domingo, 16 de março de 2014

Ensaio Sobre o Entendimento Humano -texto Integral



ACRÓPOLIS



Investigação Acerca do Entendimento Humano [1748]
David Hume [1711-1776]
Tradução: Anoar Aiex

Edição
ACRÓPOLIS

Versão para eBook
eBooksBrasil

Fonte Digital:
br.egroups.com/group/acropolis/

©2001,2006 David Hume


ÍNDICE

SEÇÃO I
Das Diferentes Classes de Filosofia
SEÇÃO II
Da Origem das Idéias
SEÇÃO III
Da Associação de Idéias
SEÇÃO IV
Dúvidas Céticas Sobre as Operações do Entendimento
Primeira Parte
A Filosofia Moral
Segunda Parte
SEÇÃO V
Solução Cética destas Dúvidas
Primeira Parte
Segunda Parte
SEÇÃO VI
Da Probabilidade
SEÇÃO VII
Da Idéia de Conexão Necessária
Primeira Parte
Segunda Parte
SEÇÃO VIII
Da Liberdade e Da Necessidade
Primeira Parte
Segunda Parte
SEÇÃO IX
Da Razão dos Animais
SEÇÃO X
Dos Milagres
Primeira Parte
Segunda Parte
SEÇÃO XI
Da Providência Particular e Do Estado Futuro
SEÇÃO XII
Da Filosofia Acadêmica ou Cética
Primeira Parte
Segunda Parte
Terceira Parte
Notas



Investigação
Acerca do
Entendimento
Humano


imagem

David Hume



SEÇÃO I
DAS DIFERENTES CLASSES DE FILOSOFIA1


A FILOSOFIA MORAL, ou ciência da natureza humana2, pode ser tratada de duas maneiras diferentes; cada uma delas tem seu mérito peculiar e pode contribuir para o entretenimento, instrução e reforma da humanidade. A primeira considera o homem como nascido prin­cipalmente para a ação; como influenciado em suas avaliações pelo gosto e pelo sentimento; perseguindo um objeto e evitando outro, se­gundo o valor que esses objetos parecem possuir e de acordo com a luz sob a qual eles próprios se apresentam. Como se admite que a virtude é o mais valioso dos objetos, os filósofos desta classe pintam-na com as mais agradáveis cores e, valendo-se da poesia e da eloquência, discorrem acerca do assunto de maneira fácil e clara: o mais adequado para agradar a imaginação e cativar as inclinações. Escolhem, na vida cotidiana, as observações e exemplos mais notáveis, colocam os ca­racteres opostos num contraste adequado e, atraindo-nos para os ca­minhos da virtude com visões de glória e de felicidade, dirigem nossos passos nestes caminhos com os mais sadios preceitos e os mais ilustres exemplos. Fazem-nos sentir a diferença entre o vício e a virtude; ex­citam e regulam nossos sentimentos; e se eles podem dirigir nossos corações para o amor da probidade e da verdadeira honra, pensam que atingiram plenamente o fim de todos os seus esforços.
Os filósofos da outra classe consideram o homem mais um ser racional que um ser ativo, e procuram formar seu entendimento em lugar de melhorar-lhe os costumes. Consideram a natureza humana objeto de especulação e examinam-na com rigoroso cuidado a fim de encontrar os princípios que regulam nosso entendimento, excitam nos­sos sentimentos e fazem-nos aprovar ou censurar qualquer objeto par­ticular, ação ou conduta. Julgam uma desgraça para toda a literatura que a filosofia não tenha estabelecido, além da controvérsia, o funda­mento da moral, do raciocínio e da crítica; e que sempre tenha que falar da verdade e da falsidade, do vício e da virtude, da beleza e da fealdade, sem ser capaz de determinar a fonte destas distinções. En­quanto tentam realizar esta árdua tarefa, nenhuma dificuldade os de­sencoraja; passam de casos particulares para princípios gerais, e con­duzem ainda mais suas investigações para princípios mais gerais, e não ficam satisfeitos até chegar àqueles princípios primitivos que, em toda ciência, devem limitar toda curiosidade humana. Embora suas especulações pareçam abstratas e mesmo ininteligíveis aos leitores co­muns, aspiram à aprovação dos eruditos e dos sábios e consideram-se suficientemente compensados pelo esforço de toda a existência se pu­derem descobrir algumas verdades ocultas que possam contribuir para o esclarecimento da posteridade.
Certamente, a filosofia fácil e dada terá sempre preferência, para a maioria dos homens, sobre a filosofia exata e abstrusa; e por muitos será recomendada, não apenas como a mais agradável, mas também como mais útil do que a outra. Ela penetra mais na vida cotidiana, molda o coração e os afetos, e ao atingir os princípios que impulsionam os homens, reforma-lhes a conduta e aproxima-os mais do modelo de perfeição que ela descreve. Ao contrário, a filosofia abstrusa, alicerçada numa concepção que não pode penetrar na vida prática e na ação, desvanece quando o filósofo sai da sombra e penetra no dia claro, nem seus princípios podem manter facilmente qualquer influência sobre nossa conduta e nossos costumes. Os sentimentos de nosso coração, a perturbação de nossas paixões e a impetuosidade de nossas emoções, dissipam todas as suas conclusões e reduzem o filósofo profundo a um simples plebeu.
É preciso também reconhecer que a filosofia fácil adquiriu a mais durável como também a mais justa fama, e que os raciocinadores abs­tratos têm apenas, até aqui, gozado de uma reputação momentânea, nascida do capricho ou da ignorância de sua própria época, mas eles não têm sido capazes de manter sua fama ante o juízo eqüitativo da posteridade. Um filósofo profundo pode facilmente cometer um erro em seus raciocínios sutis, e um erro é necessariamente gerado de um outro, visto que ele o desenvolve até suas conseqüências e não é dis­suadido em adotar uma conclusão de aspecto incomum ou por ser contrária à opinião popular. Mas um filósofo que apenas se propõe representar o sentimento comum da humanidade nas cores mais belas e mais agradáveis, se por acidente cai em erro, recorre novamente ao senso comum e aos sentimentos naturais do espírito e assim volta ao caminho certo e se protege de ilusões perigosas. A fama de Cícero floresce no presente, mas a de Aristóteles está completamente deca­dente. La Bruyére ultrapassou os mares e ainda mantém sua reputação; todavia, a glória de Malebranche está limitada à sua própria nação e à sua própria época. Addison, talvez, será lido com prazer quando Locke estiver completamente esquecido.3
O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admis­sível no mundo, pois supõe-se que ele em nada contribui para o be­nefício ou para o prazer da sociedade, porquanto vive distante de toda comunicação com os homens e envolto em princípios e noções igualmente distantes de sua compreensão. Por outro lado, o mero ig­norante é ainda mais desprezado, pois não há sinal mais seguro de um espírito grosseiro, numa época e uma nação em que as ciências florescem, do que permanecer inteiramente destituído de toda espécie de gosto por estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o caráter mais perfeito se encontra entre estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para os negócios; mantém na conversação discernimento e delicadeza que nascem da cultura literária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente de uma filosofia conveniente. Para difundir e cultivar um caráter tão aperfeiçoado, nada pode ser mais útil do que as com­posições de estilo e modalidade fáceis, que não se afastam em demasia da vida, que não requerem, para ser compreendidas, profunda apli­cação ou retraimento e que devolvem o estudante para o meio de homens plenos de nobres sentimentos e de sábios preceitos, aplicáveis em qualquer situação da vida humana. Por meio de tais composições, a virtude toma-se amável, a ciência agradável, a companhia instrutiva e a solidão um divertimento.
O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência sua adequada nutrição e alimento. Mas os limites do entendimento hu­mano são tão estreitos que pouca satisfação se pode esperar neste particular, tanto pela extensão como pela segurança de suas aquisições.
O homem é um ser sociável do mesmo modo que racional. No entanto, nem sempre pode usufruir de uma companhia agradável e divertida ou conservar o gosto adequado para ela. O homem é também um ser ativo, e esta tendência, bem como as várias necessidades da vida humana, o submete necessariamente aos negócios e às ocupações; todavia, o espírito precisa de algum repouso, já que não pode manter sempre sua inclinação para o cuidado e o trabalho. Parece, pois, que a Natureza indicou um gênero misto de vida como o mais apropriado à raça humana, e que ela secretamente advertiu aos homens de não permi­tirem a nenhuma destas tendências arrastá-los em demasia, de tal modo que os torne incapazes para outras ocupações e entretenimentos. Tolero vossa paixão pela ciência, diz ela, mas fazei com que vossa ciência seja humana de tal modo que possa ter uma relação direta com a ação e a sociedade. Proíbo-vos o pensamento abstruso e as pesquisas pro­fundas; punir-vos-ei severamente pela melancolia que eles introduzem, pela incerteza sem fim na qual vos envolvem e pela fria recepção que vossos supostos descobrimentos encontrarão quando comunicados. Sede um filósofo, mas, no meio de toda vossa filosofia, sede sempre um homem.4
Se, em geral, os homens se contentassem em preferir a filosofia fácil à abstrata e profunda, sem censurar ou desprezar a última, não seria, talvez, inadequado, concordar com esta opinião geral e permitir a cada homem o direito de desfrutar livremente de seu próprio gosto e sentimento. Mas, como a questão é, freqüentemente, levada mais longe, até a completa rejeição de todo raciocínio profundo, ou o que é geralmente denominado de metafísica, passaremos a examinar o que se pode considerar razoável pleitear em seu favor.
Podemos começar observando que uma vantagem considerável que resulta da filosofia abstrata e exata consiste em sua utilidade para a filosofia fácil e humana, a qual, sem a primeira, nunca poderia alcançar um grau suficiente de exatidão em suas opiniões, preceitos ou raciocínios. As belas-letras não são outra coisa senão pinturas da vida humana em diversas atitudes e situações, que nos infundem diferentes sentimentos de louvor ou de censura, de admiração ou de zombaria, de acordo com as qualidades dos objetos que elas colocam diante de nós. Um artista estará mais bem qualificado para triunfar em seu em­preendimento se possui, além de gosto delicado e de rápida com­preensão, um conhecimento exato da estrutura interna do corpo, das operações do entendimento, do funcionamento das paixões e das diversas espécies de sentimentos que distinguem o vício e a virtude. Por mais árdua que possa parecer esta pesquisa ou investigação in­terna, ela se toma, em certa medida, indispensável àqueles que qui­serem descrever com sucesso as aparências exteriores e patentes da vida e dos costumes. O anatomista apresenta aos olhos os objetos mais hediondos e desagradáveis, porém sua ciência é útil ao pintor, quando desenha até mesmo uma Vênus ou uma Helena. Enquanto o pintor emprega as cores mais ricas de sua arte e dá às suas figuras o aspecto mais gracioso e o mais atraente, deve ainda dirigir sua atenção para a estrutura interna do corpo humano: a posição dos músculos, o sistema ósseo e a forma e função de cada parte ou órgão. A exatidão e, em todos os casos, vantajosa à beleza, e o raciocínio justo ao sen­timento delicado. Em vão exaltaríamos uma desvalorizando a outra.
Além disso, podemos observar em todas as artes ou profissões, mesmo as que mais se relacionam com a vida ou com a ação, que um espírito de exatidão, por qualquer meio adquirido, as conduz mais perto da perfeição e as torna mais úteis aos interesses da sociedade. Embora um filósofo possa viver longe dos negócios, o espírito da filosofia, se cuidadosamente cultivado por alguns, difunde-se gradual­mente através de toda a sociedade e confere a todas as artes e profissões semelhante correção. O político adquirirá maior previsão e sutileza na divisão e no equilíbrio do poder, o advogado, mais método e prin­cípios mais sutis em seus raciocínios, o general, mais regularidade em sua disciplina, mais cautela em seus planos e em suas manobras. A maior estabilidade dos governos modernos sobre os antigos e a exa­tidão da filosofia moderna têm melhorado, e provavelmente melho­rarão ainda mais, por gradações semelhantes.
Se não houvesse nenhuma vantagem a ser colhida destes estudos além da satisfação de uma curiosidade ingênua, mesmo assim este resultado não devia ser desprezado, pois ele se acrescenta aos poucos prazeres seguros e inofensivos que são conferidos à raça humana. O caminho da vida, o mais agradável e o mais inofensivo, passa pelas avenidas da ciência e do saber; e, quem quer que possa remover quais­quer obstáculos desta via ou abrir uma nova perspectiva, deve ser considerado um benfeitor da humanidade. Embora estas pesquisas possam parecer árduas e fatigantes, ocorre aqui como com certos es­píritos ou com certos corpos que, por estarem dotados de grande vi­talidade, necessitam de exercícios severos e colhem prazer daquilo que, para a maioria dos homens, parece penoso e laborioso. A obscuridade é, de fato, penosa tanto para o espírito como para os olhos; todavia, trazer luz da obscuridade, por mais trabalhoso que seja, deve ser agradável e regozijador.
Mas, objeta-se, a obscuridade da filosofia profunda e abstrata não é apenas penosa e fatigante, como também é uma fonte inevitável de incerteza e de erro. Na verdade, esta é a objeção mais justa e mais plausível contra uma parte considerável da metafísica, que não cons­titui propriamente uma ciência, mas nasce tanto pelos esforços estéreis da vaidade humana que queria penetrar em recintos completamente inacessíveis ao entendimento humano, como pelos artifícios das su­perstições populares que, incapazes de se defenderem lealmente, constróem estas sarças emaranhadas para cobrir e proteger suas fraquezas. Perseguidos em campo aberto, estes salteadores correm para a floresta e põem-se de emboscada para surpreender toda avenida desguarne­cida do espírito, a fim de dominá-lo com temores e preconceitos re­ligiosos. O antagonista mais valente é subjugado se, por um momento, suspende sua guarda. Muitos por covardia e tolice abrem os portões para os inimigos e voluntariamente os recebem com reverência e sub­missão como se fossem seus soberanos legítimos.
Mas esta é uma razão suficiente para que os filósofos desistam de tais pesquisas e deixem a superstição para sempre em posse de seu refúgio? Não é mais conveniente tirar uma conclusão contrária e perceber a necessidade de conduzir a guerra no mais secreto abrigo do inimigo? Em vão esperamos que os homens, em virtude de fre­qüentes decepções, abandonem finalmente estas ciências etéreas e des­cubram o verdadeiro campo da razão humana. De fato, além de muitas pessoas empenharem-se sensatamente em sempre repetir semelhantes ponderações, além disso, digo eu, nas ciências nunca há razão para desesperar; embora os esforços anteriores tenham fracassado, há ainda esperança de que a diligência, a boa sorte ou a sagacidade aperfeiçoada de gerações sucessivas possam alcançar descobertas desconhecidas das épocas anteriores. Todo espírito aventureiro se lançará para a conquista do difícil prêmio e se verá mais estimulado do que desencorajado pelas falhas de seus predecessores, porquanto espera que a glória de terminar uma aventura tão difícil lhe é reservada. O único método para libertar de vez o saber destas questões abstrusas consiste em examinar seriamente a natureza do entendimento humano e mostrar, por meio de uma análise exata de suas faculdades e capacidades, que ela não é, de nenhuma maneira, adequada a assuntos tão remotos e abstrusos. Devemos submeter-nos a esta fadiga a fim de viver tranqüilos todo o resto do tempo, e devemos cultivar a verdadeira metafísica com cuidado para destruir a metafísica falsa e adulterada. A indolência que, para algumas pessoas, oferece proteção contra esta filosofia enganadora é para outras superada pela curiosidade; e o desespero que em alguns momentos prevalece pode ser seguido de grandes esperanças e de ex­pectativas otimistas. O raciocínio exato e justo é o único remédio universal adequado a todas as pessoas e aptidões, o único capaz de destruir a filosofia abstrusa e o jargão metafísico que, mesclados com a superstição popular, se tomam, por assim dizer, impenetráveis aos pensadores descuidados e se afiguram como ciência e sabedoria.5
Além das vantagens de rejeitar, após a investigação deliberada, o aspecto mais incerto e desagradável do conhecimento, há muitas vantagens que resultam de uma inquirição exata dos poderes e das faculdades da natureza humana. É curioso que as operações do espí­rito, não obstante mais intimamente ligadas a nós, surjam envoltas em obscuridade todas as vezes que se tornam objeto da reflexão e a visão é incapaz de discernir com facilidade as linhas e os limites que as separam e as distinguem. Os objetos são muito tênues para per­manecer por muito tempo sob o mesmo aspecto ou situação e devem ser apreendidos num instante, por uma perspicácia superior recebida da natureza e desenvolvida pelo hábito e pela reflexão. Deste modo, apenas conhecer as diferentes operações do espírito, sua separação, sua classificação em categorias apropriadas e a correção da aparente desordem em que se encontram constituem uma parte considerável da ciência, quando elas são tomadas como objeto da reflexão e da pesquisa. Esta tarefa de organização e de distinção, que não tem mérito quando feita em relação aos corpos externos que são os objetos de nossos sentidos, aumenta de valor quando se dirige às operações do espírito, em proporção à dificuldade e ao esforço que encontramos ao realizá-la. Se não pudermos ir além desta geografia mental ou do delineamento das distintas partes e faculdades do espírito, ao menos será satisfatório chegar até lá; por mais evidente que possa parecer esta ciência – e de nenhum modo o é – mais desprezível ainda deve ser considerada sua ignorância por todos aqueles que pretendem alcançar o saber e a filosofia.
Nenhuma dúvida pode subsistir de que esta ciência é incerta e quimérica, a não ser que nos nutramos de um tal ceticismo que destrua inteiramente toda especulação e mesmo toda ação. Não há dúvidas de que o espírito está dotado de diversos poderes e faculdades, que esses poderes são distintos uns dos outros, que o que é realmente diferente de imediato para a percepção pode ser discernido pela re­flexão e, por conseguinte, em todas as proposições que se referem a este tema há uma verdade e uma falsidade que não estão fora do alcance do entendimento humano. Há muitas distinções evidentes des­te gênero, como aquelas entre a vontade e o entendimento, a imagi­nação e as paixões, que podem ser compreendidas por toda criatura humana. As distinções mais sutis e mais filosóficas não são menos reais e certas, embora mais difíceis de ser compreendidas. Alguns exemplos, especialmente recentes, de êxitos obtidos nestas investiga­ções podem dar-nos uma noção mais justa da certeza e da solidez deste ramo do saber. Ora, estimaremos valioso o esforço de um filósofo que nos dá um verdadeiro sistema dos planetas e estabelece a posição e a ordem daqueles corpos remotos, enquanto afetamos desdenhar aqueles que, com igual êxito, determinam as partes do espírito que nos dizem respeito tão de perto?6
Mas não podemos esperar que a filosofia, se cuidadosamente cultivada e encorajada pela atenção do público, possa levar suas in­dagações ainda mais longe e descubra, pelo menos em parte, as fontes e os princípios secretos que impulsionam o espírito humano em suas operações? Os astrônomos contentaram-se durante muito tempo em provar, a partir dos fenômenos, o movimento verdadeiro, a ordem e a grandeza dos corpos celestes até que surgiu um filósofo7 que, me­diante um feliz raciocínio, parece haver determinado também as leis e forças que dirigem e governam as revoluções dos planetas. E não há razão para temer que não tenhamos o mesmo êxito em nossas investigações acerca da organização e das faculdades mentais, se rea­lizadas com o mesmo talento e cautela. E provável que uma operação e um princípio do espírito dependam de uma outra operação e de um outro princípio que, por seu turno, possam reduzir-se a uma outra operação e a um outro princípio mais geral e mais universal. E ser-nos-á muito difícil determinar exatamente até onde é possível levar nossas investigações, antes – e mesmo depois – de um cuidadoso exame. É verdade que tentativas deste tipo são feitas todos os dias, mesmo por aqueles que filosofam de maneira mais negligente. E nada pode ser mais necessário que ingressar no empreendimento com o máximo cuidado e atenção, de modo que, se está ao alcance do entendimento humano, pode ser levado a cabo com felicidade, e, se não está, pode ser rejeitado com alguma confiança e segurança. Esta última conclusão, certamente, não é desejável e não se deveria aceitá-la com muita precipitação. Porque, se assim fosse, em quanto deveríamos diminuir a beleza e o valor desta classe de filosofia? Até agora, os moralistas estão habituados, quando consideram a multiplicidade e a diversidade das ações que despertam nossa aprovação ou nossa repulsa, a procurar um princípio comum do qual poderia depender esta variedade de opiniões. E, embora tenham às vezes levado o assunto demasiado longe devido à sua paixão por algum princípio geral, é preciso reco­nhecer que, sem dúvida, são desculpáveis quando esperam encontrar alguns princípios gerais, aos quais com justiça se poderiam reduzir todos os vícios e virtudes. Análogos têm sido os esforços dos críticos, dos lógicos e mesmo dos políticos; nem têm sido suas tentativas com­pletamente malogradas, embora com o correr do tempo, com maior exatidão e aplicação mais zelosa, possam aproximar ainda mais essas ciências de sua perfeição. Renunciar de imediato a todas as pretensões desse tipo pode ser justamente julgado uma conduta mais impetuosa, mais precipitada e mais dogmática do que a mais confiante e a mais afirmativa das filosofias, que jamais tentou impor aos homens seus preceitos e princípios incompletos.
Que importa se estes raciocínios sobre a natureza humana pareçam abstratos e de difícil compreensão? Isto não nos induz a nenhuma pres­suposição acerca de sua falsidade. Pelo contrário, parece impossível que o que até agora tem escapado a tantos sábios e profundos filósofos seja muito fácil e evidente. Sejam quais forem os sofrimentos que estas pes­quisas possam custar-nos, podemos considerar-nos suficientemente re­compensados, não apenas em matéria de utilidade mas por puro prazer, se pudermos assim aumentar nosso acervo de conhecimento acerca de assuntos de tão indiscutivel importância.
Mas como, finalmente, o caráter abstrato destas especulações não as recomendam mas lhes são desvantajosas, e como esta dificuldade pode talvez superar-se com engenho e arte, por evitar todo pormenor desnecessário, nós temos tentado, na investigação que segue, lançar alguma luz sobre temas a propósito dos quais se têm mostrado os sábios, até agora, desanimados pela incerteza, e os ignorantes, pela obscuridade. Ficaríamos felizes se pudéssemos unir as fronteiras das diferentes correntes de filosofia, reconciliando a investigação profunda com a clareza e a verdade com a originalidade. E mais felizes ainda se, raciocinando desta maneira fácil, pudéssemos destruir os fundamentos da filosofia abstrusa, que até agora apenas parece haver servido de refúgio à superstição e de abrigo ao erro e ao absurdo.


SEÇÃO II
DA ORIGEM DAS IDÉIAS


Cada um admitirá prontamente que há uma diferença conside­rável entre as percepções1 do espírito, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado, e quando depois recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de sua imaginação. Estas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, porém nunca podem alcançar integralmente a força e a vivacidade da sensação original. O máximo que podemos dizer delas, mesmo quando atuam com seu maior vigor, é que representam seu objeto de um modo tão vivo que quase podemos dizer que o vemos ou que o sentimos. Mas, a menos que o espírito esteja perturbado por doença ou loucura, nunca chegam a tal grau de vivacidade que não seja possível discernir as percepções dos objetos. Todas as cores da poesia, apesar de esplêndidas, nunca podem pintar os objetos naturais de tal modo que se tome a descrição pela paisagem real. O pensamento mais vivo é sempre inferior à sensação mais embaçada.
Podemos observar uma distinção semelhante em todas as outras percepções do espírito. Um homem à mercê dum ataque de cólera é estimulado de maneira muito diferente da de um outro que apenas pensa nessa emoção. Se vós me dizeis que certa pessoa está amando, compreendo facilmente o que quereis dizer-me e formo uma concepção precisa de sua situação, porém nunca posso confundir esta idéia com as desordens e as agitações reais da paixão. Quando refletimos sobre nossas sensações e impressões passadas, nosso pensamento é um re­flexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porém as cores que emprega são fracas e embaçadas em comparação com aquelas que revestiam nossas percepções originais. Não é necessário possuir discernimento sutil nem predisposição metafísica para assinalar a diferença que há entre elas. Podemos, por conseguinte, dividir todas as percepções do espírito em duas classes ou espécies, que se distinguem por seus diferentes graus de força e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente denominadas pensamentos ou idéias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosóficos era necessário compreendê-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-nos, por­tanto, usar um pouco de liberdade e denominá-las impressões, empre­gando esta palavra num sentido de algum modo diferente do usual. Pelo termo impressão entendo, pois, todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou que­remos. E as impressões diferenciam-se das idéias, que são as percepções menos vivas, das quais temos consciência, quando refletimos sobre quais­quer das sensações ou dos movimentos acima mencionados.2
À primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento humano, que não apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas também nem sempre é reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar for­mas e aparências incongruentes não causam à imaginação mais em­baraço do que conceber os objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num só planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num instante às regiões mais distantes do Universo, ou mesmo, além do Universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a Natureza se encontra em total confusão. Pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradição.
Entretanto, embora nosso pensamento pareça possuir esta liber­dade ilimitada, verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas idéias compatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois o sentimento que temos de nós mesmos nos permite conceber a virtude e podemos uni-la à figura e forma de um cavalo, que é um animal bem conhecido. Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagem filosófica: todas as nossas idéias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões ou percepções mais vivas.
Para prová-lo, espero que serão suficientes os dois argumentos seguintes. Primeiro, se analisamos nossos pensamentos ou idéias, por mais compostos ou sublimes que sejam, sempre verificamos que se reduzem a idéias tão simples como eram as cópias de sensações pre­cedentes. Mesmo as idéias que, à primeira vista, parecem mais dis­tantes desta origem mostram-se, sob um escrutínio minucioso, deri­vadas dela. A idéia de Deus, significando o Ser infinitamente inteli­gente, sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria. Podemos continuar esta investigação até a extensão que quisermos, e acharemos sempre que cada idéia que examinamos é cópia de uma impressão semelhante. Aqueles que dizem que esta afirmação não é universalmente verdadeira, nem sem exceção, têm apenas um método, e em verdade fácil, para refutá-la: mostrar uma idéia que, em sua opinião, não deriva desta fonte. Incumbir-nos-ia então, se quiséssemos preservar nossa doutrina, de mostrar a impres­são ou percepção mais viva que lhe corresponde.
Segundo, se ocorre que o defeito de um órgão prive uma pessoa de uma classe de sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar idéias correspondentes. Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um surdo dos sons. Restaurai a um deles um dos sentidos de que carecem: ao abrirdes as portas às sensações, pos­sibilitais também a entrada das idéias, e a pessoa não terá mais difi­culdade para conceber aqueles objetos. O mesmo fenômeno ocorre quando o objeto apropriado para estimular qualquer sensação nunca foi aplicado ao órgão do sentido. Um lapão ou um negro, por exemplo, não têm nenhuma noção do sabor do vinho. Apesar de haver poucos ou nenhum caso de semelhante deficiência no espírito, em que uma pessoa nunca sentiu ou que é completamente incapaz de um sentimento ou paixão próprios de sua espécie, constatamos, todavia, que a mesma observação ocorre em menor grau. Um homem de modos brandos não pode formar uma idéia de vingança ou de crueldade obstinada, nem um coração egoísta pode conceber facilmente os ápices da amizade e da generosidade. Em verdade, admitimos que outros seres podem possuir muitos sentidos dos quais não temos noção, por­que as idéias destes sentidos nunca nos foram apresentadas pela única maneira por que uma idéia pode ter acesso ao espírito, isto é, mediante o sentimento e a sensação reais.
Há, no entanto, um fenômeno contraditório que pode provar que não é absolutamente impossível que as idéias nasçam indepen­dentes de suas impressões correspondentes. Acredito que se concor­daria facilmente que as várias idéias de cores diferentes que penetram pelos olhos, ou aquelas de sons conduzidas pelo ouvido, são realmente diferentes umas das outras, embora, ao mesmo tempo, parecidas. Ora, se isto é verdadeiro a respeito das diferentes cores, deve sê-lo igual­mente para os diversos matizes da mesma cor; e cada matiz produz uma idéia diversa, independente das outras. Pois, se se negasse isto, seria possível, por contínua gradação dos matizes, passar insensivel­mente de uma cor a outra completamente distante de série; se vós não admitis a distinção entre os intermediários, não podeis, sem ab­surdo, negar a identidade dos extremos. Suponde, então, uma pessoa que gozou do uso de sua visão durante trinta anos e se tornou per­feitamente familiarizada com cores de todos os gêneros, exceto com um matiz particular do azul, por exemplo, que nunca teve a sorte de ver. Colocai todos os diferentes matizes daquela cor, exceto aquele único, defronte daquela pessoa, decrescendo gradualmente do mais escuro ao mais claro. Certamente, ela perceberá um vazio onde falta este matiz, terá o sentimento de que há uma grande distância naquele lugar, entre as cores contíguas, mais do que em qualquer outro. Ora, pergunto se lhe seria possível, através de sua imaginação, preencher este vazio e dar nascimento à idéia deste matiz particular que, todavia, seus sentidos nunca lhe forneceram? Poucos leitores, creio eu, serão de opinião que ela não pode; e isto pode servir de prova que as idéias simples nem sempre derivam das impressões correspondentes, mas esse caso tão singular é apenas digno de observação e não merece que, unicamente por ele, modifiquemos nossa máxima geral.
Eis, portanto, uma proposição que não apenas parece simples e inteligível em si mesma, mas que, se se fizer dela o uso apropriado, pode tornar toda discussão igualmente inteligível e eliminar todo jar­gão, que há muito tempo se apossou dos raciocínios metafísicos e os desacreditou. Todas as idéias, especialmente as abstratas, são natural­mente fracas e obscuras; o espírito tem sobre elas um escasso controle; elas são apropriadas para serem confundidas com outras idéias se­melhantes, e somos levados a imaginar que uma idéia determinada está aí anexada se, o que ocorre com freqüência, empregamos qualquer termo sem lhe dar significado exato. Pelo contrário, todas as impres­sões, isto é, todas as sensações, externas ou internas, são fortes e vivas; seus limites são determinados com mais exatidão e não é tão fácil confundi-las e equivocar-nos. Portanto, quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo empregado sem nenhum significado ou idéia – o que é muito freqüente – devemos apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta idéia?3 E, se for, impossível designar uma, isto servirá para confirmar nossa suspeita. E razoável, portanto, esperar que, ao trazer as idéias a uma luz tão clara, removeremos toda discussão que pode surgir sobre sua natureza e realidade.4


SEÇÃO III
DA ASSOCIAÇÃO DE IDÉIAS1


É evidente que há um princípio de conexão entre os diferentes pensamentos ou idéias do espírito humano e que, ao se apresentarem à memória ou à imaginação, se introduzem mutuamente com certo método e regularidade. E isto é tão visível em nossos pensamentos ou conversas mais sérias que qualquer pensamento particular que in­terrompe a seqüencia regular ou o encadeamento das idéias é ime­diatamente notado e rejeitado. Até mesmo em nossos mais desorde­nados e errantes devaneios, como também em nossos sonhos, nota­remos, se refletimos, que a imaginação não vagou inteiramente a esmo, porém havia sempre uma conexão entre as diferentes idéias que se sucediam. Se se transcrevesse a conversa mais solta e mais livre, notar-se-ia imediatamente alguma coisa que a ligou em todas as suas transições. E se este princípio faltasse, quem quebrou o fio da conversa poderia ainda informar-vos que havia secretamente esclarecido em seu espírito uma sucessão de pensamentos, os quais o tinham desviado gradualmente do tema da conversa. Entre os idiomas mais diferentes, mesmo naqueles em que não podemos supor a menor conexão ou comunicação, encontramos que as palavras que exprimem as idéias mais complexas quase se correspondem entre si, o que é uma prova segura de que as idéias simples, compreendidas nas idéias complexas, foram ligadas por algum princípio universal que tinha igual influência sobre todos os homens.2
Embora o fato de que as idéias diferentes estejam conectadas seja tão evidente para não ser percebido pela observação, creio que nenhum filósofo3 tentou enumerar ou classificar todos os princípios de associação, assunto que, todavia, parece digno de atenção. Para mim, apenas há três princípios de conexão entre as idéias, a saber: de semelhança, de contigüidade – no tempo e no espaço – e de causa ou efeito.
Que estes princípios servem para ligar idéias, não será, creio eu, muito duvidoso. Um quadro conduz naturalmente nossos pensamen­tos para o original;4 quando se menciona um apartamento de um edifício, naturalmente se introduz uma investigação ou uma conversa acerca dos outros.5 E, se pensamos acerca de um ferimento, quase não podemos furtar-nos a refletir sobre a dor que o acompanha.6 Entre­tanto, é difícil provar tanto para nossa como para a satisfação do leitor que esta enumeração é completa e que não há outros princípios de associação. Cabe-nos, portanto, em tal situação, recapitular vários exemplos e examinar cuidadosamente o princípio que liga mutuamente os diferentes pensamentos, e apenas detendo-nos quando tornarmos o princípio tão geral quanto possível.7 E, à medida que examinarmos outros exemplos e o fizermos com o máximo cuidado, adquiriremos a certeza de que a enumeração, estabelecida a partir de um conjunto de observações, é completa e inteira.
[Nas edições K, L, e N, esta seção continuava da seguinte maneira: “Em vez de entrar num pormenor deste gênero, o que nos con­duziria a várias e inúteis sutilezas, consideraremos alguns dos efeitos desta conexão sobre as paixões e a imaginação; poderemos principiar assim um campo de especulação mais interessante e talvez mais ins­trutivo do que o outro.]
Como o homem é um ser racional e está continuamente à procura da felicidade, que espera alcançar para a satisfação de alguma paixão ou afeição, raramente age, pensa ou fala sem propósito ou intenção. Sempre tem algum objeto em vista; embora às vezes sejam inadequados os meios que escolhe para alcançar seu fim, jamais o perde de vista e nem desperdiça seus pensamentos ou reflexões quando não espera obter nenhuma satisfação deles.
Em todas as composições geniais é, portanto, necessário que o autor tenha algum plano ou objeto; e embora possa ser desviado deste plano pela impetuosidade de seu pensamento, como numa ode, ou omiti-lo descuidadamente, como numa epístola ou num ensaio, deve aparecer algum fim ou intenção em sua primeira composição, senão na composição completa da obra. Uma obra sem um desígnio se assemelha mais a extravagâncias de um louco do que aos sóbrios esforços do gênio e do sábio.
Como esta regra não admite exceção, conclui-se que nas com­posições narrativas os eventos ou atos que o escritor relata devem estar unidos por algum elo ou laço; é preciso que estejam unidos uns aos outros na imaginação e formem uma espécie deunidade que possa situá-los em um único plano, em um único ponto de vista, e que possa ser o objeto e o fim do autor em seu primeiro empreendimento.
Este princípio de conexão entre vários eventos, formando o tema de um poema ou de uma história, pode ser diferente segundo os dis­tintos planos de um poeta ou de um historiador. Ovídio modelou seu plano sobre o princípio conectivo de semelhança. Toda transformação fabulosa produzida pelo poder miraculoso dos deuses aparece em sua obra. Não é preciso senão esta condição para que um evento convirja para seu plano original ou intenção.
Um analista ou historiador que tentasse escrever a história da Europa durante um século seria influenciado pela conexão de conti­gúidade no tempo e no espaço. Todos os eventos que aconteceram nesta porção do espaço e neste período do tempo estão compreendidos em seu desígnio, embora em outros aspectos sejam diferentes e sem relação uns com os outros. Ainda assim têm uma espécie de unidade entre toda diversidade.
Entretanto, a espécie mais habitual de relação entre os diferentes eventos que fazem parte de uma composição narrativa é a de causa e efeito; quando um historiador segue a série de ações segundo sua ordem natural, remonta às suas fontes e princípios secretos e descreve suas mais remotas conseqüências. Escolhe como tema certa porção desta grande cadeia de acontecimentos que constitui a história da humanidade; tenta tocar em sua narrativa cada elo desta cadeia. Às vezes, uma inevitável ignorância torna inúteis todos os seus esforços; às vezes preenche por conjeturas o que é deficiente em seu conhecimento; e sempre tem consciência de que sua obra é mais perfeita em função da maior continuidade de cadeia de acontecimentos que apresenta ao leitor. Ele sabe que o co­nhecimento de causas não é apenas o mais satisfatório, já que esta relação ou conexão é mais forte do que todas as outras, mas também mais ins­trutivo, pois é unicamente por este conhecimento que somos capazes de controlar eventos e governar o futuro.
Podemos agora, portanto, ter uma idéia desta unidade de ação, que tem sido bastante discutida por todos os críticos depois de Aris­tóteles sem muito êxito, talvez porque não controlavam seus gostos e sentimentos por uma filosofia rigorosa. Parece que em todas as obras, tanto épicas como trágicas, é preciso certa unidade, e que em nenhum momento podemos permitir aos nossos pensamentos de vagarem a esmo, se quisermos produzir uma obra de interesse durável à huma­nidade. Parece também que mesmo um biógrafo que escrevesse a vida de Aquiles tentaria relacionar os eventos para mostrar sua mútua dependência e relação, do mesmo modo que um poeta que fizesse da cólera deste o tema de sua narrativa.8 Não é apenas numa determinada parcela da vida que as ações de um homem dependem umas das outras, mas durante toda a sua existência, ou seja, do berço ao túmulo; é impossível quebrar um único elo, embora diminuto, desta cadeia regular sem afetar toda a série de eventos. A unidade de ação, portanto, que pode ser encontrada na biografia ou na história difere da poesia épica não em gênero, mas em grau. Na poesia épica, a conexão entre os eventos é mais próxima e mais sensível; a narrativa não abrange tão grande extensão temporal; os atores dirigem-se às pressas para uma situação notável para satisfazer à curiosidade dos leitores. Esta conduta do poeta épico conta com a situação particular da imaginação e das paixões que se verificam nesta produção. Tanto a imaginação do escritor como a do leitor é mais avivada, e as paixões são mais estimuladas do que na história, na biografia ou em todo tipo de nar­ração confinada estritamente à verdade e à realidade. Consideremos o efeito destas circunstâncias – imaginação avivada e paixões esti­muladas – que pertencem à poesia e, especialmente, ao gênero épico mais do que qualquer outra espécie de composição; e examinemos a razão pela qual elas exigem unidade mais próxima e mais estrita em sua fabulação.
Em primeiro lugar, toda poesia, que é uma espécie de pintura, nos coloca mais perto do objeto do que qualquer outro tipo de nar­rativa, o ilumina com mais força e delineia com mais distinção as menores circunstâncias que, embora pareçam supérfluas ao historia­dor, servem vigorosamente para avivar as imagens e satisfazer à ima­ginação. Se não é necessário, como na Ilíada, nos informar toda vez que o herói afivela seus sapatos e amarra sua jarreteira, será preciso, talvez, entrar em maiores minúcias que na Henriade, em que os eventos se processam com tal rapidez, que mal temos tempo para nos fami­liarizar com a cena ou com a ação. Destarte, se um poeta quisesse abranger em seu tema grande extensão temporal ou uma longa série de eventos e remontasse da morte de Heitor às duas causas mais remotas, tais como o rapto de Helena ou o julgamento de Páris, necessitaria estender em demasia seu poema para preencher esta enorme tela com pinturas e imagens convenientes. A imaginação do leitor, estimulada por tal seqüencia de descrições poéticas, e suas paixões inflamadas por uma contínua simpatia para com os atores devem en­fraquecer bem antes do fim do relato e cair em lassidão e aversão pela repetição dos mesmos movimentos violentos.
Em segundo lugar, que um poeta épico não deve descrever uma longa série de causas, aparecerá mais adiante se considerarmos uma outra razão derivada de uma propriedade ainda mais notável e mais singular das paixões. É evidente que numa composição correta todas as emoções estimuladas pelos diferentes eventos descritos e represen­tados adicionam suas forças mutuamente; além disso, enquanto os heróis estão todos empenhados numa cena comum e cada ação está fortemente ligada ao conjunto, o interesse permanece sempre vivo e as paixões passam facilmente de um objeto a outro. A forte conexão de eventos facilita, ao mesmo tempo, a passagem do pensamento ou da imaginação de um a outro e a transfusão das paixões, e mantém as emoções sempre no mesmo canal e na mesma direção. Nossa sim­patia e nosso interesse por Eva preparam o caminho para semelhante simpatia por Adão: a emoção é mantida quase intacta na transição, e o espírito apreende imediatamente o novo objeto como fortemente unido àquele que de início atraía sua atenção. Mas se o poeta quisesse fazer uma completa digressão em seu tema e se introduzisse uma nova personagem sem nenhuma ligação com as anteriores, a imagi­nação sentiria uma ruptura na transição, penetraria friamente na nova cena e se animaria lentamente; quando retornasse ao tema central do poema, passaria, por assim dizer, sobre um terreno estranho e seu interesse despertaria novamente para colaborar com os principais ato­res. O mesmo inconveniente aparece em menor grau quando o poeta descreve seus eventos a uma longa distância e liga entre si ações que, embora não sejam completamente separadas, não têm uma conexão tão forte como é necessário para propiciar a transição das paixões. Esta é a origem do relato indireto empregado na Odisséia e na Eneida: o herói é inicialmente introduzido, antes de ter sido estabelecida sua finalidade, e a seguir nos são mostrados, de modo perspectivo, os mais distantes eventos e causas. Deste modo, a curiosidade do leitor é imediatamente estimulada; os eventos se desenvolvem com rapidez e em conexão muito próxima; o interesse se mantém bastante vivo e, com o auxílio da relação próxima com os objetos, cresce sem cessar do começo ao fim da narrativa.
A mesma regra se verifica na poesia dramática; jamais é permi­tido introduzir, numa composição regular, um ator sem conexão ou que tem apenas fraca conexão com as principais personagens do relato. O interesse do espectador não pode ser desviado por cenas desarti­culadas e separadas das outras. Isto quebra o curso das paixões e impede a comunicação de várias emoções, pelas quais uma cena adi­ciona força a outra e transfere a piedade e o terror que cada uma desperta à cena seguinte, até que em sua totalidade produz a rapidez de movimento peculiar ao teatro. Como é preciso extinguir este calor afetivo para iluminar de repente uma nova cena e novas personagens sem nenhuma relação com as precedentes; como é preciso localizar uma ruptura, um hiato deveras sensível no curso das paixões pelo efeito desta ruptura no curso das idéias; e, em lugar de dirigir a sim­patia de uma cena à seguinte, ser obrigado em todo momento a des­pertar um novo interesse e a participar de uma nova cena de ação?
Embora esta regra da unidade de ação seja comum à poesia dramática e à épica, podemos ainda observar que há entre elas uma diferença digna de curiosidade. Nestas duas espécies de composição é indispensável a unidade e a simplicidade de ação para manter intacto e sem distração o interesse e a simpatia; mas, na poesia épica ou nar­rativa, esta regra se estabelece sobre um outro fundamento: a neces­sidade que se impõe a todo escritor de ter um plano ou desígnio antes de principiar qualquer dissertação ou relato e de compreender seu tema sob um aspecto geral ou uma visão unificadora que possa ser o objeto constante de sua atenção. Como o autor está completamente esquecido nas composições dramáticas, e o espectador supõe consigo mesmo estar realmente presente nas ações representadas, esta razão não intervém no palco; e pode-se introduzir um diálogo ou uma con­versação que teria podido passar nesta parte do espaço representado pela cena. Por este motivo, em todas as comédias inglesas, inclusive as de Congreve, a unidade de ação não é estritamente observada; mas o poeta pensa que é suficiente relacionar de qualquer maneira suas personagens, quer pelo sangue, quer pelo fato de elas pertencerem a uma mesma famiia; a seguir as introduz em determinadas cenas em que mostram seus temperamentos e seus caracteres sem avançar em muito a ação principal. As duplas intrigas de Terêncio são liberdades do mesmo gênero, embora em grau menor. Apesar de este procedi­mento não ser inteiramente regular, não é completamente incompatível com a natureza da comédia, em que os mecanismos das paixões não atingem tão alto como na tragédia; ao mesmo tempo, a ficção e a representação atenuam, até certo ponto, tais liberdades. Em um poema narrativo, a primeira proposição, o primeiro desígnio, limita o autor a um tema; recusar-se-iam imediatamente as digressões desta natureza como obscuras e monstruosas. Nem Boccaccio, nem La Fontaine, nem qualquer outro autor deste gênero jamais se deixaram cair em digres­sões, embora seu principal objetivo tenha sido a graça.
Retomando a comparação entre a história e a poesia épica, po­demos concluir dos raciocínios precedentes que certa unidade é ne­cessária em todas as produções, e esta não pode ser deficiente tanto na história como em qualquer outra; que na história, a conexão que une os diferentes eventos num só corpo é a relação de causa e efeito, a mesma que aparece na poesia épica; e que, nesta última composição, é preciso que esta conexão seja mais próxima e mais sensível em virtude da vivacidade da imaginação e da força das paixões que o poeta deve abarcar em sua narrativa. A guerra do Peloponeso é um tema apro­priado à história, o cerco de Atenas, a um poema épico, e a morte de Alcibíades, a uma tragédia.
Destarte, como a diferença entre a história e a poesia épica con­siste apenas nos graus de conexão que une entre si os vários eventos que compõem seu tema, será difícil, senão impossível, determinar com exatidão as fronteiras que separam um do outro. E mais uma questão de gosto que de raciocínio; podemos, talvez, desvendar com freqüencia esta unidade em um tema que, à primeira vista e segundo conside­rações abstratas, esperamos ao menos encontrar.
É evidente que Homero ultrapassa, no curso de sua narrativa, a primeira proposição de seu tema, e que a cólera de Aquiles, causa da morte de Heitor, não é a mesma que ocasionou tantos males aos gregos. Mas a força da relação que une estes dois movimentos, a ra­pidez de transição de um ao outro, o contraste9 entre os efeitos da concórdia e da discórdia entre os princípios e a curiosidade natural que temos para ver Aquiles em ação depois de tão longo repouso – este conjunto de causas não cessa de exercer influência sobre o leitor e dá ao tema suficiente unidade.
Pode-se objetar a Milton o fato de ele ter buscado suas causas numa longa distância e que a revolta dos anjos produziu a queda do homem por um encadeamento de eventos que é, ao mesmo tempo, muito longo e muito fortuito. Sem mencionar que a criação do mundo, relatada em toda a sua extensão, não é mais causa desta catástrofe que a batalha de Farsália, ou qualquer outro acontecimento que sempre tem acontecido. Além disso, se considerarmos que todos estes eventos (a revolta dos anjos, a criação do mundo e a queda do homem) são semelhantes, pois todos são miraculosos e apartados do curso ordinário da natureza; que são supostos contíguos no tempo; que se separam de todos os outros eventos e são os únicos fatos originais revelados, eles impressionam de imediato a visão e naturalmente evocam uns aos outros no pensamento e na imaginação. Se considerarmos tais circuns­tâncias em sua totalidade, verificaremos que todas estas ações parce­ladas têm unidade suficiente para serem compreendidas num único relato ou narrativa. Acrescentemos a estas razões que a revolta dos anjos e a queda do homem têm uma semelhança determinada, porque são correlatas e apresentam ao leitor a mesma moral de obediência ao nosso Criador.
Apresento estas sugestões desconexas com o fim de despertar a curiosidade dos filósofos e com a suposição, senão a firme persuasão, de que é um tema bastante prolixo, e que as numerosas operações do espírito humano dependem da conexão ou da associação de idéias aqui explicadas. Especialmente a simpatia entre as paixões e a ima­ginação mostrar-se-á talvez notável, quando observamos que as emo­ções despertadas por um objeto passam facilmente a um outro unido a ele, mas se misturam com dificuldade, ou de nenhum modo, com objetos diferentes e sem nenhuma conexão. Ao introduzir numa com­posição personagens e ações estranhas umas às outras, um autor im­previdente destrói esta comunicação de emoções, que é o único meio de interessar ao coração e despertar as paixões no grau desejado e no momento apropriado. A explicação completa destes princípios e de todas as suas conseqüências nos conduziria a raciocínios muito pro­fundos e prolixos para esta investigação. É-nos suficiente presente­mente ter estabelecido esta conclusão: os três princípios de todas as idéias são as relações de semelhança, de contiguidade ecausalidade”.]


