AS MULHERE S ENTRAM NA FILOSOFI A
Maria Luísa Ribeiro Ferreira
Universidade de Lisboa
1. A entrada das mulheres na filosofia do séc. X X
Momentos antes de morrer,
Sócrates
despede-se dos amigos, dos filhos e da família. O relato tocante
que Platão nos deixa no Fédon
é por demais conhecido. No entanto,
há nele uma breve referência que passa despercebida à maior parte
dos leitores: a ordem dada pelo
filósofo para que as
mulheres se retirem1 . Ausentes em todo o diálogo preparatório da morte, são mandadas sair
quando esta
vai concretamente ocorrer, como se só os discípulos, homens todos eles,
pudessem assistir ao suicídio forçado do
filósofo, do
mesmo
modo
que só eles
acompanharam as suas diatribes oratórias
na cidade.
Este abandono (imposto)
das mulheres no que respeita à filosofia,
retrata bem o estatuto que
as mesmas ocuparam
no pensamento ocidental
- a ausência. Uma ausência não deliberada mas compulsiva, não expressa mas subrepticiamente justificada por razões outras
que não as filosóficas.
A saída das mulheres, ordenada
por Sócrates, é aceite
pelos discípulos deste como
algo de natural. Há um silêncio conivente dos
filósofos para
os quais a condição feminina se
circunscreve ao espaço privado, enquanto a filosofia é um acontecimento público, mesmo quando se desenrola num quarto e diz respeito ao acto
íntimo de morrer.
Um silêncio que
se mantém ao longo de séculos. Intercalada por algumas intervenções femininas, a
voz dominante da
filosofia é masculina. O que
é problemático
para as suas actuais
cultoras. De facto, como dizer às mulheres que hoje
se interessam por filosofia
-
estudiosas, professoras,
investigadoras,
estudantes -
que não existem, enquanto
mulheres,
na mente dos filósofos? Como fazê-las aceitar
a universalidade do conceito de homem,
1 Fédon, 116 b.
pelo qual
são
designadas? Como
convencê-las
de que tudo o que as identifica enquanto diferentes, é desinteressante para a filosofia? E que reacção
esperar por parte
de quem
permanentemente se defronta com o silenciamento, a anulação ou a secundarização de temáticas que
considera relevantes?
Com algumas excepções, os filósofos têm olhado
as mulheres
de um modo negativo,
ou, quanto muito, condescendente2. A tese platónica difundida
no Timeit,
segundo a qual
a mulher representa uma
forma inf rior de humanidade3, perdura
até
Freud, que, retomando Aristóteles, entende a mulher
como um homem
castrado.
Com o século
X X esta
situação
altera-se, e podemos dizer
que a partir dos
anos sessenta
ocorre uma
mutação nas relações entre
a filoso•
fia e as mulheres. Os movimentos
feministas que então ganham
força, sobretudo nos EU A e países de língua inglesa, levam ao incremento dos Women Studies ou Gender Studies, incluindo-os de pleno direito nos curricula universitários e nos projectos de investigação. A filosofia, essa "disciplina recalcitrante"4 que dificilmente
se abre
à inovação, sofre no nosso século o impacto
deste "boom". Uma das mudanças
manifesta-se em
novas
maneiras de
apreciar
o pensamento dos
filósofos,
mediante chaves de leitura
que permitem uma
visão diferente das
suas teses, nomeadamente no que
respeita à consistência interna das mesmas. Como diz Nancy
Tuana5 , não basta interpretar certos sistemas procurando neles a
parte (geralmente mínima) que consagram às mulheres. É
preciso articular
o que
é dito sobre esta
temática
com a totalidade de um pensamento, de
modo a que o resultado
global
do mesmo seja
congruente. O que nem sempre acontece.
Uma outra linha de investigação, ainda
ligada à história
da filosofia, pretende restituir
a voz a filósofas do passado, dando-lhes
visibilidade e mostrando o
impacto que tiveram. Habitualmente catalogadas como dis• cípulas deste ou
daquele nome sonante, começa-se a reconhecer nelas um pensamento autónomo, expresso através dos meios
em que lhes
era possível divulgá-lo,
quer se trate de ensaios, de tratados, ou simplesmente de cartas.
Um outro campo que tem dado frutos releva temáticas tipicamente
femininas, habitualmente não trabalhadas pelos pensadores tradicionais e
2 Para aprofundar esta
temática veja-se Maria
Luisa Ribeiro
Ferreira,
(org.)
O que os Filósofos pensam
sobre as Mulheres, Lisboa,
Centro de
Filosofia da
Universidade de Lisboa, 1998.
3 Timeu, 41 d-42 d.
4 O termo
c usado por
Christine
Battersby. num artigo que intitula
"Philosophy: The
Recalcitrant Discipline", Women:
A
Cultural
Review,
3, n° 2 (1992).
5 Nancy Tuana,
Woman and the
History of Philosophy, New York, Paragon House,
1992.
agora redescobertas nas
potencialidades filosóficas que encerram. Nele se inclui uma abundante literatura
consagrada a questões como
o nascimento,
a relação maternal, o cuidado com os outros,
o modo
feminino de fazer ética, epistemologia, ontologia, lógica.
Antes de
considerarmos algumas destas questões,
esclareceremos o que vulgarmente se entende por
filosofias
feministas e filosofias no feminino, de modo a obviar equívocos.
2. Filosofias feministas, filosofías no feminino. Será o feminismo uma filosofia?
Os termos filosofia
e feminista conotam-se
habitualmente com uma multiplicidade de
significados. Parece-nos útil, para evitar
equívocos, apresentar muito
sucintamente o modo
como utilizamos estes conceitos no presente artigo.
