento corpóreo.
O  afastamento  da  mulher  deste modelo de racionalidade deve-se ao facto  de se considerarem femininas certas características tais como  a sensibilidade,  a emotividade e a imaginação. E até um iconoclasta dos  pre• conceitos como  foi Espinosa, secundariza a imaginatio e fala  desdenho- samete da piedade feminina,  considerando-a perigosa para  um bom  fun• cionamento da  mente30 .
Outras  razões, de  índole cultural  e sociológica, contribuíram para  o afastamento  das  mulheres do  plano  da  racionalidade. De  facto,  quer  as temáticas quer  as metodologias consideradas próprias do conhecimento raciona nã o constam  da  educação  que  lhes  era  ministrada. Veja-se o modo  como  Kant  nas  suas Obser\>ações sobre o sentimento do Belo e do Sublime   considera aberrantes  as  mulheres que  estudam grego  ou que  se dedicam à física. També m a personagem de Sofia  no Emile  de  Rousseau é  paradigmática desta relegação do feminino  para  o plano  dos  afectos. E mesm a  reavaliação  da  emotividade e da  imaginação, ocorrida posteriormente,  no Romantismo, não favorece a causa feminina  pois  reforça o carácter irracional  da  fantasia  e do  devaneio valorizando a mulher  pelo facto  de as possuir.
As teses de Lloy d colocam-se na sequência de  perspectivas que  criticam o predomínio masculino nas  diferentes manifestações da cultura ocidenta (política, ciênciaarte,  filosofia,  etc.)  e que  nos  alertam  para distinguir  os  aspectos sociais  e culturais de  um determinado conceito de razão que exclui as mulheres31.
Note-se  que  nem  toda as  feministas subscrevem estes  ponto de vista,  considerando-os  quer  pouco  rigorosos quer  perigosos para  a causa do feminismo. Como  ilustração do primeiro  caso temos  Karen  Green3 2    e do  segundo Janet Radcliff Richards na  obra  que  j á referimos33 . Green contraria  a ideia  de  uma  razão pensada e modelada por  homens pois, tal como  existe  uma comunidade de pontos  de vista e de estilos  na  mundivi- dência masculina, também  podemos  detectar constantes  no  pensamento


3  0        Espinosa, Ética,  IV , prop.  37, schol.
3  1         Vj . Sandra Harding,  "Is Gender  a Variable in Conccplions of Rationality?  A Survey of
Issues" in Gould,  1984.
 2        Kare Green,   The   Woman of  Reason.   Feminism,Humanism  and   Political    Thought,
Cambridge, Polity Press, 1995.
 3        Vj . nota 11.
                                             

da mulheres, presentes  quer  em  filósofos  que  se  debruçaram  sobre  a condição feminina quer  em mulheres que reflectiram sobre  a sua  situação ou que  simplesmente escreveram filosofia.  Nem todos  os escrito filosó• ficos  partilham da  tese aristotélica da  inferioridade da  mulher  e é possível e desejável recuperar, na tradição filosófica, uma concepção específica  da  racionalidade e objectividade femininas. Embora  no  passado as mulheres  nã o tivessem possibilidades  par se  coloca fora  do  modelo masculino, o quer dizer que  algumas o o fizessem. E é a essa presença de uma  razão feminina que certas feministas querem  dar voz, traçando a  sua  genealogia  e  dand visibilidade a um  humanismo feminista que integre  o corpo  e as emoções sem abdicar  da razão.
També m as reservas levantadas por Janet Richards dizem respeito  a excessos presentes nalgumas orientações do feminismo radica (Redsto- kings  e outras).  Por  um lado  alerta-nos quanto  às generalizações simplistas  que  levam  a considerar negativa a racionalidade ocidental pelo  facto de  ter  sido  construída  por  homens.  Por  outro  denuncia  o  perigo   que representa  uma  sobrevalorização de  aspectos para-racionais e irracionais bem  como  a identificação dos  mesmo com  a mundividência feminina. Para  J. R. e outras  que  como  ela pensam as  feministas o podem  prescindir  de  racionalidade mas  devem  sim alargar  este conceito, admitindo modo diferenciados  de  organizar  o  real  nos  quai a diferença  sexual tenha  um papel  determinante embora  o determinista.


8. O século das Mulheres?

Est é  o  título  dado  por  Victoria  Camp a  um  do seus últimos livros34 . Nele constata  que para  a mulher de hoje, emancipada e detentora de  direitos,  j á  o se  e o problema da  igualdade pois  ele  é-lhe  dado como  algo de natural.  Mas  é grande  a distância que  vai da aceitação teó• rica  e formal  à  concretização no  quotidiano. E  um  caminho que  exige uma  mutação  nas  regras de  convivência e na  política, postulando uma outra  gramática do poder.
É  para  essa "feminização  da  sociedade"  que  a  obra  de  V.  C.  nos alerta   nesta  proposta  inegavelmente filosófica Subscrevemo-la lembrando  que  a filosofia  teve,  tem e terá um papel  determinante em todas as mutações culturais pois  o carácter teórico e especulativo que  lhe  pertence o a isenta  de uma  dimensão prática que a leva a enraizar-se na acção.
Muitos  temas novo surgiram no  panorama  filosófico  do  séc.  XX , desmentindo os defensores de uma filosofiperene,  para  os quais  tudo de importante j á  foi pensado e dito. Alguns  dos  novos  filosofemas inscre-


Victoria  Camps El  siglo  de  las  Mujeres,   Barcelona,  Ediciones  Cátedra,  1998,  trad. portuguesa de Regina  Louro, O Século  das Mulheres,  Lisboa,  Presença, 2001.

  vem-se  num  paradigma que  muito deve  a contributos femininos -  o cuidado.  Circunscritas durant séculos à privacidade de  um espaço doméstico, as mulheres nele  aprenderam determinados valores  que  hoje pretendem transpor para  o domínio público, reivindicando para  si, e para  todos, uma maneira diferente de estar no mundo.
A transformação das  virtudes privadas em valores  públicos 3 5     é uma tarefa  que  se iniciou no nosso século, pela  o das  mulheres. E se der os frutos  que  promete, será então lícito afirmar  que  o séc. X X é, verdadeiramente, o século das  mulheres.



RÉSU


Quan Socrate, dans Phédon,    ordonne aux  femmes de  
sortir  de  sa  chambre, pour  qu'i l  puiss mouri r  entour é de  ses  disciples, i l a marqu é  l a place  de femmes dans  la  philosophi c  I'absence Cett situation commence  à  êtr e  contesté e  au XXèm e  siècle .
Aprè  1'éclaircissemen t    des    concept d "philosophi e  féministe  e de "philosophi c au  féminin" ,  ce  texte  se  proposanalyser  les  différente s  orientations philosophique s  contemporaines  qu i  considèren t  la  femm et  le  fémini n  comm e des  philosophème s  légitimes .  I I termine ave la discussion de  quelques  questions inévitable  pou  qu i  s penche    su l plac des   femme e philosophie :  l a spécificit é   d'un  philosophi e  au  féminin  la  validit é  d'une    natur féminine ,  l a possibiíit é  d'un e  éthiqu e  de  la  différence .
                                                             17/18 Lisboa, 2001 pp 61-77


A quem interessar!


http://bdigital.uncu.edu.ar/objetos_digitales/1635/torchiacuyo14.pdf



        Lola

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