SEÇÃO IV
DÚVIDAS CÉTICAS SOBRE AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO


PRIMEIRA PARTE
A FILOSOFIA MORAL


Todos os objetos da razão ou da investigação humanas podem dividir-se naturalmente em dois gêneros, a saber: relações de idéias e de fatos. Ao primeiro pertencem as ciências da geometria, da álgebra e da aritmética1 e, numa palavra, toda afirmação que é intuitivamente ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos dois lados, é uma proposição que exprime uma relação entre estas figuras. Que três vezes cinco é igual à metade de trinta exprime uma relação entre estes números. As proposições deste gênero podem descobrir-se pela simples operação do pensamento e não de­pendem de algo existente em alguma parte do universo. Embora nunca tenha havido na natureza um círculo ou um triângulo, as verdades demonstradas por Euclides conservarão para sempre sua certeza e evidência.
Os fatos, que são os segundos objetos da razão humana, não são determinados da mesma maneira, nem nossa evidência de sua verdade, por maior que seja, é de natureza igual à precedente. O contrário de um fato qualquer é sempre possível, pois, além de jamais implicar uma contradição, o espírito o concebe com a mesma facilidade e distinção como se ele estivesse em completo acordo com a realidade. Que o sol não nascerá amanhã é tão inteligível e não implica mais contradição do que a afirmação que ele nascerá. Pode­mos em vão, todavia, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e o espírito nunca poderia concebê-la distintamente.2
Portanto, deve ser assunto digno de nossa atenção investigar qual é a natureza desta evidência que nos dá segurança acerca da realidade de uma existência e de um fato que não estão ao alcance do testemunho atual de nossos sentidos ou do registro de nossa me­mória. E preciso frisar que este aspecto da filosofia tem sido pouco cultivado tanto pelos antigos como pelos modernos; e, portanto, nossas dúvidas e nossos erros ao realizar esta investigação tão importante são certamente os mais desculpáveis, já que marchamos através de tão difíceis caminhos sem nenhum guia ou direção.3 Na realidade, podem revelar-se úteis ao excitar a curiosidade e ao destruir esta fé cega e a segurança que são a ruína de todo raciocínio e de toda in­vestigação livre. Suponho que descobrir defeitos na filosofia comum, se os há, não é motivo de desânimo mas, pelo contrário, como é de costume, um incentivo para se tentar alguma coisa mais completa e mais satisfatória do que aquela que tem sido até agora proposta ao público.
Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação de causa e efeito. Apenas por meio desta relação ultrapas­samos os dados de nossa memória e de nossos sentidos. Se tivésseis que perguntar a alguém por que acredita na realidade de um fato que não constata efetivamente, por exemplo, que seu amigo está no campo ou na França, ele vos daria uma razão, e esta razão seria um outro fato: uma carta que recebeu ou o conhecimento de suas resolu­ções e promessas anteriores. Um homem, ao encontrar um relógio ou qualquer outra máquina numa ilha deserta, concluiria que outrora havia homens na ilha. Todos os nossos raciocínios sobre os fatos são da mesma natureza. E constantemente supõe-se que há uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele. Se não houvesse nada que os ligasse, a inferência seria inteiramente precária. A audição de uma voz articulada e de uma conversa racional na obscuridade nos dá segurança sobre a presença de alguma pessoa. Por quê? Porque estes sons são os efeitos da constituição e da estrutura do homem e estão estreitamente ligados a ela. Se analisamos todos os outros ra­ciocínios desta natureza, encontraremos que se fundam na relação de causa e de efeito e que esta relação se acha próxima ou distante, direta ou colateral. O calor e a luz são efeitos colaterais do fogo, e um dos efeitos pode ser inferido legitimamente do outro.
Portanto, se quisermos satisfazer-nos a respeito da natureza desta evidência que nos dá segurança acerca dos fatos, deveremos investigar como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito.
Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção, que o conhecimento desta relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori, porém nasce inteiramente da experiência quan­do vemos que quaisquer objetos particulares estão constantemente con­juntados entre si. Apresente-se um objeto a um homem dotado, por natureza, de razão e habilidades tão fortes quanto possível; se o objeto lhe é completamente novo, não será capaz, pelo exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir nenhuma de suas causas ou de seus efeitos. Mesmo supondo que as faculdades racionais de Adão fossem inteiramente perfeitas desde o primeiro momento, ele não poderia ter inferido da fluidez e da transparência da água que ela o afogaria, ou da luz e do calor do fogo, que este o consumiria. Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sen­tidos, tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgirão dele; nem pode nossa razão, sem o auxílio da experiência, jamais tirar uma inferência acerca da existência real e de um fato.
A proposição que estabelece que as causas e os efeitos não são des­cobertos pela razão, mas pela experiência, será prontamente admitida em relação àqueles objetos de que nos recordamos e que certa vez nos foram completamente desconhecidos, porquanto devemos ter cons­ciência de nossa absoluta incapacidade de predizer o que surgiria deles. Apresentai dois pedaços de mármore polido a um homem sem nenhum conhecimento de filosofia natural; ele jamais descobrirá que eles se aderirão de tal maneira que se requer grande força para separá-los em linha reta, embora ofereçam menor resistência à pressão lateral. Considera-se também indiscutível que o conhecimento dos eventos que têm pouca analogia com o curso corrente da natureza se obtém por meio da experiência; assim, ninguém imagina que se teria desco­berto a explosão da pólvora ou a atração da pedra-ímã por argumentos a priori. Da mesma maneira, quando se supõe que um efeito depende de um mecanismo complicado ou de elementos de estrutura desco­nhecida, não temos dificuldade em atribuir todo o nosso conhecimento à experiência. Quem será capaz de afirmar que pode dar a razão última por que o leite e o pão são alimentos apropriados ao homem e não a um leão ou a um tigre?
Mas, à primeira vista, poderia parecer que esta mesma verdade não é tão evidente em relação aos eventos que nos são familiares desde o nosso nascimento, que têm estreita analogia com todo o curso da natureza e, como se supõe, dependem das qualidades simples dos objetos, sem a intervenção de elementos de estrutura desconhecida. Desta maneira, somos levados a imaginar que poderíamos descobrir estes efeitos sem o auxílio da experiência, recorrendo apenas às ope­rações da razão. Imaginamos que, se fôssemos repentinamente lança­dos neste mundo, poderíamos de antemão inferir que uma bola de bilhar comunicaria movimento a outra ao impulsioná-la, e que não teríamos necessidade de observar o evento para nos pronunciarmos com certeza a seu respeito. E é tão grande a influência do costume que, onde ela se apresenta com mais vigor, encobre, ao mesmo tempo, nossa natural ignorância e a si mesma e, quando dá a impressão de não intervir, é unicamente porque se encontra em seu mais alto grau.
No entanto, para nos convencermos de que, sem exceção, todas as leis da natureza e todas as operações dos corpos são conhecidas apenas pela experiência, as reflexões que seguem são sem dúvida su­ficientes. Se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fôssemos solici­tados a pronunciar-nos sobre o efeito que resultará dele, sem consultar observações anteriores; de que maneira, eu vos indago, deve o espírito proceder nesta operação? Terá de inventar ou imaginar algum evento que considera como efeito do objeto; e é claro que esta invenção deve ser inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela in­vestigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela. O movimento na segunda bola de bilhar é um evento bem distinto do movimento na primeira, já que não há na primeira o menor indício da outra. Uma pedra ou um pedaço de metal levantados no ar e deixados sem nenhum suporte caem imediatamente. Mas, se consideramos o assunto a priori, desco­brimos algo nesta situação que nos pode dar origem à idéia de um movimento descendente, em vez de ascendente, ou de qualquer outro movimento na pedra ou no metal?
Do mesmo modo que a imaginação inicial ou invenção de um efeito particular é, em todas as operações naturais, arbitrária se não con­sultamos a experiência, devemos igualmente supor como tal o laço ou a conexão entre a causa e o efeito, que une um ao outro e faz com que seja impossível que qualquer outro efeito possa resultar da operação desta causa. Quando vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direção de outra, mesmo se suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugerido como o resultado de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam igualmente resultar desta causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda em qualquer linha ou direção? Todas estas su­posições são compatíveis e concebíveis. Por que, então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível que o resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento para esta preferência.
Em uma palavra: todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori. E mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a conjunção do efeito com sua causa deve parecer igualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razão devem parecer igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação e da experiência.
Daqui, podemos descobrir o motivo pelo qual nenhum filósofo racional e modesto jamais pretendeu indicar a causa última de qual­quer fenômeno natural, ou mostrar distintamente a ação do poder que produz qualquer efeito singular no universo. Concordar-se-á que o esforço máximo da razão humana consiste em reduzir à sua maior simplicidade os princípios que produzem os fenômenos naturais; e restringir os múltiplos efeitos particulares a um pequeno número de causas gerais, mediante raciocínios baseados na analogia, na experiên­cia e na observação. No entanto, com referência às causas das causas gerais, em vão tentaríamos descobri-las, pois jamais ficaríamos satis­feitos com qualquer explicação particular que lhes déssemos. Estas fontes e estes princípios últimos estão totalmente vedados à curiosi­dade e à investigação humanas. A elasticidade, a gravidade, a coesão das partes, a comunicação de movimentos por impulso são provavel­mente as causas e princípios últimos que sempre descobriremos na natureza; e podemos considerar-nos suficientemente felizes se, me­diante investigação e raciocínio exatos, podemos subir dos fenômenos particulares até, ou quase até, os princípios gerais. Enquanto a filosofia natural mais perfeita apenas diminui uma pequena parcela de nossa ignorância, a filosofia mais perfeita – do gênero moral ou metafísico – revela-nos, talvez, que nossa ignorância se estende a domínios mais vastos. Deste modo, resulta de toda a filosofia a constatação da cegueira e debilidade humanas que se nos apresentam em todo momento por mais que tentemos disfarçá-las.
Nem a geometria, com toda exatidão dos raciocínios que a fez merecidamente célebre, é capaz de remediar este defeito e de nos con­duzir ao conhecimento das causas últimas, quando é solicitada para auxiliar a filosofia natural. Cada setor das matemáticas aplicadas fun­ciona sobre a suposição de que a natureza estabeleceu certas leis em seus procedimentos, e os raciocínios abstratos são usados tanto para auxiliar a experiência na descoberta dessas leis como para determinar a ação dessas leis em casos particulares, quando ela depende de graus exatos de distância e de quantidade. Assim, por exemplo, uma lei de movimentos descoberta pela experiência é a que diz que o momento ou a força de um corpo em movimento está em razão ou proporção de sua massa e de sua velocidade, e, por conseguinte, que uma pequena força pode remover os maiores obstáculos ou levantar os maiores pesos se, mediante uma invenção ou mecanismo, pudermos aumentar a ve­locidade da força até fazê-la superar a força antagônica. A geometria auxilia-nos a aplicar esta lei, dando-nos as dimensões exatas de todas as partes e de todas as figuras que fazem parte de qualquer tipo de máquinas, mas, ainda assim, a descoberta da própria lei é devida uni­camente à experiência; e todos os raciocínios abstratos do mundo não poderão jamais nos levar a dar um passo para chegar a conhecê-la. Quando raciocinamos a priori e consideramos um objeto ou uma causa, tal como aparece ao espírito, ou seja, independente de toda observação, jamais poderia sugerir-nos a idéia de um objeto distinto, como por exemplo seu efeito, e menos ainda mostrar-nos a inseparável e invio­lável conexão entre eles. É preciso que um homem seja muito sagaz para poder descobrir através do raciocínio que o cristal é o efeito do calor e o gelo o efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com o funcionamento destes estados dos corpos.


SEGUNDA PARTE


Entretanto, não chegamos ainda a nenhuma resposta satisfatória a respeito da primeira questão proposta. Cada solução gera uma nova questão tão difícil como a precedente e nos conduz a novas investi­gações. Quando se pergunta: qual é a natureza de todos os nossos racio­cínios sobre os fatos? A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na relação de causa e efeito. Quando se pergunta: qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões sobre essa relação? Pode-se replicar numa palavra: a experiência. Mas, se ainda continuar­mos com a disposição de esmiuçar o problema e insistirmos: qual é o fundamento de todas as conclusões derivadas da experiência? Esta pergunta implica uma nova questão que pode ser de solução e explicação mais difíceis. Os filósofos que se dão ares de sabedoria superior e suficiência têm uma tarefa difícil quando se defrontam com pessoas com disposições inquisitivas, que os desalojam de todos os esconderijos em que se refugiam, e que estão seguras de levá-los finalmente a um perigoso dilema, O melhor recurso para evitar esta confusão consiste em ter mo­destas pretensões e descobrir nós mesmos as dificuldades antes que nos sejam objetadas. Desta maneira, faremos de nossa ignorância uma virtude.
Contentar-me-ei nesta seção com uma tarefa fácil: pretenderei apenas dar uma resposta negativa à questão aqui proposta. Digo, pois, que mesmo depois que temos experiência das operações de causa e de efeito, nossas conclusões desta experiência nãoestão fundadas sobre raciocínios ou sobre qualquer prócesso do entendimento. Devemos tratar de explicar e defender esta posição.
Certamente, deve-se admitir que a natureza nos tem mantido a uma grande distância de todos os seus segredos, e que apenas nos tem concedido o conhecimento de algumas qualidades superficiais dos objetos, enquanto ela nos esconde os poderes e princípios dos quais depende inteiramente a ação desses objetos. Nossos sentidos nos informam a cor, o peso e a consistência do pão, porém, nem os sentidos e nem a razão jamais podem informar-nos sobre as qualidades que o fazem apropriado para alimentar e sustentar o corpo humano. A visão e o tato nos dão uma idéia do movimento real dos corpos, porém não podemos formar o mais remoto conceito da maravilhosa força ou poder que é capaz de manter indefinidamente em movimento um corpo, e que este nunca a perde, mas a comunica a outros. Mas, não obstante esta ignorância dos poderes1 e princípios naturais, sempre presumimos quando vemos qualidades sensíveis análogas que elas têm poderes ocultos análogos, e esperamos que a estas seguirão efeitos semelhantes àqueles que já temos experimentado. Se nos fosse mostrado um corpo de cor e consistência análogas às do pão que havíamos comido anteriormente, não teríamos nenhum escrúpulo em repetir o experimento, prevendo com certeza que ele nos alimentará e nos sus­tentará de maneira semelhante. Ora, eis um processo do espírito e do pensamento cujo fundamento gostaria de conhecer. Toda a gente está de acordo que não se conhece nenhuma conexão entre as qualidades sensíveis e os poderes ocultos e, por conseguinte, o espírito não é levado a tirar uma conclusão sobre a conjunção constante e regular daquelas, tendo por base algo que possa conhecer na natureza destas. Pode-se admitir que a experiência passada dá somente uma informação direta e segurasobre determinados objetos em determinados períodos do tempo, dos quais ela teve conhecimento. Todavia, é esta a principal questão sobre a qual gostaria de insistir: porque esta experiência tem de ser estendida a tempos futuros e a outros objetos que, pelo que sabemos, unicamente são similares em aparência. O pão que outrora comi alimentou-me, isto é, um corpo dotado de tais qualidades sen­síveis estava, a este tempo, dotado de tais poderes desconhecidos. Mas, segue-se daí que este outro pão deve também alimentar-me como ocorreu na outra vez, e que qualidades sensíveis semelhantes devem sempre ser acompanhadas de poderes ocultos semelhantes? A conse­qüência não parece de nenhum modo necessária. Pelo menos, deve-se reconhecer que aqui o espírito tira uma conseqüência; que deu um certo passo; que há um processo do pensamento e uma inferência que necessitam de uma explicação. Estas duas proposições não são de ne­nhum modo iguais: encontrei que tal objeto sempre tem sido acompanhado por tal efeito, e prevejo que outros objetos que são em aparência semelhantes, serão acompanhados por efeitos semelhantes. Concederei, se vós permitis, que uma das proposições pode ser legitimamente inferida da outra: sei, de fato, que ela sempre se infere. Mas, se vós insistis em que a inferência é feita por uma cadeia de raciocínios, desejaria que vós construísseis este raciocínio. A conexão entre estas proposições não é intuitiva. Requer-se um termo médio que permita ao espírito extrair tal inferência, se é que, verdadeiramente, é extraída mediante raciocínio e argumentos. Qual é o termo médio? Devo confessar, é algo que ultrapassa minha compreensão, e cabe mostrá-lo por aqueles que afirmam que realmente existe e que é a origem de todas as nossas conclusões acerca dos fatos.
Certamente, este argumento negativo pode tornar-se inteiramen­te convincente no decorrer do tempo, se muitos filósofos hábeis e perspicazes dirigirem suas investigações neste sentido, e se ninguém for capaz de descobrir alguma proposição conectiva ou algum degrau intermediário que apóie o entendimento nesta conclusão. Mas, como se trata de dificuldade recente, os leitores não devem confiar em de­masia na sua própria sagacidade a ponto de concluir que um argu­mento realmente não existe porque escapa à investigação. Por esta razão, é preciso empreender pesquisa mais difícil, e, por enumeração de todos os ramos de conhecimento humano, tratar de mostrar que nenhum deles pode proporcionar semelhante argumento.
Todos os raciocínios dividem-se em duas classes: raciocínios de­monstrativos, que se referem às relações de idéias, e os raciocínios morais (ou prováveis) que se referem às questões de fato e de existência. Parece evidente que os últimos não englobam argumentos demonstrativos, pois não é con­traditório o fato de que o curso da natureza pode modificar-se e que um objeto, aparentemente semelhante aos já observados, possa ser acompa­nhado de efeitos diferentes ou contrários. Não posso conceber clara e distintamente que um corpo que tomba das nuvens – semelhante em todos aspectos ao da neve – tenha, todavia, sabor de sal e queime como o fogo? Há proposição mais inteligível do que esta: todas as árvores florescerão em dezembro-janeiro e definharão em maio-junho? Portanto, considera-se inteligível toda proposição concebida distintamente e sem contradição e, por conseguinte, jamais sua falsidade é mostrada por ar­gumento demonstrativo ou raciocínio abstrato a priori.
Entretanto, se os argumentos nos levarem a confiar na experiên­cia e fazê-la padrão de nosso juízo futuro, deveremos considerá-los apenas prováveis, isto é, referentes às questões de fato e de existência real, de acordo com a divisão acima mencionada. Mas, se nossa explicação desta classe de raciocínio é considerada sólida e satisfatória, verificaremos que de fato não existe tal tipo de argumento. Temos dito que todos os argumentos referentes à existência se fundam na relação de causa e efeito; que nosso conhecimento daquela relação provém inteiramente da experiência; e que todas as nossas conclusões experimentais decorrem da suposição que o futuro estará em confor­midade com o passado. Portanto, tentar provar a última conjetura, por argumentos prováveis, por argumentos referentes à existência, con­siste, certamente, em girar num círculo e dar por admitido o que pre­cisamente se problematiza.
Em verdade, todos os argumentos derivados da experiência se fundam na semelhança que constatamos entre objetos naturais e que nos induz a esperar efeitos semelhantes àqueles que temos visto re­sultar de tais objetos. Apesar de somente um bobo ou um louco – e ninguém mais! – pretender discutir a autoridade da experiência ou rejeitar este grande guia da vida humana, é lícito, contudo, admitir que um filósofo tenha ao menos a curiosidade de examinar qual é o princípio da natureza humana que dota a experiência de tão forte autoridade e leva-nos a aproveitar da semelhança estabelecida pela natureza entre diversos objetos. De causas que parecem semelhantes esperamos efeitos semelhantes. E este o resultado de todas as nossas conclusões experimentais. Ora, parece evidente que se esta conclusão fosse reproduzida pela razão, ela seria tão perfeita desde o início e a partir de um único caso, do que após uma longa série de experimentos. Mas as coisas ocorrem de modo bem diverso. Não há nada mais se­melhante do que os ovos; todavia, ninguém espera, por causa desta aparente semelhança, idêntico gosto e sabor em todos os ovos. E é somente depois de uma longa série de experimentos uniformes, sobre qualquer gênero dado, que nos tornamos confiantes e seguros em re­lação a um evento particular. Ora, onde está o processo de raciocínio que, de um único caso, tira uma conclusão tão diferente daquele que infere de cem casos que não são de modo algum diferentes do pri­meiro? Proponho este problema visando, ao mesmo tempo, obter in­formação e suscitar dificuldades. Não consigo localizar, não consigo imaginar tal raciocínio. Mas mantenho meu espírito sempre aberto à instrução, se alguém quiser dignar-se a me conceder.
Poder-se-ia dizer que, de certo número de experimentos unifor­mes, inferimos uma conexão entre as qualidades sensíveis e os poderes ocultos; o que, devo confessar, parece enunciar a mesma dificuldade, em termos diferentes. A questão reaparece: sobre qual processo de argumentação se funda esta inferência? Onde está o meio-termo, as idéias intermediárias que unem proposições tão distantes entre si? Tem-se admitido que a cor, a consistência e outras qualidades sensíveis do pão não parecem ter em si mesmas nenhuma conexão com os poderes ocultos da nutrição e da subsistência.
De outro modo, poderíamos inferir esses poderes ocultos a partir da primeira aparição destas qualidades sensíveis e sem o auxílio da experiência, contrariamente à opinião de todos os filósofos e contra­riamente à evidência do fato. Tal é, pois, nosso estado natural de ignorância em relação aos poderes e à influência de todos os objetos. Como isto é remediado pela experiência? Ela apenas nos mostra certo número de efeitos uniformes resultantes de certos objetos e nos ensina que esses objetos particulares, nessa época determinada, estavam do­tados de tais poderes e de tais forças. Quando aparece um novo objeto dotado de qualidades sensíveis semelhantes, esperamos poderes e for­ças semelhantes e esperamos também um efeito análogo. De um corpo igual ao pão em cor e consistência, esperamos alimentação e subsis­tência análogas. Eis, portanto, uma etapa ou processo do espírito que necessita de uma explicação. Quando uma pessoa afirma: tenho encon­trado em todos os casos anteriores tais qualidades sensíveis conjugadas com tais poderes ocultos; e quando assevera: qualidades sensíveis semelhantes estarão sempre conjugadas com poderes ocultos semelhantes, não pode ser acusada de tautologia, pois estas proposições diferem em todos os aspectos. Dizeis que uma proposição é inferida da outra, porém deveis admitir que a inferência não é intuitiva, nem tampouco demonstrativa. De que natureza é ela então? Responder que deriva da experiência significa cometer uma petição de princípio. Porque todas as inferências provenientes da experiência supõem, como seu fundamento, que o futuro se assemelhará ao passado, que poderes semelhantes estarão conjugados com qualidades sensíveis semelhantes. Se subsistir qual­quer dúvida de que o curso da natureza pode mudar e que o passado não pode servir de modelo ao futuro, toda experiência se tornaria inútil e não geraria nenhuma inferência ou conclusão. E inconcebível, portanto, que nenhum argumento tirado da experiência possa provar a semelhança do passado ao futuro, já que estes argumentos se baseiam na suposição daquela semelhança.2 Concordais que o curso das coisas tenha sido sempre tão regular. Apenas esta constatação, sem novo argumento ou inferência, não é prova suficiente de que no futuro continuará assim. Em vão pretendereis ter conhecido a natureza dos corpos a partir de vossa experiência passada. Sua natureza oculta e, por conseguinte, todos os seus efeitos e toda sua ação podem mudar, sem que haja qualquer modificação em suas qualidades sensíveis. Cer­tamente, isto ocorre algumas vezes, e com relação a alguns objetos. Por que não poderia ocorrer sempre, e com relação a todos os objetos? Qual lógica, qual processo de raciocínio vos assegura contra esta con­jetura? Minha prática, dizeis, refuta minhas dúvidas. Mas, neste caso, confundis o significado de minha questão. Como pessoa que age, estou muito satisfeito a este respeito; mas, como filósofo dotado de alguma curiosidade – não direi ceticismo – quero saber o fundamento desta inferência. Nenhuma leitura, nenhuma investigação, tem sido todavia capaz de remover minha dificuldade, ou de dar-me satisfação num assunto de tanta importância. Posso fazer algo melhor do que propor a dificuldade ao público, apesar de ter poucas esperanças de obter uma solução? Deste modo, pelo menos, teremos consciência de nossa ignorância, se não ampliarmos nosso conhecimento.
Reconheço que, quando alguém conclui que um argumento não existe porque escapou de sua investigação, é acusado de imperdoável arrogância. Reconheço também que, apesar de várias gerações de sá­bios se terem dedicado infrutiferamente pesquisando um objeto, seria, talvez, precipitado concluir afirmando que ele ultrapassa toda com­preensão humana. Mesmo se examinássemos todas as fontes de nosso conhecimento e concluíssemos que são inadequadas para um tal as­sunto, pode ainda perdurar a suspeita de que a enumeração não é completa ou o exame não é exato. Mas, em relação ao tema que nos ocupa, há algumas reflexões que parecem remover toda acusação de arrogância ou a suspeição de um equívoco.
Certamente, os camponeses mais ignorantes e estúpidos – até os bebês e as bestas irracionais – se aperfeiçoam pela experiência e adquirem conhecimento das qualidades dos objetos naturais, obser­vando os efeitos que resultam deles. Quando uma criança sentiu a sensação da dor ao tocar a chama de uma vela, terá cuidado de não pôr mais sua mão perto de outra vela, pois ela esperará um efeito semelhante de uma causa que é semelhante em suas qualidades e aparências sensíveis. Se afirmais, contudo, que o entendimento da criança chega a esta conclusão por algum processo de argumento ou de raciocínio, posso legitimamente pedir-vos que se mostre este ar­gumento, e não tendes qualquer pretexto para recusar um pedido tão justo. Não podeis dizer que o argumento é abstruso e que possivel­mente escapa à investigação, desde que confessais que ele é evidente até mesmo para a capacidade de um simples bebê. Se hesitais, contudo, por um momento, ou se, depois da reflexão, produzis um argumento complicado ou profundo, de certa maneira abandonais o problema e confessais que não é o raciocínio que nos induz a supor que o passado se assemelha ao futuro e a esperar efeitos semelhantes de causas que são, aparentemente, semelhantes. Esta é a proposição que pretendia reforçar na presente seção. Se estou certo, não pretendo ter feito qual­quer descoberta considerável. Se estou errado, devo reconhecer para mim mesmo que sou realmente um estudante muito atrasado, desde que não posso descobrir um argumento que, parece-me, era perfeita­mente conhecido muito antes de eu ter saído de meu berço.


SEÇÃO V
SOLUÇÃO CÉTICA DESTAS DÚVIDAS


PRIMEIRA PARTE


Tanto a paixão filosófica como a paixão religiosa parecem ex­postas – embora procurem extirpar nossos vícios e corrigir nossos hábitos – ao inconveniente, quando manejadas com imprudência, de servirem apenas para encorajar uma inclinação predominante e con­duzir o espírito resolutamente na direção que previamente mais o atraia, devido às tendências e inclinações do temperamento natural. Certamente, enquanto aspiramos à magnânima firmeza do saber filo­sófico e tentamos encerrar nossos prazeres nos limites de nosso próprio espírito, podemos, finalmente, tornar nossa filosofia, como aquela de Epicteto e outros estóicos, num sistema mais refinado de egoísmo e persuadir-nos racionalmente de nos desligar de toda virtude como também de todos os prazeres sociais. Enquanto refletimos a propósito da vaidade da vida humana e pensamos na natureza fútil e transitória das riquezas e das honras, estamos, talvez, durante todo este tempo, lisonjeando nossa indolência natural que, por aversão à azáfama do mundo e à fadiga dos negócios, procura um pretexto racional para entregar-se completa e livremente à preguiça. Há, contudo, uma cor­rente filosófica que parece menos exposta a este inconveniente, pois ela não se liga a nenhuma paixão desordenada do espírito e nem se alia a qualquer tendência ou propensão natural: é a filosofia acadêmica ou cética. Os acadêmicos falam sempre da dúvida e da suspensão do juízo, do risco das resoluções apressadas, em confinar as investigações do entendimento a estreitos limites e em renunciar a todas as espe­culações que transbordam as fronteiras da vida e da prática cotidianas. Nada, por conseguinte, pode ser mais contrário a tal filosofia do que a indolente letargia do espírito, sua atrevida arrogância, suas elevadas pretensões e sua credulidade supersticiosa. Toda paixão é mortificada por ela, exceto o amor à verdade; e esta paixão não é jamais, nem pode ser, elevada a um grau demasiado alto. E surpreendente, todavia, que esta filosofia, que em quase todos os aspectos deve ser inofensiva e inocente, seja o objeto de tantas acusações e de tantas censuras in­fundadas. Mas, talvez, a própria circunstância que a torna tão inocente seja justamente o que a expõe ao ódio e ao ressentimento públicos. Porque ela não adula nenhuma paixão desordenada, não obtém muitos adeptos; porque ela se opõe a tantos vícios e tantas tolices, levanta contra si um grande número de adversários, que a estigmatizam como profana, libertina e irreligiosa.
Não temos necessidade de recear que esta filosofia, enquanto trata de limitar nossas investigações à vida diária, solape os raciocínios da vida diária e estenda suas dúvidas até o ponto de destruir toda ação como também toda especulação. A natureza manterá eternamente seus direitos e prevalecerá sobre todos os raciocínios abstratos.1 Em­bora devêssemos concluir, a exemplo da seção anterior, que em todos os raciocínios derivados da experiência o espírito avança sem apoiar-se em argumentos ou processo do entendimento, não há perigo que estes raciocínios, dos quais depende quase todo conhecimento, sejam afe­tados por tal descoberta. Se o espírito não é levado a dar este passo por um argumento, deve ser persuadido por outro princípio de igual peso e autoridade; e este princípio manterá sua influência contanto que a natureza humana permaneça invariável. Vale a pena investigar qual é a natureza deste princípio.
Suponde que um homem, dotado das mais poderosas faculdades racionais, seja repentinamente transportado para este mundo; certa­mente, notaria de imediato a existência de uma contínua sucessão de objetos e um evento acompanhado por outro, mas seria incapaz de descobrir algo a mais. De início, não seria capaz, mediante nenhum raciocínio, de chegar à idéia de causa e efeito, visto que os poderes particulares que realizam todas as operações naturais jamais se revelam aos sentidos; nem é razoável concluir, apenas porque um evento em determinado caso precede outro, que um é a causa e o outro, o efeito. Esta conjunção pode ser arbitrária e acidental. Não há base racional para inferir a existência de um pelo aparecimento do outro. E, numa palavra, aquele homem, desprovido de experiência, jamais poderia conjeturar ou raciocinar sobre qualquer questão de fato, nem teria segurança de algo que não estivesse imediatamente presente à sua memória ou aos seus sentidos.
Suponde de novo que o mesmo homem tenha adquirido mais experiência e que tenha vivido o suficiente no mundo para observar que os objetos ou eventos familiares estão constantemente ligados; qual é a conseqüência desta experiência? Imediatamente infere a exis­tência de um objeto pelo aparecimento do outro. Entretanto, não ad­quiriu, com toda a sua experiência, nenhuma idéia ou conhecimento do poder oculto, mediante o qual um dos objetos produziu o outro; e não será um processo do raciocínio que o obriga a tirar esta inferência. Mas ele se encontra determinado a tirá-la; e mesmo se ele fosse per­suadido de que seu entendimento não participa da operação, conti­nuaria pensando o mesmo, porquanto há um outro princípio que o determina a tirar semelhante conclusão.
Este princípio é o costume ou o hábito. Visto que todas as vezes que a repetição de um ato ou de uma determinada operação produz uma propensão a renovar o mesmo ato ou a mesma operação, sem ser impelida por nenhum raciocínio ou processo do entendimento, dizemos sempre que esta propensão é o efeito do costume. Utilizando este termo, não supomos ter dado a razão última de tal propensão. lndicamos apenas um principio da natureza humana, que é univer­salmente reconhecido e bem conhecido por seus efeitos. Talvez não possamos levar nossas investigações mais longe e nem aspiramos dar a causa desta causa; porém, devemos contentar-nos com que o costume é o último princípio que podemos assinalar em todas as nossas con­clusões derivadas da experiência. Já é, contudo, satisfação suficiente poder chegar até aqui sem irritar-nos com nossas estreitas faculdades, estreitas porque não nos levam mais adiante. Certamente, temos aqui ao menos uma proposição bem inteligível, senão uma verdade, quando afirmamos que, depois da conjunção constante de dois objetos, por exemplo, calor e chama, peso e solidez, unicamente o costume nos determina a esperar um devido ao aparecimento do outro. Parece que esta hipótese é a única que explica a dificuldade que temos de, em mil casos, tirar uma conclusão que não somos capazes de tirar de um só caso, que não discrepa em nenhum aspecto dos outros. A razão não é capaz de semelhante variação. As conclusões tiradas por ela, ao considerar um círculo, são as mesmas que formaria examinando todos os círculos do universo. Mas ninguém, tendo visto somente um corpo se mover depois de ter sido impulsionado por outro, poderia inferir que todos os demais corpos se moveriam depois de receberem impulso igual. Portanto, todas as inferências tiradas da experiência são efeitos do costume e não do raciocínio.2
O costume é, pois, o grande guia da vida humana. E o único princípio que torna útil nossa experiência e nos faz esperar, no futuro, uma série de eventos semelhantes àqueles que apareceram no passado. Sem a influência do costume, ignoraríamos completamente toda ques­tão de fato que está fora do alcance dos dados imediatos da memória e dos sentidos. Nunca poderíamos saber como ajustar os meios em função dos fins, nem como empregar nossas faculdades naturais para a produção de um efeito. Seria, ao mesmo tempo, o fim de toda ação como também de quase toda especulação.3
Mas aqui deve ser conveniente notar que, embora nossas con­clusões derivadas da experiência nos levem além de nossa memória e de nossos sentidos e nos assegurem da realidade de fatos que ocor­reram em lugares mais distantes e em épocas remotas, é necessário que um fato esteja sempre presente aos sentidos e à memória, do qual podemos de início partir para tirar essas conclusões. Se um homem encontrasse num país deserto os remanescentes de edifícios suntuosos, concluiria que o país, em tempos remotos, tinha sido cultivado por habitantes civilizados; mas, se nada desta natureza lhe ocorresse, ja­mais poderia chegar a semelhante inferência. Pela história, conhecemos os eventos de épocas passadas; todavia, devemos prosseguir consul­tando os livros que contêm estes ensinamentos e, a partir daí, remontar nossas inferências de um testemunho a outro até chegar às testemunhas oculares e aos espectadores desses eventos remotos. Numa palavra, se não partirmos de um fato presente à memória ou aos sentidos, nossos raciocínios serão puramente hipotéticos; e seja qual for o modo como estes elos particulares estejam ligados entre si, toda a cadeia de inferência não teria nada que lhe servisse de apoio e jamais por meio dela poderíamos chegar ao conhecimento de uma existência real. Se vos perguntasse por que acreditais em determinado fato que relatais, deveis indicar-me alguma razão; e esta razão será um outro fato em conexão com o primeiro. Entretanto, como não podeis proceder desta maneira in infinitum, deveis finalmente terminar por um fato presente a vossa memória ou aos vossos sentidos, ou deveis admitir que vossa crença é inteiramente sem fundamento.
Qual é, portanto, a conclusão de toda a questão? É simples; no entanto, deve-se confessar que ela se acha muito distante das teorias filosóficas correntes. Toda crença, em matéria de fato e de existência real, procede unicamente de um objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção costumeira entre esse e algum outro objeto. Ou, em outras palavras, como o espírito tem encontrado em numerosos casos que dois gêneros quaisquer de objetos – a chama e o calor, a neve e o frio – sempre têm estado em conjunção, se, de novo, a chama ou a neve se apresentassem aos sentidos, o espírito é levado pelo costume a esperar calor ou frio, e a acreditar que esta qualidade existe realmente e que se manifestaria se estivesse mais próxima de nós.4 Esta crença é o resultado necessário de colocar o espírito em determinadas circunstâncias. E uma operação da alma tão inevitável como quando nos encontramos em determinada situação para sentir a paixão do amor quando recebemos benefícios; ou a de ódio quando nos defrontamos com injustiças. Todas estas operações são uma espécie de instinto natural que nenhum raciocínio ou processo do pensamento e do entendimento é capaz de produzir ou de impedir.5
A esta altura, poderíamos perfeitamente terminar nossas pes­quisas filosóficas. Na maioria dos problemas jamais poderíamos adian­tar um único passo; e em todas as questões deveríamos terminar aqui, depois das mais incessantes e curiosas investigações. Mas ainda nossa curiosidade será perdoável, talvez digna de elogio, se nos levar a in­vestigações mais avançadas e nos fizer examinar com maior exatidão a natureza desta crença e desta conjunção costumeira, isto é, de onde ela procede. Por este meio podemos encontrar explicações e analogias que satisfarão, ao menos, àqueles que amam as ciências abstratas e se contentam com especulações que, por mais rigorosas que sejam, ainda podem conservar certo grau de dúvida e de incerteza. Quanto aos leitores de gosto diverso, o resto desta seção não lhes é destinada, e, se eles não a lerem, ainda assim podem compreender perfeitamente as investigações posteriores.