Por feminismo
designamos um conjunto de movimentos diversificados
que se
manifestam em reflexões
e actuações
sobre
a situação
das mulheres com o objectivo muito concreto de compreender a
condição feminina e de lutar
em prol da sua
plena realização6 . Uma filosofia
feminista debruça-se
essencialmente sobre
o tema
dos direitos da
mulher, tendo
como fim último denunciar abusos, identificar
preconceitos e lar injustiças7 . É uma designação abrangente pois inclui uma
multiplicidade de
perspectivas.
Sendo objectivo imediato da filosofia
feminista uma modificação do "status quo"
e uma intervenção
social reivindicativa, por vezes mesmo agressiva, perguntar-se-á se é legítimo entendê-la como uma disciplina filosófica. De igual modo
se considera paradoxal
na filosofia
feminista o seu carácter particular, concreto
e situado, contrastando com a objectividade e
universalidade da filosofia8 .
Questões como estas não impedem que consideremos filosóficos certos contributos do pensamento
feminista.
Na verdade
eles situam-se de pleno
direito no campo da filosofia,
pelo tipo
de questões levantadas, pela
linguagem em que
se formulam
tais questões, pelos
conceitos que manuseiam, pelas correntes em que
se integram. A
base que sustenta as teorias feministas é
crítica, argumentativa e
racionalmente fundamentada. As pretensões defendidas assentam
(ou deveriam assentar) numa
reflexão
6 Abordaremos algumas correntes essenciais do feminismo no ponto 3. deste artigo.
7 As diferenças
aqui focadas entre filosofia feminista e filosofia
no feminino seguem de perto o que
escrevemos em "Espinosa, Hobbes e a Condição Feminina", O que os filósofos pensam sobre as mulheres, pp. 111 e segs.
8 Vj .
Emanuela Bianchi (org.)
Is Feminist Philosophy
Philosophy?, Evanston, Illinois, Northwestern University
Press, 1999, p. XV .
sobre problemas inequivocamente filosóficos, poderíamos
mesmo dizer problemas clássicos da tradição ocidental, como por
exemplo a questão
antropológica do que é um ser humano, ou as temáticas metafísicas da essência ou natureza, ou da identidade e da
diferença.
Uma filosofia no feminino, cruzando-se muitas vezes com uma
filo• sofia
feminista, nã o tem o carácter
aguerrido desta, não se afirma
como movimento,
não visa imediatamente alteração sociais.
É certo que
o tra• balho
que desenvolve é
o material consistente que
as feministas utilizam para
dar força aos
seus argumentos e
para racionalizar as suas pretensões. Sendo seu
objectivo dar visibilidade às mulheres num domínio em
que aparentemente
tiveram um estatuto de
sombras, a sua
tarefa
é eminente• mente reconstrutiva, quer
desvelando a presença oculta (porque indirecta) da mulher
na história da filosofia,
quer destacando no território
filosófico coordenadas
femininas
que dele estiveram afastadas,
quer mostrando a produção
filosófica
das mulheres pela
divulgação
de textos que por várias razões se mantiveram desconhecidos.
Numa palavra,
uma filosofia
no feminino inclui todas as linhas que
permitam relevar
a presença
da mulher na
filosofia.
Note-se que as próprias designações de filosofia
feminista e de
filo• sofia
no feminino não são pacíficas. A título de exemplo apresentamos duas perspectivas - a de Mary Warnock e
de Geneviève Lloyd - que manifestam uma total discordância quanto à relação
feminismo/filosofia e
sobretudo quanto ao
tema da especificidade de
uma filosofia
no femi•
nino.
Warnock tem-se preocupado em divulgar mulheres
filósofas mas contesta uma
"gendered philosophy"9 . Para ela,
a filosofia
tem determinadas exigências como
por exemplo a
generalização, a racionalização, a explicação,
a significação, a argumentação. Ora o sexo
e o género não desempenham qualquer
papel num discurso deste tipo. Segundo Warnock, a especificidade das
várias filosofias deriva de diferenças individuais. A prova é que
ao longo dos tempos houve
mulheres filósofas.
Geneviève Lloyd, sustentando uma posição contrária,
defende o carácter próprio de uma
filosofia feminina bem como
a necessidade de o tornar evidente. Em
The Man of Reason10 acompanha a génese da
razão ocidental que
considera masculinizada, fazendo
o levantamento de certos estereótipos filosóficos em que triunfa
uma maneira
masculina de ver o mundo
e de o problematizar. A ela opõe um novo modo
de perspectivar o real, numa busca de parâmetros diferentes dos até então usados.
9 Mary Warnock, Women
Philosophers, London, Everyman, 1996.
1 0
Geneviève Lloyd, The
Man of Reason.
Male
and Female
in Western Philosophy,
London, Routiedge, 1984.
Referenciámos estas posições porque
embora
tenham
um objectivo comum - a divulgação
do
pensamento de mulheres - divergem profun• damente quanto
ao modo de fazer
filosofia. Mas
quer nos
sintamos mais
perto de Warnock quer
dêmos razão a Lloyd, é inegável
que a perspecti• va
filosófica tem estado presente nos
estudos sobre
as
mulheres pois muitos dos
temas que preocupam os
diferentes feminismos são de cariz filosófico.
E a actualidade dos mesmos
de modo algum anula o seu entro• samento com a história e com a tradição.
3. Os diferentes feminismos
Uma dificuldade, comum
a todos
os que contactam com estes temas é a multiplicidade
de orientações
e de movimentos que, sob a designação de
femininos ou de feministas, se digladiam entre
si ou pelo menos
sus• tentam,
sobre temáticas comuns, posicionamentos diferentes.
Se quisermos optar por uma taxionomia genérica, podemos seguir
a proposta de Janet Radcliff
Roberts" que distribui
a
multiplicidade de orientações feministas em dois grandes grupos:
liberais
e radicais. O feminismo liberal,
também designado por igualitário, ou mesmo
tradicional, engloba
as correntes que defendem a igualdade. E
um movimento eminentemente reivindicativo, que
ao constatar a menoridade a que as mulheres têm sido
sujeitas
exige
para elas
uma uniformidade de direitos. Enquanto parte
desfavorecida da sociedade, a mulher tem que
ser defendida numa luta que
só terminará quando
o seu estatuto
social e político for considerado equivalente ao do homem.