SEGUNDA PARTE


Não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa ultrapassar o estoque primitivo de idéias fornecidas pelos sentidos externos e internos, ela tem poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir estas idéias em todas as variedades da ficção e da fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de eventos com toda aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo e um lugar particulares, concebê-los como existentes e des­crevê-los com todos os pormenores que correspondem a um fato histórico, no qual ela acredita com a máxima certeza. Em que consiste, pois. a diferença entre tal ficção e a crença? Ela não se localiza sim­plesmente em uma idéia particular anexada a uma concepção que obtém nosso assentimento, e que não se encontra em nenhuma ficção conhecida. Pois, como o espírito tem autoridade sobre todas as suas idéias, poderia voluntariamente anexar esta idéia particular a uma ficção e, por conseguinte, seria capaz de acreditar no que lhe agradasse, embora se opondo a tudo que encontramos na experiência diária. Po­demos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo, mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vez existido.
Conclui-se, portanto, que a diferença entre a ficção e a crença se localiza em algum sentimento ou maneira de sentir, anexado à última e não à primeira, que não depende da vontade e não pode ser mani­pulado a gosto. É preciso que a natureza a desperte como os outros sentimentos; é preciso que ela nasça da situação particular em que o espírito se encontra em cada conjuntura particular. Todas as vezes que um objeto se apresenta à memória ou aos sentidos, pela força do costume, a imaginação é levada imediatamente a conceber o objeto que lhe está habitualmente unido; esta concepção é acompanhada por uma maneira de sentir ou sentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a natureza da crença.1 Visto que nossa mais firme crença sobre qualquer fato sempre admite uma concepção que lhe é contrária, não haveria, portanto, nenhuma diferença entre nosso assentimento ou rejeição de qualquer concepção, se não houvesse algum sentimento distinguindo uma da outra. Se vejo, por exemplo, uma bola de bilhar deslizar em direção de outra numa mesa polida, posso imaginar com clareza que uma parará ao chocar-se com a outra. Esta concepção não implica contradição, porém a sinto muito diferente da concepção pela qual me represento o impulso e a comunicação do movimento de uma bola a outra.
Se tentássemos uma definição2 deste sentimento, veríamos, talvez, que se trata de tarefa muito difícil, senão impossível; da mesma ma­neira como se tentássemos definir a sensação de frio ou a paixão de cólera a uma criatura que nunca teve a experiência destes sentimentos. Crença é o nome verdadeiro e próprio desta maneira de sentir; nin­guém jamais se encontra em dificuldade para saber o significado da­quele termo, porque cada um está, em todo momento, consciente do sentimento que representa. Sem dúvida, não seria impróprio tentar uma descrição deste sentimento esperando chegar, por este meio, a algumas analogias que poderiam fornecer uma explicação mais per­feita. Digo, pois, que a crença não é nada senão uma concepção de um objeto mais vivo, mais vivido, mais forte, mais firme e mais estável que aquela que a imaginação, por si só, seria capaz de obter. Uso esta variedade de termos, embora tão pouco filosófica, com a única intenção de exprimir este ato de espírito que nos revela realidades, ou que se considera como tal, mais presentes a nós que as ficções, que as faz pensar mais no pensamento e lhes dá uma influência superior às pai­xões e à imaginação. Desde que concordamos no tocante à coisa, é desnecessário discutir acerca dos termos. A imaginação governa todas as suas idéias e pode uni-las, misturá-las e variá-las de todas as formas possíveis. Pode conceber objetos fictícios em todas as situações de espaço e de tempo. Pode colocá-los de certa maneira diante de nossos olhos com suas próprias cores, exatamente como se houvessem exis­tido. Mas, como é impossível que essa faculdade da imaginação possa jamais, por si mesma, converter-se em crença, é evidente que a crença não consiste na natureza particular ou na ordem da idéias, mas namaneira como o espírito as concebe e as sente. Confesso que é impos­sível explicar com perfeição este sentimento ou esta maneira de con­ceber. Podemos usar palavras que expressam algo parecido. Mas o seu nome verdadeiro e próprio, como já dissemos, écrença: termo que cada um compreende suficientemente na vida corrente. Em filosofia, não podemos ir além da seguinte afirmação: crença é qualquer coisa sentida pelo espírito, que distingue as idéias dos juízos das ficções da imaginação. Ela lhes dá maior peso e influência; as faz parecer de maior importância; as reforça no espírito e as estabelece como prin­cípios diretivos de nossas ações. Ouço agora, por exemplo, a voz de uma pessoa conhecida, e o som parece vir do quarto contíguo. Esta impressão dos meus sentidos conduz imediatamente meu pensamento à pessoa e, ao mesmo tempo, a todos os objetos circundantes. Eu os pinto para mim mesmo como existentes atualmente e com as próprias qualidades e relações que já sabia que possuíam. Estas idéias se apo­deram de meu espírito mais depressa que as idéias de um castelo encantado. Sinto-as de modo muito diferente, e sua influência é bem maior, em todos os pontos de vista, tanto para produzir prazer e dor como alegria e tristeza.
Consideremos, pois, esta doutrina em toda a sua extensão e con­cedamos que o sentimento da crença nada mais é do que uma con­cepção mais intensa e mais firme do que aquele que acompanha as puras ficções da imaginação, e que esta maneira de conceber nasce de uma conjunção costumeira do objeto com alguma coisa presente à memória e aos sentidos. Não será difícil, creio eu, com estas conjeturas, encontrar outras operações do espírito que lhe sejam análogas e as­cender deste fenômeno a princípios ainda mais gerais.
Já temos observado que a natureza estabeleceu conexões entre as idéias particulares, e que uma idéia, logo que aparece aos nossos pensamentos, introduz sua correlata e dirige nossa atenção na direção dela, mediante um movimento suave e insensível. Estes princípios de conexão ou de associação foram por nós reduzidos a três, a saber: semelhançacontiguidade e causalidade, que são os únicos laços que unem entre si nossos pensamentos e que engendram a série regular de re­flexão ou do discurso que, em maior ou menor grau, se realiza entre todos os homens. Ora aqui surge um problema do qual dependerá a solução da presente dificuldade. Admitindo-se que em todas as rela­ções, quando um dos objetos é revelado aos sentidos ou à memória, o espírito não é apenas induzido a conceber seu correlato, mas o con­cebe de maneira mais firme e mais forte, indagamos se esta nova concepção poderia ser alcançada de outro modo? Parece-nos que é o que ocorre com a crença originada da relação de causa e efeito. Ora, se o mesmo fenômeno se verifica em outras relações ou princípios de associação, poder-se-ia considerá-las uma lei geral ocorrendo em todas as operações do espírito.
Portanto, podemos constatar, como primeiro experimento em vis­ta de nossos fins atuais, que, quando nos defrontamos com o retrato de um amigo ausente, é evidente que sua idéia nos é avivada pela semelhança, e que toda paixão engendrada por esta idéia – quer de alegria, quer de tristeza – adquire nova força e novo vigor. Para a produção deste efeito, concorrem simultaneamente uma relação e uma impressão presente. Se o retrato não é semelhante ao nosso amigo ou não foi ao menos feito para assemelhar-lhe, jamais faz convergir nosso pensamento para ele; se tanto o retrato como a pessoa estiverem au­sentes, embora o espírito possa passar do pensamento de um para o da outra, sente que sua idéia se acha mais enfraquecida do que avivada por esta transição. Sentimos prazer quando vemos o retrato de um amigo; porém, quando ele é retirado, preferimos considerar nosso ami­go diretamente a fazê-lo através de sua imagem refletida que é, ao mesmo tempo, distante e obscura.
As cerimônias da religião católica romana podem considerar-se como exemplos da mesma natureza. Os devotos desta superstição ale­gam geralmente, desculpando as momices que lhes censuram, que sentem o bom efeito destes movimentos exteriores, de posturas e ações que avivam sua devoção e estimulam seu fervor, que de outro modo seriam enfraquecidos se se dirigissem inteiramente a objetos distantes e imateriais. Representamos os objetos de nossa fé, dizem eles, com simbolos e imagens sensíveis, aproximando-os assim de nós pela pre­sença imediata destes simbolos do que pela mera visão intelectual e contemplativa. Os objetos sensíveis influem com mais vigor sobre a fantasia do que quaisquer outros e comunicam mais depressa esta influência às idéias com as quais se relacionam e se assemelham. In­ferirei somente, destas práticas e deste raciocínio, que o efeito da se­melhança avivando idéias é bastante comum; e como em todos os exemplos concorrem uma semelhança e uma impressão presente, con­sideramo-nos fartamente abastecidos de experimentos comprovantes da realidade do princípio precedente.
Podemos reforçar estas experiências com outras de gênero dife­rente, considerando os efeitos da contigüidade do mesmo modo que os da semelhança. Certamente, a distância diminui a força de toda idéia, e quando nos aproximamos de um objeto, mesmo se ele não se revela aos nossos sentidos, age sobre o espírito com influência parecida a uma impressão imediata. Pensar num objeto faz convergir imediata­mente o espírito ao que lhe é contíguo; porém, é unicamente a presença real de um objeto que o transporta com vivacidade superior. Encon­trando-me a poucas milhas de minha casa, qualquer coisa que se re­laciona com ela me toca mais de perto do que quando estou a duzentas léguas, embora, mesmo a esta distância, se reflito sobre qualquer objeto situado próximo de meus amigos ou de minha família, esta reflexão produz naturalmente a idéia deles. Mas, considerando que, neste exem­plo, os dois objetos do espírito são apenas idéias e não obstante a fácil transição de uma a outra, esta transição, por si mesma, é incapaz de dotar de vivacidade superior quaisquer idéias, porque ela carece de uma impressão imediata.3
Ninguém deve duvidar que a causalidade tem influência idêntica às relações de semelhança e de contigüidade. Os supersticiosos afeitos às relíquias dos santos e de personagens sagradas procuram, por esta razão, simbolos ou imagens que possam avivar sua devoção e forne­cer-lhes concepção mais íntima e mais forte das vidas exemplares que visam a imitar. Ora, é evidente que uma das melhores relíquias pro­curadas por um devoto seria um objeto feito pelo próprio santo; e se se consideram suas roupas e móveis sob este prisma, é porque esti­veram uma vez à disposição do santo que os tocou e, portanto, os influenciou. Devem, contudo, considerar-se como efeitos imperfeitos e ligados ao santo por uma cadeia de conseqüências mais curtas do que algumas daquelas pelas quais adquirimos conhecimento sobre sua existência real.
Suponde, de outro lado, que vos fosse apresentado o filho de um amigo morto ou ausente há muito tempo; certamente, este objeto reviveria num instante sua idéia correlata e faria retomar ao nosso pensamento todas as intimidades e familiaridades passadas, em cores mais vivas do que aquelas que de outro modo vos teriam aparecido. Este é outro fe­nômeno que parece comprovar o princípio acima mencionado.
Devemos assinalar que nestes fenômenos sempre se pressupõe a crença no objeto correlato, sem o que a relação não teria nenhum efeito. O retrato exerce influência porque cremos que nosso amigo al­guma vez já existiu. A contigúidade com nossa casa não pode jamais estimular nossas idéias sobre ela, a menos que creiamos que a casa realmente existe. Ora, afirmo que esta crença – se se estende além dos dados da memória ou dos sentidos – é de natureza semelhante e surge de causas semelhantes à transição do pensamento e vivacidade da concepção, aqui explicadas. Quando lanço ao fogo um pedaço de lenha seca, meu espírito se vê obrigado imediatamente a conceber que ela aviva em vez de extinguir a chama. Esta transição do pensamento da causa ao efeito não se baseia na razão. Sua origem deriva comple­tamente do hábito e da experiência. Visto que a transição se origina de um objeto presente aos sentidos, este incorpora à idéia ou à con­cepção da chama mais força e vivacidade do que qualquer devaneio vago e flutuante da imaginação. Esta idéia nasce imediatamente. E o pensamento converge instantaneamente para a idéia, transferindo-lhe toda a força conceptual que deriva da impressão presente aos sentidos. Se uma espada estiver apontada para o meu peito, as idéias de feri­mento e dor que a acompanham não me atingem com mais força do que se me apresentam um copo de vinho, e mesmo supondo que por acaso esta idéia surgisse após o aparecimento do último objeto? Mas, o que é que causa uma concepção tão forte, senão unicamente a pre­sença de um objeto, e a transição costumeira para a idéia de outro objeto, que nos acostumamos a juntar com a primeira? Eis toda ope­ração do espírito em todas as nossas conclusões referentes às questões de fato e de existência; e já é uma satisfação encontrar algumas ana­logias que podem explicá-la. A transição a partir de um objeto presente dá, em todos os casos, força e solidez à idéia com a qual está relacionado.
Eis, pois, uma espécie de harmonia preestabelecida entre o curso da natureza e a sucessão de nossas idéias; e embora os poderes e as forças que governam a primeira nos sejam totalmente desconhecidos, achamos que nossos pensamentos e nossas concepções se têm sempre desenrolado na mesma seqüência que as outras obras da natureza. O costume é o princípio que tem realizado esta correspondência, tão necessária para a conservação de nossa espécie e para o regulamento de nossa conduta em todas as circunstâncias e situações da vida hu­mana. Se a presença de um objeto não despertasse instantaneamente a idéia dos objetos que comumente estão unidos a ele, todo nosso conhecimento deveria limitar-se à estreita esfera de nossa memória e de nossos sentidos, e jamais seríamos capazes de adaptar os meios em vista dos fins ou de empregar nossos poderes naturais para pro­duzir o bem ou evitar o mal. Aqueles que se deliciam na descoberta e na contemplação das causas finais, têm aqui amplo objeto para em­pregar a sua curiosidade e espanto.
Acrescentarei reforçando a teoria precedente – que esta operação do espírito, permitindo-nos inferir efeitos semelhantes de causas se­melhantes e vice-versa, por ser tão essencial para a conservação de todos os seres humanos, não poderia ser confiada às falazes deduções da razão humana, que é lenta em suas Operações e não se manifesta, em qualquer grau, nos primeiros anos de nossa infância e, no melhor dos casos, no decorrer da vida humana acha-se mais exposta ao erro e ao engano. Conforma-se mais com a sabedoria ordinária da natureza assegurar-se de um ato tão necessário do espírito graças a um instinto ou tendência mecânica, que pode ser infalível em suas operações e pode revelar-se a partir do nascimento da vida e do pensamento e, demais, independe de todas as elaboradas deduções de entendimento. Do mesmo modo que a natureza nos ensinou a usar nossos membros sem esclarecer-nos acerca dos músculos e nervos que os movem, ela também implantou em nós um instinto que impulsiona o pensamento num processo correspondente ao estabelecido entre os objetos externos, embora mantendo-nos ignorantes destes poderes e forças dos quais dependem totalmente o curso regular e a sucessão de objetos.


SEÇÃO VI
DA PROBABILIDADE1


Embora não haja tal coisa como o acaso no mundo, nossa igno­rância da causa real de qualquer evento tem igual influência sobre o entendimento gerando equivalente tipo de crença ou opinião.
Há certamente uma probabilidade que resulta de uma superio­ridade de possibilidades a favor de uma das partes e, à medida que esta superioridade aumenta excedendo as possibilidades opostas, a probabilidade recebe um aumento proporcional gerando maior grau de crença ou assentimento à parte em que descobrimos a superiori­dade. Se um dado fosse marcado com um algarismo ou mesmo número de pontos em quatro faces e com outro algarismo ou mesmo número de pontos nas duas restantes, seria mais provável que saísse uma daquelas do que destas faces; todavia, se mil faces fossem marcadas de modo idêntico e apenas uma diferente, a probabilidade seria muito maior, e nossa crença ou expectativa do evento seria mais firme e mais segura. Este processo do pensamento ou raciocínio pode parecer sem importância e evidente; porém, para quem o examina com mais cuidado, pode, talvez, constituir assunto de curiosa especulação.
Parece evidente que, quando o espírito se antecipa para desven­dar o evento que resultará do lançamento de tal dado, considera como igualmente provável que saia qualquer uma das faces, pois é inerente ao acaso tornar inteiramente iguais todos os eventos particulares com­preendidos nele. Mas, verificando que maior número de faces aparece mais em um evento que no outro, o espírito converge com mais fre­qüência para ele e o encontra muitas vezes ao considerar as várias possibilidades das quais depende o resultado definitivo. Esta afluência de várias inspeções sobre um único evento particular gera imediata­mente, por uma inexplicável disposição natural, o sentimento da cren­ça, dando primazia a este evento sobre seu antagonista, que é apoiado por pequeno número de inspeções e recorre com menos freqüência ao espírito. Se concordamos que a crença nada mais é do que uma concepção de um objeto, mais firme e mais forte do que aquela que acompanha as ficções da imaginação, podemos, talvez, explicar até certo ponto esta operação. A confluência de várias inspeções ou de olhadas rápidas imprime a idéia com mais força em nossa imaginação, dá-lhe força e vigor superiores, torna mais sensível sua influência sobre as paixões e inclinações e, numa palavra, origina esta confiança e se­gurança que constituem a natureza da crença e da opinião.
Com a probabilidade das causas ocorre o mesmo que com a dos acasos. Há algumas causas que são inteiramente uniformes e constantes na produção de determinado efeito e não apresentam nenhum exemplo de falha ou irregularidade em seu procedimento. O fogo e a água têm sempre queimado ou asfixiado a todo ser humano; a produção do movimento pelo impulso e gravidade é uma lei universal que até agora se tem admitido sem exceção. Há, contudo, outras causas que têm sido consideradas mais irregulares e incertas, por exemplo, o rui­barbo nem sempre se tem mostrado purgativo, nem o ópio soporífero, a todas as pessoas que têm tomado esses remédios. Em verdade, quan­do uma causa deixa de produzir seu efeito habitual, os filósofos não atribuem esta falha a uma irregularidade na natureza, pelo contrário, supõem que algumas causas desconhecidas, situadas na estrutura dos elementos, têm impedido a operação. Contudo, nossos raciocínios e conclusões sobre o evento permanecem os mesmos como se este prin­cípio não existisse. Como o costume nos determina a transferir o pas­sado para o futuro em todas as nossas inferências, esperamos – se o passado tem sido inteiramente regular e uniforme – o mesmo evento com a máxima segurança e não toleramos qualquer suposição contrá­ria. Mas, se temos encontrado que diferentes efeitos acompanham cau­sas que emaparência são exatamente similares, todos estes efeitos va­riados devem apresentar-se ao espírito ao transferir o passado para o futuro, e devemos considerá-los quando determinamos a probabi­lidade do evento. Embora damos preferência ao efeito que tem sido mais usual e creiamos que ele existirá, não devemos descuidar dos outros efeitos, porém devemos assinalar para cada um deles uma au­toridade e peso específicos, em proporção à maior ou menor freqüência em que os temos encontrado. E mais provável – na maioria dos países europeus – que geará em algum dia de janeiro, e é improvável que durante este mês não geará: embora esta probabilidade varie de acordo com os diferentes climas, ela aproxima-se da certeza nos países nór­dicos. Parece, pois, evidente que, quando transferimos o passado para o futuro, a fim de determinarmos o efeito que resultará de alguma causa, transferimos todos os diferentes eventos na mesma proporção em que têm aparecido no passado e consideramos que um se tem revelado cem vezes, por exemplo, essoutro dez vezes e aqueloutro, uma só vez. Como um grande número de inspeções afluem aqui sobre um único evento, elas o fortificam e o confirmam na imaginação, en­gendrando este sentimento que denominamoscrença; e confere ao seu objeto preferência sobre o evento oposto que não é apoiado pelo mesmo número de experimentos e não retorna com tanta freqüência ao pen­samento quando transferimos o passado para o futuro. Se alguém tentar explicar este processo do espírito em qualquer um dos sistemas filosóficos existentes, sentir-se-á consciente da dificuldade. De mi­nha parte, dar-me-ei por satisfeito se as presentes indicações inci­tarem a curiosidade dos filósofos e os fizerem ver quão deficientes são todas as teorias vigentes quando discorrem sobre objetos tão curiosos e sublimes.


SEÇÃO VII
DA IDÉIA DE CONEXÃO NECESSÁRIA1


PRIMEIRA PARTE


A grande vantagem das ciências matemáticas sobre as ciências morais consiste nisto: as idéias das primeiras, sendo sensíveis, são sempre claras e distintas; assim a menor diferença entre elas é ime­diatamente perceptível e, ademais, os mesmos termos exprimem sem­pre as mesmas idéias sem ambigüidade ou variação. Um óvulo nunca se confunde com um círculo, nem uma hipérbole com uma elipse. Os triângulos isósceles e escaleno diferenciam-se por limites mais exatos que o vício e a virtude, o bem e o mal. Se se define um termo em geometria, o espírito imediatamente e por si mesmo substitui em todas as ocasiões a definição pelo termo definido, ou ainda, quando utiliza a definição, o próprio objeto pode apresentar-se aos sentidos e, por este meio, apreende-o com firmeza e claramente. Mas os sentimentos mais sutis do espírito, as funções do entendimento, as diversas agi­tações das paixões, embora realmente diferenciados em si mesmos, esquivam-se facilmente de nós quando os examinamos pela reflexão; e temos o poder de recordar o objeto original tão frequentemente como temos ocasião de contemplá-lo. Desta maneira, a ambiguidade se in­troduz gradualmente em nossos raciocínios: objetos semelhantes são facilmente considerados como idênticos, e a conclusão torna-se afinal muito afastada das premissas.
Pode-se, portanto, afirmar com toda a segurança que, se consi­derarmos estas ciências de modo adequado, suas vantagens e desvan­tagens quase se compensam e ambas se igualam. Se o espírito retém com mais facilidade as idéias geométricas claras e distintas, deve, to­davia, desenvolver uma cadeia de raciocínios muito mais extensa e bem mais complicada, e deve comparar idéias bastante afastadas entre si, a fim de alcançar as verdades mais abstrusas dessa ciência. E, se as idéias morais tendem, a menos que se tenha grande cuidado, a cair na obscuridade e na confusão, as inferências são muito mais curtas nestas pesquisas, e os passos intermediários que levem à conclusão, bem menores que os da ciência que trata da quantidade e do número. Na realidade, é raro encontrar na geometria de Euclides uma proposição tão simples, que não tenha mais partes que as que se encontram em qualquer raciocínio moral, a menos que este se refira a coisas quiméricas ou fantásticas. Quando localizamos os princípios do espí­rito humano através de alguns passos, podemos contentar-nos com nosso progresso, se considerarmos quão rapidamente a natureza an­tepõe uma barreira a todas as nossas investigações sobre as causas e nos obriga a reconhecer nossa ignorância. Portanto, o principal obs­táculo para o nosso aperfeiçoamento nas ciências morais ou metafísicas consiste na obscuridade das idéias e na ambigüidade dos termos. A principal dificuldade nas matemáticas refere-se à extensão das infe­rências e do pensamento necessário para formular qualquer conclusão. E, talvez, nosso progresso em filosofia natural se retarde principal­mente pela escassez de experimentos e de fenômenos adequados, que são frequentemente descobertos por acaso e nem sempre localizados quando requeridos, mesmo pela mais diligente e prudente investiga­ção. Como a filosofia moral se revela até agora menos aperfeiçoada do que a geometria ou a física, podemos concluir que, se há alguma diferença sob este aspecto entre estas ciências, os obstáculos que im­pedem o progresso da primeira necessitam de maior cautela e habi­lidade para serem sobrepujados.
Não há idéias mais obscuras e incertas em metafísica do que as de poder, força, energia ou conexão necessária,2 às quais necessitamos reportar-nos constantemente em todas as nossas inquirições. Tentare­mos, portanto, nesta seção, estabelecer e, por este meio, remover parte da obscuridade tão lamentada neste gênero de filosofia.
Parece que esta proposição não admitirá muita controvérsia: to­das as nossas idéias são cópias de impressões ou, em outras palavras, é-nos impossível pensar em algo que antes não tivéramos sentido, quer pelos nossos sentidos externos quer pelos internos. Tenho inten­tado3 explicar e provar esta proposição, e tenho também manifestado minhas expectativas de que, mediante sua adequada aplicação, se possa alcançar mais clareza e exatidão nos raciocínios filosóficos do que até agora se tem podido obter. As idéias complexas podem, talvez, ser bem entendidas por definição, consistindo na enumeração das por­ções ou idéias simples que as compõem. Contudo, quando encami­nhamos as definições às idéias mais simples e deparamos ainda alguma ambigüidade e obscuridade, que recurso possuímos? Que invenção nos permite iluminar estas idéias e fazê-las completamente exatas e determinadas à consideração intelectual? É preciso produzir as im­pressões ou sensações originais das quais as idéias são cópias. Essas impressões são todas fortes e sensíveis. Não admitem ambigúidade. Elas próprias não estão apenas colocadas em plena luz, mas podem também iluminar suas idéias correspondentes que jazem na obscuri­dade. Podemos, talvez por este meio, obter um novo microscópio ou novo sistema de óptica que possibilita, nas ciências morais, a ampliação das idéias mais simples e diminutas de modo que possamos apreen­dê-las facilmente e possamos conhecê-las do mesmo modo que as idéias mais palpáveis e sensíveis, que devem ser o objeto de nossa inquirição.
Portanto, para atingir um conhecimento total da idéia de poder ou de conexão necessária, devemos examinar sua impressão e, a fim de desvendar a impressão com maior segurança, busquemo-la em to­das as fontes das quais ela possivelmente deve derivar.
Quando olhamos em torno de nós na direção dos objetos externos e consideramos a ação das causas, não somos jamais capazes, a partir de um único caso, de descobrir algum poder ou conexão necessária, alguma qualidade que ligasse o efeito à causa e tomasse um a con­seqüência infalível do outro. Apenas constatamos que um, realmente, segue o outro. O impulso de uma bola de bilhar é acompanhado pelo movimento de segunda. Eis tudo que se manifesta aos sentidos ex­ternos. O espírito não sente nenhuma sensação ou impressão interna em virtude desta sucessão de objetos; por conseguinte, não há, num só caso isolado e particular de causa e efeito, nada que possa sugerir a idéia de poder ou de conexão necessária.
A partir da primeira aparição de um objeto, jamais podemos conjeturar que efeito resultará dele. Mas se o espírito pudesse descobrir o poder ou a energia de qualquer causa, poderíamos prever o efeito, mesmo sem a experiência, e poderíamos também, desde o principio, pronunciarmos com certeza a seu respeito, apenas pela força do pen­samento e do raciocínio.
Na realidade, não há nenhuma porção da matéria que nos revele, através de suas qualidades sensíveis, um poder ou energia, ou que nos dê fundamento para imaginar que poderia produzir algo, ou que seria seguida por um outro objeto que poderíamos denominar seu efeito. A solidez, a extensão e o movimento são qualidades completas em si mesmas e não indicam outro evento que possa resultar delas. As cenas do universo variam continuamente; e um objeto acompanha outro em sucessão ininterrupta; porém, o poder ou a força que move toda a máquina está completamente oculto de nós e nunca se revela em nenhuma das qualidades sensíveis dos corpos. Sabemos que, de fato, o calor é um acompanhante constante de chama, mas não temos ensejo para conjeturar ou imaginar qual é a sua conexão. Portanto, é impossível que a idéia de poder possa derivar da contemplação de corpos em casos isolados de sua operação, porque jamais um corpo nos revela um poder que seja a origem desta idéia.4
Portanto, já que os objetos externos, tal como aparecem aos sen­tidos, não nos fornecem nenhuma idéia de poder ou conexão neces­sária, através de suas operações em casos particulares, vejamos se esta idéia deriva da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito e se ela é copiada de alguma impressão interna. Pode-se dizer que, em todo momento, temos consciência de nosso poder interno, por­quanto sentimos que, pela mera ordem de nossa vontade, podemos mover os órgãos de nosso corpo ou governar nossas faculdades es­pirituais. Um ato volitivo produz um movimento em nossos membros ou origina uma nova idéia em nossa imaginação. Conhecemos esta influência da vontade pela consciência. Adquirimos assim a idéia de poder ou de energia e certificamo-nos que tanto nós como todos os outros seres inteligentes são dotados deste poder.5 Esta idéia, portanto, é uma idéia reflexiva porque surge ao refletir sobre as operações de nosso próprio espírito e sobre o governo que a vontade exerce tanto sobre os órgãos do corpo como sobre as faculdades da alma.6
Examinaremos esta hipótese7 verificando primeiramente a in­fluência da vontade sobre os órgãos do corpo. Esta influência, devemos observar, é um fato que, como todos os outros eventos naturais, uni­camente pode ser conhecida pela experiência e jamais pode ser prevista a partir da aparente energia ou poder situado na causa, unindo-a ao efeito e fazendo de um a conseqüência infalível da outra. O movimento de nosso corpo obedece à ordem da vontade. Disto temos sempre consciência. Mas o modo pelo qual isto se realiza, a energia conferida à vontade no desempenho deste processo tão extraordinário, distan­ciam-se de nossa consciência imediata e devem excluir-se para sempre de nossa mais diligente investigação.
Em primeiro lugar, indagamos se há em toda a natureza algum princípio mais misterioso que o da união da alma com o corpo, pelo qual uma suposta substância espiritual adquire influência sobre uma substância material, de tal modo que o pensamento mais refinado é capaz de mover a matéria mais grosseira? Se tivéssemos o poder, por um desejo secreto, de mover montanhas ou controlar os planetas em sua órbita, esta ampla autoridade não seria mais extraordinária e não ultrapassaria demais nossa compreensão. Mas, se a consciência nos fizesse perceber um poder ou uma energia na vontade, deveríamos apreender este poder; deveríamos entender sua conexão com o efeito; deveríamos conhecer a união oculta da alma e do corpo e a natureza destas duas substâncias, por meio da qual uma é capaz de agir, de tantos modos, sobre a outra.
Em segundo lugar, não somos capazes de mover todos os órgáos do corpo com a mesma autoridade, embora não possamos designar nenhuma razão, exceto a experiência, para uma diferença tão marcante entre uns e outros. Por que a vontade tem influência sobre a língua e os dedos e não sobre o coração ou o fígado? Esta questão jamais nos embaraçaria se tivéssemos consciência de um poder no primeiro caso, e não no segundo. Deveríamos então perceber, independente­mente da experiência, por que a autoridade da vontade sobre os órgáos do corpo se circunscreve dentro de limites tão estreitos. Teríamos, neste caso, um conhecimento completo do poder ou da força que a faz agir, saberíamos também por que sua ação alcança precisamente tais limites e por que ela não os ultrapassa.
Um homem subitamente atacado por uma paralisia da perna ou do braço ou que tenha recentemente perdido esses membros tende a princípio e com freqüência a movê-los e usá-los em suas funções habituais. Neste caso, está tão consciente do poder que governa estes membros como um homem de saúde perfeita é consciente do poder que move qualquer membro que permanece em sua condição e estado naturais. Mas a consciência nunca ilude. Por conseguinte nem num caso como no outro jamais temos consciência de um poder. Somente a experiência nos ensina a ação de nossa vontade. E a experiência nos ensina apenas como um evento acompanha constantemente outro, sem nos informar sobre a desconhecida conexão que os liga e que os torna inseparáveis.
Em terceiro lugar, a anatomia nos informa que o objeto imediato do poder no movimento voluntário não é o próprio membro que é movido, porém certos músculos, nervos e espíritos animais e, talvez, alguma coisa ainda menor e desconhecida através da qual o movi­mento se propaga sucessivamente antes de alcançar o próprio membro, cujo movimento é o objeto imediato da volição. Pode haver prova mais segura de que o poder que realiza toda a operação, tão distante de ser direta e completamente conhecido por um sentimento interno ou consciência, é em última análise misterioso e ininteligível? Logo que o espírito quer certo evento, imediatamente um outro evento é gerado, que ignoramos e que é totalmente diferente do evento visado; este evento gera um outro, igualmente desconhecido, até que, final­mente, através de uma longa sucessão, o evento desejado é gerado. Mas, se se sentisse o poder original, deveríamos conhecê-lo; se o conhe­cêssemos, dever-se-­ia conhecer também seu efeito, visto que todo poder é relativo a seu efeito. E vice-versa, se não se conhece o efeito, não se pode conhecer nem sentir o poder. Como, em verdade, poderíamos ser conscientes de um poder de mover nossos membros quando não temos um tal poder; mas apenas aquele de mover certos espíritos animais que, embora produzam em definitivo o movimento de nossos membros, agem de uma maneira que ultrapassa totalmente nossa compreensão?
Podemos, pois, concluir de toda esta argumentação, sem teme­ridade, espero, mas com segurança: nossa idéia de poder não é copiada de um sentimento ou da consciência de nosso poder interno, quando produzimos o movimento animal ou aplicamos nossos membros àsua própria função ou uso. Que seu movimento obedece à ordem da vontade é um fato da experiência corriqueira igual a tantos outros eventos naturais; mas o poder ou a energia que o realizou, do mesmo modo que em outros eventos naturais, é desconhecido e inconcebível.8
Afirmaremos, pois, que somos conscientes de um poder ou ener­gia de nossos espíritos quando, por um ato ou ordem de nossa vontade, suscitamos uma nova idéia, firmamos o espírito em sua consideração, a visamos sob todos os ângulos e por fim a rejeitamos por outra idéia quando pensamos que a temos examinado com suficiente exatidão? Acredito que os mesmos argumentos provarâo que esta ordem da vontade não nos fornece nenhuma idéia real de força ou de energia.
Primeiramente, deve-se admitir que, quando conhecemos um po­der, apreendemos na causa a precisa circunstância que o capacita para produzir seu efeito, porque ambos se supõem sinônimos. Portanto, devemos conhecer tanto a causa como o efeito e a relação entre eles. Mas aspiramos conhecer a natureza da alma humana e a natureza de uma idéia, ou a capacidade de uma produzir a outra? Esta é uma criação real; uma produção de alguma coisa a partir do nada; que implica um poder tão grande, que à primeira vista parece estar fora do alcance de todo ser menor que o infinito. Pelo menos, deve-se reconhecer que um tal poder não é nem sentido nem conhecido e nem mesmo concebível pelo espírito. Apenas sentimos o evento, a saber, a existência de uma idéia consequente a uma ordem da vontade; po­rém, a maneira como se realiza esta operação e o poder pelo qual ela é produzida estão inteiramente fora de nossa compreensão.
Secundariamente, o governo do espírito sobre si mesmo é limitado, assim como seu controle sobre o corpo; e estes limites não são conhe­cidos pela razão ou por qualquer conhecimento da natureza de causas e efeitos, mas apenas pela observação ou pela experiência, como em todos os outros eventos naturais e na operação de objetos externos. Nossa autoridade sobre nossos sentimentos e nossas paixões é muito mais débil do que sobre nossas idéias; e mesmo esta última se cir­cunscreve dentro dos mais estreitos limites. Quem pretenderá dar a razão última destes limites ou mostrar por que o poder é débil em alguns casos, e não em outros?
Terceiramente, este domínio de si mesmo é muito diferente em diferentes momentos. Um homem sadio o possui em maior grau do que alguém que se consome com a doença. Somos mais donos de nossos pensamentos pela manhã do que pela noite; em jejum, do que após uma refeição copiosa. Podemos dar alguma razão destas variações exceto a experiência? Onde está, pois, o poder do qual pretenderíamos ser conscientes? Não há aqui, seja em uma substância espiritual ou material, seja em ambas, algum mecanismo desconhecido ou estrutura de elementos do qual depende o efeito e que, por nos ser inteiramente desconhecido, torna o poder ou energia da vontade igualmente des­conhecidos e incompreensíveis?
A vontade é certamente um ato do espírito, com a qual estamos suficientemente familiarizados. Refleti sobre ela. Considerai-a sob to­dos os ângulos. Encontrastes nela algo de semelhante a este poder criador, pelo qual do nada gera uma nova idéia, e, por uma espécie de fiat, imita a Onipotência de seu Criador – se se me permite falar assim – que converge para a existência os diferentes panoramas da natureza? Esta energia da vontade acha-se tão afastada de nossa cons­ciência que necessitamos recorrer à experiência – como a que pos­suímos – para convencer-nos de que tão extraordinários efeitos re­sultam efetivamente de um simples ato da vontade.
Os homens, em geral, não encontram jamais qualquer obstáculo para explicar as mais comuns e usuais operações da natureza, tais como a queda dos corpos pesados, o crescimento das plantas, a pro­criação dos animais ou a nutrição dos corpos pelos alimentos; e eles admitem que, em todos estes fenômenos, percebem com exatidão a força ou a energia da causa, que a põe em conexão com seu efeito e sempre é infalível em sua operação. Adquirem, por longo hábito, tal modo de pensar que, ao aparecer uma causa, esperam imediatamente e com segurança o seu acompanhante usual e dificilmente concebem que seja possível que um outro evento possa resultar dela. Apenas quando descobrem fenômenos extraordinários, tais como o terremoto, a peste e outros prodígios deste gênero, encontram-se embaraçados para designar uma causa apropriada e para explicar de que modo produz o efeito. Os homens têm o hábito, em tais dificuldades, de recorrer a algum principio invisível e inteligente9 como causa imediata do evento que os surpreende e que, pensam eles, não pode ser expli­cado pelos poderes corriqueiros da natureza. Mas os filósofos, que levam suas pesquisas um pouco mais adiante, percebem imediata­mente que, mesmo nos eventos mais familiares, a energia da causa é tão ininteligível como no mais invulgar, e que apenas apreendemos da experiência a freqüenteconjunção dos objetos, sem que jamais se­jamos capazes de compreender nada semelhante à conexão entre eles.10 Daqui, pois, que muitos filósofos se julguem obrigados pela razão a recorrer, em todas as ocasiões, ao mesmo principio que o vulgo nos invoca apenas nos casos aparentemente miraculosos e sobrenaturais. Reconhecem que o espírito e a inteligência são, não apenas a causa última e original de todas as coisas, mas também a única causa e a causa imediata de todo evento que aparece na natureza. Pretendem que os objetos geralmente denominados causas não são em realidade nada mais do que ocasiões, e que o verdadeiro e direto princípio de todo efeito não é nenhum poder ou força natural, mas a vontade do Ser Supremo, que quer que tais objetos particulares estejam sempre ligados entre si. Em vez de dizer que uma bola de bilhar move outra por uma força derivada do autor da natureza, dizem eles que a própria Divindade move a segunda bola por um ato da vontade, em conse­qüência das leis gerais impostas a si mesma no governo do universo. Mas os filósofos, persistindo em suas investigações, descobrem que, do mesmo modo que ignoramos totalmente o poder do qual depende a ação mútua dos corpos, ignoramos também o poder do qual depende a operação do espírito sobre o corpo ou do corpo sobre o espírito; e não somos capazes, a partir de nossos sentidos ou de nossa consciência, de assinalar o princípio último tanto num caso como no outro. A mesma ignorância, portanto, os leva à mesma conclusão. Afirmam que a Divindade é a causa imediata da união da alma e do corpo, e que não são os órgãos dos sentidos que, agitados pelos objetos externos, produzem as sensações no espírito; porém, trata-se de um ato da von­tade de nosso onipotente Criador que excita uma dada sensação em conseqüência de um movimento do órgão. De maneira análoga, não é nenhuma energia da vontade que produz o movimento local de nossos membros: é Deus mesmo quem se deleita em ajudar nossa vontade, em si mesma impotente, e em ordenar o movimento que erroneamente atribuímos ao nosso próprio poder e à nossa própria eficácia. Os filósofos não se detêm nesta conclusão. As vezes estendem a mesma inferência ao próprio espírito em suas operações internas. Nossa visão mental ou nossa concepção de idéias nada mais é do que uma revelação que nos faz nosso Criador. Quando voluntariamente dirigimos nossos pensamentos para um objeto e suscitamos sua ima­gem na fantasia, não é a vontade que cria esta idéia, é o Criador Universal quem a descobre e a revela ao espírito.11
Assim, segundo estes filósofos, toda coisa está plena de Deus. Descontentes com o princípio de que nada existe a não ser por sua vontade, de que nada possui poder senão por sua concessão, despojam tanto a natureza como todos os seres criados de todo poder a fim de tornar sua subordinação a Deus ainda mais sensível e imediata. Não consideram que, mediante esta teoria, diminuem, em vez de aumentar, a grandeza destes atributos que pretendem tanto celebrar. Certamente, comprova-se mais poder em Deus, delegando às criaturas inferiores certa porção do poder do que fazendo-o produzir tudo por sua von­tade imediata. Demonstra mais sabedoria organizar a princípio toda estrutura do universo com tanta perfeição que, por si mesmo e por sua própria operação, pode servir completamente aos desígnios da providência, do que obrigar o grande Criador a ajustar e a animar constantemente toda a engrenagem desta prodigiosa máquina.
Mas, se quisermos refutar filosoficamente esta teoria, talvez as duas seguintes reflexões serão suficientes.
Em primeiro lugar, parece-me que a teoria referente à energia e ação universal do Ser Supremo afigura-se bastante arrojada para convencer quem tenha suficiente consciência da debilidade da razão humana e dos estreitos limites que a confinam em todas as suas operações. Embora a cadeia de argumentos conduzindo a ela seja logicamente correta, persiste a forte suspeita, senão uma certeza absoluta, de que ela nos levou a transbordar o alcance de nossas faculdades conduzindo-nos a conclusões tão extraordinárias e distanciadas da vida diária e da experiência. Somos levados ao país das fadas, bem antes de chegarmos aos últimos estágios de nossa teoria; e  não temos motivos para confiar em nossos métodos usuais de argumentação, nem de supor que nossas analogias e probabi­lidades usuais tenham alguma autoridade. Nossa linha é muito curta para sondar a imensidão de semelhantes abismos. E por mais que pre­tendamos crer que em cada passo que damos nos guia uma espécie de verossimilhança e de experiência, podemos assegurar-nos de que esta experiência imaginária não tem autoridade quando a aplicamos a casos inteiramente estranhos ao campo da experiência. Todavia, mais adiante teremos ocasião para retomar este tópico.12
Em segundo lugar, não consigo perceber nenhuma força nos ar­gumentos que fundamentam esta teoria. De fato, ignoramos a maneira segundo a qual os corpos agem entre si. Sua força ou energia é intei­ramente incompreensível. Mas não ignoramos também de que maneira ou força um espírito, mesmo o Supremo Espírito, age sobre si mesmo ou sobre um corpo? De onde, pergunto-vos, adquirimos essa idéia? Não temos sentimento ou consciência deste poder em nós mesmos. Não temos outra idéia do Ser Supremo a não ser aquela que apren­demos ao refletir sobre nossas próprias faculdades. Portanto, se nossa ignorância fosse uma boa razão para rejeitar algo, seríamos induzidos ao princípio de negar energia quer ao Ser Supremo quer à matéria mais vulgar. Certamente não entendemos bem as atividades de um como de outro. É mais difícil conceber que o movimento pode surgir do impulso que da vontade? Tudo o que conhecemos é nossa profunda ignorância em ambos os casos.13