Note-se que o feminismo igualitário pode
ser (e tem sido) defendido quer por homens quer por mulheres, assentando
em valores
universais que todos deverão partilhar. É
uma orientação que se inicia na Idade
Moderna, na qual
se destacam os pensadores ilumi• nistas.
Relevamos como figura
cimeira Mary Wollstonecraft com
as suas obras A Vindication ofthe Rights
ofMen e A Vindication
ofthe Rights
of Women, publicadas respectivamente em 1790 e 1792.
O feminismo
radical,
como o nome indica, apela
para uma
alteração de
princípios, defendendo uma nova
maneira
de
estar no mundo
e uma profunda
mudança
social
e
cultural. Os
direitos
das
mulheres surgem como
lógica consequência dessa mudança. Por sua
vez ela
processa-se porque
os valores femininos se impõem, podendo dizer-se
que é a reavaliação positiva dos
mesmos
que
conduz a uma outra
mundividência. De um modo geral são feministas radicais as correntes que pretendem uma
transformação social
a partir
de valências diferentes das
(predominante• mente masculinas) que prevalecem na nossa cultura. A sexualidade é
Janet Radcliff Roberts,
The Sceptical Feminist.
A
Philosophical Enquiry, London, Harmondsworth, 1994, p. 385
esegs.
uma questão
central,
nomeadamente a sexualidade
masculina,
muitas vezes entendida
como um constructo, como uma
forma de
poder que
se perpetua para
que o domínio dos homens se mantenha. Daí a crítica à heterosexual idade
e a tónica colocada na "sisterhood", nas redes ou grupos de mulheres. O feminismo radical sofreu
um
incremento considerável a partir dos anos sessenta,
tendo como marco fundante o
livro de Betty Frie- dan, The Feminine Mystique, cuja primeira
edição data de 1963.
Se esta
divisão em dois grupos
nos parecer
redutora, podemos
optar pela
perspectiva de Judith Evans,
identificando uma gama mais ampla
de orientações, com particular realce para
as "escolas" liberais,
radicais, culturais, socialistas e pós-modernas12 . Temos
assim o feminismo liberal, o feminismo radical e o feminismo socialista a defender a
igualdade, enquanto que os feminismos cultural e pós-moderno acentuam a diferença.
Nas suas primeiras manifestações, o feminismo liberal
sustenta que, para
além das óbvias diferenças biológicas,
há uma homogeneidade entre os comportamentos femininos
e masculinos. Para quem
segue esta linha, as diferenças
psicológicas, linguísticas,
morais,
ou outras, são social• mente construídas, decorrendo do género e não do sexo.
Daí a defesa de
uma igualdade de oportunidades para
as mulheres, exigindo para
elas as mesmas regalias que
a sociedade ocidental confere
aos homens. A
partir dos
anos sessenta,
embora as pretensões
de igualdade se mantenham, dá¬
-se alguma relevância à diferença, realçando-se certas características e tarefas femininas que
são valorizadas. As mulheres j á não pretendem "ser como os homens". O
seu objectivo é
que os valores femininos sejam
con• siderados. Exemplificam esta posição, entre
outras,
Susan Okin,
Alice Rossi, Nathalie Bluestone, para além das j á mencionadas Betty Friedan
e Janet Radcliff Richards.
O feminismo
radical
tem as suas representantes mais
conhecidas na nova
esquerda americana, iniciando-se na
luta pelos direitos
dos negros, contra
o regime capitalista e
contra as
instituições sociais e políticas em que este se
escuda. A
luta pela
emancipação da mulher
é parte
de um processo mais vasto
no qual
se combatem todos
o tipos
de opressão
- racial, classista, étnica, etc.
Tal como as feministas liberais, também as defensoras do feminismo
radical consideram irrelevantes as diferenças sexuais por ficarem cir•
cunscritas à relação sexual
propriamente dita e ao facto
de só a mulher poder ter filhos. Contudo, diferentemente das feministas igualitárias, as feministas radicais inscrevem-se
num processo revolucionário
para
o qual defendem uma liderança
feminina pois "sisterhood is powerful"13 .
1 2
Judith Evans, Feminist Theory
Today.
An Introductton
to
Second Wave
Feminism,
London, Sage Publications, 1995.
1 3
É o título de uma
colectânea,
organizada por Robin Morgan. Sisterhood is Powerful.
New York, Vintage
Books, 1970.
São particularmente representativas desta
corrente
Shulamit Firestone e Juliet Mitchell. Apesar da
diversidade e especificidade das
suas teorias, partilham entre si
o
ideal de
uma democracia participada e um certo basismo que contesta as elites, os líderes e as hierarquias.
O feminismo socialista constitui-se numa
tentativa de
atender
ao papel que
as mulheres poderão desempenhar numa
democracia, considerando-as em paralelo com
outros
grupos desfavorecidos. Iris Marión
Young é uma figura paradigmática desta linha pois
o seu
percurso inicia¬
-se com um
radicalismo revolucionário encaminhando-se progressivamente para
um socialismo humanista.
O feminismo cultural integra as diferentes escolas que com maior
ou menor
ênfase realçam a especificidade e
universalidade de uma cultura feminina, positivamente re-avaliada. Trata-se
de
um movimento essen- cialista
e separatista, que não pretende mudar
o mundo
mas sim dar mais força às mulheres, realçando as características do seu
universo. A mater• nidade, a aproximação com a natureza e com a terra, a defesa da ecologia e de
uma ética do cuidado ("ethic
of care") são preocupações das participantes desta linha, sem
dúvida aquela onde
o peso da filosofia
mais se faz sentir. Nela destacamos os
trabalhos de Mary
Daly, Sarah
Rudick, Andrée
Collard, Adrienne Rich
bem como
da psicóloga Carol
Gilligan pela
atenção dada a um pensamento moral especificamento feminino.