SEGUNDA PARTE


Mas apressemo-nos a concluir esta argumentação, que já se tem feito demasiado extensa. Temos procurado em vão uma idéia de poder ou de conexão necessária em todas as fontes de onde pudesse originar. Parece que em casos isolados da atividade dos corpos não podemos jamais, pelo exame mais escrupuloso, descobrir outra coisa a não ser um evento acompanhando outro, sem que sejamos capazes de apreen­der a força ou o poder que faz agir a causa, ou alguma conexão entre ela e seu suposto efeito. A mesma dificuldade ocorre quando se con­sideram as atividades do espírito sobre o corpo, nas quais notamos que o movimento do último segue a vontade do primeiro, mas não somos capazes de vislumbrar, ou conceder o laço que liga o movimento e a vontade, ou a energia pela qual o espírito produz o seu efeito. A autoridade da vontade sobre suas próprias faculdades e idéias não é nem um pouco mais compreensível. De modo que, resumindo, não aparece, em toda a natureza, um único exemplo de conexão passível de nossa concepção. Todos os eventos parecem inteiramente soltos e separados. Um evento segue outro, porém jamais podemos observar um laço entre eles. Parecem estar em conjunção, mas jamais em conexão. E como não podemos jamais formar idéia de uma coisa que nunca se revelou aos nossos sentidos externos ou sentido interno, a conclusão necessária parece ser que não temos, definitivamente, idéia de conexão ou de poder, e que estes termos nada significam quando utilizados nos raciocínios filosóficos ou na vida diária.
Entretanto, resta ainda um método para evitar esta conclusão, e uma fonte que ainda não examinamos. Quando um objeto ou evento natural se revela, não há sagacidade ou penetração que nos permita descobrir, ou mesmo conjeturar, sem o auxílio da expe­riência, qual evento resultará dele ou de levar-nos a antever além do objeto presente imediatamente à memória e aos sentidos. Mesmo depois de averiguarmos que num caso ou experimento um evento específico acompanha outro, não julgamos lícito formular uma regra geral ou predizer o que ocorrerá em situações análogas, pois seria temeridade imperdoável julgar de todo o curso da natureza partindo de um único experimento, por mais exato e seguro que fosse. Mas quando determinada espécie de eventos se mostra sempre e em todas as situações conjuntada a outra, não sentimos escrúpulos de predizer um ao surgir o outro, utilizando-nos, pois, do único tipo de raciocínio que pode assegurar-nos sobre as questões de fato e de existência. Denominamos, então, um dos objetos causa e o outro efeito. Supomos que há alguma conexão entre eles; algum poder em um deles pelo qual infalivelmente produz o outro e atua com a máxima certeza e a mais forte necessidade.
Parece, pois, que a idéia de uma conexão necessária entre os eventos surge de vários casos semelhantes em que ocorre a conjunção constante destes eventos; já que nenhum destes casos pode nos suscitar esta idéia, embora fossem examinados sob todos os ângulos e posições possíveis. No entanto, apesar de não haver em determinado número de casos algo a diferenciá-lo de um caso singular – suposto exata­mente semelhante aos outros – destacamos apenas que, depois da repetição de casos semelhantes, o espírito é impelido pelo hábito, de­vido à aparição de um evento, a aguardar aquele que usualmente o acompanha e em acreditar em sua existência. Portanto, esta conexão que sentimos no espírito, esta transição costumeira da imaginação de um objeto para o seu acompanhante usual, é o sentimento ou a im­pressão que origina a idéia de poder ou de conexão necessária. Não há nada a mais na ocorrência. Considerai o assunto de todos os ân­gulos, jamais encontrareis outra origem desta idéia. Eis a única dife­rença entre um caso singular, do qual jamais podemos inferir a idéia de conexão, e vários casos semelhantes originando esta idéia. Uma pessoa que observa pela primeira vez, por exemplo, o movimento comunicado pelo impulso quando duas bolas se chocam não poderia afirmar que os eventos estavam em conexão, apenas poderia asseverar que entre eles havia conjunção. Observando em seguida vários exem­píos de natureza semelhante, poderia então concluir afirmando que os fatos estão em conexão. Que tipo de alteração ocorreu originando esta nova idéia de conexão? Nenhuma, exceto que agora ela sente que estes eventos estão emconexão em sua imaginação, podendo facilmente antever a existência de um pelo aparecimento do outro. Afirmando, portanto, que um objeto está em conexão com outro, apenas queremos dizer que estes objetos têm adquirido uma conexão em nosso pensa­mento e provocam a inferência através da qual se chega a comprovar a existência de outro: conclusão um tanto extraordinária, porém ba­seada em número suficiente de evidências. Esta evidência não será enfraquecida tanto pela desconfiança total em relação ao entendimento como pelas dúvidas céticas levantadas contra toda conclusão nova e extraordinária. Nenhuma conclusão agrada mais ao ceticismo do que a que revela a debilidade e estreiteza da esfera racional e das capa­cidades humanas.
Que exemplo é mais poderoso do que o presente para mostrar a surpreendente ignorância e debilidade do entendimento? De fato, porque, se há alguma relação entre os objetos que visamos a apreender com perfeição, é aquela de causa e efeito. Nela se fundamentam todos os nossos raciocínios sobre as questões de fato ou de existência. Apenas por meio desta relação podemos ter alguma segurança sobre os objetos distanciados do atual testemunho de nossa memória e dos sentidos. Esclarecer-nos como controlar e regular os eventos futuros através de suas causas é a única e imediata utilidade de todas as ciências. Portanto, nossos pensamentos e inquirições convergem em todo momento para esta relação, embora as idéias que formamos a seu respeito sejam tão imperfeitas que é impossível definir com exatidão a causa, a não ser aquela derivada de algo que lhe é exterior e alheio. Objetos semelhantes sempre estão conjuntados a objetos semelhantes. Disto temos expe­riência. De acordo com esta experiência, portanto, podemos definir uma causa como um objeto seguido por outro, de tal forma que todos os objetos semelhantes ao primeiro são seguidos de objetos semelhantes ao se­gundo. Ou, em outras palavras: se o primeiro objeto não houvesse existido, o segundo nunca haveria existido. A aparição de uma causa sempre faz convergir o espírito, por uma transição costumeira, à idéia do efeito. Disto também temos experiência. Podemos, pois, de acordo com esta experiência, formular uma outra definição de causa e denominá-la um objeto seguido por outro e cuja aparição faz convergir o pensamento sempre para aquele outro.1Embora estas duas definições sejam formuladas de circunstâncias alheias à causa, não podemos remediar este inconve­niente ou elaborar definição mais perfeita que possa indicar na causa a circunstância que lhe dá uma conexão com seu efeito. Não temos nenhuma noção desta conexão, nem mesmo nenhuma idéia distinta da natureza daquilo que desejamos saber, quando nos esforçamos em concebê-la. Dizemos, por exemplo, que a vibração desta corda é a causa deste som particular. Mas, o que queremos dizer com esta afir­mação? Ou queremos dizer que esta vibração é seguida deste som e que todas as vibrações semelhantes têm sido acompanhadas de sons semelhantes, ou que esta vibração é seguida deste som, e que, pela aparição de uma, o espírito se antecipa aos sentidos e forma imediatamente a idéia da outra. Podemos considerar a relação de causa e efeito em quaisquer destas duas maneiras; mas além dessas não temos idéia dela.2
Recapitulemos, portanto, os raciocínios desta seção: toda idéia é copiada de uma impressão ou de uma sensação precedentes; se não podemos localizar a impressão, podemos assegurar-nos de que não há idéia. Em todos os casos isolados da atividade dos corpos ou espíritos, não há nada que produza uma impressão, nem, por conseguinte, que possa sugerir uma idéia de poder ou de conexão necessária. Mas quando aparecem vários casos uniformes, e o mesmo objeto é sempre seguido pelo mesmo evento, então começamos a admitir a noção de causa e de conexão. Nós sentimos então um novo sentimento, ou nova impressão, ou seja, uma conexão costumeira no pensamento ou na imaginação entre um objeto e o seu acompanhante habitual; e este sentimento é a origem da idéia que procuramos..3 Com efeito, como esta idéia nasce de vários casos semelhantes, e não de um caso isolado, ela deve nascer da circuns­tância que faz diferir vários casos de cada caso individual. Ora, esta conexão ou transição costumeira da imaginação é a única circunstância que os faz diferir. Em todos os outros aspectos eles são semelhantes. O primeiro caso que vimos do movimento comunicado pelo choque de duas bolas de bilhar – para retomar este exemplo evidente – é exata­mente semelhante a não importa que caso que pode, no presente, se apresentar a nós; excetuando apenas que, a princípio, não podíamos inferir um evento do outro, o que somos capazes de fazer agora, depois de tão extensa série de experiências uniformes. Não sei se o leitor apreenderá facilmente este raciocínio. Temeria tomá-lo mais obscuro e complicado se multiplicasse as palavras e o considerasse sob vários aspectos. Em todos os raciocínios abstratos há um ponto de vista que, se afortunada­mente o alcançamos, nos ilustra mais acerca do assunto que mediante toda a eloqüência do mundo. Devemos aspirar a este ponto de vista e reservar os floreios da retórica para oportunidade mais adequada.


SEÇÃO VIII
DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE1


PRIMEIRA PARTE


Seria razoável esperar que acerca das questões que têm sido examinadas e discutidas cuidadosamente desde os primórdios da ciên­cia e da filosofia houvesse, ao menos, acordo entre os disputantes sobre o significado de todos os termos e, transcorridos dois mil anos de inquirições, houvessem passado das palavras para o objetivo ver­dadeiro e real da controvérsia. Pois não seria mais fácil definir com exatidão os termos empregados no raciocínio e não considerar as de­finições um mero reflexo de palavras, mas objeto de exame e inves­tigações futuras? Mas se considerarmos o assunto mais de perto, se­remos obrigados a tirar uma conclusão oposta, fundada nesta única circunstância: visto que uma controvérsia perdura e continua ainda sem decisão, deve-se presumir que há alguma ambigúidade conceitual e que os adversários atribuem idéias diferentes para os termos em­pregados na controvérsia. Com efeito, supondo-se que as faculdades espirituais são naturalmente semelhantes em todos os indivíduos de outro modo nada seria mais infrutífero do que raciocinar e discutir juntos – seria impossível, se os homens atribuissem as mesmas idéias para os seus termos, que continuassem por tanto tempo a formular opiniões diferentes sobre o mesmo objeto, especialmente se comunicam seus pareceres e cada uma das facções busca argumentos em toda parte a fim de obter a vitória sobre seus antagonistas. Certamente, se os homens enveredam por problemas inteiramente afastados da ca­pacidade humana, tais como os referentes à origem do mundo, à or­ganização do sistema intelectual ou ao reino dos espíritos, podem longa e infrutiferamente discutir sem atingir uma solução conclusiva. Mas, se o problema diz respeito a qualquer objeto da vida diária e da experiência, pensar-se-ia que nada poderia manter o debate inde­cidido por tanto tempo, exceto algumas expressões ambíguas, que mantêm ainda os adversários à distância, impedindo-os de se porem em íntimo contato.
Esta tem sido a situação da tão longamente debatida questão da liberdade e da necessidade. E se não estiver muito equivocado, veremos que todos os homens, tanto eruditos como ignorantes, sempre têm sustentado idêntica opinião acerca do assunto a ponto de fazer crer que algumas definições inteligíveis teriam imediatamente posto fim a toda controvérsia. Reconheço que esta questão tem sido bastante agitada por todas as partes e que tem arrastado os filósofos a tal la­birinto de sofismas obscuros que não espanta se um leitor amante da tranqüilidade queira fazer-se de surdo sobre ela, já que não espera do debate instrução ou entretenimento. Contudo, o tipo de argumen­tação proposto aqui poderá, talvez, servir para renovar sua curiosidade e, como apresenta inovação, promete, pelo menos, uma solução parcial da controvérsia sem perturbar em demasia sua tranquilidade com ra­ciocínios complicados e obscuros.
Pretendo mostrar, portanto, que todos os homens sempre têm estado concordes com as doutrinas da necessidade e da liberdade – segundo qualquer significado razoável que se possa atribuir a estes termos – e que até agora toda a controvérsia tem girado em torno de meras palavras.2
Toda a gente reconhece que a matéria, em todas as suas funções, se acha animada por uma força necessária, e que todo efeito natural está determinado com exatidão pela energia de sua causa, de forma que nenhum outro efeito poderia resultar dela em tais condições particulares. O grau e a direção de cada movimento estão prescritos pelas leis da natureza com tal exatidão, que seria tão difícil fazer surgir um grau ou direção diferente ao que se produz em realidade como fazer nascer uma criatura viva do choque de dois corpos. Portanto, se qui­sermos conceber uma idéia justa e exata da necessidade, devemos exa­minar a origem dessa idéia quando a aplicarmos às ações corporais.
Parece evidente que jamais teríamos chegado à menor idéia de necessidade ou de conexão entre os objetos naturais, se todas as cenas da natureza estivessem continuamente mudando, de modo que não houvesse dois eventos semelhantes e se cada objeto fosse completa­mente novo, sem nenhuma similitude com qualquer coisa que foi antes vista. Poderíamos dizer, em tal suposição, que um objeto ou evento resulta de outro e não que um foi produzido pelo outro. A relação de causa e efeito seria completamente desconhecida dos homens. E, por conseguinte, terminariam as inferências e os raciocínios sobre as operações naturais; e a memória e os sentidos seriam as únicas vias de acesso do espírito na apreensão de uma existência real. Portanto, nossa idéia de necessidade e de causa surge inteiramente da unifor­midade verificada nas operações da natureza, na qual os objetos se­melhantes estão constantemente conjuntados e o espírito é determi­nado pelo costume a inferir um pelo aparecimento do outro. Estas duas circunstâncias compreendem toda a necessidade que atribuímos à matéria. Além da conjunção constante de objetos semelhantes e da conseqüente inferência de um para o outro, não temos nenhuma idéia de qualquer necessidade ou conexão.3
Parece, portanto, que todos os homens têm sempre admitido – sem nenhuma dúvida ou hesitação – que estas duas circunstâncias ocorrem em suas ações voluntárias e nas operações do espírito; con­clui-se daqui que todos os homens sempre têm estado de acordo com a doutrina da necessidade e que, até o presente, têm discutido sim­plesmente por não se terem entendido entre si.
Podemos certamente satisfazer-nos acerca da primeira circuns­tância, isto é, da conjunção constante e regular dos eventos similares, com as seguintes considerações. Toda a gente reconhece que há grande uniformidade nas ações humanas em todas as nações e em todas as épocas, e que a natureza humana sempre permanece igual em seus princípios e em suas operações.4 Os mesmos motivos produzem sem­pre as mesmas ações; os mesmos eventos resultam das mesmas causas. A ambição, a avareza, o amor-próprio, a vaidade, a amizade, a gene­rosidade e o espírito público, paixões misturadas em vários graus e distribuídas pela sociedade têm sido, desde o começo do mundo, e ainda são, a fonte de todas as ações e empreendimentos que se têm sempre observado entre os homens. Quereis conhecer os sentimentos, as inclinações e o modo de viver dos gregos e dos romanos? Estudai bem o temperamento e as ações dos franceses e dos ingleses: não estareis muito equivocado se transferirdes aos primeiros amaioria das observações que fizestes sobre os segundos. A humanidade é bastante parecida, em todos os tempos e lugares, e a história nada nos informa de novo ou estranho a este respeito. Seu principal papel restringe-se em descobrir os princípios universais e constantes da natureza huma­na, mostrando-nos os homens em variadas circunstâncias e situações e suprindo-nos de materiais, dos quais podemos formar nossas ob­servações e ficarmos familiarizados com as fontes regulares da ação e da conduta humana. Os relatos de guerras, intrigas, partidos políticos e revoluções são outras tantas coleções de experimentos, por meio dos quais o político ou o filósofo moral fixa os princípios de sua ciência, do mesmo modo que o médico ou o filósofo da natureza se familiariza com a natureza das plantas, dos minerais e de outros objetos externos, pelas experiências que fazem sobre eles. A terra, a água e os outros elementos examinados por Aristóteles e Hipócrates são tão parecidos com aqueles que no presente estão sob nossa observação, como os homens descritos por Políbio e Tácito são semelhantes aos homens que governam atualmente o mundo.
Se um viajante, ao regressar de um país longínquo, nos descre­vesse a existência de homens totalmente diferentes daqueles que temos conhecido, desprovidos totalmente de avareza, de ambição ou de es­pírito vingativo e reconhecendo apenas o prazer da amizade, da ge­nerosidade e do espírito público, descobriríamos imediatamente a fal­sidade do relato e lhe demonstraríamos que mente, com a mesma certeza como se houvesse acumulado sua narrativa com contos de centauros e dragões, milagres e prodígios. E se quisermos desacreditar alguma falsificação histórica, não devemos usar argumentos mais ade­quados do que os que provam que as ações atribuidas a uma pessoa são diretamente contrárias à ordem natural das coisas, e que nenhum motivo humano, em tais circunstâncias, jamais poderia tê-la induzido a tal conduta. Devemos suspeitar da veracidade de Quinto Cúrcio, quando descreve a coragem sobrenatural de Alexandre, pela qual ele foi levado a atacar sozinho multidões, e quando descreve sua força e sua atividade sobrenaturais, com as quais pôde resistir-lhes. Deste modo, admitimos facilmente a uniformidade nos motivos e ações hu­manas, como também nas operações do corpo.
Daqui, igualmente, deriva a influência benéfica da experiência adquirida por uma longa vida, pela variedade de ocupações e convi­vência, instruindo-nos acerca dos princípios da natureza humana e regrando tanto nossa conduta fritura como nossa especulação. Por meio deste guia, elevamo-nos ao conhecimento das inclinações e motivos humanos, partindo de suas ações, de suas manifestações e mesmo de seus gestos; e de novo descemos para a interpretação de suas ações graças ao nosso conhecimento de seus motivos e inclinações. As ob­servações gerais armazenadas durante o transcurso da experiência dão-nos o elo condutor da natureza humana, e nos ensinam a desfiar todas as suas complicações. Nem os pretextos e nem as aparências voltam a enganar-nos. Supõe-se que as declarações feitas em público são es­peciosos disfarces de uma causa. E embora se conceda à virtude e à honra de seu próprio peso e autoridade, este perfeito desinteresse, que é com tanta freqüência proclamado, jamais se espera de multidões e partidos políticos, raramente de seus condutores e apenas, às vezes, de indivíduos de qualquer posição ou categoria. Mas, se não houvesse uniformidade nas ações humanas, e se todo experimento que pudés­semos fazer deste gênero fosse irregular e anômalo, seria impossível coletar algumas observações gerais sobre a humanidade e nenhuma experiência, por mais que a reflexão a houvesse assimilado, serviria para algum fim. Porque o velho agricultor é mais hábil em sua pro­fissão do que o jovem principiante, apenas porque há uma certa uni­formidade na ação do sol, da chuva e da terra na produção de legumes, e porque a experiência ensina ao que pratica há muito tempo as regras que governam e dirigem estas operações.
Não devemos, portanto, esperar que esta uniformidade das ações humanas se estenda de tal maneira que todos os homens, nas mesmas circunstâncias, sempre agirão exatamente da mesma maneira, sem fa­zer nenhuma concessão à diversidade dos caracteres, dos preconceitos e das opiniões. Semelhante uniformidade, em todos os aspectos, não se encontra em nenhuma parte da natureza. Pelo contrário, ao observar a variedade de condutas em diferentes homens, tornamo-nos aptos para formar uma grande variedade de máximas que, sem dúvida, ainda supõem um grau de uniformidade e regularidade.5
Os costumes dos homens são diferentes em épocas e países di­ferentes? Daqui aprendemos a grande força do costume e da educação, os quais modelam o espírito humano desde sua infância e lhe formam o caráter de modo estável. O comportamento e a conduta de um sexo são muito diferentes dos do outro? Deste modo é que chegamos a conhecer os diferentes caracteres que a natureza tem imprimido nos sexos e que ela mantém com regularidade e constância. As ações de uma mesma pessoa são muito diversas nos diferentes períodos de sua vida, desde sua infância até sua velhice? Isto dá lugar a várias con­siderações gerais acerca da mudança gradual de nossos sentimentos e inclinações, e das diferentes máximas que prevalecem nas diferentes idades das criaturas humanas. Mesmo os caracteres peculiares de cada indivíduo têm uma uniformidade em sua ação; de outro modo, nosso conhecimento das pessoas e nossa observação de sua conduta jamais nos poderiam ensinar acerca de suas disposições ou servir para dirigir nosso comportamento diante delas.
Admito que seja possível encontrar ações que parecem não ter conexão regular com quaisquer motivos conhecidos, e que são exceções a todas as regras de conduta que se estabeleceram para o governo dos homens. Mas se desejássemos saber que juízo devemos formar das ações tão irregulares e extraordinárias, poderíamos considerar as opiniões que nutrimos comumente com respeito a eventos irregulares, que aparecem na ordem natural das coisas e nas operações dos objetos externos. Todas as causas não estão conjuntadas aos efeitos usuais com igual uniformidade. Um artesão que somente manipula matéria inerte pode fracassar em seu intento, tanto como o político que dirige a conduta de seres sensatos e inteligentes.
O homem comum, contentando-se apenas com a aparência das coisas, atribui a incerteza dos eventos a uma incerteza das causas, decorrendo das últimas as freqúentes falhas em sua influência habitual, embora não encontrem obstáculos impedindo sua ação. Mas os filó­sofos, verificando que na maioria dos fenômenos naturais há uma enorme variedade de fontes e princípios ocultos em razão de sua pe­quenez ou de seu afastamento, consideram que, pelo menos, é possível que a oposição dos eventos não proceda de uma contingência da causa, mas da operação desconhecida de causas contrárias. Esta possibilidade se converte em certeza, quando observam posteriormente, depois de cuidadoso exame, que uma contrariedade de efeitos sempre denuncia uma contrariedade de causas, e procede de sua mútua oposição. Um camponês, não encontrando melhor explicação, para a parada de um relógio, diz que geralmente não funciona bem. Contudo, um artesão percebe facilmente que igual força da mola ou do pêndulo exerce sempre a mesma influência sobre as engrenagens, não produzindo seu efeito habitual, devido talvez a um grão de poeira que detém todo o movimento. Observando vários casos paralelos, os filósofos estabe­lecem como um princípio que a conexão entre todas as causas e efeitos é igualmente necessária, e que sua aparente incerteza em certos casos decorre da desconhecida oposição de causas contrárias.
Assim, por exemplo, quando o corpo humano, manifestando os sintomas usuais de saúde ou de doença, desaponta nossa expectativa; quando os medicamentos não atuam com seus poderes habituais; quando eventos irregulares resultam de uma causa determinada, o filósofo e o médico não se surpreendem com isto, nem são jamais tentados a negar – em sua totalidade – a necessidade e a uniformi­dade daqueles princípios que regulam a organização corporal. Enten­dem que o corpo humano é uma máquina extremamente complicada; que várias forças desconhecidas nele ocultas se acham afastadas de nossa compreensão; que devemos sempre considerá-lo bastante incerto em seus movimentos; e que, portanto, os eventos irregulares revelados exteriormente não podem constituir prova de que as leis naturais não se processam com a máxima regularidade em suas funções e movi­mentos internos.
O filósofo, se é coerente, deve estender o mesmo raciocínio às ações e volições dos seres inteligentes, visando assim mostrar que as decisões humanas mais irregulares e inesperadas se explicam com freqüência quando se conhecem todas as circunstâncias do caráter e da situação humanas. Uma pessoa com disposições amáveis pode res­ponder de maneiras impertinentes, mas porque ela está com dor de dentes ou ainda não jantou. Um homem de modos grosseiros pode revelar vivacidade incomum ao seu comportamento porque recebeu de repente uma grande fortuna. Mesmo considerando-se que um ato, como às vezes ocorre, não pode ser explicado por quem o praticou ou pelos circundantes, reconhecemos que, em geral, os caracteres hu­manos são até certo ponto inconstantes e irregulares. De certo modo, é este o caráter constante da natureza humana, embora se aplicando mais particularmente às pessoas destituídas de regras estáveis em sua conduta, mas que atuam numa seqüência contínua de capricho e de inconstância. Apesar destas aparentes irregularidades, os princípios e motivos internos devem atuar de modo uniforme, da mesma maneira que se supõe que os ventos, a chuva, as nuvens e as outras variações do tempo são governados por princípios estáveis, embora a sagacidade e a investigação humana não os possam facilmente desvendar.
Desta maneira, parece que não apenas a conjunção entre os mo­tivos e os atos voluntários é tão regular e uniforme (de modo análogo à relação de causa e efeito em qualquer aspecto da natureza), mas, também, que esta conjunção regular tem sido reconhecida universalmente e jamais tem sido tema de debate, quer pela filosofia quer na vida diária. Ora, como derivam da experiência passada todas as ex­periências sobre o futuro e como concluímos que os objetos que sempre encontramos conjuntados sempre estarão conjuntados, pode, pois, parecer supérfluo provar que esta experimentada uniformidade das ações humanas é a fonte de onde tiramos inferências que a elas se referem.6 Mas, a fim de mostrar maior número de aspectos dos argumentos, insistiremos também, embora sumariamente, neste último tópico.
Em todas as sociedades, pode-se verificar que a mútua depen­dência entre os homens é tão grande que raramente uma ação humana é inteiramente completa em si mesma ou se realiza sem alguma re­ferência às ações dos demais, constituindo assim no requisito necessário para que possa responder por completo à intenção de quem a realiza. O artesão paupérrimo, que trabalha sozinho, espera pelo menos a proteção do magistrado assegurando-lhe o gozo do fruto de seu trabalho. Também espera que, quando leva suas mercadorias ao mer­cado e as oferece a um preço razoável, encontrará compradores e terá poder graças ao dinheiro que obteve para comprar dos outros as mer­cadorias que são necessárias para a sua subsistência. A medida que os homens estendem suas relações e tornam mais complexas suas co­municações com outros homens, sempre compreendem em seus planos de vida uma maior variedade de atos voluntários que esperam, por motivos justos, que colaborem com sua própria ação. Em todas estas conclusões tiram suas regras da experiência passada, do mesmo modo que em seus raciocínios sobre objetos externos; acreditam firmemente que tanto os homens como os elementos devem continuar em suas operações tal como foram sempre encontrados. Um fabricante conta ao mesmo tempo com o trabalho de seus empregados para a execução de qualquer obra como com a maquinaria empregada e ficaria igual­mente surpreso se se decepcionasse em suas expectativas. Numa pa­lavra, a inferência e o raciocínio experimental referentes aos atos de outrem incorporam-se tanto na vida humana, que nenhum homem, enquanto está desperto, deixa de utilizá-los por um momento sequer. Não temos razão, portanto, para afirmar que toda a humanidade sem­pre tem concordado com a doutrina da necessidade tal como a defi­nição e a explicação dadas mais acima?
Os filósofos não têm jamais mantido, a este respeito, opinião dife­rente daquela da plebe. Porque, sem mencionar que quase todas as ações de sua existência supõem esta opinião, há apenas alguns setores do saber especulativo aos quais ela não é essencial. O que seria da história se não tivéssemos confiança na veracidade do historiador, de acordo com a ex­periência que temos adquirido dos homens? Como a política poderia ser uma ciência, se as leis e as formas de governo não tivessem influência uniforme sobre a sociedade? Onde estaria o fundamento da moral, se cada caráter particular não tivesse um determinado poder de produzir sentimentos particulares e se estes sentimentos não influenciassem nossas ações de maneira constante? E quais poderiam ser nossas pretensões quando aplicamos nossa crítica7 a um poeta ou a um autor elegante, se não pudéssemos decidir se a conduta e os sentimentos de seus persona­gens são ou não são naturais, em tais caraderes e em tais circunstâncias? Parece quase impossível, portanto, que nos ponhamos a fazer ciência ou atuar de alguma maneira, sem reconhecer a doutrina da necessidade, e estainferência que vai dos motivos aos atos voluntários, dos caracteres às condutas.
E, certamente, quando consideramos quão exatamente se entrelaçam a evidência natural e a evidência moral, formando uma única corrente de argumentos, não teremos escrúpulos em admitir que ambas são da mesma natureza e que derivam dos mesmos princípios. Um prisioneiro desprovido de dinheiro e influência descobre a impossibilidade de sua fuga, quer considerando a obstinação do carcereiro, quer verificando as paredes e grades que o cercam; e, em todos os seus esforços para conseguir libertar-se, opta antes trabalhar sobre a pedra e o ferro dos últimos do que sobre a natureza inflexível dos primeiros. O mesmo prisioneiro, ao ser conduzido para o cadafalso, prevê sua morte com tanta certeza devido à constância e fidelidade dos guardas como à operação do machado ou da roda. Seu espírito percorre uma certa série de idéias: a negativa dos soldados em con­sentirem em sua fuga, a ação do carrasco, a separação de sua cabeça de seu corpo, a sangria, movimentos convulsivos e a morte. Há aqui um encadeamento complexo de causas naturais e de atos voluntários, mas o espírito não sente nenhuma diferença ao passar de um elo a outro. Não se sente também menos seguro do evento futuro, como se este estivesse ligado aos objetos presentes à memória e aos sentidos por uma série de causas, aglutinadas entre si pelo que nos agrada denominar de necessidade física. A experiência da mesma uma o tem o mesmo efeito sobre o espírito, quer os objetos unidos sejam motivos, volição e ações, quer sejam uma figura e um movimento. Podemos mudar o nome das coisas, porém sua natureza e sua ação sobre o entendimento não mudam jamais.
Se um homem, que sei que é honesto e rico e com o qual mantenho íntima amizade, vem à minha casa onde estou rodeado por meus criados, estou bem seguro que não me apunhalará antes de sair a fim de roubar meu tinteiro de prata e deste evento suspeito tanto como de que venha abaixo a casa, que é nova e solidamente construída e alicerçada. Mas ele poderia ser acometido de uma súbita e desconhecida loucura. E do mesmo modo pode ocorrer um repentino terremoto que sacuda minha casa e a faça cair sobre minha cabeça. Substituirei, pois, a hipótese. Direi que tenho certeza que ele não colocará sua mão no fogo deixando-a nele até que se consuma. Este evento, posso prevê-lo com a mesma segurança, penso eu, como prevejo que, se ele se jogar pela janela e não encontrar nenhum obstáculo, não permanecerá um momento sequer suspenso no ar. Não existe nenhuma forma de loucura desconhecida que possa conferir a menor possibilidade ao primeiro evento, tão contrário a todos os prin­cípios conhecidos da natureza humana. Um homem que ao meio-dia deixa sua bolsa cheia de ouro na calçada de Charing Cross pode esperar que ela voará como uma pena ou que uma hora depois estará intacta. Mais da metade dos raciocínios humanos contém inferências de natureza semelhante, acompanhadas de um maior ou menor grau de certeza pro­porcional à nossa experiência da conduta habitual dos homens em tais situações particulares.8
Tenho freqúentemente considerado qual poderia ser a razão pela qual toda a humanidade, embora tenha sempre e sem hesitação reco­nhecido a doutrina da necessidade em toda sua ação prática e em todos os seus raciocínios9, manifesta-se, contudo, relutante em reco­nhecê-la em palavras, tendo antes mostrado, em toda época, uma ten­dência a professar opinião contrária. O fato, penso eu, pode ser ex­plicado da seguinte maneira. Se examinamos as ações dos corpos e a produção dos efeitos a partir de suas causas, veremos que nenhuma de nossas faculdades pode levar-nos mais longe no conhecimento desta relação que a simples constatação de uma conjunção constante entre objetos particulares, e de uma tendência do espírito em passar, por uma transição costumeira, do aparecimento de um para a crença no outro. Mas, embora esta conclusão acerca da ignorância humana seja o resultado do mais cuidadoso exame sobre o assunto, os homens ainda mantém uma forte tendência em acreditar que penetraremos mais profundamente nos poderes da natureza e que perceberemos qualquer coisa semelhante a uma conexão necessária entre a causa e o efeito. Quando dirigem de novo suas reflexões para as operaçoes de seus próprios espíritos e não sentem tal conexão entre o motivo e a ação, são então levados a supor que há uma diferença entre os efeitos resultantes da força material e aqueles que nascem do pensamento e da inteligência. Mas desde que estamos convencidos de que nada sa­bemos a mais sobre toda espécie de causalidade do que unicamente a conjunção constante de objetos e a conseqúente inferência do espírito de um a outro, e admitindo-se que toda gente concorda que estas duas circunstâncias intervêm nos atos voluntários, podemos mais fa­cilmente reconhecer que a mesma necessidade é comum a todas as causas. E embora este raciocínio possa contradizer os sistemas de mui­tos filósofos, atribuindo a necessidade às determinações da vontade, veremos, depois de refletir, que eles discordam somente em palavras e não em seu sentimento real. A necessidade, no sentido que a en­tendemos aqui, nunca tem sido rejeitada, nem pode ser rejeitada, penso eu, por um filósofo. Pode-se apenas pretender, talvez, que o espírito deve perceber, nas operações materiais, uma conexão adicional entre a causa e o efeito; e que esta conexão não intervém nas ações volun­tárias dos seres inteligentes. Ora, se isto ocorre assim ou não, somente a investigação pode revelar; é, portanto, dever destes filósofos de jus­tificarem sua afirmativa, definindo ou descrevendo esta necessidade e no-la mostrando nas operações das causas materiais.
Parece, certamente, que se começa pelo lado errado sobre a ques­tão da liberdade e da necessidade quando nela se penetra examinando as faculdades da alma, a influência do entendimento e as operações da vontade. Dever-se-ia, primeiramente, discutir um problema mais simples, a saber, as ações do corpo e da matéria bruta, e verificar se pode formar alguma idéia da causalidade e da necessidade, além de uma conjunção constante de objetos e a subseqüente inferência do es­pírito de um para o outro. Se estas circunstâncias formam, com efeito, toda a necessidade que concebemos na matéria, e se estas circunstân­cias intervêm também, por reconhecimento universal, nas operações do espírito, a discussão está terminada; pelo menos, deve-se reconhecer que ela é, de agora em diante, puramente verbal. Mas, contanto que suponhamos temerariamente que temos uma idéia adicional da ne­cessidade e da causalidade nas operações dos objetos externos, ao mesmo tempo que nada a mais podemos encontrar nas ações volun­tárias do espírito, não há possibilidade de conduzir a questão para uma solução determinada enquanto procedemos sobre uma hipótese tão crônica. O único método adequado para esclarecer-nos consiste em subir mais alto e, examinando a estreiteza do campo da ciência que se aplica às causas materiais, convencer-nos de que tudo que apreendemos delas se restringe à conjunção constante e à inferência acima mencionadas. Podemos, talvez, notar que é com relutância que somos induzidos a fixar limites tão estreitos ao entendimento humano; mas a seguir não encontraremos obstáculos ao aplicar esta doutrina aos atos da vontade. Pois, como é evidente que estas. ações estão em conjunção regular com os motivos, as circunstâncias e os caracteres, e como sempre tiramos inferências de uns aos outros, somos obrigados a reconhecer em palavras aquela necessidade que já temos reconhecido em todas as deliberações de nossa vida e em todos os passos de nossa conduta e de nossas ações.10
Mas para realizar nosso projeto de reconciliação relativo à ques­tão da liberdade e da necessidade – a mais controvertida questão da metafísica, a mais litigiosa das ciências – não precisamos de muitas palavras para provar que todos os homens sempre têm concordado a respeito da doutrina da liberdade, assim como com a da necessidade, e que toda discussão a este respeito também tem sido, até agora, pu­ramente verbal. Pois o que se entende por liberdade quando se aplica a palavra às ações voluntárias? Não podemos certamente dizer que estes atos têm tão pouca conexão com os motivos, as inclinações e as circunstâncias, que um não deriva do outro com um certo grau de uniformidade e que um não proporciona nenhuma inferência pela qual podemos concluir a existência do outro. Pois estes são fatos pa­tentes e reconhecidos. Por liberdade, então, podemos apenas entender um poder de agir ou de não agir segundo as determinações da vontade;11 isto é, se escolhermos permanecer em repouso, podemos; mas, se esco­lhermos mover-nos, também podemos. Ora, reconhece-se universalmente que esta liberdade incondicional encontra-se em todo homem que não esteja prisioneiro ou acorrentado. Logo, aqui não há assunto para discussão.
Acerca de qualquer definição que possamos dar de liberdade, devemos cuidadosamente observar duas circunstâncias indispensá­veis: primeira, a definição deve estar de acordo com a evidência do fato; segunda, a definição deve concordar com ela mesma. Se obser­varmos estas circunstâncias e se tornarmos nossa definição inteligível, estou persuadido de que todos os homens terão uma só opinião a respeito deste assunto.
Admite-se universalmente que nada existe sem uma causa de sua existência e que a palavra ‘acaso”, se examinada com cuidado, é puramente negativa e não designa nenhuma força real que exista em qualquer lugar na natureza. Mas se se pretende que algumas causas são necessárias enquanto outras não o são, vemos então a vantagem das definições. Se alguém definisse uma causa, sem compreender, como elemento da definição, a conexão necessária com o seu efeito, e se mos­trasse distintamente a origem da idéia expressa pela definição, desis­tiria prontamente de toda controvérsia. Mas, se se aceita a explicação anterior do assunto, isto deve ser absolutamente impraticável. Se os objetos não tivessem entre si uma conjunção regular, nunca formaría­mos qualquer noção de causa e de efeito; esta conjunção regular produz a inferência no entendimento, que é a única conexão da qual podemos ter alguma compreensão. Quem pretender definir a causa, excluindo estas circunstâncias, será obrigado a empregar termos ininteligíveis ou dar sinônimos do termo que se tenta esforçar por definir.12 Se se admite a definição acima citada, a liberdade, oposta à necessidade e não à restrição, é a mesma coisa que o acaso e a respeito do qual toda a gente está de acordo que não existe.


SEGUNDA PARTE


Não há método mais comum de raciocinar – e não obstante nenhum mais censurável – do que refutar as hipóteses nas discussões filosóficas sob pretexto de conterem perigosas conseqüências para a religião e a moral. Quando uma opinião conduz ao absurdo, é certamente falsa, mas não é evidente que uma opinião seja falsa porque suas conseqüências são perigosas. Devem-se evitar inteiramente tais lugares-comuns, pois eles em nada auxiliam na descoberta da verdade, servindo apenas para tornar odiosa a pessoa de um adversário. Faço esta observação de modo geral, sem pretender tirar qualquer vantagem dela. Submeto-me francamente a um exame deste gênero, e ousarei afirmar que as duas doutrinas, da necessidade e da liberdade, tais como foram explicadas acima, não são apenas compatíveis com a mo­ral, mas são absolutamente essenciais para apoiá-la.
A necessidade pode definir-se de duas maneiras, de acordo com duas definições de causa, da qual ela constitui uma parte essencial. Consiste, ou na conjunção constante de objetos semelhantes, ou na inferência que faz o entendimento de um objeto a outro. Ora, a necessidade, nestes dois sentidos – que, certamente, em essência são a mesma coisa – é reconhecida por toda a gente, embora tacitamente, nas escolas, no púlpito e na vida diária, ela pertença à vontade humana; jamais alguém pretendeu negar que podemos tirar inferências das ações humanas, e que estas inferências se baseiam sobre a experiência da união de atos semelhantes com motivos, inclinações e situações semelhantes. Alguém pode, talvez, discordar apenas num aspecto, qual seja, recusar nomear necessidade a esta qualidade dos atos humanos; todavia, compreendendo-se seu significado, a denominação, creio eu, não pode ocasionar nenhum mal; ou então, sustenta que é possível desvendar alguma coisa a mais nas operações da matéria. Mas isto, devemos confessar, não pode trazer nenhuma conseqüência para a moral e a religião, qualquer que seja sua importância na filosofia na­tural ou metafísica. Podemos enganar-nos aqui afirmando que não há idéia de uma outra necessidade ou conexão nas ações dos corpos; mas certamente não atribuímos nada aos atos do espírito senão o que cada um admite e deve prontamente admitir. Não mudamos em nenhum pormenor o sistema ortodoxo recebido acerca da vontade, mudamo-lo apenas nas ocorrências relativas aos objetos e às causas materiais. Por­tanto, nada pode ser mais inocente do que esta doutrina.
Como todas as leis se baseiam em recompensas e castigos, ad­mite-se como principio fundamental que estes motivos têm uma in­fluência regular e uniforme sobre o espírito, e que tanto produzem boas ações como impedem as más. Podemos dar a esta influência o nome que mais nos agrada, mas como está usualmente conjuntada com a ação devemos considerá-la uma causa e olhá-la como um exem­plo da necessidade que queríamos estabelecer aqui.
O único objeto próprio do ódio ou da vingança é uma pessoa ou criatura dotada de pensamento e de consciência; e quando atos injuriosos ou criminais excitam esta paixão, referem-se à pessoa ou estão em conexão com ela. As ações são, por sua própria natureza, temporais e perecíveis e se não procedem de alguma causa que reside no caráter ou disposição da pessoa que as realizou não podem redun­dar em sua honra, se são boas, nem em sua infância, se são más. Admitamos agora que as próprias ações podem ser condenáveis e contrárias a todas as regras da moral e da religião, mas que a pessoa não é responsável por elas. Como as ações não procedem de algo que seja durável e constante, e que não deixam atrás de si nada desta natureza, é impossível que por causa delas a pessoa possa tornar-se objeto de castigo ou de vingança. Assim, de acordo com o princípio que nega a necessidade e, por conseguinte, as causas, um homem é tão puro e imaculado depois de ter cometido o mais horrendo crime como no primeiro momento de seu nascimento, já que seu caráter não se relaciona com suas ações, pois elas não derivam dele, e a perver­sidade de umas não serve para provar a depravação do outro.
Não se acusam os homens por ações que tenham desempenhado, casualmente ou sem querer, quaisquer que possam ser suas conseqüências. Por quê? Simplesmente porque os princípios destas ações são apenas momentâneos e terminam unicamente nelas. Os homens são menos culpados pelas ações que desempenham apressadamente e sem premeditação que por aquelas que realizam depois de delibe­rarem. Por quê? Somente porque um temperamento precipitado, em­bora dotado de uma causa ou princípio constante no espírito, atua apenas por intervalos e não corrompe todo o caráter. Por outro lado, o arrependimento purifica todos os crimes, se acompanhado de uma reforma da vida e dos costumes. Como explicar isto? Apenas decla­rando que as ações tornam alguém criminoso quando elas constituem provas da existência de princípios criminais, em seu espírito; quando, por uma alteração destes princípios, deixam de ser provas concluden­tes, igualmente deixam de ser criminais. Mas, excetuando a doutrina da necessidade, elas nunca foram provas concludentes e, por conseguinte, nunca foram criminais.
Será igualmente fácil provar, usando os mesmos argumentos, que a liberdade, segundo a definição acima mencionada e com a qual todos os homens concordam, é também essencial à moralidade e que nenhuma ação humana na qual não se encontra presente é suscetível de qualidades morais, ou possa ser objeto de aprovação ou desapro­vação. Pois, como as ações são os objetos de nosso sentimento moral, unicamente na medida em que são indícios do caráter interno, de paixões e de afeições, é impossível que elas possam ocasionar o elogio ou a crítica, se elas não procedem destes princípios e se elas derivam inteiramente de uma intervenção exterior.
Não tenho a pretensão de ter dissipado ou removido todas as objeções sobre a teoria da necessidade e da liberdade. Prevejo outras objeções que procedem de argumentos que não foram tratados aqui. Pode-se dizer que, por exemplo, se as ações voluntárias estivessem sujeitas às mesmas leis da necessidade que as operações da matéria, haveria uma cadeia contínua de causas necessárias preordenadas e predeterminadas, decorrendo da causa original de tudo para alcançar a vontade particular de cada criatura. Porquanto em nenhum lugar do universo há contingência, nem indiferença e nem liberdade. En­quanto agimos, algo age, por sua vez, sobre nós. O Autor último de todas as nossas vontades é o Criador do mundo, quem, no início, deu o impulso a esta imensa máquina e colocou todos os seres nesta posição particular, de onde deve resultar, por uma necessidade inevitável, todo evento posterior. Portanto, as ações humanas, ou não podem ser em nada moralmente depravadas, porquanto elas procedem de uma tão boa causa; ou se são depravadas devem envolver nosso Criador na mesma culpa, visto que é reconhecido como sua última Causa e Autor.
Pois, do mesmo modo que um homem que faz explodir uma bomba é responsável por todas as conseqüências, quer seja comprida ou curta a mecha que ele empregou, assim, uma vez que se tenha fixado uma cadeia contínua de causas necessárias, este Ser, seja finito ou infinito, que produz a primeira causa, é igualmente o Autor de toda a cadeia, e deve igualmente suportar a censura e receber o elogio que lhe cor­respondem. Nossas idéias morais, claras e inalteráveis, estabelecem esta regra, sobre razões indiscutíveis, quando examinamos as conseqüências de uma ação humana; e estas razões devem ter ainda maior força quando se aplicam às volições e intenções de um Ser infinita­mente sábio e potente. Pode-se alegar ignorância ou impotência em favor de uma criatura tão limitada como o homem, mas estas imper­feições não são inerentes ao nosso Criador. Ele previu, ordenou e pla­nejou todas as ações humanas, que nós, temerariamente, denominamos criminais. Portanto, devemos concluir, ou elas não são criminais, ou Deus, e não o homem, é responsável por elas. Mas tanto uma como outra afirmação é absurda e impia; por conseguinte a doutrina da qual elas são deduzidas não pode sem dúvida ser verdadeira, porque está exposta às mesmas objeções. Uma conseqüência absurda, se é necessária, demonstra que a doutrina original é absurda, do mesmo modo que as ações criminais tornam criminosa a causa original, se a conexão entre elas é necessária e inevitável.
Esta objeção compreende duas partes que examinaremos sepa­radamente. Primeira, se se puder remontar das ações humanas até Deus por um encadeamento necessário, elas nunca podem ser criminais, devido à infinita perfeição do Ser do qual elas procedem e que não pode querer nada que não seja completamente bom e louvável. Se­gunda, se estas ações são criminais, devemos contestar o atributo de perfeição que conferimos a Deus e reconhecê-lo como o autor último da culpabilidade e baixeza moral de todas as suas criaturas.
A resposta à primeira objeção parece evidente e convincente. Há numerosos filósofos que, depois de examinarem atentamente todos os fenômenos da natureza, concluem que o Todo, considerado como um sistema, está ordenado com perfeita benevolência em todos os períodos de sua existência; e que no final resultará a máxima felicidade possível para todos os seres criados, sem nenhuma mistura de mal ou de miséria positiva ou absoluta. Todo mal físico, dizem eles, cons­titui uma parte essencial deste benevolente sistema, e não poderia ser suprimido, nem sequer pelo próprio Deus, considerado um agente sábio, sem dar entrada a um mal maior ou sem excluir um maior bem que resultar dele. Desta teoria, alguns filósofos, e dentre eles os antigos Estóicos, derivaram um tema de consolo para todas as aflições, pois ensinavam a seus discípulos que os males que sofriam eram, na rea­lidade, bens para o universo; e que desde um ponto de vista mais amplo, compreendendo todo o sistema da natureza, todo evento tor­nar-se-ia objeto de alegria e exaltação. Mas, embora este tema seja plausível e sublime, logo se viu na prática que era débil e ineficaz. Certamente, irritareis mais do que tranqúilizareis um homem ator­mentado pelas dores da gota, fazendo-lhe sermões sobre a retidão destas leis gerais que produziram os humores malignos no seu corpo e os levaram através de canais adequados até aos tendões e aos nervos onde agora provocam estes agudos tormentos. Estas generalizações podem agradar, por um momento, a imaginação especulativa de um homem que se acha tranqüilo e seguro, mas elas não podem impor-se com constância em seu espírito, mesmo quando não esteja perturbado pelas emoções da dor e da paixão, e muito menos podem manter sua posição quando se vê atacado por tão poderosos antagonistas. As ten­dências humanas consideram seu objeto mais de perto e com maior naturalidade; e segundo uma organização mais adequada à debilidade dos espíritos humanos, referindo-a apenas aos seres que nos envolvem, deixam-se influenciar pelos eventos que se manifestam como bons ou maus aos sistemas pessoais.
Com o mal moral ocorre o mesmo que com o mal físico. Não se pode supor razoavelmente que estas remotas considerações, de tão pouca eficácia com respeito a um, terão uma ação mais poderosa acerca do outro. O espírito humano está naturalmente formado de maneira a ter um sentimento de aprovação ou de censura quando da aparição de certos caracteres, de certas disposições e ações; não há emoções mais essenciais à sua estrutura e à sua constituição. Os personagens que atraem nossa aprovação são principalmente aqueles que contri­buem para a paz e a segurança da sociedade humana; os personagens que provocam censura são principalmente aqueles que tendem ao pre­juízo e agitações públicas; pode-se razoavelmente presumir que os sentimentos morais nascem, seja mediatamente seja imediatamente, de uma reflexão sobre estes interesses opostos. Que importa que as meditações filosóficas elaborem opinião ou conjetura contrária, asse­verando que tudo está de acordo com o Todo, e que os caracteres que perturbam a sociedade são, em sua maior parte, tão benéficos e ade­quados à intenção primitiva da natureza como aquelas que contribuem mais diretamente para a sua felicidade e bem-estar? São capazes, estas remotas e inseguras especulações, de equilibrarem os sentimentos que surgem da observação natural e imediata dos objetos? Um homem que é roubado de uma considerável soma de dinheiro diminui em algo seu aborrecimento por meio destas sublimes reflexões? Por que estas sublimes reflexões poderiam considerar-se incompatíveis com seu ressentimento moral contra o delito? Ou, por que não se poderia conciliar o reconhecimento de uma distinção real entre o vício e a virtude com todos os sistemas da filosofia especulativa, assim como o de uma distinção real entre a beleza e a fealdade pessoais? Estas duas distinções baseiam-se nos sentimentos naturais do espírito hu­mano; e estes sentimentos não podem ser controlados ou alterados por nenhuma teoria filosófica, nem por nenhuma especulação.
A segunda objeção não é passível de resposta tão fácil e satis­fatória, já que não é possível explicar distintamente como Deus, sendo causa mediata de todas as ações humanas, não é também autor do pecado e da depravação moral. Estes são mistérios que a mera razão natural, sem outros recursos, não pode tratar adequadamente, e qual­quer que seja o sistema que ela adote, ver-se-á envolvida em dificul­dades insolúveis, e mesmo em contradições, em cada passo que dá ao investigar estes temas. Até agora, reconciliar a indiferença e a contingência das ações humanas com a presciência, ou defender os de­cretos absolutos excluindo de Deus a autoria do pecado, é uma tarefa que tem superado todo o poder da filosofia. Afortunada aquela filosofia que, consciente de sua temeridade ao espreitar estes mistérios sublimes, deixa uma cena tão cheia de obscuridades e perplexidades e volta com modéstia adequada para o seu verdadeiro domínio – o exame da vida cotidiana – onde encontrará suficientes dificuldades ao em­preender suas investigações, sem lançar-se num oceano tão ilimitado de dúvidas, de incertezas e de contradições.