Os feminismos pós-modernos são designados deste modo por se terem constituído sob a influência
de Derrida
e Lyotard,
especialmente pelo
contributo por eles dado
à fragmentação do eu e à perda
de identidade. O relativismo destes e
de outros pensadores que se empenharam no ataque às grandes narrativas e
na rejeição das
leituras
privilegiadas do real, constituiu um repto para
a causa feminista, levando
à desconstrução dos conceitos "essenciais" de homem
e de mulher,
bem como à contestação das
clássicas oposições natureza/cultura, sexo/género, masculino/feminino. Se a proclamada morte do
sujeito
humano, professada
pelos pós-modernos, pode representar uma ameaça séria à causa feminista, também é verdade que esta se amplifica
pois ganham voz
múltiplos grupos que
se assumem como diferentes -
lésbicas,
mulheres negras,
facções políticas, etc.
São particularmente importantes nesta linha as obras de Judith
Butler14 , no que representam
de ataque ao conceito de género e ao contributo prestado à
desconstrução dos
conceitos de "igualdade" e
de "diferença". Em França as teses de Luce Irigaray15 , profundamente influenciadas por Derrida, são significativas
desta escola,
visando a construção
de uma subjectividade feminina
não constrangida pela lógica masculina dominante.
Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of
Identity, New
York and
London, Routledge,
1990.
Vj
. especialmente de Luce Irigaray, Ce sexe qui n' en est pas un, Paris, Minuit, 1977.
4. Haverá uma filosofia feminina?
As múltiplas correntes que
referimos não respondem ao problema da especifidade
de uma
filosofia
feminina ou feminista. Revelam
sobretudo orientações
divergentes ou complementares mas deixam em aberto uma questão: será que as
mulheres fazem filosofia
de um modo diferente dos seus colegas filósofos?
O "modus philosophandi", temática recorrente no universo filosó•
fico, é hoje
recolocado pelas feministas. Mas não é uma questão pacífica. A discussão de uma filosofia feminina divide
as investigadoras que
levantam problemas quanto à diversidade de metodologias e
quanto à relevância do sexo na
produção
filosófica. Se há vozes
que, em sintonia com Wamock, respondem negativamente a esta
última questão, outras há como Janice
Moulton 1 6 ou Sarah Rudick1 7 que defendem uma
filosofia
feminina autónoma e específica.
Moulton denuncia um modelo de
filosofia que
valoriza a agressivi• dade e
a utiliza como método. Por isso
contesta
aquilo
que designa
por "método de
contenda" ("adversary method") que usa
o raciocínio dedu• tivo para
derrotar teses, esquecendo outras
formas de argumentação mais dialogantes. O
"adversary method" tem-se imposto como modelo domi•
nante do filosofar. Moulton
critica-lhe a sobrevalorização dos processos dedutivos, a
fragmentação dos
problemas com vista a uma melhor
análise dos
mesmos
e o uso de contra
exemplos. No artigo em causa, admite
que o recurso ao
contra exemplo possa
ser um
meio
eficaz para derrotar adversários mas considera-o uma
maneira deficiente de pensar pela
invia• bilidade
de o aplicarmos a
situações complexas. Como alternativa propõe uma
atenção aos pressupostos gerais e às teses abrangentes, nas
quais esses exemplos se enquadram.
A perspectiva de Moulton
permite-nos reflectir sobre
o método ou métodos filosóficos. O realce que
dá ao processo hermenêutico leva-nos a
confrontar diferentes
modelos de trabalho
filosófico
e a perceber que é possível
fazer
filosofia
de um
modo não
agonístico, nã o bélico,
pela valorização das
diferentes experiências e vivências18 .
Sarah Rudick é (tal como Moulton)
uma profissional da filosofia, entendendo esta como um discurso racional e argumentativo que
secun- dariza
ou
mesmo afasta a emoção. Mas quando se
debruça sobre obser-
6 Janice Moulton, " A paradigm of philosophy: the adversary method" em Anne
Garry and
Marilyn Pearsall
(eds.), Women, Knowledge and Reality.
Explorations in Feminist
Philosophy, London. Routledge,
1996, pp. 5-20.
7 Sarah Rudick. Maternal Thinking. Towards a Politics of Peace.
Boston. Beacon
Press.
1989.
8 Note-se que o modelo que Moulton contesta tern como paño
de fundo
a
filosofía analítica.
vações feitas sobre mulheres e
homens que cuidam de crianças
e sobre o papel social
das mães. Rudick
conclui
que as
funções ligadas
às tarefas maternais -
por ela
designadas como "mothering" - poderão dar
azo a uma maneira específica de pensar: o pensamento maternal ("maternal
thinking"). Neste,
razão e paixão
inter-actuam fortemente pois há que reflectir e agir
em situações
onde
a carga
emotiva..é
por vezes muito intensa.
E
uma tese que
ilustra sobremaneira a passagem de
uma expe• riência vivida para a conceptualização e teorização da
mesma,
tornando bem evidente que
as actividades comuns
e aparentemente triviais
podem conduzir à reflexão filosófica.
Moulton e Rudick
são duas vozes entre
muitas outras
que se debru• çaram sobre o modo feminino de fazer filosofia, um problema que se insere no tema mais
vasto de
uma escrita feminina. Menos
polémica é a questão
da
especificidade das temáticas. De facto,
é possível apontar no século X X alguns
núcleos de filosofemas sobre os quais
as mulheres se têm particular• mente
debruçado.