SEÇÃO IX
DA RAZÃO DOS ANIMAIS


Todos os nossos raciocínios a propósito das questões de fato se fundam numa espécie de analogia que nos faz esperar de uma causa os mesmo eventos que temos visto resultar de causas semelhantes. Se as causas são inteiramente semelhantes, a analogia é perfeita e a inferência, tirada delas, é considerada segura e conclusiva; nenhum ho­mem que vê um pedaço de ferro jamais duvidará que tem peso e coesão entre as partes, tal como tem ocorrido em todos os outros casos que caíram sob sua observação. Mas, se os objetos não possuem uma semelhança tão rigorosa, a analogia é menos perfeita e a inferência é menos conclusiva, embora conserve alguma força em proporção ao grau de semelhança. As observações anatômicas feitas sobre um ser animado estendem-se, por esta espécie de raciocínio, a todos os seres animados. Certamente, quando, por exemplo, se prova claramente que a circulação do sangue se processa numa criatura, como a rã ou um peixe, forma-se uma forte presunção de que o mesmo princípio se encontra em todas as outras criaturas. Estas observações analógicas podem ser levadas mais longe, até mesmo à ciência de que atualmente estamos tratando; e qualquer teoria que nos sirva para explicar as operações do entendimento, ou a origem e a conexão das paixões humanas, adquirirá maior autoridade se verificarmos que esta mesma teoria é necessária para explicar o mesmo fenômeno em todos os outros seres animados. Submeteremos a esta prova a hipótese que na expo­sição precedente nos permitiu tentar explicar todos os raciocínios ex­perimentais; esperamos que este novo enfoque servirá para confirmar todas as observações anteriores.
Em primeiro lugar, parece evidente que os animais, como os ho­mens, apreendem muitas coisas da experiência e inferem que os mes­mos eventos resultarão sempre das mesmas causas. Mediante este prin­cípio, familiarizam-se com as propriedades mais evidentes dos objetos externos, e gradualmente, a partir de seu nascimento, acumulam co­nhecimentos sobre a natureza do fogo, da água, da terra, das pedras, das altitudes, das profundidades etc., e daquilo que resulta de sua ação. Aqui se distingue claramente a ignorância e a inexperiência do jovem frente à astúcia e à sagacidade dos velhos que têm aprendido, por uma longa observação, a evitar o que os fere e a perseguir o que lhes proporciona bem-estar e prazer. Um cavalo habituado ao campo familiariza-se com a altura apropriada que pode saltar e nunca tentará superar aquela que ultrapassa suas forças e habilidades. Um velho galgo confiará a parte mais fatigante da caça aos mais jovens e se colocará em posição apropriada para abocar a lebre quando esta de repente se voltar; as conjeturas que faz neste caso não têm outro fun­damento senão sua observação e experiência.
Isto é ainda mais evidente se se considerarem os efeitos da ades­tração e da educação sobre os animais, aos quais mediante a aplicação adequada de castigos e recompensas, se pode ensinar a efetuar qual­quer classe de atividade, inclusive as mais contrárias aos seus instintos e inclinações naturais. Não é a experiência que faz com que um cão tema a dor, quando o ameaçais e levantais o látego para enxotá-lo? Não é também a experiência que o faz responder por seu nome e a inferir, de um som arbitrário, que o designais e não a alguns de seus companheiros, e que quereis chamá-lo, quando emitis este som de uma certa maneira, com certa tonalidade e inflexão?
Em todos estes casos, podemos constatar que o animal infere um fato que ultrapassa aquilo que impressiona imediatamente seus sentidos, e que esta experiência está completamente fundada na experiência pas­sada, visto que a criatura espera do objeto presente os mesmos resultados que, em sua observação, sempre tem visto derivar de objetos semelhantes.
Em segundo lugar, é impossível que esta inferência do animal possa fundar-se em algum processo de argumento ou do raciocínio pelo qual conclui que eventos iguais devem seguir a objetos iguais, e que a ordem natural será sempre regular em suas operações. Porque, se na realidade há alguns argumentos desta natureza, são certamente demasiado abstrusos para a observacão de entendimentos tão imper­feitos, já que, para descobri-los e observá-los, se necessita do máximo cuidado, atenção e temperamento de um filósofo. Portanto, os animais não são guiados pelo raciocínio nestas inferências; nem as crianças, nem a generalidade dos homens em suas ações e conclusões ordinárias; nem os próprios filósofos, que, em todos os momentos ativos de sua vida, são, em sua maioria, parecidos com o vulgo e deixam-se governar pelas mesmas máximas. A natureza deve ter fornecido alguns outros princípios de aplicação e de uso mais rápido e mais geral, visto que uma operação de tão grande importância na vida, como é a inferência de efeitos a partir de suas causas, não pode ser confiada a um processo inseguro do raciocínio e da argumentação. Se o fato é duvidoso com respeito aos homens, parece que não admite dúvida em relação aos seres irracionais; e uma vez que a conclusão está firmemente estabe­lecida para uns, temos uma forte presunção, segundo todas as regras da analogia, de que deveria admitir-se universalmente sem nenhuma exceção ou reserva. Pois unicamente o costume induz os animais a inferir, a partir de todo objeto que impressiona seus sentidos, seu acompanhante usual, e leva sua imaginação a conceber um pelo apa­recimento do outro desfa maneira particular que denominamos crença. Nenhuma outra explicação pode ser dada desta operação, quer nas classes superiores quer nas classes inferiores dos seres sensíveis, que tombam sob nossa observação e conhecimento.1
Mas, embora os animais extraiam da observação grande parte de seus conhecimentos, há também outras partes decorrentes do poder ori­ginal da natureza, superando em muito a porção de capacidade que têm em ocasioes ordinárias e que eles aperfeiçoam, pouco ou nada, mediante grande prática e experiência. E isso que denominamos de instintos, e os admiramos como algo mui extraordrnário e inexplicável por todas as investigações do entendimento humano. Mas nossa admiração, talvez, cessará ou diminuirá, quando consideramos que o próprio raciocínio ex­perimental, que possuímos em comum com os animais, e do qual depende toda a conduta da vida, nada é senão uma espécie de instinto ou de poder mecânico, agindo em nós de um modo desconhecido de nós mes­mos; e que em suas principais operações não está dirigido por nenhuma das relações ou comparaçoes de idéias, que são os objetos próprios de nossas faculdades intelectuais. Embora o instinto seja diferente, é, sem dúvida, um instinto que ensina o homem a evitar o fogo; do mesmo modo que ensina a um pássaro, com tanto rigor, a arte da incubação e toda a organização e ordem de seus cuidados educativos.


SEÇÃO X
DOS MILAGRES1


PRIMEIRA PARTE


Há, nos escritos do Dr. Tillotson2 um argumento contra a presença real, que é tão conciso, elegante e poderoso, como pode supor-se de um argumento contra uma doutrina tão pouco digna de séria refutação. Admite-se universalmente, diz o sábio prelado, que a autoridade da Escritura ou da tradição se baseia unicamente no depoimento dos apóstolos, que foram as testemunhas oculares dos milagres de nosso Salvador, pelos quais provou sua missão divina. Portanto, nossa evi­dência em favor da verdade da religião cristã é menor do que a evi­dência da verdade de nossos sentidos, porque mesmo nos primeiros autores de nossa religião não era maior; e é evidente que ela deve diminuir passando deles para os seus discípulos; ninguém pode pois depositar, em relação aos seus testemunhos, a mesma confiança que tem em relação ao objeto imediato de seus sentidos. Mas uma evidência mais fraca nunca pode destruir uma mais forte; portanto, se a doutrina da presença real estivesse revelada na Escritura tão claramente como se queira, seria diretamente contrário às regras do raciocínio exato dar nosso assentimento. Contradiz os sentidos, visto que tanto a Es­critura como a tradição, sobre as quais se supõe que está edificada, não são tão evidentes como os sentidos, se elas são consideradas me­ramente como evidências externas e não como dirigidas ao coração de cada um por obra imediata do Espírito Santo.
Nada é tão convincente como um argumento decisivo deste gê­nero que, pelo menos, deve reduzir ao silêncio o fanatismo e a supers­tição mais arrogantes e livrar-nos de suas impertinentes solicitações. Congratulo-me por ter descoberto um argumento de natureza análoga que, se é legítimo, servirá de obstáculo eterno, junto aos sábios e dou­tos, a toda espécie de ilusão supersticiosa e, por conseguinte, será de utilidade enquanto existir o mundo. Porque presumo que em todos os tempos da história sagrada e profana3 encontrar-se-ão relatos de prodígios e de milagres.
Embora a experiência seja o nosso único guia no raciocínio sobre as questões de fato, deve-se reconhecer que este guia não é totalmente infalível e que, em alguns casos, pode conduzir-nos a erros. Uma pessoa que esperasse em nosso clima melhor tempo durante uma semana de junho do que uma de dezembro, raciocinaria corre­tamente de acordo com a experiência; todavia é também verdade que ela pode ver-se equivocada acerca do evento. E, não obstante, podemos observar que, em tal caso, não teria nenhum motivo para queixar-se da experiência, visto que ela nos informa, comumente e por anteci­pação, da incerteza, mediante a oposição de eventos que poderíamos apreender através de uma observação diligente. Todos os efeitos não resultam com a mesma segurança das supostas causas. Alguns eventos se encontram em todos os países e em todas as épocas em conjunção constante; outros, contudo, têm sido mais variáveis e às vezes têm decepcionado nossas expectativas; de modo que, em nossos raciocínios acerca das questões de fato, há todos os graus imagináveis de certeza, desde a mais alta certeza até as formas mais inferiores da certeza moral.
Um homem sábio,4 portanto, torna sua crença proporcional à evidência. Nas conclusões que se baseiam numa experiência infalível, espera o evento com o máximo grau de segurança e considera a ex­periência passada uma prova completa da existência futura deste even­to. Em outros casos, procede com mais precaução; pesa as experiências contrárias; considera qual dos lados está apoiado por maior número de experiências; é para este lado que se inclina, com dúvida e hesitação; e quando finalmente estabelece seu juízo a evidência não ultrapassa o que denominamos propriamente de probabilidade. Toda probabilida­de, portanto, supõe uma oposição de experiências e de observações, na qual um dos lados sobrepuja o outro e produz um grau de evidência proporcional à superioridade. Cem casos ou experiências de um lado e cinquenta do outro fornecem uma expectativa duvidosa de qualquer evento; contudo, cem experiências uniformes, com apenas uma que é contraditória, engendram racionalmente um grau bastante alto de se­gurança. Em todos os casos, devemos contrabalançar as experiências opostas, se são opostas, e subtrair os números menores dos maiores a fim de conhecer a força exata da evidência superior.
Aplicando estes princípios a um caso particular, constatamos que não há espécie de raciocínio mais comum, mais útil e mesmo mais necessário à vida humana que o derivado do depoimento hu­mano, dos relatos das testemunhas oculares e dos expectadores. Ne­gar-se-ia, talvez, que esta espécie de raciocínio se funda na relação de causa e efeito. Não discutirei sobre a terminologia. Será suficiente notar, contudo, que nossa segurança em qualquer argumento deste gênero não deriva de outro princípio senão da constatação da veracidade do testemunho humano e da conformidade usual dos fatos com os relatos das testemunhas. Como um princípio geral diz que em nenhum objeto se pode descobrir uma conexão, e que todas as inferências que pode­mos tirar de um para o outro se baseiam unicamente em nossa expe­riência de sua conjunção constante e regular, é evidente que não de­vemos fazer uma exceção deste princípio em favor do testemunho humano, cuja conexão com qualquer evento em si mesmo parece mui pouco necessária como qualquer outra.5 Se a memória não fosse até certo grau tenaz, se os homens não tivessem geralmente inclinação para a verdade e princípio de probidade, se não fossem sensíveis à vergonha quando se descobrem suas mentiras; se a experiência, digo eu, não revelasse que essas qualidades são inerentes à natureza hu­mana, não depositaríamos jamais a menor confiança no testemunho humano. Um homem que delira ou que é conhecido por sua falsidade e sua vilania não tem nenhuma espécie de autoridade para nós.
Como o depoimento que deriva das testemunhas e do testemu­nho humano se funda sobre a experiência passada, varia com a ex­periência e se considera ou uma prova ou uma probabilidade, conforme se tem verificado constante ou variável a conjunção entre um gênero particular do relato e um gênero do objeto. Devem-se, portanto, levar em consideração numerosas circunstâncias em todos os julgamentos deste gênero; e a última regra que nos permite decidir em todas as discussões que podem nascer a respeito deste tema deriva sempre da experiência e da observação. Se esta experiência não é inteiramente uniforme em um dos dois lados, gerará uma inevitável contradição em nossos juízos, cujos argumentos apresentam a mesma oposição e destruição mútua como em qualquer outro gênero de evidência. Frequentemente duvidamos dos relatos de outrem. Contrabalançamos as circunstâncias opostas originárias de alguma dúvida ou incerteza; e quando descobrimos uma superioridade a favor de um lado, inclina­mo-nos para ele, porém com segurança diminuída em proporção à força de seu antagonista.6
Esta contradição da evidência no caso presente pode derivar de diferentes causas: da oposição de testemunhos contrários, do caráter ou do número de testemunhas, da maneira como eles produzem seus tes­temunhos, ou da união de todas essas circunstâncias. Suspeitamos de uma questão de fato quando as testemunhas se contradizem entre si, quando são poucas e de caráter duvidoso, quando têm algum interesse pessoal naquilo que afirmam, quando enunciam seu testemunho com hesitação ou, pelo contrário, com afirmações mui violentas. Há muitos outros aspectos do mesmo gênero que podem diminuir ou destruir a força de qualquer argumento derivado do testemunho humano.
Suponha, por exemplo, que o fato que o testemunho tenta esta­belecer tem de algo extraordinário e de maravilhoso; neste caso, a evidência que resulta do testemunho admite uma diminuição maior ou menor em proporção ao fato que é mais ou menos invulgar. A razão que nos leva a dar algum crédito às testemunhas e aos histo­riadores não deriva de nenhuma conexão que percebemos a priori entre o testemunho e a realidade, mas do fato de estarmos acostumados a encontrar uma conformidade entre eles. Contudo, quando o fato testificado é tal que raramente caiu sob nossa observação, produz-se então um conflito entre duas experiências opostas, em que uma destrói a outra em proporção de sua força, e a experiência superior apenas pode agir sobre o espírito com a força que lhe resta. E precisamente este mesmo princípio da experiência que nos fornece certo grau de segurança sobre o depoimento das testemunhas, e que nos dá também, neste caso, outro grau de segurança contra o fato que tentam estabe­lecer; e desta contradição surge necessariamente um contrapeso e uma destruição recíproca da crença e da autoridade.
Não acreditaria numa tal história mesmo se Catão ma contasse, era um dito proverbial em Roma, inclusive durante a vida deste filósofo patriota.7 Admitia-se, pois, que a incredibilidade de um fato poderia invalidar tão grande autoridade.
O príncipe hindu que inicialmente se recusou a acreditar nos relatos sobre os efeitos da escarcha raciocinou corretamente, pois, como é natural, necessitar-se-ão testemunhos poderosos para lograr seu as­sentimento acerca de fatos que surgiram de um estado da natureza, com os quais ele não estava familiarizado, e que tinham tão pouca analogia com os eventos dos quais tinha tido uma experiência cons­tante e uniforme. Embora estes fatos não fossem contrários à sua ex­periência, tampouco estavam de acordo com ela.8
Mas, para aumentar a probabilidade contra o depoimento das testemunhas, suponhamos que o fato que afirmam, em vez de ser apenas maravilhoso, é realmente miraculoso, e suponhamos também que o depoimento considerado à parte e em si mesmo equivale a uma prova completa; neste caso, temos prova contra prova, e a mais forte delas deve prevalecer, mas com uma diminuição de sua força em pro­porção à de sua antagonista.
Um milagre é uma violação das leis da natureza; e como uma experiência constante e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, devido à própria natureza do fato, é tão completa como qualquer argumento da natureza que se possa imaginar. Por que é mais do que provável que todos os homens devem morrer; que o chumbo não pode por si mesmo permanecer suspenso no ar; que o fogo consome a madeira e que, por sua vez, a água o extingue; a não ser que estes eventos estão de acordo com as leis da natureza, e que é preciso uma violação destas leis, ou em outras palavras, um milagre, para impedi-los? Nada é considerado um milagre se ocorre no curso normal da natureza. Não é um milagre que um homem, aparentemente de boa saúde, morra subitamente, pois verifica-se que tal gênero de morte, embora mais incomum que qualquer outro, ocorre freqüente­mente. Mas é um milagre que um morto possa ressuscitar, porque isto nunca foi observado em nenhuma época e em nenhum país. Por­tanto, deve haver uma experiência uniforme contra todo evento miraculoso, senão o evento não mereceria esta denominação. E, como uma experiência uniforme equivale a uma prova, há aqui uma prova direta e completa, tirada da natureza fática contra a existência de um milagre; uma tal prova não pode ser destruída nem o milagre fazer-se crível senão por meio de uma prova oposta que lhe seja superior.9
A conseqüência clara – e é uma máxima geral digna de nossa atenção – é que não há testemunho suficiente para fundamentar um milagre, a menos que o testemunho seja tal que sua falsidade seria ainda mais miraculosa que o fato que pretende estabelecer; e mesmo neste caso há mútua destruição de argumentos, e o argumento mais forte nos dá apenas uma segurança proporcional ao grau da força depois da dedução da força inferior. Quando alguém me diz que viu um morto ressuscitar, considero imediatamente comigo mesmo: é mais provável que essa pessoa procure enganar-me ou esteja equivocada, do que o fato que relata possa realmente ter ocorrido. Peso um milagre contra o outro e, de acordo com a superioridade que descubro, pronuncio minha decisão e rejeito sempre o milagre maior. Se a falsidade de seu testemunho fosse ainda mais mi­raculosa que o evento que relata, agora e somente agora, pode pretender orientar minha crença e minha opinião.


SEGUNDA PARTE


No raciocínio precedente supusemos que o testemunho sobre o qual se baseia o milagre pode talvez equivaler a uma prova completa e que a falsidade deste testemunho seria um verdadeiro prodígio. Mas é fácil mostrar que temos sido muito generosos em nossa concessão e que jamais houve um evento miraculoso estabelecido1 sobre uma evidência tão completa.
Porque, em primeiro lugar, não se pode encontrar em toda a his­tória nenhum milagre testificado por número suficiente de homens de tão indubitável bom senso, educação e instrução que nos assegu­rassem contra todo logro de sua parte; de tão indubitável integridade que os pusesse fora de qualquer suspeita de querer enganar os outros; de tal crédito e de tal reputação aos olhos dos homens que perderiam muito se fossem descobertos em alguma falsidade; e, ao mesmo tempo, testificando fatos realizados de um modo tão público e numa parte do mundo tão famosa que seria inevitável a descoberta da falsidade; todas essas circunstâncias são necessárias para fornecer-nos completa segurança no testemunho humano.
Em segundo lugar, podemos observar na natureza humana um princípio que, se examinado com rigor, diminuirá extremamente a segurança que poderíamos ter acerca de algum gênero de prodígio, devido ao testemunho humano. O princípio que geralmente nos orienta em nossos raciocínios estipula que os objetos dos quais não temos nenhuma experiência se assemelham àqueles de que temos experiência; que o que temos visto e é o mais usual é sempre o mais provável; e que, se houver oposição de argumentos, devemos dar preferência aos que se fundam sobre maior número de experiências passadas. Por­quanto, procedendo segundo esta regra, rejeitamos rapidamente um fato raro e inacreditável em escala ordinária; ao avançar mais, contudo, o espírito nem sempre respeita a mesma regra; admitindo apressada­mente, ao contrário, algo que se afirma completamente absurdo e miraculoso, em virtude da mesma circunstância que deveria destruir toda a sua autoridade. A paixão da surpresa e da admiraçãoresultantes dos milagres, é uma emoção agradável que produz uma tendência sensível para que acreditemos nos eventos dos quais derivam. Isto vai tão longe que mesmo aqueles que não podem usufruir imediatamente deste prazer, nem podem acreditar nos eventos miraculosos que lhes comunicam, sentem indubitavelmente prazer em participar de uma satisfação de segunda mão ou por ricochete, e sentem orgulho e deleite a seguir em excitar a admiração dos outros.
Com que avidez se recebem os relatos miraculosos dos viajantes, suas descrições de monstros marinhos e terrestres, suas narrações de aventuras maravilhosas, de homens e costumes estranhos? Entretanto, se o espírito religioso se liga ao amor do maravilhoso, acaba-se todo o bom senso, e o testemunho humano, nestas circunstâncias, perde todas as suas pretensões de autoridade. O beato pode ser um entusiasta e imagina que vê coisas que são irreais; pode estar ciente de que sua narrativa é falsa e assim mesmo persiste nela com as melhores inten­ções do mundo, a fim de promover uma causa tão sagrada. Ou mesmo, se esta ilusão não ocorre, a vaidade excitada por uma tentação tão forte atua nele mais poderosamente do que nos outros homens em outras circunstâncias; ademais, o interesse pessoal age com igual força. Seus ouvintes podem não ter, e geralmente não têm, argu­mentos suficientes para debater seu testemunho; renunciam por princípio a todo senso crítico em relação aos assuntos misteriosos e sublimes; ou, se tivessem grande desejo em empregá-lo, a paixão e uma imaginação ardentes perturbariam a regularidade de suas operações. Sua credulidade aumenta sua imprudência e sua impru­dência subjuga sua credulidade.
A eloqüência, no seu mais alto grau, sobrepuja a razão e a re­flexão; mas como ela se dirige inteiramente à fantasia ou aos afetos, cativa os ouvintes condescendentes e subjuga seu entendimento. Fe­lizmente, é raro que alcance esta culminância. Mas o que um Cícero ou um Demóstenes raramente podiam realizar sobre um auditório romano ou ateniense, qualquer capuchinho, qualquer predicador itine­rante ou sedentário pode desempenhar em maior grau sobre a maioria dos homens, atingindo semelhantes paixões grosseiras e vulgares.
Os numerosos exemplos de milagres forjados, de profecias e de eventos sobrenaturais que, em todas as épocas, têm sido revelados por testemunhas que se opóem ou que se retratam a si mesmos por seu absurdo, são provas suficientes da forte tendência humana para o extraordinário e o maravilhoso e deveriam razoavelmente engendrar suspeitas contra todos os relatos deste gênero. Pois esta é nossa maneira natural de pensar, inclusive em relação aos eventos mais comuns e mais críveis. Não há, por exemplo, gênero de relato que surja tão facilmente e se propague tão depressa, especialmente no campo e nas aldeias de província, como aqueles que se referem aos casamentos; de tal modo que, se duas pessoas jovens de igual condição social são vistas um par de vezes juntas, toda a vizinhança pensa imediatamente em uni-las. O prazer de contar uma novidade tão interessante, de propagá-la e de ser o primeiro a informá-la, invade a inteligência. E isto é tão conhecido que nenhuma pessoa de bom senso presta atenção a tais relatos, até que os veja confirmados por alguma maior evidência. A maioria dos homens não é levada, devido às paixões e outras causas mais fortes, a crer e a transmitir, com a máxima veemência e segurança, todos os milagres religiosos?2
Em terceiro lugar, o fato de que os relatos sobrenaturais proliferam principalmente entre as nações ignorantes e bárbaras constitui forte suspeita contra eles; e se um povo civilizado tem admitido alguns destes relatos, decorre do fato de tê-los recebido de ancestrais igno­rantes e bárbaros, que os transmitiram com a sanção e a autoridade invioláveis que sempre acompanham as opiniões recebidas. Quando examinamos as primeiras histórias de todas as nações, sentimo-nos inclinados a imaginar-nos transportados a um novo mundo, onde toda a trama da natureza está desarticulada e todos os elementos efetuam suas operações de uma maneira diferente que fazem na atualidade. As batalhas, as revoluções, a peste, a fome e a morte não são nunca efeitos de causas naturais que experimentamos. Prodígios, presságios, oráculos e punições divinas ocultam completamente os poucos eventos naturais que se misturam a eles. Mas, como o seu número diminui a cada página, à medida que nos aproximamos das épocas das luzes, rapidamente compreendemos que não há nada de misterioso ou de sobrenatural no assunto, mas que tudo decorre da tendência natural dos homens para o maravilhoso, e que, embora esta inclinação às vezes possa ser refreada pelo bom senso e pela instrução, não pode ser jamais extirpada da natureza humana.
É estranho, tende a dizer um leitor judicioso, depois de ler aten­tamente estes historiadores maravilhosos, que tais eventos prodigiosos não ocorram jamais em nossos dias! Mas creio eu que não há nada de estranho que os homens mintam em todas as épocas. Deveis, certamente, ter encontrado muitos exemplos desta debilidade. Haveis, vós mesmos, ouvido muitos destes relatos maravilhosos que, desprezados por todas as pessoas sábias e sensatas, têm sido finalmente abando­nados até pelo homem comum. Podeis estar seguros de que estas famosas mentiras, que se têm difundido e florescido até alcançarem uma altura tão monstruosa, tiveram origens análogas; mas, como foram semeadas num solo mais propício, cresceram até se tomarem prodígios quase tão grandes como os que aqueles narram.
Teve aguda sagacidade o falso profeta3 Alexandre – atualmente esquecido, embora outrora fosse tão famoso – de estrear suas impos­turas na Paflagôma, onde, como nos diz Luciano, o povo era extre­mamente ignorante e simplório e propenso para absorver mesmo a mais grosseira impostura. Pois as pessoas que habitam regiões dis­tantes e sem possibilidade de se informarem melhor, são também in­duzidas por esta fraqueza a crer que o assunto é o menos digno de investigação. Recebem assim as histórias acrescidas de cem pormeno­res. Enquanto os tolos propagam rapidamente a impostura, os sábios e os doutos contentam-se geralmente em mofar-se de seu absurdo, sem se informarem dos fatos particulares, que permitiriam refutá-las claramente. E, assim, o impostor acima mencionado estava capacitado para proceder, começando por seus ignorantes paflagônios e atraindo sectários até mesmo entre os filósofos gregos e os homens da mais eminente e distinta posição em Roma; além disso, conseguiu atrair a atenção do sábio imperador Marco Aurélio, a ponto de fazer-lhe confiar no êxito de uma expedição militar sobre suas profecias enganadoras.
São tão grandes as vantagens de lançar uma impostura entre um povo ignorante que, mesmo quando a fraude é muito grosseira para se impor à generalidade dos homens – embora raramente isto ocorra –, tem mais possibilidade de triunfar em países longínquos do que se seu primeiro teatro tivesse sido numa cidade renomada por suas artes e conhecimentos. Os mais ignorantes e os mais bárbaros destes bárbaros levam o relato para o estrangeiro. Nenhum de seus compatriotas tem extensas vinculações no exterior, reputação ou au­toridade suficiente para desmentir e destruir o logro. A inclinação dos homens para o maravilhoso tem plena oportunidade de revelar-se. E, assim, uma história completamente desacreditada no lugar onde nas­ceu passará por certa a mil milhas de distância. Mas, se Alexandre tivesse fixado residência em Atenas, os filósofos deste célebre centro de saber teriam imediatamente difundido, por todo o Império Romano, sua opinião sobre o assunto; e sua opinião, apoiada por tamanha au­toridade demonstrada com todas as forças da razão e da eloqüência, teria aberto por completo os olhos dos homens. E verdade que Luciano, ao passar por acaso por Paflagônia, teve oportunidade de realizar estes bons ofícios. Porém, por mais que se deseje, nem sempre ocorre que todo Alexandre se encontre com um Luciano disposto a revelar e desmascarar suas imposturas.4
Como quarta razão5 diminuindo a autoridade dos prodígios, pos­so acrescentar que não há testemunho favorável a nenhum prodígio, mesmo em relação àqueles que não foram expressamente desmasca­rados, que não seja contradito por um número infinito de testemunhas, de modo que não apenas o milagre destrói o crédito do testemunho, mas o testemunho destrói-se a si mesmo. Para tornar isto mais com­preensível, consideremos que em questões religiosas tudo o que é di­ferente é contraditório, e que é impossível que as religiões da antiga Roma, da Turquia, do Sião e da China estejam todas estabelecidas em base sólida. Portanto, todo milagre que se pretende que tenha ocorrido em quaisquer dessas religiões – e todas estão repletas de milagres – tem como finalidade direta estabelecer o sistema particular ao qual ele se refere, de modo que tem a mesma força para destruir, embora indiretamente, qualquer outro sistema. Destruindo um sistema, des­trói-se igualmente o crédito naqueles milagres sobre os quais estava fundado o sistema, de modo que todos os prodígios de diferentes religiões devem considerar-se como fatos contraditórios, e as evidên­cias destes prodígios, quer fracas quer fortes, como opostas umas às outras. De acordo com este método de raciocínio, quando cremos em algum milagre de Maomé ou de seus sucessores, temos como garantia o testemunho de alguns árabes bárbaros. E, por outro lado, devemos considerar a autoridade de Tito Lívio, de Plutarco, de Tácito e, numa palavra, o testemunho de todos os autores gregos, chineses e católicos romanos que relataram algum específico milagre de sua religião, e devemos considerar seu testemunho, digo eu, do mesmo modo como se houvessem mencionado o milagre maometano, e que o houvessem contradito em termos claros, com a mesma certeza conferida aos mi­lagres que relatam. Este argumento pode parecer demasiado sutil e refinado, mas em realidade não difere do modo de raciocinar de um juiz que supõe que o crédito de duas testemunhas, acusando de um crime a uma outra pessoa, é destruído pelo depoimento contrário de duas testemunhas que afirmam haver visto esta mesma pessoa a du­zentas léguas de distância no momento exato em que o crime, diz-se, foi cometido.
Um dos milagres, o mais bem testificado em toda a história pro­fana, é aquele que Tácito conta de Vespasiano, que curou a um cego em Alexandria por meio de sua saliva e a um coxo apenas tocando-lhe com o seu pé. Estes homens, obedecendo a uma ordem do deus Serapis, recorreram ao imperador para essas curas milagrosas. A descrição deste evento pode ser lida neste grande historiador,6 onde cada por­menor parece valorizar o testemunho, e poderia ser desenvolvida à vontade, com toda a força de argumento e eloqüência, se alguém se preocupasse atualmente em reforçar a evidência desta superstição desacreditada e idolátrica. A gravidade, a solidez, a idade e a pro­babilidade de tão grande imperador, que, durante o transcurso de sua vida, conversou familiarmente com seus amigos e cortesãos e não afetou jamais estes ares extraordinários de divindade que as­sumiam Alexandre e Demétrio. O historiador era escritor da época, célebre por sua franqueza e veracidade e, além disso, dotado talvez do maior e do mais penetrante gênio de toda a Antiguidade, e tão isento de qualquer tendência para a credulidade, sendo, ao contrá­rio, acusado de ateísmo e profanidade; as personagens a cuja au­toridade se referia o milagre eram de caráter indiscutível para o julgamento e a veracidade, como muito bem o podemos presumir; havia testemunhas oculares do fato, confirmando seu testemunho mesmo depois que a família dos Flávios foi despojada do império e não podia mais recompensar uma mentira. Utrum que, qui interfuere, nunc quo que memorant, postquam nulium mendacio pretium.7 E se acres­centarmos o aspecto público dos fatos, como relata a história, pa­recerá que não se pode supor evidência mais poderosa a favor de uma falsidade tão grosseira e tão palpável.
Há também uma história memorável, contada pelo cardeal de Retz, merecedora de nossa consideração. Quando este político intri­gante se refugiou na Espanha para escapar à perseguição de seus inimigos, passando por Saragoça, capital de Aragão, mostraram-lhe na catedral um homem que durante sete anos havia servido de porteiro e que era bem conhecido na cidade por todos os devotos da igreja local. Ele foi visto, por muito tempo, desprovido de uma de suas per­nas; contudo, havia recuperado este membro pela fricção de óleo santo sobre o coto; e o cardeal nos assegura que o viu com as duas pernas. Este milagre foi confirmado por todos os cânones da Igreja; todos os habitantes da cidade foram chamados para confirmar o fato; e o cardeal verificou que todos criam, com ardente devoção, inteiramente no mi­lagre. Aqui também o narrador foi contemporâneo do suposto prodi­gio; era de caráter incrédulo, libertino e também possuidor de grande talento; o milagre era de natureza tão singular que dificilmente poderia admitir contrafação, e as testemunhas muito numerosas, e quase todas espectadoras do fato ao qual deram o seu testemunho. E o que aumenta poderosamente a força dos testemunhos e pode duplicar nossa surpresa nesta conjuntura diz respeito ao fato de que o próprio cardeal, narrando o evento, parece não aferir-lhe nenhum crédito e, por conseguinte, não se pode suspeitar de sua participação nesta fraude sa­grada. Considerava justamente que não era necessário, para rejeitar um fato desta natureza, refutar o testemunho com exatidão e revelar sua falsidade através de todas as circunstâncias de velhacaria e credulidade que o produziram. Sabia que, se isto era em geral comple­tamente impossível, por mais perto que se estivesse no tempo e no espaço, era extremamente difícil para quem estivesse imediatamente presente, devido ao fanatismo, à ignorância, à astúcia e à patifaria dos homens. Portanto, concluía, como bom raciocinador, que seme­lhante testificação levava sua falsidade em sua própria face, e que um milagre apoiado pelo testemunho dos homens era mais propriamente objeto de escárnio que de argumentação.
Certamente, não houve jamais maior número de milagres atri­buidos a uma só pessoa do que aqueles, diz-se, que foram realizados recentemente na França sobre o túmulo do abade Paris, o célebre jan­senista, cuja santidade serviu para ludibriar por muito tempo o povo. A cura das doenças, a restituição da audição aos surdos e da visão aos cegos, eram, no consenso geral, os efeitos habituais deste santo sepulcro. Mas, o que é mais extraordinário, numerosos milagres foram verificados imediatamente no mesmo lugar, ante juizes de integridade indiscutível, certificados por testemunhas de boa reputação e distinção, numa época instruída e no local de maior destaque atualmente no mundo. Além disso, um relatório dos milagres foi publicado e difun­dido por toda parte; e os jesuítas, embora formassem uma elite ins­truída, apoiados pelo magistrado cível e inimigos inveterados das opi­niões em favor das quais, diz-se, os milagres tinham sido realizados, jamais foram capazes de refutá-los ou desmascará-los claramente.8 On­de encontraremos tal número de circunstâncias concordantes na cor­roboração de um fato? O que podemos opor a semelhante nuvem de testemunhas senão a absoluta impossibilidade da natureza miraculosa dos eventos que relatam? E isto, certamente, aos olhos de todas as pessoas razoáveis, por si só será considerado como uma refutação suficiente.
Será correto concluir, verificando-se que o testemunho humano em certos casos é dotado de força e autoridade extremas, ao relatar, por exemplo, a batalha de Filipos ou de Farsália, que toda classe de testemunho, portanto, deve estar dotada em todos os casos de igual força e autoridade? Suponde que uma das facções, a de César e a de Pompeu, houvesse reivindicado a vitória destas batalhas e que os his­toriadores de cada partido houvessem atribuido uniformemente as vantagens para o seu próprio lado; como poderiam os homens, a esta distância, decidir entre eles? O contraste é igualmente grande entre os milagres narrados por Heródoto ou Plutarco, e os transmitidos por Mariana, Beda ou qualquer outro historiador monástico.
O sábio concede fé bastante académica a toda narrativa favo­rável à paixão de quem a relata, quer exaltando seu país, sua família ou a si mesmo, quer, de outro modo, conformando-a com suas in­clinações e tendências naturais. Há maior tentação do que asseme­lhar-se a um missionário, a um profeta, ou a um embaixador do céu? Quem não afrontaria múltiplos perigos e dificuldades para alcançar um caráter tão sublime? Ou se, auxiliada pela vaidade ou por uma ardente imaginação, uma pessoa começa a converter-se a si mesma e penetra seriamente no mundo ilusório, quem terá es­crúpulo de utilizar-se de piedosas fraudes, a fim de sustentar causa tão sagrada e meritória?
A menor centelha aqui pode transformar-se na maior chama, já que os materiais estão sempre preparados para se inflamar.Avidum genus auricularum9 a população alucinada recebe sofregamente, sem exame, tudo o que adula a superstição e promove o maravilhoso.
Quantas histórias desta natureza têm sido, em todas as épocas, descobertas e desmascaradas em seu nascedouro? Quantas mais têm sido famosas por algum tempo e depois tombado no esquecimento e na indiferença? Portanto, quando tais relatos se divulgam, a solução do fenômeno é óbvia: julgamos em conformidade com a observação e a experiência e os explicamos mediante os princípios conhecidos e naturais da credulidade e da ilusão. Contudo, antes de recorrermos a uma solução tão natural, suporemos uma miraculosa violação das mais bem fundamentadas leis naturais?
Não tenho necessidade de mencionar os obstáculos para des­mascarar a falsidade de uma história privada ou mesmo pública, na localidade em que, diz-se, ocorreu; e os obstáculos são ainda maiores quando o teatro do evento se acha distanciado de nós, mesmo em se tratando de uma pequena distância. Mesmo no tribunal de justiça, com toda a autoridade, a exatidão e o julgamento que se podem em­pregar, os juizes encontram-se freqúentemente embaraçados para dis­tinguir entre a verdade e a falsidade nas questões mais recentes. Mas se, para resolver o impasse, se confia nos métodos comuns da alter­cação, debates e boatos, jamais se chega a qualquer conclusão, espe­cialmente se paixões humanas interferem numa ou noutra parte.
Nos primeiros momentos das novas religiões, os sábios e os dou­tos geralmente estimam que o assunto não é muito importante para merecer sua atenção ou sua consideração. E quando posteriormente querem de boa vontade revelar a farsa, a fim de esclarecer a multidão iludida, o momento oportuno já passou, e os documentos e as teste­munhas que poderiam esclarecer o assunto perderam-se para sempre.
Não resta nenhum outro meio para desmascarar a fraude, senão aqueles que podem ser tirados do próprio testemunho dos narradores; e estes, embora sejam sempre suficientes às pessoas judiciosas e instruídas, são geralmente muito sutis para que o homem comum os compreenda.
Em resumo, portanto, parece que jamais qualquer espécie de testemunho a favor de um milagre tem chegado a ser provável, e muitos menos uma prova; e que, mesmo supondo que chegasse a ser uma prova, seria oposta, por outra prova, derivada da própria natureza do fato que tentaria estabelecer. Porquanto apenas a experiência con­fere autoridade ao testemunho humano, e é ainda a experiência que nos assegura a respeito das leis da natureza. Portanto, quando estas duas espécies de experiências são contrárias, resta-nos o recurso de subtrair uma da outra e aceitar uma opinião, tendendo para um dos dois lados, com a segurança originada do resto. Mas, de acordo com o princípio aqui explicado, este resto, concernente a todas as religiões populares, equivale a uma completa anulação; e, portanto, podemos estabelecer como princípio que nenhum testemunho humano é dotado de suficiente força para provar um milagre e tomá-lo a base justa de um determinado sistema religioso.
Peço que se considerem as ressalvas que faço aqui, quando afirmo que nenhum milagre jamais pode ser provado, de modo que seja o fundamento de um sistema religioso. Assevero, por outro lado, que seria possível haver milagres ou violações do curso ordinário da na­tureza, levando-nos a admitir uma prova derivada do testemunho humano; embora, talvez, seja impossível deparar com semelhante mi­lagre em todos os anais da história. Isto posto, suponde que a totalidade dos autores, abrangendo todos os idiomas, concordassem que a partir de primeiro de janeiro de 1600 houve total obscuridade sobre toda a Terra durante oito dias; que a transmissão deste evento extraordinário seja ainda forte e viva entre os homens; que todos os viajantes regres­sando de países estrangeiros nos tragam relatos da mesma tradição sem a menor variação ou contradição; desta maneira, é evidente que os filósofos contemporâneos deveriam, em vez de duvidar, considerar o fato como evidente e buscar as causas que poderiam engendrá-lo. Em verdade, a decadência, a corrupção e a dissolução da natureza são eventos supostos prováveis por tantas analogias que qualquer fe­nômeno tendendo para esta última catástrofe se incorpora ao teste­munho humano, especialmente quando este testemunho se acha di­fundido com bastante uniformidade.
Suponde agora que todos os historiadores que estudam a Ingla­terra concordassem com que em primeiro de janeiro de 1600 a rainha Elizabeth morreu; que ela foi vista antes e depois de sua morte pelos médicos e por toda a Corte, aliás, como é de praxe entre as pessoas de sua estirpe; que o Parlamento reconheceu e proclamou seu sucessor; e que, depois de ter estado sepultada durante um mês, apareceu de novo, voltou a ocupar o trono e governou a Inglaterra por mais três anos. Devo confessar: ficaria surpreso pela confluência de tantas circunstâncias bizarras, mas não teria a menor inclinação para crer num acontecimento tão miraculoso. Não duvidaria de sua pretensa morte e de outras circunstâncias públicas que a seguiram; afirmaria apenas que esta morte foi simulada, que não foi e nem possivelmente poderia ser real. Em vão vós me alegareis a dificuldade e quase impossibilidade de ludibriar a opinião mundial em assunto de tal importância; a sa­bedoria e o sólido julgamento desta célebre rainha; a escassa ou ne­nhuma vantagem que se poderia obter de um artifício tão pobre; todos estes fatores poderiam surpreender-me; todavia, replicarei: a velhacaria e a leviandade humanas são fenômenos tão normais, que prefiro acre­ditar que os eventos mais extraordinários tenham aí sua origem, a admitir uma violação tão marcante das leis da natureza.
Mas, se este milagre fosse atribuído a um novo sistema religioso, é preciso considerar que os homens, em todas as épocas, têm sido ludibriados por ridículas histórias deste gênero, que precisamente esta circunstância seria uma prova completa da impostura, e suficiente para levar todos os homens de bom senso, não apenas a rejeitar o fato, mas mesmo a rejeitá-lo sem mais exame. Embora o Ser ao qual o milagre é atribuído seja, neste caso, Onipotente, o fato não se torna, por esta razão, nem um pouco mais provável, visto que nos é impos­sível apreender os atributos e os atos de um tal Ser, senão através da experiência que temos de suas produções no curso ordinário da na­tureza. Isto nos subjuga às observações passadas e nos obriga a com­parar os exemplos de violação da verdade graças aos testemunhos humanos com os da violação das leis da natureza devido aos milagres, a fim de julgarmos qual das duas é mais plausível e mais provável. Como as violações da verdade são mais comuns nos testemunhos con­cernentes a qualquer outra espécie de fatos, isto deve diminuir bastante a autoridade do primeiro tipo de testemunho e deve nos levar a for­mular a resolução geral de não lhes prestar nenhuma atenção, mesmo quando protegidos pelos mais plausíveis pretextos.
Lord Bacon parece ter admitido os mesmos princípios de raciocínio. “Devemos”, diz ele, “fazer uma coleção ou história particular de todos os monstros, de todos os nascimentos e produções prodigiosas; e, numa palavra, de todas as coisas novas, raras e extraordinárias da natureza. Mas isto deve ser feito com o mais severo exame, para não nos afastarmos da verdade. Sobretudo, deve ser considerado suspeito todo relato que depende em algum grau da religião, como os prodígios de Tito Lívio; e, do mesmo modo, toda coisa que se encontra nos escritores de magia natural, de alquimia, ou em outros autores, que parecem ter tido um apetite insaciável para a falsidade e a fábula”.10
O método de raciocínio apresentado aqui me agrada bastante, pois, penso eu, poderá servir para confundir os amigos perigosos ou os inimigos disfarçados da religião cristã, que se têm proposto defen­dê-la mediante os princípios da razão humana. Nossa santíssima religião funda-se na , e não na razão; e um método seguro para fazê-la perigar consiste em submetê-la a uma prova para a qual não está de maneira nenhuma preparada para resistir. Visando a esclarecer esta atitude, examinaremos os milagres descritos nas Escrituras, restringindo-nos – devido à extensão do assunto – aos contidos no Pen­tateuco; e os examinaremos, de acordo com os princípios destes pre­tensos cristãos, não como a palavra ou o testemunho de Deus mesmo, porém como realizações humanas de um simples escritor ou historia­dor. Frisemos de início que o livro nos foi legado por um povo bárbaro e ignorante, escrito numa época em que era ainda mais bárbaro e, segundo toda probabilidade, redigido posteriormente aos fatos rela­tados, desprovidos assim de qualquer testemunho concordante; asse­melhando, ademais, aos relatos fabulosos que cada nação faz de sua origem. As páginas deste livro estão repletas de prodígios e milagres. Descreve-nos o mundo e a natureza humana completamente diferentes do atual; nossa queda deste mundo; a extensão da vida humana atin­gindo quase mil anos; a destruição do mundo pelo dilúvio; a escolha arbitrária de um povo eleito pelo céu que é, aliás, o mesmo povo descrito pelos seus compatriotas; sua libertação da escravidão median­te os mais surpreendentes e imagináveis prodígios. Desejaria que al­guém colocasse sua mão sobre o coração e, depois de séria conside­ração, declarasse se julga que a falsidade de tal livro, apoiada por semelhante testemunho, seria mais extraordinária e mais miraculosa que todos os milagres que relata; porque isto é, sem dúvida, necessário para que seja aceito, de acordo com as regras da probabilidade esta­belecidas anteriormente.
O que temos tido sobre milagres pode ser aplicado, sem qualquer modificação, às profecias; e, na verdade, todas as profecias são ver­dadeiros milagres e é apenas como tais que se pode admiti-las como provas de uma revelação. Se não estivesse acima da capacidade da natureza humana predizer eventos futuros, seria absurdo usar qual­quer profecia como argumento em favor de uma missão ou autoridade divina procedentes do céu. De modo que, finalmente, podemos con­cluir que a religião cristã não apenas foi acompanhada de milagres em seus primeiros momentos, mas mesmo em nossos dias nenhum homem racional pode nela acreditar sem um milagre. A mera razão é suficiente para convencer-nos da sua veracidade; quem quer que, movido pela fé, lhe dá o seu assentimento, está consciente de um milagre contínuo em sua própria pessoa, que subverte todos os princípios de seu en­tendimento e o determina a crer nas coisas mais opostas ao costume e à experiência.11


SEÇÃO XI
DA PROVIDÊNCIA PARTICULAR E DO ESTADO FUTURO1


Há pouco tempo, conversando com um amigo que preza os pa­radoxos céticos, foram aventados numerosos princípios com os quais não posso de nenhuma maneira concordar; todavia, como esses prin­cípios são curiosos e possuem certas relações com a cadeia de raciocínios desenvolvida ao longo desta investigação, os transcreverei de memória, tão precisamente quanto possível, para submetê-los ao jul­gamento do leitor.
Nossa conversa iniciou-se ao mostrar minha admiração pela sin­gular sorte da filosofia que – necessitando de irrestrita liberdade acima de todos outros privilégios e sobretudo florescendo graças à livre opo­sição de opiniões e argumentos – nasceu numa época e num pais de liberdade e tolerância, e jamais foi oprimida, mesmo em seus mais extravagantes princípios, por quaisquer credos, idéias religiosas vi­gentes ou leis penais. Pois, excetuando o desterro de Protágoras e a morte de Sócrates – este último evento se deveu, em parte, a outros motivos – raramente divisamos na Antiguidade exemplos desta inveja intolerante que tanto infesta a presente época. Epicuro viveu em Atenas até uma idade avançada, inteiramente em paz e tranqúilidade; os epi­cureus2 eram até admitidos para receberem investidura sacerdotal e oficiarem no altar os ritos mais sagrados da religião vigente. E o estímulo público3 de pensões e salários era igualmente dispensado, pelo mais sábio de todos os imperadores romanos,4 aos mestres de todas as seitas filosóficas. Concebemos facilmente que tal gênero de trata­mento conferido à filosofia nascente era necessário, se ponderarmos que mesmo atualmente, quando podemos supô-la mais forte e robusta, tolera com muita dificuldade a inclemência das estações e os ventos ásperos da calúnia e da perseguição que sopram sobre ela.
Admirais – disse meu amigo – como a singular boa sorte da filosofia parece resultar da ordem natural das coisas e ser inevitável em toda época e nação. Este obstinado fanatismo, que deplorais como tão fatal à filosofia, é na realidade seu descendente, o qual, depois de aliar-se à superstição e apartar-se completamente do interesse materno, transformou-se em seu mais inveterado inimigo e perseguidor. Os dogmas especulativos religiosos, presentemente motivos de encarni­çados debates, não podiam, indubitavelmente, ser admitidos ou con­cebidos nos períodos iniciais do mundo, em que o ser humano – totalmente ignorante – formava uma idéia da religião mais adequada à sua débil compreensão, construindo assim seus dogmas sagrados mais em função de sua crença tradicional do que de sua argumentação ou discussão. Portanto, tendo passado o primeiro alarma engendrado pelos novos paradoxos e princípios filosóficos, parece que estes mestres passaram a viver, mesmo na Antiguidade, em boa harmonia com a superstição existente, comprazendo-se em dividir a humanidade em duas partes: de um lado, os doutos e sábios e, de outro lado, o homem comum e o ignorante.
Parece todavia – disse eu – que excluís completamente a po­lítica desta cogitação e não supondes jamais que um sábio magistrado pode com razão sentir-se zeloso de certas doutrinas filosóficas, como a de Epicuro, por exemplo, que, negando a existência de Deus e, por conseguinte, a providência e o estado futuro, parece afrouxar de modo considerável os laços de moralidade e é por esta razão, supõe-se, per­niciosa à paz da sociedade civil.
Eu sei – retorquiu ele – que de fato estas perseguições nunca procederam, em época alguma, da serena razão ou da constatação das periciosas conseqüências da filosofia, porém nascem inteiramente da paixão e do preconceito. Mas o que sucederia se eu fosse mais longe e afirmasse que, se Epicuro tivesse sido acusado diante de seu povo por um dos sicofantas ou delatores daqueles tempos, teria podido fa­cilmente defender sua causa e provar que seus princípios filosóficos eram tão saudáveis como o de seus adversários, os quais se esforçavam com tal zelo para expô-lo ao ódio e à intolerância populares?
Desejo – respondi – que utilizeis vossa eloqüência sobre um tema tão extraordinário e façais um discurso a favor de Epicuro que possa satisfazer, não à populaça de Atenas, se quereis admitir que nessa antiga e ilustrada cidade ela existia, mas ao setor mais filosófico do auditório, pois, como se supõe, seria capaz de compreender vossos argumentos.
O assunto não seria difícil nestas condições, replicou ele; e se vós quiserdes suporei por ora que sou Epicuro e faríeis as vezes do povo ateniense e contra vós pronunciarei uma tal arenga que encherá toda a urna de feijões brancos e não restará um único feijão preto para satisfazer a malícia de meus adversários.
Muito bem; peço-vos que procedais segundo estas conjeturas.
Aqui estou, ó atenienses! para justificar em vossa assembléia o que tenho sustentado em minha escola, pois encontro-me acusado por adversários furiosos em lugar de inquiridores que raciocinam com calma e desapaixonadamente. Vossas deliberações, que, de direito, devem orientar-se para as questões do bem público e para o interesse da comunidade, estão desviadas para as indagações da filosofia es­peculativa; e estas magníficas investigações, talvez estéreis, tomam o lugar de vossas ocupações mais familiares, apesar de mais úteis. Mas, na medida em que isto depender de mim, opor-me-ei a este abuso. Não discutiremos aqui acerca da origem e governo dos mundos. Ape­nas indagaremos em que medida tais questões dizem respeito ao in­teresse público. E, se puder persuadir-vos que elas são inteiramente indiferentes à paz da sociedade e à segurança do governo, espero que imediatamente nos enviareis de volta às nossas escolas, onde exami­naremos com calma a questão mais sublime, mas ao mesmo tempo mais especulativa de toda a filosofia.
Os filósofos religiosos, descontentes com a tradição de vossos ancestrais e com a doutrina de vossos padres – com as quais aquiesço de boa vontade – são atraídos por imprudente curiosidade, quando tentam verificar em que medida podem estabelecer a religião sobre princípios racionais; estimulando assim, em vez de satisfazer, as dú­vidas originadas naturalmente de uma investigação diligente e pene­trante. Pintam, em magnificentes cores, a ordem, a beleza e a sábia organização do universo, indagam, a seguir, se espetáculo tão glorioso da inteligência poderia derivar do concurso fortuito de átomos ou se o acaso poderia produzir o que o maior gênio jamais conseguiu ad­mirar suficientemente. Não examinarei a exatidão deste argumento. Concordarei que é tão sólido como meus adversários e acusadores possam desejar. Contudo, será suficiente que eu possa provar, partindo exatamente deste raciocínio, que a questão é inteiramente especulativa e que, quando em minhas investigações filosóficas nego a providência e o estado futuro, não solapo as bases da sociedade, porém formulo princípios que meus próprios adversários, segundo suas próprias dou­trinas e se raciocinam conseqúentemente, devem reconhecer como só­lidos e satisfatórios.
Portanto, vós que sois meus acusadores haveis reconhecido que o principal ou o único argumento em favor da existência de Deus – e jamais a coloquei em dúvida – é derivado da ordem da natureza, na qual aparecem tais marcas de inteligência e de desígnio5 que considerais uma extravagância indicar como sua causa, quer o acaso, quer uma força material cega e descontrolada. Admitis que este é um ar­gumento que vai dos efeitos às causas. Da ordem da obra inferis o que deve haver estado projetado e preconcebido no obreiro. Se não podeis vislumbrar este aspecto, concedeis que vossa conclusão é falha; e não pretendeis formular uma conclusão que extravase os fenômenos naturais que a justifiquem. Estas são vossas concessões. Espero que assinalareis as conseqüências.
Quando inferimos alguma causa particular a partir de algum efeito, devemos proporcionar uma com o outro, e não devemos jamais atribuir à causa outras qualidades senão as estritamente suficientes para produzirem o efeito. A elevação, sobre um dos pratos da balança, de um corpo de dez onças, pode servir de prova que o contrapeso ultrapassa dez onças, porém não pode jamais fornecer uma razão que ultrapassa cem onças. Se a causa, atribuída a um efeito, não é suficiente para produzi-lo, devemos rejeitar a causa ou acrescentar-lhe qualida­des que a proporcionarão rigorosamente ao efeito. Mas se lhe atribuirmos outras qualidades ou afirmarmos que é capaz de produzir outros efeitos, somos desviados por conjeturas e suporemos arbitra­riamente – sem base racional ou autoridade – a existência de qua­lidades e energias.
Idêntica regra é aplicada quando a causa visada é uma matéria inconsciente e bruta ou um ser racional e inteligente. Pois, concordan­do-se que a causa somente se revela pelo efeito, jamais devemos atri­buir-lhe outras qualidades senão as necessárias para produzirem o efeito. Não podemos, mediante qualquer regra do raciocínio correto, remontar da causa e inferir outros efeitos dela, exceto aqueles pelos quais a apreendemos. Ninguém, ao observar apenas um quadro de Zêuxis, poderia supor que ele era também escultor e arquiteto, e era tão bom artífice em mármore e pedra como em cores. Apenas podemos certificar-nos de que o artista possuía bom gosto e talento, ao revelá-los nas obras que se apresentam à nossa visão. A causa deve ser propor­cional ao efeito; e se a proporcionamos com rigor e exatidão, jamais vislumbraremos na causa qualidades designando outras coisas ou pro­piciando inferência sobre qualquer outro projeto ou realizaçao. Pois as referidas qualidades devem extravasar o que é realmente necessário para produzir o efeito que examinamos.
Concedendo, portanto, que os deuses são os autores da existência ou da ordem do universo, segue-se que possuem grau necessário de poder, de inteligência e de benevolência que aparecem em seu arte­sanato; todavia, nada além disso jamais pode ser provado, a menos que solicitemos o auxílio do exagero e da lisonja para suprirmos os defeitos do argumento e do raciocínio. Na medida em que aparecem os traços de alguns atributos, podemos concluir que esses atributos existem. A suposição de atributos adicionais é mera hipótese, e ainda mais hipotética a suposição de que em regiões distantes do espaço ou de períodos de tempo tem havido, ou haverá, uma exibição mag­nífica destes atributos e um esquema de administração mais adequado a estas virtudes imaginárias. Nunca poderemos ascender do universo, o efeito, a Júpiter, a causa; e a seguir descender para inferir um novo efeito desta causa; como se os efeitos presentes, por si mesmos, não fossem inteiramente dignos dos atributos gloriosos que designamos para esta divindade. Já que o conhecimento da causa deriva unica­mente do efeito, ambos devem estar exatamente ajustados entre si, e nenhum dos dois jamais pode referir-se a outra coisa ou ser o funda­mento de uma nova inferência e conclusão.
Encontrais certos fenômenos na natureza. Procurais uma causa ou um autor. Imaginais que vós as haveis encontrado. Depois ficais tão fascinados desse produto de vosso cérebro, de modo que imaginais que é impossível que ele não produza algo mais grandioso e mais perfeito do que o estado atual das coisas, tão repleto de mal e desor­dem. Olvidais que esta inteligência e benevolência supremas são in­teiramente imaginárias ou, pelo menos, sem nenhum fundamento ra­cional, e que não tendes nenhuma base para atribuir-lhe outras qualidades senão aquelas que vedes efetivamente em exercício e reveladas em suas produções. Fazei, pois, ó filósofos! que vossos deuses estejam em conformidade com as aparências presentes da natureza e não ouseis alterar estas aparências com suposições arbitrárias para adequá-las aos atributos que vós destinais tão carinhosamente aos vossos deuses.
Quando os sacerdotes e os poetas, apoiados por vossa autori­dade, ó atenienses! falam da idade de ouro ou de prata que precedeu o estado presente de vício e de miséria, escuto-os com atenção e re­verência. Mas, quando os filósofos, que pretendem negligenciar a au­toridade e cultivar a razão, pronunciam o mesmo discurso, reconheço que não lhes concedo a mesma dócil submissão nem a mesma devota deferência. Pergunto-lhes: quem os conduziu a regiões celestiais, quem os admitiu no concilio dos deuses, quem lhes desvendou o livro do destino para que possam afirmar, ousadamente, que suas divindades têm executado ou executarão um desígnio qualquer que ultrapassa o que efetivamente tem aparecido? Se me dizem que os filósofos têm subido por degraus6 ou por uma ascensão gradual da razão, e tirado inferências dos efeitos às causas, reitero que eles têm auxiliado a as­censão7 da razão com as asas da imaginação. Ao contrário, os filósofos não teriam podido modificar assim seu modo de inferir e argüir das causas aos efeitos, pois, quando presumem que uma produção mais perfeita que o mundo presente seria mais adequada a seres tão perfeitos como os deuses, esquecem que não têm outra razão para atribuir a estes seres celestiais uma perfeição ou um atributo, senão o que se pode encontrar no mundo presente.
Eis como se explica a origem de toda atividade estéril, visando justificar o aparecimento do mal na natureza e salvaguardar a honra dos deuses, embora devamos reconhecer a realidade deste mal e desta desordem que proliferam no mundo. Dizem-nos que as qualidades obstinadas e indóceis da matéria, a observância das leis gerais ou ainda alguma outra razão semelhante constituíram a única causa con­troladora de poder e benevolência de Júpiter, obrigando-o a criar a humanidade e a todas as criaturas sensíveis tão imperfeitas e infelizes. Parece, pois, que de antemão se admitem estes atributos em sua mais ampla acepção. E sobre esta suposição, concordo, podem-se sem dú­vida admitir tais conjeturas como soluções plausíveis dos fenômenos do mal. Mas, pergunto ainda: por que tomar por certos estes atributos, por que atribuir à causa outras qualidades que aquelas que aparecem atualmente no efeito? Por que torturais vosso cérebro para justificar o curso da natureza sobre suposições que, pelo que sabeis, podem ser completamente imaginárias e das quais não se podem encontrar sinais no curso da natureza?
Portanto, as hipóteses religiosas apenas devem ser consideradas como um método particular explicativo dos fenômenos visíveis do universo; mas ninguém que raciocine corretamente jamais ousará fazer inferências, partindo de um só fato, e alterar ou agregar em qualquer aspecto os fenômenos. Se pensais que as aparências das coisas provam tais causas, então vos é permitido tirar uma inferência acerca da existência destas causas. Em tais assuntos complicados e sublimes, cada um deveria tomar a liberdade de fazer conjeturas e argumentações. Mas aqui deveis deter-vos. Se retrocedeis e, partindo das causas que haveis inferido, concluirdes que algum fato existe ou existirá no curso da natureza e que pode servir para mostrar mais pormenorizadamente atributos particulares, devo advertir-vos que vos haveis afastado do método de raciocínio ligado ao presente tema e haveis certamente acrescentado aos atributos da causa alguma coisa a mais do que apa­rece no efeito; de outro modo não tereis jamais podido acrescentar qualquer coisa ao efeito para fazê-lo mais digno de sua causa, a menos que vos faltasse toda retidão e bom senso.
Onde está, pois, o aspecto odioso desta doutrina que ensino em minha escola, ou melhor dizendo, que examino em meus jardins? Ou então, encontrais em toda esta questão algo dizendo respeito, em qual­quer grau, à segurança da boa moral ou à paz e à ordem social?
Eu nego a providência, dizeis, e nego que um governo supremo do mundo orienta o curso dos eventos punindo com desonra e de­sespero aos pecadores e recompensando os virtuosos com a honra e o êxito em todos os seus empreendimentos. Mas, certamente, não nego o próprio curso dos eventos, que está aberto à investigação e ao exame de todos. Reconheço que, na ordem atual das coisas, a virtude é acom­panhada de maior paz de espírito que o vício e encontra uma recepção mais favorável pela sociedade. Tenho consciência de que, segundo a experiência passada da humanidade, a amizade é a principal alegria da vida humana e a moderação, a única fonte de tranquilidade e fe­licidade. Não hesito jamais entre uma existência virtuosa e uma exis­tência viciada, mas tenho consciência de que, para um espírito bem-intencionado, todas as vantagens estão do primeiro lado. Que podeis dizer a mais, admitindo todas as vossas suposições e raciocínios? Di­zei-me, certamente, que esta disposição das coisas procede da inteli­gência e do desígnio. Mas, mesmo conhecendo sua origem, a disposição em si, da qual depende nossa felicidade ou infelicidade, isto é, nosso comportamento na vida, permanece a mesma. Tenho sempre a pos­sibilidade, como também vós, de regular minha conduta a partir de minha experiência dos eventos passados. E se vós afirmásseis que se se admite a realidade de uma providência divina e de uma justiça distributiva suprema no universo, dever-se-ia esperar alguma recom­pensa mais particular do bem e a punição do mal, além do curso ordinário dos eventos; encontro aqui a mesma falácia que eu tinha antes tentado captar. Persistis em imaginar que, se aceitarmos essa existência divina, pela qual combateis tão arduamente, podeis segu­ramente inferir suas conseqüências e acrescentar algo à ordem expe­rimentada da natureza, argüindo a partir dos atributos que designais aos vossos deuses. Não pareceis recordar-vos que todos os vossos raciocínios acerca deste tema somente podem ser tirados passando dos efeitos às causas, e que todo argumento deduzido das causas aos efeitos deve ser necessariamente um grosseiro sofisma, visto que vos é impossível conhecer algo da causa, salvo o que haveis precedentemente, não por inferência, descoberto inteiramente no efeito.
Mas o que deve pensar um filósofo acerca dos que raciocinam vãmente, os quais, em lugar de considerarem o aspecto atual das coisas como o único objeto de sua contemplação invertem todo o curso da natureza, fazendo desta vida mera passagem para outra existência; um pórtico que conduz a um edifício maior e consideravelmente di­ferente; um prólogo que apenas serve para introduzir a comédia e dar-lhe maior graça e dignidade? De onde, pensais, que estes filósofos podem derivar sua idéia dos deuses? Certamente, de sua própria in­venção e de sua imaginação. Pois, se derivassem a idéia dos fenômenos presentes, ela não revelaria algo adicional, mas deveria estar exata­mente adaptada a eles. Admitimos de bom grado que a divindade possivelmente seja dotada de atributos que jamais vimos em exercício; que é governada por princípios de ação que não podemos descobrir se são realizados. Mas trata-se ainda de pura possibilidade e hipótese. Não podemos racionalmente inferir que ela possui atributos ou princípios de ação, a não ser quando os temos visto em exercício e realizados.
Há sinais de uma justiça distributiva no mundo? Se contestais afir­mativamente, concluo que já que a justiça se exerce aqui, aqui ela é realizada. Se replicais negativamente, concluo então que não tendes nenhuma razão para atribuir justiça, no sentido em que a entendemos, aos deuses. Se tomais uma posição intermediária entre a afirmativa e a negativa, dizendo que a justiça dos deuses no momento se exerce em parte, mas não em toda a sua extensão, respondo que não tendes nenhuma razão para conceder-lhe uma extensão particular, mas apenas até onde a vedes, no presente, exercer-se no presente.
Assim, ó atenienses! restrinjo a discussão a um breve debate com meus adversários. O curso da natureza está aberto tanto à minha contemplação como à deles. A série de eventos experimentais é o gran­de critério pelo qual todos nós regulamos nossa conduta. Não podemos recorrer a nenhuma outra coisa, nem no campo de batalha nem no senado. Não se deveria jamais ouvir falar de outra coisa na escola ou em nossas reflexões solitárias. Em vão, nosso entendimento limitado poderia romper estas barreiras muito estreitas para nossa imaginação caprichosa. Ao argumentar a partir do curso da natureza e ao inferir uma causa particular inteligente, que no princípio pôs ordem no mun­do e ainda a conserva, aceitamos um princípio que é ao mesmo tempo incerto e inútil. É incerto, porque o tema está inteiramente fora do alcance da experiência humana. É inútil, porque nosso conhecimento desta causa é inteiramente derivado do curso da natureza e, por con­seguinte, não podemos jamais, segundo as regras do raciocínio correto, remontar da causa para uma nova inferência ou fazer adições ao curso ordinário experimentado da natureza, para estabelecermos novos prin­cípios de conduta e de comportamento.
Observo – disse eu, vendo que ele havia terminado sua arenga – que não desprezais o artifício dos demagogos da Antiguidade, e como haveis querido fazer-me representar o povo, vos insinuastes em meu favor, aceitando os princípios pelos quais, vós o sabeis, tenho sempre expressado uma particular inclinação. Mas, se aceitais fazer da experiência – como penso, certamente, deveis fazê-lo – o único critério de nosso juízo acerca desta, e de todas as questões de fato, não duvido que seja possível, a partir exatamente desta mesma expe­riência, refutar este raciocínio que haveis posto na boca de Epicuro.8 Se haveis visto, por exemplo, um edifício terminado pela metade, ro­deado de um amontoado de tijolos, de pedras e de argamassa e de todos os instrumentos de alvenaria, não podereis inferir do efeito que se trata de uma obra devida a um plano e a uma invenção? E não podereis, a partir desta causa inferida, voltar a inferir novas adições ao efeito e concluireis que o edifício estará logo terminado e receberá todos os melhoramentos adicionais que a arte poderá conferir-lhe? Se haveis visto à beira-mar a marca de um pé humano, concluireis que um homem passou por este caminho e que ele também tinha deixado as marcas de seu outro pé, embora elas tenham sido apagadas pelo movimento da areia ou pela inundação da água. Por que recusais então admitir o mesmo método de raciocínio em relação à ordem da natureza? Considerais o mundo e a vida presentes unicamente como um edifício imperfeito, do qual podeis inferir uma inteligência supe­rior, e argüindo a partir desta inteligência superior que não pode deixar nada imperfeito por que não podeis inferir um esquema ou plano mais acabado, que receberá sua conclusão em algum ponto distante do espaço e do tempo? Não são estes métodos de raciocínio exatamente similares? E sob que pretexto podeis, ao mesmo tempo, aceitar um e rejeitar o outro?
A infinita diferença dos temas – respondeu ele – é fundamento suficiente para esta diferença em minhas conclusões.9 Nas obras que foram inventadas e fabricadas pelo homem, é lícito passar do efeito à causa e, voltando da causa, formar novas inferências concernentes ao efeito, averiguando as alterações que provavelmente tem sofrido ou que ainda pode sofrer. Mas qual é o fundamento deste modo de ra­ciocinar? Evidentemente este: o homem é um ser que conhecemos pela experiência: seus motivos e seus desígnios nos são familiares; seus projetos e suas inclinações têm certa conexão e certa coerência, segundo as leis que a natureza tem estabelecido para governo de uma tal criatura. Portanto, quando vemos que uma obra procede da habi­lidade e do trabalho humano, e como por outro lado conhecemos a natureza deste ser animado, podemos tirar cem inferências acerca do que se pode esperar dele; estas inferências estarão todas fundadas na observação e na experiência. Mas se conhecêssemos o homem apenas por uma única obra que examinamos, ser-nos-ia impossível argüir desta maneira, pois nosso conhecimento de todas as qualidades que lhe atribuimos é, neste caso, derivado desta produção; é impossível que estas qualidades possam levar a qualquer coisa a mais, ou que elas sejam a base de uma nova inferência. A marca de um pé na areia pode apenas provar, quando se considera separadamente, que havia uma figura semelhante a ela, graças à qual ela foi produzida; mas a marca de um pé humano evidencia igualmente, partindo de nossa outra experiência, que havia provavelmente outro pé que também dei­xou sua impressão, embora tivesse sido apagada pelo tempo ou por outros acidentes. Aqui subimos do efeito para a causa; depois descemos da causa, inferimos modificações no efeito; mas não continuamos aqui na mesma cadeia simples de raciocínio. Compreendemos neste caso cem outras experiências e observações sobre a forma usual e os mem­bros desta espécie de ser animado; sem as quais este método de ar­gumentar deveria considerar-se falaz e sofístico.
O caso é diferente para os nossos raciocínios acerca das obras da natureza. Apenas conhecemos Deus por suas produções; é um Ser único no universo, que não é compreendido sob nenhuma espécie ou gênero, de cujos atributos ou qualidades experimentados podemos, por analogia, inferir em Deus um atributo ou uma qualidade. Como o universo manifesta sabedoria e bondade, podemos inferir sabedoria e bondade. Como ele mostra um grau particular destas perfeições, inferimos um grau particular delas precisamente adaptadas aos efeitos que examinamos. Mas não estamos jamais autorizados a inferir ou supor, por quaisquer regras do raciocínio correto, outros atributos ou outros graus do mesmo atributo. Ora, sem uma tal liberdade em nossas suposições, é-nos impossível argumentar a partir da causa e inferir qualquer modificação no efeito além disto que caiu imediatamente sob nossa observação. Um bem maior produzido por este Ser deve provar ainda um grau mais alto de bondade; uma distribuição mais imparcial de recompensas e castigos deve proceder de uma maior relação à justiça e à eqúidade. Toda suposta adição às obras da natureza acrescenta-se aos atributos do Autor da natureza; e por conseguinte, como não está em nada apoiada por uma razão ou um argumento, não se pode jamais admiti-la, senão como pura conjetura e hipótese.10
A principal fonte de equívocos neste assunto e da ilimitada li­berdade de conjeturar que toleramos decorre do fato de que tacita­mente nos colocamos no lugar do Ser Supremo e concluímos que em todas as ocasiões observará a mesma conduta que nós mesmos, em sua situação, teríamos aceito como razoável e conveniente. Mas, além de que o curso ordinário da natureza pode convencer-nos de que quase tudo se regula por princípios e máximas muito diferentes das nossas, além disto, digo eu, deve parecer evidentemente contrário a todas as regras da analogia raciocinar a partir das intenções e projetos humanos para os de um Ser tão diferente e tão superior a um grau tão alto.
Na natureza humana há certa experimentada coerência de desígnios e de inclinações, de modo que, quando um fato nos permitiu descobrir uma intenção de um homem, pode ser frequentemente razoável, a partir desta experiência, inferir uma outra e tirar uma longa cadeia de conclusões sobre sua conduta passada ou futura. Mas este método de raciocínio não pode jamais intervir em relação a um Ser tão lon­gínquo e tão incompreensível, que tem muito menos analogia com um outro ser do universo que o sol com uma vela de cera, e que apenas se manifesta por alguns traços pálidos ou vestígios, além dos quais não temos nenhuma autoridade para designar-lhe qualquer atri­buto ou qualquer perfeição. O que imaginamos ser uma perfeição su­perior pode ser realmente um defeito. Ou, se é no ponto mais alto uma perfeição, atribuindo-a ao Ser Supremo, em caso de não se ter realizado completamente em suas obras, parece mais adulação e pa­negírico do que raciocínio correto e sã filosofia. Portanto, toda filosofia do mundo e toda religião, que nada é senão uma espécie de filosofia, não serão jamais capazes de nos levar além do curso ordinário da experiência ou de nos dar regras de conduta e de ação diferentes das que nos fornecem as reflexões sobre a vida diária. Nenhum novo fato jamais pode ser inferido a partir da hipótese religiosa; nenhum evento pode ser previsto ou predito; nenhuma recompensa nem nenhum cas­tigo podem ser esperados ou temidos, além do que já se conhece pela prática e pela observação. De modo que minha apologia de Epicuro parecerá ainda sólida e satisfatória e que os interesses políticos da sociedade não estão de nenhum modo ligados às discussões filosóficas a propósito da metafísica e religião.
Há ainda uma circunstância, repliquei, que, parece-me, haveis omitido. Embora pudesse admitir vossas premissas, devo refutar vossa conclusão. Concluístes que as doutrinas e os raciocínios religiosos não podem ter influência sobre a vida porque nãodevem tê-la; não consi­derais jamais que os homens não raciocinam da mesma maneira que vós, mas que tiram muitas conseqüências da crença na existência de Deus e supõem que a divindade imporá castigos ao vício e concederá recompensas à virtude, além daquilo que parece no curso ordinário da natureza. Não importa se seu raciocínio é justo ou não. Sua in­fluência sobre a vida e sobre a conduta deve ser a mesma. E aqueles que tratam de livrá-los de tais preconceitos podem ser, pelo que eu saiba, bons raciocinadores, mas não posso considerá-los bons cidadãos e políticos, pois eles livram os homens disto que freia suas paixões e tornam mais fácil e mais segura, em certo modo, a transgressão das leis da sociedade.
Afinal, posso talvez concordar com vossa conclusão geral em favor da liberdade, ainda que sob premissas diferentes daquelas em que tentastes fundamentá-la. Penso que o Estado deve tolerar todos os princípios filosóficos, já que não há nenhum caso em que o governo tenha sofrido em seus interesses políticos devido a esta indulgência. Não há entusiasmo entre os filósofos; suas doutrinas não seduzem bastante o povo; qualquer obstáculo que se oponha aos seus raciocínios é de perigosas conseqüências às ciências e mesmo ao Estado, abrindo caminho às perseguições e à opressão em assuntos que interessam e tocam mais profundamente à generalidade dos homens.
Mas, em relação – continuei – ao vosso tema principal, ocor­re-me um problema11 que vos proporei sem muito empenho, a fim de evitar raciocínios de natureza muito sutil e complicada. Numa palavra: tenho dúvidas de que uma causa se torne apenas conhecida por seu efeito – o que haveis admitido ao longo deste diálogo – ou que sua natureza, sendo tão singular e particular, tenha correspondência ou semelhança com qualquer outra causa ou objeto que haja caído sob nossa observação. Pois, apenas quando duas espécies de objetos se mos­tram constantemente ligadas, podemos inferir uma partindo da outra, mas se se apresentasse um efeito completamente singular que não pudesse ser incluído em nenhuma das espécies conhecidas, não vejo como poderíamos formular qualquer conjetura ou inferência absolu­tamente referente a sua causa. Se a experiência, a observação e a ana­logia são, certamente, os únicos guias que podemos razoavelmente seguir em inferências desta natureza, tanto o efeito como a causa devem ter uma semelhança com outros efeitos e outras causas, observados em vários outros casos conjuntados uns com os outros. Deixo à vossa reflexão pessoal o cuidado de buscar as conseqüências deste princípio. Destacarei apenas que, tendo os adversários de Epicuro sempre con­siderado o universo como um efeito bastante singular e incomparável, provando assim a existência de Deus, causa não menos singular e não menos incomparável, segundo estas suposições vossos raciocínios pa­recem, pelo menos, merecer nossa atenção. Há, admito, alguma difi­culdade para compreender como podemos sempre voltar da causa ao efeito e como, raciocinando a partir da idéia que fazemos da anterior, podemos inferir uma modificação ou uma adição na última.