E o caso da ontologia na qual
a temática do feminismo radica,
pelo relevo
dado ao conceito de natureza humana. Quer
consideremos
a homogeneidade desta, quer
a entendamos de um modo
bipolar em função do sexo ou do género, quer a neguemos ou a fragmentemos, a
natureza
humana é sempre
um marco incontornável, a partir do qual se levantam outras questões. E é na
abordagem da natureza feminina que
surgem dois problemas clássicos que nenhuma das orientações feministas ignora: o da igualdade e da diferença e o da relação sexo / género.
Também no domínio da lógica
verificamos como são
importantes para
o pensamento feminista
os temas da razão e da racionalidade bem
como o da argumentação. No que respeita à ética, há toda uma
controvérsia relativa
à universalidade dos
valores
morais e à possível existência de uma moral feminina com os seus parâmetros próprios, colocando a
tónica na contextualização e no envolvimento e
despresando a abstracção e a generalização. No que
concerne à antropologia temos
questões relativas à
identidade individual, ao sujeito humano
e a uma possível
diferenciação do pensamento feminino. Também a epistemologia tem sido um terreno profícuo nos debates feministas, nomeadamente no que
se refere ao papel do género na
captação
do real, à legitimidade de um método
científico universal
e ao
peso da masculinidade na construção científica.
Por fim , relativamente à ecologia e
à filosofia da natureza há correntes feministas com
visões muito próprias,
nomeadamente na aproximação feita entre
as mulheres e
a natureza, englobando-as numa mesma opressão que sobre elas
tem pesado ao longo dos tempos.
Não pretendendo esgotar a
questão, apresentamos de
seguida algu• mas temáticas
que a possam
ilustrar.
A escolha das
mesmas apenas se justifica
pelo interesse pessoal, com a plena consciência de
que muitos campos foram
omitidos.
Pàgina 70
5. Natureza humana/natureza feminina
Uma das grandes questões levantadas pelos
feminismos continua
a ser a da igualdade e
da diferença. As fortes
críticas
a perspectivas essencia- listas,
na ameaça fixista e determinista que encerram, levam a que o termo "natureza feminina" tenha sido
praticamente proscrito, substituído
por outros,
considerados menos polémicos como é o caso de "identidade".
Na sequência
de algumas pensadoras
que não temem
o conceito de
"natureza" pois o entendem como algo
de dinâmico e de interactivo19 , manteremos o
termo em causa e formulamos a questão do seguinte modo: é lícito falar de natureza humana em geral ou teremos
que a
diferenciar sexualmente, distinguindo uma natureza feminina e
outra masculina?
O feminismo trouxe achegas suplementares para
o problema filosó•
fico
da natureza humana. De facto, as diferentes "escolas" tomaram posi• ções firmes no j á clássico debate entre
"es s ene i alistas", que defendem ser a natureza dada, e "existencialistas", partidários de que
ela é construída.
Entre as orientações radicais
ganha sentido
a ideia de
uma "essência" ou natureza feminina, conotada positivamente,
a
qual
pretendem impor
como modelo
cultural
benéfico. As feministas liberais defendem a
andro- ginia, procurando homogeneizar mulheres e homens num modelo comum. També m as
orientações marxistas enfatizam a
igualdade, preo• cupando-se sobretudo
com a realização de uma
natureza humana na qual as diferenças
sexuais pouco
pesam. Já as orientações pós-modernas
questionam
a universalidade do sujeito humano
(feminino ou masculino), acentuando as divergências, relevando a
convivência de múltiplas orien• tações e dando
voz às minorias sexuais.
O tema de uma
natureza feminina tem raízes no mundo
grego, nomeadamente em Platão e Aristóteles, altamente responsáveis pelo modo como a mulher
foi subsequentemente representada na filosofia ocidental. Na verdade, encontramos nestes filósofos orientações que mais
tarde serão
retomadas, discutidas e contestadas no debate sobre
a igualdade e
a diferença. Referimo-nos concretamente aos posicionamentos que defendem a androginia, a bi-polaridade / complementaridade, e
a diferença.
A defesa de um género humano
uno e homogéneo, remonta
a Platão,
quando pela boca
de Aristófanes nos relata o mito do andrógino
e a partir dele
traça a génese do desejo sexual e do amor20 . Hoje
a temática da androginia é recorrente em certas orientações feministas. As defensoras de um feminismo igualitário tomam
como ponto
de referência
a humani• dade em geral,
advogando um estilo de vida
semelhante para homens e
E o caso de Mary
Midgley, Beast
and
Man-
The
Roots of Human
Nature, London, Routledge, 1979.
Banquete, 189 a-193 d.
mulheres. Consideram
que para
além das
óbvias diferenças
biológicas não é possível
identificar outras. As divergências
de
temperamento e comportamento que tradicionalmente se detectam dever-se-iam exclusi• vamente a
factores sociais
e culturais.
A causa da
diferença encontra em Aristóteles um
lídimo
defensor pois
a ontologia aristotélica preza
as dicotomias. O par forma / matéria
é uma das suas manifestações, da
qual
se seguem outras sexualmente conotadas como é o caso da oposição masculino /
feminino, activo / pas• sivo, razão / paixão, e outras do mesmo
teor21 . Note-se que os
elementos constantes no binómio homem/mulher são desigualmente valorizados pelo estagirita pois a menoridade feminina
é sempre enfatizada: a
mulher sendo naturalmente inferior
é feita para
obedecer ao homem22 ;
ela é um homem
incompleto23 ;
o seu corpo é mais fraco e imperfeito24 , etc.,
etc.
Trata-se de um debate que
os feminismos contemporâneos retomam invertendo a
positividade dos papéis. De facto
as feministas culturais enaltecem a
benignidade de uma
cultura feminina entendendo-a
mais
próxima da natureza e
enfatizando os valores de solidariedade e
de parti•
cipação nela presentes. Mas mesmo
entre elas há vozes discordantes, que nos chamam a
atenção para o perigo de dogmatizar o tema da natureza feminina,
entendendo-a como algo de
estático25 .