SEÇÃO XII
DA FILOSOFIA ACADÊMICA OU CÉTICA


PRIMEIRA PARTE


Não há maior número de raciocínios filosóficos desenvolvidos sobre um assunto do que os que provam a existência de um Deus e refutam as falácias dos ateus; apesar disso, os filósofos mais religiosos persistem discutindo e averiguando se alguém pode ser tão cego a ponto de tornar-se um ateu especulativo. Como conciliaremos estas contradições? Os cavaleiros andantes que percorriam o mundo para limpá-lo de dragões e gigantes nunca abrigavam a menor dúvida sobre a existência destes monstros.
cético – um outro inimigo da religião – provoca naturalmente a indignação de todos os teólogos e de circunspectos filósofos. É, no entanto, evidente que ninguém jamais encontrou uma criatura tão absurda ou conversou com um homem, desprovido de opinião ou princípios sobre quaisquer temas referentes à ação ou à especulação. Apesar disso, é bas­tante natural indagar: o que se entende por cético? E até que ponto é possível estender estes princípios filosóficos de dúvida e incerteza?
Há uma espécie de ceticismo antecedente a todo estudo e filosofia, bastante recomendado por Descartes e outros, como eficaz proteção contra o erro e o juízo precipitado. Este ceticismo, prescrevendo uma dúvida universal que abrange tanto o conjunto de nossas opiniões e princípios anteriores como também nossas próprias faculdades, de cuja veracidade – dizem eles – devemos assegurar-nos mediante uma cadeia de racio­cínios deduzida de um princípio primitivo que não pode ser enganador ou duvidoso. Contudo, não há semelhante princípio primitivo com prer­rogativa sobre os outros princípios evidentes em si mesmos e convin­centes. Ou, mesmo se houvesse, progrediríamos um só passo além deste princípio, utilizando-nos dessas mesmas faculdades em que, supõe-se, não confiamos? Portanto, se um ser humano pudesse alcançar a dúvida cartesiana – o que é simplesmente impossível – ficaria completamente incurável, e nenhum raciocínio jamais poderia conduzi-lo a uma situação de segurança e de convicção sobre algum tema.1
No entanto, devemos concordar que esta espécie de ceticismo, sendo mais moderada, pode ser aceita como bastante razoável, pois afigura-se como atitude prévia e indispensável ao estudo da filosofia, mantendo adequada imparcialidade em nossos juízos e apartando nos­so espírito de todos os preconceitos adquiridos pela educação e pre­cipitação. Iniciar com princípios claros e evidentes por si mesmos, avançar com passos prudentes e seguros, repassar frequentemente nos­sas conclusões e examinar rigorosamente todas as suas conseqüências são os únicos métodos que nos podem levar a aspirar à verdade e lograr uma adequada estabilidade e certeza em nossas conclusões, embora reconhecendo que assim nossos sistemas progridem pouco e lentamente.2
Há outra espécie de ceticismo, conseqüente à ciência e à investi­gação, ocorrendo quando os homens supõem haver revelado a com­pleta falsidade de suas faculdades mentais ou sua incapacidade para enlaçar uma definição rigorosa em todos aqueles temas curiosos da especulação que geralmente os atraem.3 Certa classe de filósofos chega inclusive a duvidar de nossos próprios sentidos, submetendo ao mes­mo tipo de dúvida tanto as máximas da vida cotidiana como as con­clusões e os princípios mais profundos da metafísica e da teologia. Manifestando-se tais doutrinas paradoxais – se podem ser denomi­nadas doutrinas – em alguns filósofos e sua refutação em vários, despertam, naturalmente, nossa curiosidade e nos levam a investigar os argumentos sobre os quais estão fundadas.
Não é preciso insistir sobre os argumentos mais vulgares levan­tados pelos céticos em todas as épocas contra a evidência dos sentidos; tais como os que em várias ocasiões derivam da imperfeição e inexa­tidão de nossos órgãos: o remo que na água parece quebrado, os vários aspectos dos objetos segundo suas diferentes distâncias, as imagens duplas que surgem pressionando um olho e, em suma, várias apa­rências de natureza análoga. Em verdade, estes argumentos céticos apenas provam que não devemos confiar completamente nos sentidos, mas que devemos corrigir sua evidência mediante a razão e conside­rações derivadas de agentes intermediários – distância do objeto e disposição do órgão sensível – para torná-los, dentro de sua própria esfera,critérios adequados de verdade e falsidade. Há outros argumentos mais profundos contra os sentidos que não são passíveis de solução tão fácil.
Parece evidente que o ser humano, impelido pelo instinto ou tendência natural, confia em seus instintos e admite sempre – sem qualquer raciocínio ou mesmo antes de usar a razão – um universo exterior independente de nossa percepção, que existiria mesmo admitindo-se a nossa ausência e aniquilação, assim como a de toda criatura sensível. Inclusive o reino animal se acha regido por semelhante opi­nião, conservando a mesma crença nos objetos exteriores em todos os seus pensamentos, projetos e ações.
Parece também evidente que, quando o ser humano é impelido por este cego e poderoso instinto natural, supõe constantemente que as próprias imagens reveladas pelos sentidos são os objetos externos, jamais suspeitando que umas não são mais do que as representações dos outros. Deste modo, é levado a supor que esta mesa que vemos branca e sentimos sólida existe, independentemen­te de nossa percepção, como algo exterior ao nosso espírito que a percebe. Nossa presença não lhe confere existência, nossa ausência não a aniquila. Conservando, portanto, sua existência invariável e inteira, independente da situação dos seres inteligentes que a per­cebem ou a contemplam.
Contudo, esta universal e primitiva opinião, aceita por todos os homens, é destruída pela mais superficial filosofia que nos esclarece que nada pode apresentar-se no espírito a não ser uma imagem ou percepção, e que os sentidos são apenas as vias de acesso que intro­duzem estas imagens sem, todavia, o poder de estabelecer qualquer contato direto entre o espírito e o objeto. A mesa divisada parece diminuir quando nos afastamos dela; porém, a mesa real, existindo independente de nós, não sofre nenhuma modificação; portanto, não se tratava senão de sua imagem que estava presente no espírito. São estas as evidentes exigências da razão, pois ninguém que reflete jamais duvidou que as existências visadas quando nos referimos a esta casa e esta drvore, são simplesmente percepção do espírito, cópias fugazes ou representações de outras existências que permanecem invariáveis e independentes.
Portanto, até agora fomos obrigados pelo raciocínio a contra­dizer ou divergir dos primitivos instintos naturais e adotar um novo sistema sobre a evidência de nossos sentidos. Mas aqui a filosofia se encontra extremamente embaraçada querendo justificar este novo sistema e impedir as cavilações e objeções dos céticos. Visto que ela não pode mais recorrer ao infalível e irresistível instinto natural, pois isto nos levaria a um outro sistema completamente diverso e reco­nhecido como falível e até como errôneo. E justificar este pretenso sistema filosófico por uma cadeia de raciocínios claros e convincentes ou mesmo por qualquer argumento evidente supera o poder de toda capacidade humana.
Através de que raciocínio pode ser provado que as percepções do espírito devem ser causadas por objetos externos, completamente diferentes delas embora lhes assemelhando – se isto é possível – e que não podem nascer da energia do próprio espírito ou da sugestão provocada por algum espírito invisível e desconhecido, ou de alguma outra causa ainda mais desconhecida de nós? Em verdade, tem-se admitido que algumas destas percepções, motivadas pelos sonhos, lou­curas e outras doenças não derivam de algo exterior. Nada é mais inexplicável do que o modo pelo qual um corpo agiria sobre o espírito a fim de transmitir-lhe sua própria imagem.
Constitui uma questão de fato averiguar se as percepções dos sentidos são produzidas por objetos externos que lhe são semelhantes. Como decidiremos sobre este problema?
Certamente, mediante a experiência, do mesmo modo que em outras questões de natureza análoga. Mas aqui a experiência perma­nece e deve permanecer completamente silenciosa. O espírito, exce­tuando-se as percepções, jamais tem algo que lhe é presente, e ele não pode, indubitavelmente, vislumbrar qualquer experiência de sua co­nexão com os objetos. Portanto, a suposição de tal conexão é despro­vida de qualquer base racional.
Trata-se, certamente, de uma solução imprevista recorrer à ve­racidade do Ser Supremo, para provar a veracidade de nossos sentidos. Se a veracidade do Ser Supremo se relacionasse com este assunto, nossos sentidos seriam completamente infalíveis em virtude da impossibilidade que Deus possa jamais nos decepcionar. Não mencio­nando que, uma vez que o mundo exterior é posto em dúvida, teremos muita dificuldade para fornecer argumentos comprovantes da exis­tência deste Ser ou de alguns de seus atributos.
Portanto, a respeito deste tema sempre triunfarão os céticos mais profundos e mais filósofos quando se esforçam por inserir a dúvida universal em todos os objetos do conhecimento e da investigação hu­mana. Observais – devem dizer – os instintos e as tendências naturais aderindo veracidade aos sentidos? Mas isto não vos persuade a acre­ditar que o objeto exterior é rigorosamente a percepção ou imagem sensível. Repudiais este princípio optando por uma opinião mais ra­cional que estipula que as percepções são apenas representações de alguma coisa exterior? Apartais assim de vossas tendências naturais,. e sentidos mais evidentes; todavia, não tendes possibilidade de esclarecer vossa razão, que jamais pode desvendar argumento convincente derivado da experiência provando que as percepções estão ligadas com os objetos externos.
Há um outro tema cético de natureza análoga, decorrente da filosofia mais profunda, que poderia merecer nossa atenção se fosse necessário aprofundar para desvendar argumentos e raciocínios que podem servir com exigüidade a fins sérios. Tem-se admitido univer­salmente entre os investigadores modernos que todas as qualidades sensíveis dos objetos, tais como duro, brando, quente, frio, branco, preto etc., são meramente secundárias, e que elas não existem nos próprios objetos, sendo percepções do espírito sem nenhum arquétipo ou modelo exterior que elas representam. Se isto é admitido em relação às qualidades secundárias, deve-se também admitir acerca das pre­tendidas qualidades primárias da extensão e da solidez, já que estas não têm menos direito do que aquelas para merecer esta denominação. A idéia de extensão é totalmente adquirida pelos sentidos da visão e do tato; se todas as qualidades percebidas pelos sentidos estão no espírito e não no objeto, idêntica conclusão deve abranger a idéia de extensão que é completamente dependente das idéias sensíveis ou das idéias de qualidades secundárias. Nada pode livrar-nos desta conclu­são, salvo a afirmação de que as idéias destas qualidades primárias são alcançadas pela abstração, opinião que, se a examinamos cuidado­samente, encontramos ininteligível e até absurda. Uma extensão que não é nem tangível nem visível não pode ser concebida; uma extensão tangível ou visível, que não é nem dura nem macia, nem preta nem branca, está igualmente acima do alcance da concepção humana. Se qualquer pessoa tentar conceber um triângulo em geral, que não seja nem isósceles nem escaleno, e que não tenha extensão específica ou proporção em seus lados, ela perceberá imediatamente o absurdo de todas as opiniões escolásticas sobre a abstração e as idéias gerais.4
Desta maneira, a primeira objeção filosófica contra a evidência dos sentidos ou a opinião sobre a existência exterior preceitua: se esta opinião repousa sobre um instinto natural, é contrária à razão, e se ela se refere à razão, é contrária ao instinto natural e, ao mesmo tempo, não traz consigo nenhuma evidência racional para convencer um in­vestigador imparcial. A segunda objeção vai mais longe e revela esta opinião como contrária à razão; e é, ao menos, um principio da razão que todas as qualidades sensíveis estão no espírito e não no objeto. Despojando a matéria de todas as suas qualidades inteligíveis, tanto as primárias como as secundárias, de certo modo vós a aniquilais e preservais somente uma certa qualquer coisa desconhecida e inexplicá­vel como causa de nossas percepções; noção tão imperfeita que ne­nhum cético a julgará digna de ser objetada.


SEGUNDA PARTE


Destruir a razão mediante argumentos e raciocínios lógicos pode parecer uma tentativa muito extravagante dos céticos; todavia, esta é a principal finalidade de todas as suas investigações e debates. Esfor­çam-se por encontrar objeções contra os nossos raciocínios abstratos, como também contra os referentes às questões de fato e de existência.
A principal objeção contra todos os raciocínios abstratos deriva das idéias de espaço e de tempo; idéias que na vida diária e para quem as considera descuidadosamente são muito claras e inteligíveis, mas quando examinadas pelas ciências profundas – elas constituem o principal objeto destas ciências – revelam princípios que parecem repletos de absurdos e contradições. Nenhumdogma sacerdotal, in­ventado com o propósito de domar e subjugar a rebelde razão humana, abalou tanto o bom senso como a doutrina e as conseqüências da infinita divisibilidade da extensão, tal como nos são mostradas pom­posamente por todos os geômetras e metafísicos, com uma espécie de triunfo e de exultação. Uma quantidade real, infinitamente menor que qualquer quantidade finita, contendo quantidades infinitamente menores que ela mesma, e assim por diante ao infinito: eis uma formulação tão audaciosa e prodigiosa que é demasiado pesada para apoiar-se em alguma pretendida demonstração, porque repugna aos mais claros e naturais princípios da razão humana.1 Mas o que torna o assunto mais extraordinário refere-se ao fato de que estas opiniões aparentemente absurdas estão apoiadas por uma cadeia de raciocínios muito claros e naturais, sendo-nos, pois, impossível aceitar as premissas sem admitir suas conseqüências. Nada pode ser mais convincente e satis­fatório que todas as conclusões acerca das propriedades dos círculos e dos triângulos, e, uma vez que as aceitamos, como podemos negar que o ângulo formado pelo cfrculo e sua tangente é infinitamente menor que um ângulo retilíneo; que à medida que se aumenta o diâmetro do círculo ao infinito, este ângulo de contato se torna ainda menor, inclusive ao infinito, e que o ângulo de contato compreendido entre outras curvas e suas tangentes deve ser infinitamente menor que os formados por qualquer círculo e sua tangente, e assim por diante, ao infinito? A demonstração destes princípios parece tão irre­preensível como aquela que prova serem três ângulos de um triângulo iguais a dois retos, embora esta última noção seja natural e fácil, ao passo que a primeira está repleta de contradição e absurdo. A razão parece aqui lançada a um estado de assombro e de vacilação que, sem que ela tenha necessidade das sugestões de nenhum cético, lhe ensina a desconfiar de si mesma e do terreno em que pisa. Visualiza uma luz clara iluminando certos lugares, mas esta luz está cercada pela mais profunda escuridão. Entre as duas, a razão fica tão ofuscada e confundida que raramente pode pronunciar-se com certeza e segu­rança sobre algum objeto.
O absurdo destas conclusões audazes das ciências abstratas torna-se – se isto é possível – ainda mais patente em relação ao tempo do que ao espaço. Um número infinito de partes reais de tempo que se sucedem e se esgotam umas depois das outras parece uma contradição tão evidente que ninguém, cujo juízo, em vez de corrompido, se tenha aperfeiçoado pelas ciências, seria capaz de admiti-lo.
Portanto, é preciso ainda que a razão permaneça agitada e in­quieta, mesmo a respeito deste ceticismo para o qual a dirigem estes aparentes absurdos e contradições. Como uma idéia clara e distinta pode conter circunstâncias que a contradizem ou que contradizem uma outra idéia clara e distinta, isto é absolutamente incompreensível, e é talvez tão absurdo como qualquer proposição que se possa for­mular. De maneira que nada pode ser mais cético ou mais repleto de dúvida e de hesitação que este próprio ceticismo, engendrado por algumas das conclusões paradoxais da geometria ou da ciência da quantidade.2
As objeções céticas à certeza moral ou aos raciocínios acerca dos fatos são populares ou filosóficas. As objeções populares derivam da franqueza do entendimento humano; das opiniões contraditórias sus­tentadas em diferentes épocas e nações; das variações de nossos jul­gamentos quando estamos doentes ou sadios, na mocidade e na ve­lhice, na prosperidade e na adversidade; da perpétua contradição entre as opiniões e os sentimentos de cada homem particular, assim como muitos outros temas deste gênero. Não há necessidade de insistirmos por mais tempo a este respeito. Estas objeções são certamente fracas. Com efeito, na vida diária raciocinamos a todo momento sobre o fato e a existência e, certamente, não poderíamos subsistir se não empre­gássemos continuadamente este gênero de raciocínio, e quaisquer ob­jeções populares que daí decorrem são necessariamente insuficientes para destruir esta evidência. A ação, o trabalho e as ocupações da vida diária são os principais destruidores dopirronismo, isto é, dos excessivos princípios céticos. Estes princípios podem florescer e triun­far nas escolas, nas quais é certamente difícil, senão impossível, refu­tá-los. Mas, uma vez que os céticos abandonam as sombras e se de­frontam com os mais poderosos princípios de nossa natureza – de­correntes da presença dos objetos reais – que movem nossas ações e sentimentos, seus princípios desvanecem como fumaça e equiparam o mais resoluto cético ao mesmo nível dos outros mortais.
O cético estaria melhor, portanto, se permanecesse em sua pró­pria esfera e desenvolvesse estas objeções filosóficas que nascem das pesquisas mais profundas. Parece que é aqui que ele tem amplo campo para triunfar, pois insiste, legitimamente, que toda nossa evidência a favor de um fato, distanciado do atual testemunho dos sentidos ou da memória, procede inteiramente da relação de causa e efeito; que não temos outra idéia desta relação senão a de dois objetos que têm estado frequentemente ligados; que não temos argumento para nos convencer de que os objetos experienciados por nós constantemente ligados mostrar-se-ão em outros casos igualmente ligados; e que nada nos conduz a esta inferência a não ser o costume ou um outro instinto de nossa natureza que é difícil de resistir, mas que, como os outros instintos, pode ser errôneo e enganador. Enquanto o cético persiste com estes argumentos, revela sua força, ou melhor, revela tanto sua como nossa debilidade e, ao menos no momento, parece destruir toda segurança e convicção. Poder-se-iam desenvolver extensamente estes argumentos se deles adviessem um bem e um benefício perduráveis para a sociedade.
Eis aqui, todavia, a objeção principal e mais embaraçosa contra o ceticismo extremado: nenhum bem durável pode jamais resultar dele, embora conserve toda sua força e todo o seu vigor. Necessitamos ape­nas perguntar a um tal cético: Qual é a sua intenção? Qual é o propósito de todas estas curiosas pesquisas? Ele fica imediatamente perplexo e não sabe o que contestar. Um coperniciano ou um ptolomaico pode, cada um argumentando a favor de seu específico sistema de astronomia, aspirar a estabelecer entre seus ouvintes constante e durável convicção. Um estóico ou um epicureu desenvolve princípios que não devem ser duráveis, mas que têm efeito sobre a conduta e os costumes. Mas um pirrônico não pode esperar que sua filosofia tenha uma influência constante sobre o espírito ou, se ela tivesse, que esta influência fosse benéfica à sociedade. Pelo contrário, deve reconhecer, se quiser admitir alguma coisa, que toda a humanidade pereceria se seus princípios prevalecessem universal e constantemente. Todo discurso e toda ação cessariam imediatamente, e os homens ficariam em total letargia, até que as necessidades da natureza, não sendo satisfeitas, pusessem fim à sua miserável existência. Em verdade, não se deve temer demasia­damente um evento tão fatal. A natureza sempre é mais forte que os princípios.3 E, embora um pirrônico possa lançar-se a si mesmo ou a outrem em estupefação e confusão momentâneas, em virtude de seus raciocínios profundos, o primeiro e o mais banal evento da vida porá em revoada todas as suas dúvidas e escrúpulos, e o situará no mesmo nível, com referência à ação e à especulação, aos filósofos de todas as outras seitas e aos homens que nunca se preocuparam com pesquisas filosóficas. O pirrônico, ao ser despertado de seu sonho, será o primeiro a se incorporar ao riso que o ridiculariza e a admitir que todas as objeções não passavam de mero divertimento e não tinham, portanto, outra intenção senão revelar a peculiar condição do ser humano que, devendo agir, raciocinar e crer, não é capaz, pela mais diligente in­vestigação, de se esclarecer sobre o fundamento destas operações ou de remover as objeções que se poderiam levantar contra elas.


TERCEIRA PARTE


Há, na verdade, um ceticismo mais moderado ou filosofia acadê­mica,1 que pode ser ao mesmo tempo durável e útil e, em parte, resultar do pirronismo ou ceticismo extremado, se o bom senso e a reflexão cor­rigem, até certo ponto, suas dúvidas indiferenciadas. A maioria dos homens têm tendência natural para manifestar suas opiniões de modo afirmativo e dogmático e, como visualizam os objetos sob um único aspecto e como não têm qualquer idéia de argumentos opostos, lan­çam-se precipitadamente aos princípios para os quais estavam inclinados e não são indulgentes com aqueles que abrigam opiniões con­trárias. A dúvida ou a suspeita gera perplexidade em seu entendi­mento, bloqueia sua paixão e interrompe sua ação. Portanto, impa­cientes para escapulir de uma situação que lhes é tão desagradável, os homens supõem que umcamente aderindo às afirmações violentas e crenças obstinadas conseguirão afastar-se o bastante dela. Mas, se tais homens que raciocinam dogmaticamente pudessem ter consciência da singular fragilidade do entendimento humano, inclusive em seu estado mais perfeito e quando é mais rigoroso e prudente em suas resoluções, semelhante reflexão os inspiraria naturalmente a ter mais modéstia e reserva, diminuindo a exagerada opinião que têm de si mesmos e seus preconceitos contra os adversários. Os ignorantes de­vem refletir acerca da situação dos sábios que, embora usufruindo de todas as vantagens advindas do estudo e da reflexão, se mostram geralmente desconfiados de suas afirmações. E, se algum sábio tende, por seu temperamento natural, à altivez e à obstinação, uma leve tin­tura de pirronismo poderia abater seu orgulho e mostrar-lhe que as poucas vantagens que obteve sobre seus semelhantes são insignifican­tes se comparadas à confusão e à perplexidade universais inerentes à natureza humana. Em geral, há um grau de dúvida, de prudência e de modéstia que, nas investigações e nas decisões de todo gênero, deve sempre acompanhar o homem que raciocina corretamente.
Uma outra espécie de ceticismo moderado, que deve ser vantajoso aos homens e que pode resultar naturalmente das dúvidas e escrúpulos pirrônicos, consiste em limitar nossas investigações aos objetos que mais bem se adaptam à exígua capacidade do entendimento humano. A imaginação humana, sublime por natureza, deleita-se com tudo que é remoto e extraordinário, e ela corre, sem controle, pelas mais lon­gínquas regiões do tempo e do espaço, visando assim a evitar os objetos que o costume lhe tem tornadu demasiado familiares. Um juízo correto observa um método contrário e, evitando todas as investigações lon­gínguas e elevadas, limita-se à vida diária e aos objetos compreendidos pela prática e experiência cotidianas, reservando os temas mais subli­mes ao embelezamento dos poetas e dos oradores, ou à arte dos sa­cerdotes e dos políticos. Para chegarmos a uma decisão tão salutar, nada pode ser mais útil do que nos convencer de vez da força da dúvida pirrônica e da impossibilidade de que algo pode libertar-nos dela, exceto o forte poder do instinto natural. Aqueles que têm pro­pensão para a filosofia continuarão ainda suas pesquisas, porque re­fletem que, além do prazer imediato que acompanha tal ocupação, as decisões filosóficas nada mais são do que reflexões sobre a vida coti­diana, metodizadas e corrigidas. Contudo, jamais tentarão extravasar da vida cotidiana, contanto que considerem a impressão das faculdades que empregam, seu alcance reduzido e a imperfeição de suas opera­çoes. Visto que não podemos dar uma razão satisfatória por que acre­ditamos, depois de mil experimentos, que uma pedra cairá ou que o fogo queimará, podemos esclarecer-nos sobre qualquer resolução que podemos formular sobre a origem dos mundos e o estado da natureza desde a eternidade e para a eternidade?
Certamente, esta estreita limitação de nossas investigações é, sob todo ponto de vista, tão razoável que basta fazer o exame mais su­perficial dos poderes naturais do espírito humano e compará-los com seus objetos para que nos seja recomendada. Deste modo, localizare­mos os respectivos objetos da ciência e da investigação.
Parece-me que os únicos objetos da ciência abstrata, ou da de­monstração, são a quantidade e o número, e que todo esforço para estender este gênero mais perfeito do conhecimento além daquelas fronteiras é mero sofisma e ilusão. Como as partes componentes da quantidade e do número são inteiramente semelhantes, suas relações tomam-se complicadas e embaraçadas, e nada pode ser mais curioso, como também útil, do que demarcar com vários sinais intermediários sua igualdade ou desigualdade sob suas diferentes formas de aparição. Mas, como todas as outras idéias são claramente distintas e diferentes umas das outras, jamais podemos ir mais longe, nem com a ajuda de nosso mais rigoroso exame, do que observar esta diversidade e decidir, mediante uma reflexão evidente, que uma coisa não é outra. Ou, se há qualquer dificuldade nestas decisões, ela procede inteiramente da indeterminação dos significados das palavras que se corrige com de­finições adequadas. Não se pode saber se o quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados, por mais rigorosamente que tenham sido definidos os termos, sem uma seqüência de raciocínios e inves­tigações. Mas, para convencer-nos a respeito da seguinte proposição – onde não há propriedade, não pode haver injustiça –, é apenas necessário definir os termos e explicar que a injustiça é uma violação da pro­priedade. Esta proposição é, em verdade, apenas uma definição mais imperfeita. O mesmo caso ocorre com todos os pretensos raciocínios silogísticos que se encontram em todos os ramos do saber, exceto nas ciências da quantidade e do número. Pode-se, portanto, afirmar com toda segurança, penso eu, que a quantidade e o número são os únicos objetos adequados do conhecimento e da demonstração.
Todas as outras investigações humanas dizem respeito unicamente às questões de fato e de existência; e estas não são, evidentemente, sus­cetíveis de demonstração. Tudo o que é pode não ser. Nenhuma negação de um fato pode implicar contradição. A inexistência de um ser, sem exceção, é uma idéia tão clara e distinta como a de sua existência. A proposição que afirma que não existe, mesmo se é falsa, não é menos concebível e inteligível que aquela que afirma que existe. O caso é diferente para as ciências propriamente ditas. Toda proposição que não é verdadeira é considerada confusa e ininteligível. A raiz cúbica de 64 é igual à metade de 10 é uma proposição falsa e jamais poder-se­ia concebê-la distintamente. Mas que César, o anjo Gabriel ou um outro ser qualquer jamais existiram podem ser proposições falsas e, sem dúvida, perfeitamente con­cebíveis, e não implicam contradição.
Portanto, a existência de qualquer ser somente pode ser provada mediante argumentos derivados de sua causa ou de seu efeito, e estes argumentos se fundam inteiramente na experiência. Se raciocinamos a priori, qualquer coisa pode parecer capaz de produzir qualquer coisa.
A queda de um seixo pode, pelo que sabemos, extinguir o sol, ou a vontade de um homem controlar os planetas em suas órbitas. É uni­camente a experiência que nos ensina a natureza e os limites da causa e do efeito e permite-nos inferir a existência de um objeto partindo de um outro.2 Tal é o fundamento do raciocínio moral que constitui a maior parte do conhecimento humano e que é a fonte de todas as ações e comportamentos humanos.3
Os raciocínios morais referem-se tanto a fatos particulares como gerais. Todas as deliberações da vida dizem respeito aos primeiros, bem como todas as investigações da história, da cronologia, da geo­grafia e da astronomia.
As ciências referentes aos fatos gerais são a política, a filosofia natural, a física, a química etc., nas quais se investigam as qualidades, as causas e os efeitos de toda uma espécie de objetos.
As ciências religiosas ou teológicas, enquanto visam a provar a existência de Deus e a imortalidade das almas, compõem-se em parte de raciocínios baseados em fatos particulares e, em parte, de raciocínios baseados em fatos gerais. Fundam-se sobre a razão, na medida em que se apóiam na experiência. Mas seu melhor e mais sólido funda­mento é a fé e a revelação divina.
A moral e a crítica não são propriamente objetos do entendi­mento, porém do gosto e do sentimento. A beleza, moral ou natural, é antes sentida que propriamente percebida. Ou, se raciocinamos a seu respeito, e tentamos estabelecer sua norma, consideramos um novo fato, derivado do gosto geral dos homens, ou algum fato análogo que pode ser objeto do raciocínio e da investigação.
Quando percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princí­pios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos:
Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão so­fismas e ilusões.


Notas

SEÇÃO I – DAS DIFERENTES CLASSES DE FILOSOFIA
1 – Nesta seção, Hume apresenta os principais objetivos desta Investigação. Por este motivo, ela corresponde, como muito bem observa Flew, à parte introdutória do Tratado, em que Hume mostra que a discrepância existente entre “filosofia e ciência” decorre do fato de elas não se fundamentarem em base comum. A seguir, revela que o caminho mais indicado para solucionar o problema consiste em principiar estudando a “ciência do homem”, já que “todas as ciências têm uma relação, maior ou menor, com a natureza humana”.
A. Flew, Hume’s Philosophy of Belief, Routlege & Kegan Paul, Londres, 1961, pp. 1-7.

2 – Ao identificar sua filosofia com a “filosofia moral, ou ciência da natureza humana”, Hume está indicando que o termo filosofia, como era entendido no século XVIII, tinha um amplo significado.

3 – Nas edições K e L, aparecia a seguinte nota: “Não se intenciona de nenhum modo depreciar o mérito de Locke, que foi realmente um grande filósofo, pois raciocina com correção e modéstia. Pretende-se apenas mostrar o destino comum deste gênero de filosofia abstrata”.

4 – A filosofia “fácil” considera seu tema adequado as ações humanas (ela visualiza o homem como “nascido para a ação”), e tem como fim inculcar a virtude. Seu método consiste no uso de exemplos que permitem inculcar a virtude. A filosofia “difícil” considera seu tema apropriado as especulações metafísicas acerca da natureza (isto é, das “essências ocultas”) do homem e do mundo externo, pois o homem é considerado um “ser racional” que pode desvendar a natureza das coisas. Seu fim é a verdade absoluta acerca desta natureza imutável. Seu método é a “instrução” ou a apreensão do conhecimento através de uma longa cadeia de raciocínios. Uma filosofia adequada, sustenta Hume, deve combinar o tema, o método e o fim dessas duas classes de filosofia, pois a dualidade da natureza humana parece ser um dos principais objetivos da Investigação. Desta maneira, o tema adequado é o “entendimento humano” em suas operações racionais e volitivas, já que o entendimento humano pode ser entendido como aquilo que é capaz de conhecer-se a si mesmo como centro do pensamento e da ação. O fim adequado diz respeito a um contínuo desenvolvimento reflexivo de nossa compreensão do entendimento humano e de suas operações (veja-se seção III). E o método apropriado é aquele que possibilita esta continua auto-reformação (veja-se seção II, nota 11). E assim que o entendimento humano chega a descobrir o que pode ser conhecido e o que pode ser feito, ou melhor, o objeto apropriado sobre o qual o entendimento humano pode e deve operar e os princípios adequados que devem conduzir os homens aos atos corretos. (R. Sternfeld, “The Unity of Hume’s Enquiry concerning Human Understanding”, The Review of Metaphysics, vol. III, 2, Dez., 1949, n. 10 pp. 167-188) [N. do T.].

5 – A ênfase dada por Hume aos problemas da natureza e limites do entendimento humano reflete projeto semelhante ao de Locke, que no An Essay concerning the Human Understanding, relata que seu livro nasceu quando ele, com mais cinco ou seis amigos’, discorria sobre um ‘tópico bem remoto deste (isto é, Essay)”: “ficamos logo inertes, pelas dificuldades advindas de todas as partes. Depois de algum tempo de hesitação, sem nenhuma solução viável acerca das dúvidas que nos haviam deixado perplexos, conaiderei que havíamos iniciado pelo caminho errado e que, antes de nos empenharmos em investigações desta natureza, devemos examinar nossas próprias habilidades para averiguar com quais objetos nossos entendimentos podem, ou não, tratar adequadamente” (edição Frazer, Great Books, Chicago, 1952, p. 87). É preciso, todavia, observar que o texto de Hume deixa bem clara a intenção de empregar o mesmo descobrimento de maneira bem mais agressiva e mais categórica do que foi utilizado por Locke [N. do T.].

6 – Nas edições K e L havia a seguinte nota: Esta faculdade que nos permite discernir o verdadeiro do falso e aquela que nos faz perceber a diferença entre o vício e a virtude têm sido por muito tempo confundidas uma com a outra. Supunha-se, deste modo, que toda temática moral estivesse construída sobre relações eternas e imutáveis, as quais, observadas por qualquer espírito inteligente, eram consideradas tão invariáveis como qualquer proposição acerca da quantidade e do número. Há pouco tempo um filósofo [Francis Hutcheson, citado em nota de rodapé] esclareceu-nos, mediante os mais convincentes argumentos, que a moral não é nada quando encarada do ponto de vista abstrato, sendo completamente relativa ao sentimento ou ao gosto de cada ser particular; do mesmo modo que as diferenças entre doce e amargo, quente e frio nascem do sentimento derivado de cada sentido ou de cada órgão. Convém, portanto, classificar as percepções morais, não com as operações do entendimento, mas com os gostos ou sentimentos. “Os filósofos tinham o habito de dividir todas as paixões do espírito em duas classes, as egoístas e as altruístas, e supunham que elas estivessem em constante oposição e contradição. Pensavam, ainda, que as últimas jamais pudessem abarcar seu objeto apropriado sem referência ás primeiras. Entre as paixões egoístas classificavam a avareza, a ambição e o espírito de vingança; entre as altruístas a afeição natural, a amizade e o espírito público. Os filósofos já podem averiguar [vejam-se osSermões de Butler] a inexatidão desta classificação. Ficou provado, de modo indubitável, que mesmo as paixões geralmente julgadas egoístas extravasam o próprio espírito na direção do objeto; que, embora a satisfação destas paixões nos dê prazer, sua antecipação não é, todavia, a causa da paixão; ao contrário, a paixão precede o prazer e sem a primeira o último jamais teria podido existir; que esta é precisamente a situação das paixões denominadas altruístas e que, por conseguinte, um homem não está mais interessado quando aspira à sua própria glória do que quando a felicidade de seu amigo é o objeto de seus desejos; que ele não está mais desinteressado quando sacrifica sua tranquilidade e seu repouso ao bem público do que quando trabalha para satisfazer sua avareza ou ambição. Eis, portanto. um ajuste considerável entre as fronteiras das paixões, que têm sido confundidas pela negligência ou inexatidão dos filósofos precedentes. Estes dois exemplos podem servir para nos mostrar a natureza e a importãncia desta classe de filosofia”. E provável que Hume excluiu esta nota por considerá-la supérflua depois da publicação de sua An Enquiry concerning the Principles of Morals, em 1751. Parece-nos, todavia, que ela pode esclarecer, especialmente pela menção de Hutcheson, o projeto humiano. A influência de Hutcheson sobre Hume, como mostra com acerto Smith, é mais considerável do que se supunha. O núcleo da teoria hutchesoniana consiste, segundo Smith, em considerar que o último fundamento de nossos juízos de valor, tanto morais como estéticos, não é a razão, mas o sentimento ou feeling. Hume não apenas adotou este ponto de vista, mas ampliou seu âmbito ao aplicá-lo a todas as “questões de fato e de existência” (Investigação, seção IV). Hume antecipa, deste modo, a distinção entre “conhecimento” (nascido das “relações de idéias” e restrito aos objetos matemáticos) e “crença” (inferida das “relações de fatos” e englobando todos os outros objetos). Esta distinção é, em verdade, discutida com pormenores na seção IV desta Investigação. (Vejam-se de N. Kemp Smith, The Philosophy of David Hume, Macmillan, 1949, capítulos I e II; de E. C. Mossner, The Life of David Hume, Nelson, 1954, pp. 76-7; de F. Hutcheson, Inquiry into the Original of our Ideas on Beauty and Virtue, 1725, e Essay on the Nature and Conduct of the Passions and Affections, 1728.) [N. do T.]

7 – A analogia com a astronomia antes e depois de Newton indica quais os resultados que podem ser obtidos da pesquisa acerca das operações do entendimento humano. A aspiração manifestada por Hume no subtítulo do Tratado (“tentativa para introduzir o método do raciocínio experimental em objetos morais”) – alusão evidente ao método de Newton e que lhe valeu o epíteto de ser o Newton das ciências morais – é agora reduzida pela aspiração mais modesta de fazer apenas uma “geometria mental”. Em verdade, a Investigação caracteriza-se pela maior ênfase dada aos problemas que dizem respeito à natureza, pressupostos e limitações de vários tipos de pesquisas. (Flew, obra citada, p. 14.) [N. do T.]
SEÇÃO II – DA ORIGEM DAS IDÉIAS
1 – O termo "percepções" é utilizado por Hume para designar a totalidade dos fatos mentais e das operações volitivas. Mais adiante, nesta seção (p. 70), ele escreve que as percepções constituem ‘todos os materiais do pensamento’. (vejam-se também: Tratado, I. ii, 6, p. 67 – II i, 1 p. 456.) Hume difere assim de Locke, que emprega o termo “idéia (veja-se nota 12 desta seção) com aquele sentido genérico. [N. do T.]

2 – As percepções originais, isto é, os elementos primitivos da experiência, são, escreve Hume, as “impressões”. As “idéias”, por seu turno, que afloram à consciência, quando pensamos ou raciocinamos, são fracas imagens das impressões. As idéias não são, portanto, como para os platônicos, os arquétipos de tudo que existe e nem, como para os cartesianos, inatas, pois unicamente as impressões são inatas (veja-se O. Brunet, Philosophie et esthétique chez David Hume, Nizet, Paris, 1965, pp. 292-295.). Como as idéias são fracas imagens de impressões correspondentes, podemos dizer que as percepções do espírito, assumindo dupla forma, como impressões e como idéias, distinguem-se em grau e não em natureza. Ou melhor, as duas facetas de uma única percepção discriminam-se entre si do mesmo modo como um modelo se diferencia de sua cópia. [N. do T.]

3 – O método filosófico adequado é aquele que permite a contínua reforma de nossas idéias acerca das operações do entendimento humano. E as idéias são reformadas por estarem relacionadas com suas impressões correspondentes. Esta relação é dupla: a) as idéias são similares às impressões, ou melhor, são cópias ou imagens das impressões (em concordância com o método baseado no exemplo), e b) as idéias estão necessariamente unidas às impressões, ou melhor, as idéias não são descobertas sem impressões correspondentes (do mesmo modo que a filosofia difícil admite que a conclusão não pode ser levada a cabo sem as premissas adequadas). (Sternfeld, artigo citado, pp. 173-174.) [N. do T]

4 – É provável que todos aqueles que negaram as idéias inatas queriam apenas dizer que todas as nossas idéias eram cópias de nossas impressões, embora seja preciso confessar que os termos por eles empregados nem sempre foram escolhidos com precaução nem definidos com exatidão, a fim de evitar equívocos sobre suas doutrinas. O que se entende por inato? Se inato é equivalente a natural, então se deve conceder que todas as percepções e idéias do espírito são inatas ou naturais, em qualquer sentido que tomemos este último termo, seja em oposição ao que é insólito, artificial ou miraculoso. Se inato significa contemporâneo ao nosso nascimento, a discussão parece frívola, pois não vale a pena averiguar em que momento se começa a pensar: se antes, no, ou depois de nosso nascimento. Demais, parece-me que Locke e outros tomam o termo idéia em sentido muito vago, tanto indicando nossas percepções, sensações e paixões, como nossos pensamentos. Ora, neste sentido eu gostaria de saber o que é que se quer dizer quando se afirma que o amor-próprio ou ressentimento por injúrias sofridas ou a paixão entre os sexos não é inata?

Mas admitindo-se os termos impressões e idéias no sentido exposto acima e entendendo por inato o que é primitivo ou não copiado de nenhuma percepção precedente, podemos então afirmar que todas as nossas impressões são inatas e que nossas idéias não o são.
Para ser franco, devo confessar que em minha opinião Locke foi enganado sobre esta questão pelos escolásticos, que, utilizando termos definidos sem rigor, prolongavam cansativamente as discussões sem jamais atingir o núcleo da questão. Semelhante ambigüidade e circunlocução parecem estar presentes nos raciocínios deste filósofo acerca deste tema como também da maioria de outras questões (Hume).
SEÇÃO III – DA ASSOCIAÇÃO DE IDÉIAS
1 – Nas edições K e L o título era: ‘Conexão de idéias’.

– Hume afirma no Abstract que “se alguma coisa pode designar o autor [isto é, Hume] pelo glorioso título de inventor, consiste na maneira por que ele emprega o princípio de associação de idéias, que aparece em quase toda a sua filosofia”. Hume não se considera o inventor da teoria associativa, mas apenas admite ter descoberto uma nova maneira de utilizá-la. (veja-se J. Passmore, Hume’s Intentions, segunda edição, Basic Books, Nova York, 1968, p. 105.) Com efeito, Locke afirma que algumas de nossas idéias têm uma natural correspondência e conexão entre si; constitui tarefa e qualidade da razão delineá-las... Há, ademais, outra conexão de idéias devida totalmente ao acaso ou costume. Idéias que em si mesmas não são em nada aparentadas, tornam-se de tal modo unidas em alguns espíritos humanos, que é muito difícil separá-las”(Essay, edição citada, cap. XXXIII, 5, pp. 248-9). De acordo com a teoria de Locke, portanto, apenas as relações reflexivas (isto é, “necessárias”) revelam um pensamento ordenado, ao passo que a “associação de idéias” (isto é, relação “costumeira”) é um princípio de “conexão errônea” (Idem, 9, p. 249) ou de aberrações mentais. (veja-se A. L. Leroy, David Hume, Paris, 1953, p. 47.) Ora, para Hume, o termo “relação”, como é entendido na “linguagem comum”, designa esta “qualidade (ou principio) pela qual duas idéias estão unidas na imaginação, e uma introduz naturalmente a outra” (Tratado, I, v, pp. 13-4). Denominando este processo de “relação natural”, Hume acrescenta que, quando o espírito faz, de modo constante e uniforme, e sem qualquer base racional, a transição entre percepções, acha-se influenciado por este tipo de relação. Sugere-nos, assim, que a “relação natural” consiste na transição irrefletida, habitual e associativa entre idéias. Daqui, podemos concluir que para Hume: 1) os princípios associativos baseiam-se na “relação natural”, pois decorrem da propensão da imaginação de efetuar a fácil transição de uma impressão para uma idéia, ou de uma idéia para outra idéia, e 2) com exclusão apenas das relações matemáticas (em parte concorda com Locke, que excluia também as relações morais), todas as outras conexões consistem na constatação de que nossas idéias estão habitualmente unidas e que a conexão costumeira de idéias é o caso típico, e não uma ocasional aberração mental como supõe Locke. (Passmore, ob. cit., p. 67.) [N. do T.]

3 – Hume esqueceu de mencionar que Aristóteles já havia distinguido os princípios de semelhança, de contraste e de contiguidade (On Memory and Reminiscense, edição Ross, Great Books, 1952, 451b, pp. 692-3). Hume elimina o principio de contraste, embora na nota 7, desta seção, ele considere o “contraste” uma mistura de semelhança e de causalidade. [N. do T.]

4 – Semelhança (Hume).

5 – Contiguidade (Hume).

6 – Causa e efeito (Hume).

7 – Por exemplo, o contraste ou a contrariedade é também uma conexão entre idéias, mas podemos sem dúvida considerá-la uma mistura de causalidade e semelhança. Quando dois objetos são contrários, um destrói o outro, isto é, constitui a causa de sua aniquilação, e a idéia de aniquilação de um objeto implica a idéia de sua existência anterior (Hume). Esta nota é a transcrição da nota 21, p. 76, operada por Hume, quando ele suprimiu o fim desta seção. [N. do T.]

– Ao contrário de Aristóteles, a fábula não é una, como alguns pensam, pelo fato de não haver senão um herói, pois a vida de um mesmo homem compreende um grande número, uma infinidade de eventos que não formam uma unidade. E, do mesmo modo, um mesmo homem realiza várias ações que não constituem uma ação única etc. Capítulo VIII (Hume). Poética, 1451 a, pp. 16-19; a tradução citada é a de M. J. Hardy. veja-se Hume, Enquête sur l’entendement humain, trad. Leroy, 1948, p. 63, nota 1. [N. do T.]

9 – Veja-se nota 7, desta seção. [N. do T.]

SEÇÃO IV – DÚVIDAS CÉTICAS SOBRE AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO – PRIMEIRA PARTE – A FILOSOFIA MORAL
1 – A presente posição de Hume representa um aperfeiçoamento (veja-se Flew, ob. cit., p. 62) em comparação ao Tratado, que considera apenas a álgebra e a aritmética como ‘as únicas ciências em que podemos conduzir uma cadeia de raciocínios a qualquer grau de complicação, e ainda preservar perfeita exatidão e certeza Ao passo que a ‘geometria não é dotada deste perfeito rigor e certeza, que são peculiares à aritmética e à álgebra” (Tratado, I, iii, 1, p. 71). [N. do T.]

2 – Locke divide o conhecimento em três graus, a saber, intuitivo, demonstrativo e sensitivo, e afirma que “as idéias da quantidade não são as únicas capazes de demonstração e de conhecimento...” (Essay, edição citada, Book IV, p. 317). Ou melhor, Locke pensa que a ciência da moralidade, do mesmo modo que as ciências matemáticas, é passível de demonstração. Como exemplos de proposições tão certas como quaisquer proposições matemáticas ele cita: “onde não há propriedade não há injustiça” e “nenhum governo permite liberdade absoluta”. (Idem, p. 318). Hume situa, de um lado, as “relações de idéias”, que devem ser entendidas como comparação de idéias. O conhecimento consistiria precisamente em comparar idéias, ou melhor, fundamenta-se em “relações de idéias”, as quais permanecem invariáveis, contanto que as idéias não se alterem (Tratado, I, iii, I, pp. 69-71). Daqui nascem determinadas “proposições” que são “intuitivamente e demonstrativamente certas” e evidentes, na medida em que, no entender de Hume, sua verdade, garantida pela lei da não-contradição, se revela pela “simples operação do pensamento”. Trata-se, segundo Hume, dos “raciocínios demonstrativos” (investigação, p. 82), empregados unicamente pelas ciências matemáticas e não, como quer Locke, também pelas ciências morais. Hume coloca, de outro lado, as “relações de fatos”, que podem modificar-se sem que haja qualquer alteração nas idéias (Tratado, idem), pois o “contrário de um fato qualquer é sempre possível”, e não encerra contradição afirmar “que o sol não nascerá amanhã” ou “que ele nascerá”. Tanto uma como outra afirmativa são perfeitamente claras; entretanto, não podemos recorrer, a exemplo do que acontece nas “relações de idéias”, ao método demonstrativo, pois apenas a experiência é que possui jurisdição na esfera das “relações de fatos”. Evidentemente, o núcleo do problema insito nas proposições “o sol nascerá” ou ‘não nascerá”, não diz respeito às dúvidas de Hume quanto ao aparecimento do sol, mas apenas consiste na indicação de um tipo de certeza diferente da certeza absoluta. Trata-se, portanto, da caracterização da crença, que reina na esfera da opinião, e, de acordo com Hume, que aqui diverge de Locke (veja-se N. K. Smith, ob. cit., pp. 63-70), é estendida a todas as “questões de fato e de existência”. E assim que Hume estabelece uma categórica dicotomia entre o conhecimento e a crença. [N. do T.]

3 – O caminho que Hume pretende seguir aqui pode, talvez, ser iluminado pela seguinte passagem do Abstract: “o célebre Monsieur Leibniz observou, como um defeito comum dos sistemas de lógica, que eles são prolixos quando explicam as operações do entendimento formando demonstrações, mas são bastante concisos quando tratam das probabilidades e das outras medidas de evidência das quais a vida e a ação dependem inteiramente”. (pp.. 7-8; citado também por Flew, ob. cit., p. 69). [N. do T.]