Há também quem
alerte para
o perigo
de identificar o natural com o eticamente válido. A contro• vérsia estende-se ao
próprio tema
da diferença
dado que
considerar a mulher diferente é
pressupor a existência de parâmetros avaliativos rela• tivamente aos quais ela
é
confrontada. O que
mais
uma vez
levaria a atender ao pressuposto masculino
como padrão de
referência.
Para concluir
esta breve
incursão
no tema da diferença lembramos que ela
não se
esgota no par
homem / mulher pois
não só falamos
de diferenças entre
sexos como também no
interior
destes. As orientações
feministas de inspiração marxista são sobretudo sensíveis à diversidade de etnias
(brancas e negras),
de classes (baixa, média e alta), de compor• tamentos sexuais
(lésbicas
e
heterossexuais), etc. etc.
E
há ainda que considerar as diferenças individuais,
que tornam
único cada indivíduo.
Como diz Elisabeth Spelman
"though ali women are
women, no woman is only a woman"26 .
2 1
Carol Goulcl,
Beyond Domination. New Perspectives on Women and Phdosophy, New
Jersey, Rowman & Littlefield, 1984,
pp. 69-71.
2 2
Política, 1254 b 6-14.
2 3
Geração dos Animais, 737 a 27-28.
2 4
Ibidem, 727 a 24-25.
2 5
Sobre esta
temática
é excelente a análise
de Diana
Fnss, EssentiaUy
Speaking, New
York and London, 1980.
2 6
Elisabeth Spelman (ed.) Inessential
Woman,
London, The
Women's Press, 1990, p. 187.
6. A reivindicação de uma outra ética
Fará sentido
atender
ao
sexo e ao género no
que respeita à ética e aos
comportamentos morais? Poder-se-á faiar
de uma
moral masculina oposta a (ou diferente de) uma moral feminina? Tal como noutras temáti• cas
filosóficas, também neste campo o pensamento feminista é
diversifi• cado. H á quem denuncie o
predomínio de valores masculinos na moral do ocidente, essencialmente conotada com a racionalidade e com a abs• tracção; há quem
saliente e mesmo
sobrevalorize um modo
feminino de pensar os valores, propondo
uma sociedade diferente onde
os
juízos morais se legitimam
em função de situações concretas; há quem
defenda uma
universalidade de valores
considerando ser neles irrelevante o peso do sexo
ou do género.
A investigação de Carol
Gilligan
no início dos
anos oitenta2 7 consti• tui um marco, não só pela
contestação
empreendida à génese dos
princí• pios morais e à universalidade dos mesmos, como pela
polémica que provocou e pela literatura abundante que a partir dela
surgiu. Aluna
de Kohlberg,
Gilligan
contesta os modelos aplicados por este psicólogo no estudo da génese do pensamento moral. Partindo dos estudos piagetianos sobre a cognição
e tomando como
pano de fundo
as teorias filosóficas de Kant e Rawls, Kohlberg constrói uma
escala de desenvolvimento moral, destacando nela seis
estádios.
No primeiro, os indivíduos
movem-se num universo regido
pelos critérios de recompensa e de castigo,
privilegiando a obediência
como valor supremo. O
sexto estádio, o mais
alto, é o da universalidade ética. Nele
a justiça
identifica-se com a imparcialidade ("fairness") dando-se
particular
relevo a princípios racionais e abstrac• tos28 . Entre
o primeiro e
o último há outros
escalões,
orientados por valo• res éticos específicos.
Curiosamente, na aplicação desta escala a mulheres, verificou-se que
a maioria
nã o
ultrapassava o terceiro estádio,
aquele
em
que
as opções morais
se regem pela
concordância interpessoal e pela
obediência às normas vigentes Esta
aparente "menoridade" ética
intriga Gilligan,
levando-a a procurar razões mais satisfatórias. Negando a explicação
freudiana de um superego feminino inferior porque dependente das paixões,
a
defensora de "uma voz
diferente" questiona a validade do modelo
conceptual seguido por Kohlberg,
demonstrando que os
estádios nele considerados se perspectivaram em função de um
ponto de vista predominantemente masculino. Deste modo, as respostas dadas
pelas mulheres não revelam
qualquer inferioridade mas sim um desfasamento
2 7 Carol Gilligan,
In a Different Voice, Cambridge, Massachusetts, Harvard
University
Press,
1982.
2 8 Lawrcnce Kohlberg, Essays on Moral
Development, San Francisco,
Harper
&
Row,
1981,2vols
de perspectivas, visto não ter sido considerada a
diferença de género na elaboração de uma
escala de valores. A "gender theory"
aplicada
ao plano
moral, alerta-nos pois
para
a especificidade de um pensamento feminino. Este,
mais do que
a universalidade e
a abstração, destaca os aspectos concretos e
contextuais, dando um particular relevo
ao envolvi•
mento com os outros.
O paradigma em que
se integra é o da relação, ele• gendo
como significativa a relação mãe / filho,
O pensamento morai masculino acentua
a imparcialidade, a
objecti• vidade
e o distanciamento. O
indivíduo é considerado na sua
autonomia, por vezes mesmo
na oposição
ao outro. Elege
como referência a transac• ção, privilegia
as relações de tipo contratual, acentua os direitos
suscep• tíveis de
promover o indivíduo. Nas
situações
dilemáticas utilizadas por Kohíberg para
detectar a génese do pensamento moral, atende-se à objec• tividade, ao
valor da justiça e à abstracção. São valores
que se
adequam ao público masculino pois
sintonizam com os critérios e as referências do mesmo. Tal não acontece quando
se aplicam à população
feminina. Esta é sensível
a dimensões afectivas e relacionais como
por exemplo a
res• ponsabilidade, o
empenhamento pessoal, a atenção aos outros.
Assim, ao analisarem as situações dilemáticas
propostas, as mulheres não as des- contextualizam, antes
se envolvem nelas,
mostrando-se particularmente tocadas pelas situações
concretas e não por princípios gerais
e abstractos. Da í o
facto
de poucas alcançarem
o
último
estádio na escala de Kohíberg.
O estudo empreendido por Gilligan,
nomeadamente o inquérito que realizou
a um grupo de mulheres confrontadas
com a questão do aborto, levou-a a considerar a
existência
de uma ética
feminina do
"cuidado" ("ethic of care"),
assente na capacidade de compreensão, de empatia, de preocupação com os outros
("caring") e de amor.
Tal "ética do cuidado" considera as atitudes de
generalização abstracta e de não envolvimento como verdadeiros obstáculos
para a compreensão da problemática moral.
A partir das
conclusões
de Gilligan o debate acendeu-se e as posi• ções extremaram-se. As feministas radicais
usaram as conclusões
desta psicóloga para
denunciar uma moral masculina - a "ética da justiça" - alicerçada na
competição, analisando os problemas de um
modo abs• tracto, normalizando deveres e
direitos. A ela
opõem uma "ética do cui• dado",
baseada na atenção ao outro, na relação e nos
afectos.
Quer nos
situemos na perspectiva de Gilligan quer
a
contestemos (e a contestação foi grande
mesmo dentro
dos movimentos feministas), é inegável que o seu livro veio chamar
a atenção para
a excessiva valoriza• ção racional no plano ético, em
detrimento de elementos afectivos
que também deverão ser
tomados em conta. A exigência
de "uma voz
dife• rente", em todos os planos
e sobretudo no ético, mostrou que
a
formali• dade e o carácter abstracto do pensamento que habitualmente valoriza-
Pàgina 74
mos nã o pode colocar-se como
critério moral absoluto. Alertou-nos para as implicações de um excessivo peso atribuído
ao valor da
neutralidade. Foi sobretudo importante para
uma re-avaliação positiva
de práticas do cuidado. Com ela certas actividades atribuídas às mulheres e
muitas vezes desvalorizadas pelo seu carácter gratuito
(cuidar
de crianças, de doentes,
de
idosos, etc) , revestiram-se da maior
importância, constituin• do-se como elementos primordiais para
a determinação quer de conceitos quer de critérios éticos.
7. Uma razão feminina?
Dado que
o tema
da razão ocupa
um lugar
dominante na filosofia europeia, compreende-se que as
feministas se tenham
debruçado sobre ele. Destacamos a perspectiva de
Geneviève
Lloyd como paradigmática das críticas a um humanismo predominantemente masculino e
à identifi• cação entre
masculinidade e
racionalidade. Num artigo dos
anos oitenta, "The man
of reason", cujas
linhas
de força
desenvolveu num livro mais tarde
publicado com o mesmo
nome29 , Lloyd debruça-se
sobre o conceito de razão, criticando a
sua colagem a
perspectivas masculinizantes e pro- pondo-se repensá-lo de um
modo diferente. Tal
como outras filósofas,
entende que a racionalidade tem sido
considerada de um modo
estreito pois tem
privilegiado determinados modelos
epistemológicos que de modo algum
a esgotam. São modelos que sobrevalorizam a
perspectiva formal,
restringindo a razão aos
princípios
lógicos e contribuindo para o estabelecimento de dicotomias rígidas. Neles
a razão afirma-se numa
oposição à paixão,
à imaginação e à sensibilidade, sendo estas relegadas para o plano do irracional e combatidas como actividades intelectual• mente
menores, associadas
ao feminino.
A aliança
entre racional e masculino tem uma
longa história, sendo Aristóteles,
como atrás referimos,
um dos maiores responsáveis
pelo afastamento da mulher.
Ora, longe de ser combatido, tal preconceito con• solidou-se na
época moderna e fez
durante muito
tempo parte
do nosso "inconsciente filosófico". De facto,
o conceito de racionalidade que
her• dámos
e
que
hoje algumas feministas denunciam foi veiculado pelo modelo epistemológico proposto por Descartes. Para o autor da
Medita• ções Metafísicas a razão
é
a
centelha divina
no homem
-
a marca impressa
por Deus
na criatura humana
- que
o distingue dos
outros
seres vivos e lhe permite
ter acesso à verdade. O
conhecimento filosófico
é um meio privilegiado
de conduzir a razão. A sua
verdade é avaliada pela
evi• dência clara e distinta dos
princípios
racionais em que assenta. A
dedu• ção é valorizada como caminho epistemológico correcto, aceitando-se o
2 9 Vj . nota 10.
isomorfismo entre razão e realidade. As Regulae surgem como panaceia para o erro, como
garantia de conhecimento seguro,
fundamentado numa
intuição racional, clara e distinta. A
res cogitans distingue-se radical• mente da res extensa, reforçando-se a dicotomia platónica entre
espírito
e matéria e erradicando-se definitivamente da mente todo o elemento cor•
póreo.
O afastamento da mulher deste modelo
de racionalidade deve-se ao facto de se considerarem femininas certas características tais como a sen• sibilidade,
a emotividade e
a imaginação. E até um iconoclasta dos
pre• conceitos como
foi Espinosa, secundariza a imaginatio e fala desdenho- samete da piedade feminina,
considerando-a perigosa
para um bom fun•
cionamento da
mente30 .
Outras razões, de
índole cultural e sociológica, contribuíram para
o afastamento das mulheres do
plano da
racionalidade. De facto, quer as temáticas
quer as metodologias consideradas próprias do conhecimento racional nã o constam da educação que
lhes era
ministrada. Veja-se o modo como
Kant nas
suas Obser\>ações sobre o sentimento do
Belo e do Sublime considera aberrantes as mulheres que estudam grego ou que
se dedicam à
física. També m a personagem de Sofia no Emile
de Rousseau é paradigmática desta relegação do feminino
para o plano
dos afectos. E mesmo a reavaliação
da emotividade e
da imaginação, ocorrida poste• riormente, no Romantismo, não favorece a causa feminina pois reforça o carácter irracional
da fantasia e do
devaneio valorizando a mulher pelo facto de as possuir.
As teses de Lloy d colocam-se na sequência de
perspectivas que cri•
ticam o predomínio
masculino nas
diferentes manifestações da cultura ocidental (política, ciência, arte,
filosofia, etc.) e que nos
alertam para distinguir os aspectos sociais
e culturais de
um determinado conceito de razão que exclui as mulheres31.
Note-se que nem
todas
as
feministas subscrevem estes pontos de vista,
considerando-os quer pouco
rigorosos quer perigosos para
a causa do feminismo. Como ilustração do primeiro
caso temos Karen
Green3 2 e do
segundo Janet Radcliffe
Richards na
obra que
j á referimos33 . Green contraria
a ideia
de uma
razão pensada e modelada por
homens pois, tal como
existe uma comunidade de pontos
de vista e de estilos
na mundivi-
dência masculina, também podemos detectar
constantes no
pensamento
3 0
Espinosa, Ética, IV , prop.
37, schol.
3 1
Vj . Sandra Harding,
"Is Gender
a Variable in Conccplions of Rationality?
A Survey of
Issues" in Gould, 1984.
3 2 Karen Green,
The Woman of Reason. Feminism,Humanism
and Political
Thought,
Cambridge,
Polity Press, 1995.
3 3 Vj . nota 11.
das mulheres, presentes
quer em
filósofos que
se debruçaram
sobre a condição feminina quer
em mulheres que reflectiram sobre a sua situação
ou
que simplesmente escreveram filosofia.
Nem todos os escritos filosó•
ficos partilham da
tese aristotélica da
inferioridade da mulher e é pos• sível e desejável
recuperar, na tradição filosófica,
uma concepção especí• fica
da racionalidade e
objectividade femininas. Embora no passado as mulheres nã o tivessem possibilidades para
se
colocar
fora
do modelo masculino, não quer dizer que algumas o
não fizessem. E é a essa presença de uma razão feminina que certas feministas querem
dar voz, traçando
a sua genealogia e
dando
visibilidade a
um humanismo feminista
que integre o corpo e as emoções sem abdicar
da razão.
També m as reservas levantadas
por Janet Richards dizem respeito
a excessos presentes nalgumas orientações do feminismo radical (Redsto-
kings e
outras). Por um lado
alerta-nos quanto às generalizações simplis• tas
que levam
a considerar negativa a
racionalidade ocidental
pelo facto de
ter sido construída
por homens. Por outro
denuncia o perigo que representa uma sobrevalorização de
aspectos para-racionais e irracionais bem
como
a identificação dos mesmos com
a mundividência feminina. Para J. R. e outras que
como ela pensam, as
feministas não podem pres• cindir de
racionalidade mas devem
sim alargar este conceito, admitindo modos
diferenciados de organizar o
real nos
quais
a diferença sexual tenha um papel
determinante embora não determinista.
8. O século das Mulheres?
Este é o título dado
por Victoria
Camps
a um
dos seus últimos livros34 . Nele constata que para
a mulher de hoje, emancipada e detentora de direitos,
j á não se
põe o problema da
igualdade pois ele
é-lhe dado como algo de natural. Mas
é grande
a distância que
vai da aceitação
teó• rica e formal
à
concretização no quotidiano. E
um caminho que
exige uma
mutação nas
regras de convivência e na política, postulando uma outra gramática do poder.
É para
essa "feminização da sociedade" que a obra
de V.
C. nos alerta nesta proposta inegavelmente filosófica. Subscrevemo-la, lembrando que a filosofia teve,
tem e terá um papel
determinante em todas as mutações culturais pois o carácter
teórico e especulativo que lhe
pertence não a isenta
de uma dimensão prática que a leva a enraizar-se na acção.
Muitos temas novos
surgiram no
panorama filosófico do
séc. XX , desmentindo os defensores de uma filosofia
perene, para os quais
tudo de importante j á foi pensado e
dito. Alguns dos novos
filosofemas inscre-
Victoria Camps, El
siglo
de
las
Mujeres, Barcelona, Ediciones Cátedra, 1998,
trad. portuguesa de Regina
Louro, O Século
das Mulheres, Lisboa, Presença, 2001.
vem-se num
paradigma que muito deve
a contributos femininos - o cuidado. Circunscritas durante séculos à privacidade de um espaço doméstico,
as mulheres nele aprenderam determinados valores que
hoje pretendem transpor para
o domínio público, reivindicando para si, e para todos, uma maneira diferente de estar no
mundo.
A transformação das virtudes privadas em valores
públicos 3 5
é uma tarefa que
se iniciou no nosso século, pela mão das
mulheres. E se der os frutos que
promete, será então lícito afirmar que
o séc. X X é, verdadeiramente, o
século das mulheres.
RÉSUMÉ
Quand Socrate, dans Phédon, ordonne aux
femmes de
sortir de sa
chambre, pour
qu'i l
puisse
mouri r entour é de ses
disciples, i l a marqu é l a place des femmes dans la philosophi c - I'absence. Cette situation commence à êtr e contesté e au XXèm e
siècle .
Aprè s
1'éclaircissemen t
des
concepts de "philosophi e
féministe " et de "philosophi c au
féminin" ,
ce texte
se propose analyser
les différente s orientations philosophique s
contemporaines qu i considèren t
la femme et
le fémini n comm e des philosophème s légitimes . I I termine avec la discussion de
quelques questions inévitable s pou r qu i
se penche
sur la place des
femmes en philosophie : l a spécificit é d'un e philosophi e
au féminin , la validit é d'une nature féminine , l a possibiíit é
d'un e
éthiqu e
de la
différence .
17/18, Lisboa, 2001, pp. 61-77
A quem interessar!
http://bdigital.uncu.edu.ar/objetos_digitales/1635/torchiacuyo14.pdf
Lola
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