Segunda Parte
1 – O termo “poder” é usado aqui em sentido vago e popular. Sua explicação mais rigorosa acrescenta evidência a estes argumentos. Veja-se seção VII (Hume)

2 – A inferência causal fundamenta-se na semelhança entre o passado e o futuro. De que modo esta semelhança pode ser provada? Primeiro, não pode ser provada pelo “raciocínio demonstrativo”, pois, escreve Hume, é “evidente que Adão. com toda a sua ciência, jamais seria capaz de demonstrar que o curso da natureza deve permanecer uniformemente o mesmo, e que o futuro deve conformar-se ao passado. O que é possível nunca pode ser demonstrado como falso; e é possível que o curso da natureza possa mudar, desde que podemos conceber tal mudança” (Abstract, p. 15). Segundo, não pode igualmente ser justificada pelo “raciocínio provável”, desde que ‘ele [Adão] não poderia provar por nenhum raciocínio provável que o futuro deve conformar-se ao passado. Todos os argumentos prováveis estão fundados na suposição de que ha conformidade entre o passado e o futuro, portanto, [Adão] jamais pode prová-lo” (Idem, p. 15). A inferência causal não pode ser teoricamente justificada, pois tanto o raciocínio demonstrativo como o provável não provaram a semelhança entre o passado e o futuro. Hume está, por conseguinte, preparado para concluir que é “unicamente o hábito e não a razão que nos determina a fazer [da experiência] a norma de nossos juízos futuros’ (Abstract, pp. 21-22). [N. do T.]

SEÇÃO V – SOLUÇÃO CÉTICA DESTAS DÚVIDAS – PRIMEIRA PARTE
1 – A filosofia acadêmica ou cética designa a forma de filosofia da última Academia, que floresceu a partir do século IV a.C. Hume a distingue do ceticismo pirrônico (veja-se seção XII), que é extremo e, segundo ele, um tipo de dogmatismo negativista, pois, embora todos os argumentos racionais se mostrem defeituosos e incondusos, o homem deve decidir e tomar posição na vida prática. Os escritos filosóficos de Cícero, profundamente marcados por esse tipo de ensino, exerceram considerável influência na educação da maioria dos filósofos modernos, especialmente de Locke, Berkeley e Hume. (Veja-se de Hume, An Inquiry Concerning Human Understanding, ed. Hendel, Liberal Arts, 1955, p. 54, nota 1) [N. do T.]

2 – Nada é mais útil aos escritores, mesmo os que escrevem a respeito de temas moraispolíticos ou físicos, do que distinguir entre a razão e a experiência e supor que estas classes de argumentação são inteiramente diferentes entre si. As primeiras são consideradas meros resultados de nossas faculdades intelectuais, as quais, ao considerarem a priori a natureza das coisas e examinarem os efeitos, que devem resultar de sua operação, estabelecem princípios particulares à ciência e à filosofia. As últimas são supostas derivar inteiramente dos sentidos e da observação, por meio dos quais sabemos o que é que resultou de fato da operação de objetos particulares e assim somos capazes de inferir o que resultará deles no futuro. Assim, por exemplo, as limitações e restrições do governo civil e de sua constituição legal podem ser defendidas tanto mediante a razão, que refletindo sobre a debilidade e corrupção da natureza humana nos ensina que a nenhum homem se pode confiar uma autoridade ilimitada, como mediante aexperiência e a história, que nos informam dos enormes abusos que a ambição tem cometido em toda época e país, devido a uma confiança tão imprudente.

A mesma distinção entre razão e experiência se verifica em todas as nossas deliberações acerca da conduta na vida. Deste modo, o estadista, o general, o médico e o mercador experientes são seguidos e inspiram confiança, enquanto o novato inexperiente é, por mais bem-dotado de talentos naturais, desprezado e desconsiderado. Embora se admita que a razão pode formular conjeturas mais plausíveis sobre determinada conduta em determinadas condições, supõe-se, todavia, que ela é imperfeita sem o auxilio da experiência, pois esta é a única via capaz de conferir estabilidade e certeza às máximas deduzidas mediante estudo e reflexão.
Apesar da aceitação universal desta distinção, tanto nas etapas da vida ativa como especulativa, não terei escrúpulos em afirmar que é uma atitude errônea ou, ao menos, superficial.
Se examinarmos os argumentos em uma das ciências acima mencionadas e supormos que eles são meros efeitos do raciocínio e da reflexão, verificaremos que terminam pelo menos em alguma conclusão ou princípio geral, aos quais não podemos alegar outra razão a não ser a observação e a experiência. A única diferença entre as máximas racionais e experimentais (estas vulgarmente consideradas resultantes da mera experiência) consiste em que as primeiras não podem ser estabelecidas sem algum processo do pensamento e alguma reflexão sobre o que foi observado, a fim de distinguir suas circunstâncias e traçar suas conseqüências; nas máximas experimentais, o evento experienciado é exata e completamente similar ao que inferimos como resultado de uma situação particular qualquer. A história de um Nero ou de um Tibério nos levaria a temer semelhante tirania se nossos monarcas estivessem livres das restrições do Senado e da Lei. Mas a constatação de qualquer fraude ou crueldade na vida privada é suficiente, com o auxilio de alguma experiência, para alertar-nos do mesmo temor, porque serve de exemplo da corrupção geral da natureza humana e nos mostra o perigo que poderíamos correr se depositássemos inteira confiança na humanidade. Nos dois casos a experiência é, em última análise, o fundamento de nossa inferência e conclusão.
Não há homem tão jovem e inexperiente que não tenha formado muitos e corretos princípios sobre os assuntos humanos e a conduta na vida. Mas é preciso admitir que, quando um homem procura exercê-los, está mais propenso a errar, até que o tempo e experiências ulteriores lhe ampliem estes principios e lhe ensinem seu uso adequado e aplicação. Em toda situação ou incidente ha várias circunstâncias particulares, aparentemente sem importãncia, que o homem mais bem-dotado está inclinado a princípio a desdenhar, embora dependam delas a exatidão de suas conclusões e, por conseguinte, a prudência de sua conduta. Sem mencionar que, para um jovem principiante, os princípios e as operações gerais nem sempre se manifestam em ocasiões adequadas e nem podem ser imediatamente aplicados com a devida calma e distinção. A verdade é que um homem que raciocina sem experiência não poderia raciocinar se olvidasse inteiramente a experiência; quando designamos alguém com esta característica, fazemo-lo somente em sentido comparativo e supomos que possui experiência em grau mais ou menos imperfeito (Hume).

3 – Em outra passagem desta Investigação, Hume manifesta a esperança de que ‘a filosofia, se cuidadosamente cultivada e encorajada pela atenção do público, possa levar suas indagações ainda mais longe (isto é, da geografia mental) e descubra, pelo menos em parte, as fontes e os princípios secretos que impulsionam o espírito humano em suas operações (seção I, p. 68). A descoberta da função indispensável do costume em todo conhecimento da experiência pode ser, talvez, classificada como o avanço mais significativo naquela direção. (Veja-se Flew, ob. cit., p. 77.) [N. do T.]

4 – O costume é, portanto, o fator que nos faculta a antecipar que o futuro será semelhante ao passado e nos leva a inferir de uma causa presente um efeito ausente. O costume compreende também mais alguma coisa. As idéias introduzidas por ele são inferências e não meras sugestões. A experiência que temos da conjunção constante’ entre, por exemplo, chama e calor, ou neve e frio, determina-nos, quando revemos a chama ou a neve, pelo “costume a esperar calor ou frio, e a acreditar que esta realidade existe realmente e que se manifestaria se estivesse mais próxima de nós”. Revela-se, assim, como o costume envolve e condiciona a crença. [N. do T.]

5 – Hume escreve no Tratado que a “crença é mais propriamente um ato sensitivo do que um aspecto cogitativo de nossa natureza” (1, iV, 1, p. 183). [N. do T.]
SEGUNDA PARTE
1 – Hume acrescenta, no “Appendix” do Tratado, um novo elemento para explicar a crença. Salienta que um “segundo erro pode ser encontrado no primeiro livro, página 96, quando digo que duas idéias de um mesmo objeto podem ser discriminadas apenas por seus diferentes graus de força e vivacidade. Acredito que há outra diferença entre as idéias que não podem ser adequadamente compreendidas com aqueles termos. Se tivesse dito que duas idéias de um mesmo objeto podem diferenciar-se apenas por seus diferentes feeling [traduzimos por “maneira de sentir”], estaria bem mais próximo da verdade” (p. 636). Esta nova discussão da natureza da crença ocupa nove das dezessete páginas do “Appendix”, e seu principal aspecto consiste em mostrar que a crença é um feeling. Convém lembrar que, no corpo do Tratado, em nenhum momento a crença é designada como feeling. Tendo, porém, introduzido esse acréscimo no “Appendix”, Hume permanece coerente com a mesma doutrina na Investigação. [N. do T.]

2 – Hume anota que a crença constitui um ato do espírito jamais “explicado por nenhum filósofo” (Tratado, 1, iii, vil, p. 97, nota). Mostra, por exemplo, que não custa muito explicar como uma “pessoa” considera verdadeiras as proposições demonstrativas ou intuitivas, já que quando ela “decide, não apenas concebe as idéias segundo a proposição, mas é necessariamente determinada a concebé-las de um modo específico”(Idem, p. 95). Mas o que é evidente para a demonstração não o é em relação à crença baseada nos raciocínios de causalidade, nos quais a “necessidade absoluta não se verifica, e a imaginação é livre para conceber os dois aspectos da questão” (Ibidem, p. 95). [N. do T.]

3 – “Poderia dizer, ele respondeu, que é uma disposição natural ou não sei qual ilusão que nos deixa intensamente comovidos quando vemos os lugares pelos quais, como nos informaram, homens dignos de memória passaram longo tempo, do que quando nos falam a respeito deles ou lemos alguma coisa escrita por eles? Eu, por exemplo, estou agora comovido. Platão surge em minha mente, e, pelo que sabemos, ele foi o primeiro homem a realizar aqui discussões regulares: estes pequenos jardins, tão próximos de nós, não apenas despertam em mim a lembrança de Platão, mas apresentam, por assim dizer, sua imagem diante de meus olhos. Era aqui que estava Espeusipo, lá Xenócrates e acolá seu discípulo, Polemo, que sentava geralmente naquele lugar. Em verdade, quando vi a sede de nosso Senado (refiro-me à que foi construída por Hostilio e não ao novo prédio, que quase não me comove depois que foi ampliado), pensei em Cipião, Catão e Lélio, mas sobretudo em meu avô. E tão grande o poder dos lugares para despertar recordações que, com muita razão, o treinamento da memória deriva deles” Cícero, De Finibus, v. 2 (Hume). [Trad. por Anoar Aiex].

SEÇÃO VI – DA PROBABILIDADE
1 – Locke divide todos os argumentos em demonstrativos e prováveis. Segundo este ponto de vista, devemos afirmar que é apenas provável que todos os homens devem morrer ou que o sol nascerá amanhã. Mas para conformar nossa linguagem ao uso corrente, devemos dividir os argumentos em demonstrações, provas e probabilidades. Por prova, entendemos aqueles argumentos derivados da experiência que não deixam lugar à dúvida ou à oposição (Hume).
A discriminação entre vários graus de certeza, correspondentes respectivamente ao conhecimento, provas e probabilidades, estabelece de maneira mais categórica a dicotomia entre conhecimento e crença. Sugere-nos, assim, que podemos estabelecer, como escreve acertadamente Mossner, a seguinte classificação: 1) o conhecimento dotado de certeza absoluta, atingível através da demonstração e enquadrável pela esfera do a priori; 2) a crença, alcançável em dois níveis no primeiro, denominado provas, em que não havendo experiência contra experiência a crença opera com todo o vigor. Trata-se, portanto, dos argumentos da experiência isentos de dúvida e incerteza, a saber, o “nascimento do sol” ou que “todos os homens morrem”. No segundo nível, situam-se as probabilidades ou argumentos da experiência suscetiveis de dúvidas, em que a crença pode variar da relativamente baixa para a relativamente alta. (Veja-se de Mossner, “Introduction to Modernity”, p. 49, in A Symposion on Eighteenth Centuny, Mollenauer (org.), Austin, 1965.) Devemos todavia, evitar de interpretar erroneamente o sentido de “probabilidades” na filosofia humeana. Não se trata de cálculo matemático de probabilidades. Em nenhum de seus textos Hume faz qualquer referência ao emprego das probabilidades em sentido técnico. Ao contrário, trata-se apenas de mostrar o mecanismo psicológico pelo qual a crença se fixa na imaginação. [N. do T.]
SEÇÃO VII – DA IDÉIA DE CONEXÃO NECESSÁRIA – PRIMEIRA PARTE
1 – Nas edições K e L o título era: “Da idéia de poder ou de conexão necessária”. Hume escreve, no Tratado, que considerava esclarecida a fundamental questão da inferência causal, ou melhor, a maneira segundo a “qual raciocinamos além de nossas impressões imediatas, e, concluído que tais causas particulares devem ter tais efeitos particulares” (I, iii, XIV, p. 155), verifica-se que devemos agora “retornar sobre nossos passos e examinar a questão, que em primeiro lugar nos ocorreu e foi deixada para trás em nosso caminho, a saber: em que consiste nossa idéia de necessidade, quando dizemos que dois objetos estão necessariamente unidos entre si” (Idem, p. 155). A relevante questão colocada entre parênteses momentaneamente indica que para Hume a idéia de necessidade sempre esteve em sua cogitação, como também sugere que ela representa uma das principais peças de sua filosofia. [N. do T.]

2 – Além dessas idéias, o Tratado apresenta: “eficácia, agente, necessidade, conexão e qualidade produtiva”, e adverte que, sendo aqueles termos “quase sinônimos”, não se deve supor que a definição de um define os outros. (T, iii, XIV, p. 157) [N. do T.]

3 – Seção II (Hume).

Hume indica, assim, sua intenção de aplicar rigorosamente o método de desafio: “quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo empregado sem nenhum significado ou idéia – o que é muito freqüente – devemos apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta idéia?” (p. 71) [N. do T]

4 – Locke diz, em seu capítulo acerca do poder, que ao verificar mediante a experiência que há uma variedade de novas criações na matéria, conclui que em algum lugar deve haver um poder capaz de produzi-las, raciocínio esse que o leva à idéia de poder. Mas nenhum raciocínio pode dar-nos uma nova, original e simples idéia, como este mesmo filósofo confessa. Portanto, esse raciocínio não pode jamais ser a origem desta idéia (Hume).

5 – Nas edições K e L havia a seguinte sentença intercalada: ‘As operações e a mútua influência dos corpos são, talvez, suficientes para provar que eles são também dotados disto”.

6 – Nas edições de K a N: “do Espírito’.

7 – Nas edições K e L havia a seguinte sentença intercalada: “Examinaremos esta hipótese e tentaremos evitar, na medida do possível, todo jargão e confusão sobre temas tão profundos e sutis. Afirmo, pois, em primeiro lugar, que a influência da volição sobre os órgãos é um fato etc”.

8 – Pode-se pretender que a resistência que encontramos nos corpos e que nos obriga a empregar toda nossa força e a reunir todo nosso poder nos dá a idéia de força e de poder. Este nisus ou vigoroso esforço de que somos conscientes é a impressão original de onde se copia esta idéia. Mas, em primeiro lugar, atribuímos poder a um grande número de objetos, nos quais jamais poderíamos supor que aparecesse esta resistência ou emprego de força: ao Ser Supremo, que jamais depara com esta resistência; ao espírito, em seu governo sobre as idéias e membros, sobre o pensamento e movimentos ordinários, em que o efeito segue imediatamente a vontade sem emprego ou concentração de forças; a matéria inanimada que não é suscetível deste sentimento. Em segundo lugar, este sentimento de esforço para vencer a resistência não tem nenhuma conexão conhecida com qualquer evento. Conhecemos através da experiência aquilo que lhe segue, mas não poderíamos conhecê-lo a priori. Portanto, é preciso admitir que o nisusanimal experienciado por nós, embora não nos possa fornecer nenhuma idéia rigorosa e determinada de poder, responde, até certo ponto, à idéia vulgar e impressão que dele temos formado (Hume).

9 – Na edição K lê-se "Quasi deus ex machina”. A edição L acrescenta a referência: “Cícero, De natura deorum”.

10 – Baseiam-se, talvez, neste resultado negativo da Investigação, ou mais precisamente do Tratado, as restrições de John Stewart, Some Remarks on the Laws of Motion, and the Inertia of Matter, de 1754, contra a doutrina de Hume. Sabemos que o primeiro [segundo referência de N. Kemp Smith, ob. cit., pp. 411-31 escreve que alguma coisa pode começar a existir, ou principiar a ser, sem uma causa, foi em verdade mostrado em um sistema [isto é, o Tratado] mui engenhoso de filosofia cética”. Hume, em defesa de seu ponto de vista, escreve: “Jamais defendi uma proposição tão absurda que qualquer coisa pode nascer sem uma causa. Apenas sustentei que nossa certeza ou falsidade desta proposição [isto é, “que César existiu”] não pmcede nem da demonstração e nem da intuição, mas de uma outra fonte” (Cartas, 1, p. 187). Ou melhor, em nenhum momento Hume questiona a necessidade lógica da máxima casual, apenas procura evidenciar que sua explicação se fundamenta na experiência. [N. do T.]

12 – Seção XII (Hume).

13 – Não é preciso examinar extensamente a vis inertiae, da qual tanto se tem falado na nova filosofia e que tem sido atribuida à matéria. Sabemos por experiência que um corpo em repouso ou movimento continua no mesmo estado até que é tirado dele por alguma causa e que o corpo que recebe o impulso incorpora o movimento do corpo impulsor. Estes são os fatos. Quando denominamos este processo de vis inertiae, apenas destacamos estes fatos sem a pretensão de ter uma idéia do poder de inércia, do mesmo modo que, quando falamos da gravidade, entendemos certos efeitos sem compreendermos esta força ativa. Sir Isaac Newton nunca teve a intenção de despojar as causas segundas de toda a sua força ou energia, embora alguns de seus seguidores tenham tentado fundar esta teoria sob sua autoridade. Pelo contrário, o grande filósofo recorreu a um fluido etéreo ativo para explicar sua atração universal; assim mesmo foi tão cauteloso e modesto que admitiu que era apenas mera hipótese e que não devia apoiá-la sem recorrer a experimentos complementares. Devo confessar que algo extraordinário ocorre com o destino das opiniões. Descartes sugeriu esta doutrina da universal e única eficácia de Deus sem insistir nela. Malebranche e outros cartesianos fizeram dela o fundamento de sua filosofia. Sem dúvida, esta doutrina não tem autoridade na Inglaterra. Locke, Clarke e Cudworth não lhe prestaram nenhuma atenção e sempre supuseram que a matéria tem força real, embora subordinada e derivada. De que modo ela chegou a ter tanta importância entre os metafisicos modernos? (Hume).
SEGUNDA PARTE
1 – É provável que as duas definições de causa sejam alternativas baseadas em “distintos pontos de vista acerca de um mesmo objeto” (Tratado, I, iii, XIV, p. 170), ou seja, podemos entender a relação de causa e efeito como “relação filosófica e como relação natural; ou como comparação de idéias, ou como associação entre elas [isto é, idéias]”(Idem). Julgamos que a primeira definição de causa pode ser classificada como uma relação filosófica: trata-se de uma conjunção constante entre eventos, ou classes de eventos, inteiramente separados de qualquer processo associativo. Enquanto isso, a segunda definição é uma relação natural: fundamenta-se em relações de idéias unidas pelos princípios associativos do entendimento humano. (vejam-se de Flew, ob. cit., p. 120, e de Robinson, “Hume’s Two Defiitions of Cause”, pp. 143-4, in Hume, A Collecion of critical Essays, ed. Chappel, 1966) [N. do T.]

2 – Segundo estas explicações e definições, a idéia de poder é tão relativa como a de causa: ambas dizem respeito a um efeito ou a um outro evento unido constantemente ao primeiro. Quando consideramos a circunstância desconhecida de um objeto, que fixa e determina o grau e a quantidade de seu efeito, denominamo-la seu poder. E é do consenso geral entre os filósofos que o efeito é a medida do poder. Mas se eles tivessem uma idéia de poder, tal como é e em si mesmo, por que não poderiam medi-lo por si mesmo? Discutir para saber se a força de um corpo em movimento é proporcional à sua velocidade ou ao quadrado de sua velocidade não conduziria a nada se apenas se comparassem os efeitos em tempos iguais ou desiguais, mas, sim, mediante medida e comparação diretas.

A freqüência com que se usam termos como “força”, “poder”, “energia” etc., em todos os momentos da vida diária e em filosofia, não é uma prova que conhecemos em quaisquer dos casos o princípio de conexão entre a causa e o efeito ou que podemos dar uma explicação conclusiva da produção de uma coisa pela outra. Estes termos – tais como são geralmente empregados – têm sentido muito vago e suas idéias são bastante incertas e confusas. Nenhum ser animado pode mover corpos externos sem o sentimento do nisus ou de um esforço, e todo ser animado tem um sentimento ou sensação de uma batida ou do choque de um corpo externo em movimento. Estas sensações, meramente animais e das quais jamais podemos inferir algo a priori, podem ser transferidas por nós a objetos inanimados e supô-los dotados de tais sensações, quer quando recebem ou comunicam o movimento. Com referência às energias que se exercem sem que nós lhes anexemos a idéia de comunicação de um movimento, consideramos apenas a conjunção constante dos eventos que experienciamos; como sentimos uma conexão costumeira entre as idéias, transferimos este sentimento aos objetos, pois não há nada mais usual do que aplicar aos corpos externos toda sensação interna por eles ocasionada (Hume).

– Esta passagem enquadra-se harmoniosamente com a análise da inferência causal e a origem da crença, como também indica que a nova impressão, fonte da idéia de conexão necessária, é ocasionada pelo mesmo tipo de associação habitual. [N. do T.]
SEÇÃO VIII – DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE – PRIMEIRA PARTE
1 – Os dois níveis explicativos da causalidade (veja-se nota 50, seção VII) são circunscritos e elucidados pelo princípio mais geral da necessidade. Julgamo-la assim pelo fato de iluminar e fundamentar tanto a causalidade, como todas as disciplinas compreendidas pela ciência da natureza humana. E deste modo que a causalidade se instala como princípio explicativo dos fenômenos humanos. A uniformidade insita nos fenômenos naturais (base de toda inferência causal) é retomada e situada na raiz dos fenômenos humanos, com o fim de descortinar a idéia de necessidade e de justificar a inferência causal na ciência do homem. É com justeza, portanto, que Hume inseriu, após a explicitação da idéia de conexão necessária, a seção intitulada “Da liberdade e da necessidade: deu continuidade lógica aos argumentos baseados no raciocínio causal. Hume inicia pelo estudo da idéia de “necessidade’, pois dela irradia, além da causalidade e da ciência moral, o esclarecimento da idéia de “liberdade”. [N. do T.]

2 – Do mesmo modo que na sétima seção (nota 39), Hume recorre ao método exposto na segunda seção: busca da impressão originária da idéia de necessidade. [N. do T.]

3 – O cerne da pesquisa humana consiste, de um lado, em mostrar que a mesma uniformidade se observa tanto nas “ações voluntárias e nas operações do espírito” como nas “operações dos corpos” e, de outro lado, em conseqüência desta constatação, podemos levantar inferências a respeito de umas como de outras. [N. do T.]

4 – O dogma da uniformidade da natureza (quer física, quer humana), era o “fato central e dominante da história intelectual da Europa durante duzentos anos – do fim do século XVI ao fim do século XVII" (A. O. Levejoy, “Deism and Classicism”, in Essays on the History of Ideas, Baltimore, 1948, p. 81). Hume adota este dogma e o emprega como uma das idéias centrais de sua filosofia. [N. do T.]

5 – Não é cabível, no entanto, usar indiscriminadamente o critério da uniformidade das ações humanas e supor, no entender de Hume, que todos os homens, em situações semelhantes, sempre agirão da mesma maneira, sem levar em conta as diferenças individuais, devidas ao ambiente, à educação e ao caráter peculiar a cada homem. [N. do T.]

6 – Nas edições de K a M lê-se: "a forma de todas as inferências que formamos a seu respeito.

7 – Hume se refere talvez ao que se entende atualmente por estética. [N. do T.]

– Este parágrafo foi inserido apenas na última edição revista por Hume e publicada em 1777 (edição O). [N. do T.]

9 – Dos argumentos atados por Hume, depreendemos uma proposição, segundo Flew, geral e fundamental. Trata-se de aceitar como evidente que o método experimental, o único em verdade válido nas questões de fato e de existência real, deve basear-se em regularidades, ou uniformidades, discerniveis rios fatos naturais, e quer aplicado aos homens, quer a outros objetos quaisquer, devem resultar inferências bem-sucedidas. Por este motivo, Hume procurou mostrar que não apenas na esfera humana, como em outros objetos quaisquer, há suficiente regularidade para originar a inferência causal (Flew,ob. cit., pp. 146-7). [N. do T.]

10 – O predomínio da doutrina da liberdade pode ser explicado por outra causa, ou seja, uma falsa sensação ou aparente experiência de liberdade ou indiferença que temos ou que podemos ter em muitos de nossos atos. A necessidade de uma ação da matéria ou do espírito não é, propriamente falando, uma qualidade no agente, mas em qualquer ser pensante e inteligente que pode considerar a ação, e ela consiste principalmente nas determinações de seus pensamentos para inferir a existência desta ação a partir de alguns objetos precedentes. De modo que a liberdade, quando oposta à necessidade, não é senão a ausência desta determinação e a presença de certo abandono ou indiferença que sentimos ao passar ou não passar da idéia de um objeto à de outro que o sucede. Podemos, assim, observar que, mesmo aorefletir sobre os atos humanos, raramente sentimos esse abandono ou indiferença, mas somos geralmente capazes de inferi-los de seus motivos e das disposições de quem os realiza; sem dúvida, ao realizarestes mesmos atos, notamos freqüentemente algo parecido a isto. E, como é fácil confundir todos os objetos semelhantes, isto tem sido usado como prova demonstrativa e mesmo intuitiva da liberdade humana. Sentimos que nossos atos estão sujeitos à nossa vontade na maioria dos casos e imaginamos que sentimos a vontade como não subordinada a nenhuma coisa porque, quando por afirmação contrária somos provocados a tratar de fazê-lo, sentimos que ela se move facilmente em todas as direções e produz uma imagem de si mesma (ou uma veleidade, como tem sido denominada nas escolas), embora sem decidir para que lado ela se dirige. Esta imagem ou débil movimento nesse momento poderia (estamos persuadidos disto) haver chegado a ser a própria coisa, porque, se isto fosse negado, veriamos, numa segunda tentativa, que agora pode chegar a sê-lo. Não consideramos que o fantástico desejo de mostrar a liberdade é aqui o motivo de nossas ações. Parece certo que, qualquer que seja a maneira pela qual sentimos em nós a liberdade, um espectador pode geralmente inferir nossos atos de nossos motivos e do nosso caráter, e mesmo quando não pode conclui geralmente que poderia se conhecesse perfeitamente todas as circunstâncias de nossa situação e temperamento e as fontes mais secretas de nossa disposição. Esta é, portanto, a verdadeira essência da necessidade, segundo a doutrina anterior (Hume).

11 – O homem como “agente” deve considerar-se inteiramente livre para realizar, ou não, qualquer ação. Na condição de ‘espectador”, que observa e reflete tanto sobre suas ações como as de outrem, o homem conclui que elas importam em tal uniformidade que élevado a enquadrá-las como efeitos necessários de causas conhecidas. É com vistas à última caracterização que Hume tem a intenção de conciliar as doutrinas da “liberdade e da necessidade”. Reafirma, assim, que a definição de “causa” implica a “conexão necessária” com seu efeito, como elemento essencial, ou ainda, segundo o Tratado, a “necessidade constitui um aspecto essencial da causalidade” (II, ii, III, p. 407). A partir desta formulação, infere que se “se admite a definição de causa acima citada, a liberdade, oposta à necessidade e não à restrição, é a mesma coisa que o acaso e a respeito do qual toda a gente está de acordo que não existe”. Excluindo o fator “acaso” da doutrina da liberdade, Hume está prescrevendo as mesmas regras da necessidade causal para elucidar a liberdade humana. Instaura, desta maneira, a liberdade no seio da necessidade e pressupõe que apenas assim os atos humanos devem ser julgados sob o prisma da responsabilidade moral. [N. do T.]

12 – Assim, se uma causa fosse definida como o que produz algo, é fácil observar que produzir é sinônimo de causar. Do mesmo modo, se se definisse uma causa como aquilo por meio do qual algo existe, esta definição está sujeita à mesma objeção. O que se entende pelos termos por meio da qual? Se se houvesse dito que a causa é aquilo depois do qual algo existe constantemente, teriamos entendido os termos. Porque isto é, em verdade, tudo o que sabemos acerca do assunto. E esta constância constitui a verdadeira essência da necessidade, já que não temos outra idéia dela (Hume).

SEÇÃO IX – DA RAZÃO DOS ANIMAIS
1 – Visto que todos os nossos raciocínios acerca dos fatos ou causas derivam unicamente do costume, é lícito indagar como os homens ultrapassam pelo raciocínio os animais e como um homem é superado por outro? Além disso, por que tal costume não tem influência uniforme sobre todos os homens?
Tentaremos aqui explicar sumariamente a grande diferença entre os entendimentos humanos; depois disto será fácil compreender a causa da diferença entre os homens e os animais:
a) – Ao termos vivido por algum tempo e nos acostumado com a uniformidade da natureza, adquirimos um hábito geral pelo qual transferimos sempre o conhecido ao desconhecido e concebemos que o último se parece com o primeiro. Por meio deste princípio geral e habitual, consideramos que um raciocínio pode basear-se em um único experimento e esperamos um evento similar com algum grau de certeza, se o experimento foi feito com exatidão e livre de toda circunstância estranha. Consideramos, portanto, de grande importância observar as conseqüências das coisas, e como uma pessoa pode superar em muito a outra em atenção, memória e observação, o que produzirá uma grande diferença em seus raciocínios.
b) – Se um efeito é produto de uma complicação de causas, um espírito pode ser mais amplo que outro e estar mais bem capacitado para abarcar todo o sistema de objetos e inferir acertadamente suas conseqüências.
c) – Um homem é capaz de manipular uma cadeia de conseqüências mais longa do que outro [homem].
d) – Poucos homens podem pensar por longo tempo sem misturar as idéias e confundir umas com as outras. Esta debilidade aparece em vários graus.
e) – A circunstância da qual depende o efeito está geralmente envolta em outras circunstâncias que lhe são estranhas e extrínsecas. Sua separação frequentemente requer grande atenção, rigor e sutileza.
f) – A formação de princípios gerais a partir de observações particulares é uma operação muito delicada, e não há nada mais usual, devido à precipitação e à limitação espiritual que não considera todos os ângulos [da questão], que cometer erros a este respeito.
g) – Quando se raciocina através de analogias, quem tem mais experiência ou mais presteza para sugerir analogias raciocinará melhor.
h) – As tendências devidas aos preconceitos, educação, paixão, partidos políticos etc. têm mais influência sobre alguns espíritos do que sobre outros.
i) – Depois de ter adquirido confiança no testemunho humano, os livros e os diálogos ampliam a esfera da experiência e do pensamento em um homem mais que em outro.
Seria fácil descobrir outros fatores que produzem diferenças entre os entendimentos humanos (Hume).
SEÇÃO X – DOS MILAGRES – PRIMEIRA PARTE
1 – Da interessante entrevista que Hume concedeu a James Boswell, em 7 de julho de 1776, é conhecida a célebre passagem do primeiro: “nunca mais nutri qualquer crença pela Religião desde que comecei a ler Locke e Clarke” (Boswell, “An Account ol my last interview with David Rume”, cit. por N. K. Smith, Dialogues Concerning Natural Religion, de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 76). Hume pretende, talvez, mostrar sua intenção de criticar a base racional da teologia natural, defendida tanto por Locke e Clarke como por outros metafísicos do século XVIII, e aceita quase universalmente pelos pensadores da Ilustração. De modo geral, podemos dizer que os argumentos da teologia natural abrangem dois momentos: a) com base no “argumento do desígnio” (seção XI), a teologia natural defende a tese de que tanto a existência como todos os atributos de Deus podem ser conhecidos pela razão natural e b) esta visão da religião da natureza pode ser suplementada pela revelação, cuja validade é garantida pela ocorrência de milagres, que, por seu turno, são apoiados por abundante evidência histórica (seção X). As seções X e XI constituem, de acordo com Stephen, partes de um único argumento, que julgamos ter sido elaborado por Hume para mostrar a inviabilidade dos momentos (a e b) da teologia natural. (Stephen, L. English Thought ín the Eighteenth Century Londres, 1902, vol. I, p. 310). [N. do T.]

– John Tillotson (1630-1694), influente teólogo e arcebispo de Canterbury a partir de 1691, apresenta o argumento que Hume sumariza, no Discourse against Transubstantion, publicado em 1684, da seguinte maneira: “Todo homem tem tão grande evidência de que a transubstanciação é falsa como tem de que a religião cristã é verdadeira. Suponde que a transubstanciação fizesse parte da doutrina cristã, deveria então ter a mesma confirmação com o todo, isto é, milagres. Mas, dentre todas as doutrinas do mundo, ela é peculiarmente incapaz de ser provada por um milagre. Pois, se um milagre fosse elaborado para prová-la, a própria segurança que leva alguém a aceitar a verdade do milagre o leva a considerar a falsidade da doutrina, isto é, através da clara evidência dos sentidos. Para que um milagre possa provar que o que ele vê no sacramento não é o pão, mas o corpo de Cristo, ele tem apenas o testemunho do sentido; e este mesmo testemunho aparece para provar que o que ele vê no sacramento não é o corpo de Cristo, mas o pão”. (Tillotson, vol. II, p. 448; citado por Flew, ob. cit., p. 172). [N. do T.]

3 – Nas edições K e L lê-se: “em toda história profana”.

4 – O “argumento” constituirá poderosa bacreira, se utilizado pelos “sábios e doutos”, contra todo tipo de narrativas sobre fenômenos sobrenaturais. Aludindo de modo explícito aos “sábios e doutos”, Hume está implicitamente colocando seu argumento fora do alcance do homem comum. É que o último considera qualquer uniformidade da natureza, embora temporal e acidental, como válida, já que sua principal caracteristica é a credulidade: “nenhuma fraqueza da natureza humana – escreve Hume – é mais notável e mais universal do que a que denominamos credulidade” (Tratado, I, iii, p. 112). O sábio, pelo contrário, tem plena consciência de que apenas as seqüências invariáveis podem ser encaradas como causais e como os fundamentos da crença; por esse motivo ele inicia suas buscas com certa dosagem de ceticismo. Daí que, 1) o sábio admite que sua expectativa acerca de eventos futuros será inteiramente comprovada, apenas quando baseada em “experiência infalível”, e 2) nas situações em que perdura certo grau de probabilidade, isto é, a expectativa é confirmada por alguma, mas não por toda evidência experimental, o sábio deve contrabalançar as experiências opostas e tender para a que se mostrar favorecida por maior número de “experimentos e observações”. [N. do T.]

– Nas edições de K a M lê-se: A imaginação humana não acompanha naturalmente sua memória.

6 – A estrutura metodológica exposta resumidamente na nota 69, desta seção, é transferida por Hume para estudar o “raciocínio” baseado no depoimento do ‘testemunho Humano”: núcleo trasmissor de todos os eventos cotidianos, históricos, maravilhosos e milagrosos. [N. do T.]

– Plutarco em Vita Catonis (Hume).

8 – Certamente, nenhum hindu poderia ter experiência do congelamento da água em climas frios, visto que a natureza se apresenta de maneira inteiramente desconhecida para ele, é-lhe, portanto, impossível afirmar a priori o que resultará do fenômeno. É preciso fazer um novo experimento, embora sua conseqüência seja sempre incerta. As vezes pode-se conjeturar mediante analogia o que ocorrerá; porém, trata-se ainda de mera conjetura. Deve-se admitir que, no presente exemplo de congelação, o evento se produz contrariamente às regras da analogia, de tal modo que um hindu não poderia esperá-lo. A ação do frio sobre a água não se processa gradativamente segundo os diferentes graus de frio; ao contrário, quando a água atinge o ponto de congelação, passa num instante do estado líquido para o sólido. Tal fenômeno pode, todavia, denominar-se extraordinário, e se requer forte testemunho para fazê-lo crível aos povos de clima quente. Apesar disso, não é considerado miraculoso e nem contrário à experiência uniforme do curso da natureza em que todas as circunstâncias são idênticas. Os habitantes de Sumatra sempre têm observado o fluir das águas em seu próprio clima e consideram o congelamento de seus rios como algo prodigioso. Porquanto jamais viram a água em Moscou durante o inverno e não podem, por conseguinte, afirmar razoavelmente quais seriam suas conseqüências (Hume).

9 – Às vezes, um evento pode não parecer, em si mesmo, contrário às leis da natureza, e sem dúvida, se fosse real, em razão de algumas circunstâncias, poderia denominar-se um milagre, porque, de fato, é contrário a estas leis. Assim, se uma pessoa que pretendesse ter autoridade divina ordenasse a um enfermo que se curasse, a um homem sadio que morresse, às nuvens que derramassem água, aos ventos que ventassem, em uma palavra, se ordenasse vários eventos naturais que obedecessem de imediato à sua ordem: estes, sim, poderiam ser corretamente considerados milagres, porque neste caso são realmente contrários às leis da natureza. Porque, se persiste alguma suspeita de que o evento e a ordem emitida concordaram por acidente, não há nenhum milagre nem transgressão das leis naturais. Mas se se exclui esta suspeita há evidentemente um milagre e uma transgressão destas leis, porque nada pode ser mais contrário à natureza que o fato de que a voz ou ordem de um homem tenha semelhante influência. Um milagre pode definir-se estritamente deste modo: é a transgressão de uma lei da natureza pela volição particular da Divindade ou pela interposição de algum agente invisível. Um milagre pode ser cognoscível ou não pelos homens. Isto não altera sua natureza e essência. Que uma casa ou um navio se elevem no ar é um Visível milagre. Que se levante uma pena é um milagre igualmente real, se bem que não tão notável para nós quando não há vento, embora se necessite tão pouca força para sua realização (Hume).

SEGUNDA PARTE
1 – Nas edições K a L lê-se: “em qualquer história”.

– As edições de K e N apresentam este parágrafo como nota.

– Nas edições de k a N lê-se astucioso impostor.

4 – Sem dúvida, pode-se objetar aqui que procedo temerariamente e formo minhas opiniões a propósito de Alexandre apenas pelo relato do assunto feito por Luciano, seu declarado inimigo. Certamente, seria desejável que tivessem sido conservados alguns dos relatos publicados por seus discípulos e cúmplices. A opinião e o contraste que existem sobre o caráter e a conduta de um mesmo homem, quando descritos por um amigo ou inimigo, são tão grandes, mesmo na vida cotidiana e muito mais ainda nestas questões religiosas, como entre dois homens de fama mundial, por exemplo, Alexandre e São Paulo. Veja-se uma carta a Gilbert West, Esq., acerca da “Conversão e apostolado de São Paulo” (Hume).

5 – Parece-nos que os argumentos de Hume contra a viabilidade dos milagres mostraram: 1) que é entre as nações ignorantes e bárbaras que a ocorrência de milagres é mais comum e abundante, 2) que as paixões da surpresa e da admiração são tendências universais da natureza humana e quando ligadas ao sentimento religioso impelem os homens a uma conduta descontrolada, 3) que cada milagre tem a finalidade específica de estabelecer um sistema religioso e, como em religião tudo o que é diferente é contraditório, os milagres de uma religião são evidências contra os milagres das outras, e 4) que o milagre importa naviolentação do curso normal da natureza e, como apenas a experiência confere autoridade ao testemunho humano e segurança acerca das leis da natureza, nenhum testemunho humano se nivela a uma prova, ou atinge o grau de provável. [N. do T.]

– Na edição L Hume anota: Hist., livro 4, cap. 8. Na edição N ele anota: Hist., livro 5, cap. 8. Em verdade, a passagem ocorre em Histórias, livro IV, cap. 81. Suetônio apresenta quase o mesmo relato naVida de Vespasiano (Hume).

– “Aqueles que estavam presentes continuam a mencionar os dois episódios, quando já deixou de ser compensatório propagar uma mentira.” [Trad. por Anoar Aiex].

– Este livro foi escrito por M. Montgeron, conselheiro ou juiz no Parlamento de Paris, homem de importância e reputação, que também foi um mártir de sua causa e que está – diz-se – em alguma prisão devido ao seu livro. Há outra obra em três volumes, denominada Recueil des miracles de l’abbé Pâris, que revela vários destes milagres e é precedida por um prefácio muito bem escrito. Sem dúvida, em todo o livro se faz uma ridícula comparação entre os milagres de nosso Salvador e os do abade, na qual se afirma que a evidência dos últimos é igual à dos primeiros: como se o testemunho dos homens pudesse ser comparado com o do próprio Deus, que guiou a pena destes inspirados escritores. Em verdade, se estes escritores fossem apenas considerados como testemunhos humanos, o autor francês é bastante moderado em sua comparação, visto que poderia pretender, com alguma aparente razão, que os milagres jansenistas superam os outros em evidência e autoridade. Os relatos que seguem foram tirados de documentos autênticos, que aparecem no livro já mencionado.

Muitos dos milagres do abade Paris foram comprovados imediatamente por testemunho ante a oficialidade ou corte episcopal de Paris, sob o controle do cardeal Noailles, cuja reputação de integridade e talento jamais foi posta em dúvida. Inclusive por seus inimigos.
Seu sucessor no arcebispado era inimigo dos jansenistas e por esta razão foi promovido para a diocese pela Corte. Apesar de vinte e dois reitores ou curés de Paris, com grande seriedade, terem-no pressionado para examinar estes milagres que, afirmavam, são conhecidos de todos e indiscutivelmente certos, o cardeal sabiamente se absteve de examiná-los.
O partido molinista havia tentado desacreditar estes milagres num caso: o de Mademoiselie Le Franc. Mas, além de que seus procedimentos foram, em vários pontos, os mais irregulares, especialmente por citar apenas alguns dos testemunhos jansenistas, aos quais subornaram – além disso, digo, imediatamente se viram pressionados por uma nuvem de novos testemunhos (mais ou menos cento e vinte), em sua maioria pessoas de crédito e destaque de Paris que juraram pela procedência do milagre. E isto foi acompanhado por uma solenidade e séria apelação ao Parlamento. Mas o Parlamento foi proibido de imiscuir-se neste assunto. Finalmente se observou que, quando os homens estão inflamados pelo ardor e entusiasmo, não há grau de testemunho humano tão poderoso que não possa ser obtido a favor do maior absurdo. E aqueles que fossem tão ingênuos que examinassem o assunto por este meio e buscassem defeitos particulares no testemunho, podem estar quase certos que serão enganados. Devia ser uma pobre impostura, certamente, que não podia prevalecer nesta disputa.
Todos os que estiveram na França naquela época ouviram falar na reputação de M. Heraut, o Lieutenant de Police, cujo zelo, perspicácia, atividade e elevada inteligência ocasionaram grande admiração. Este magistrado, que pela natureza de seu posto é quase absoluto, estava investido de plenos poderes a fim de suprimir ou desacreditar esses mi­lagres e frequentemente detinha e examinava os testemunhos e as pessoas que tinham relação com os milagres, mas jamais pôde chegar a uma conclusão satisfatória contra eles.
No episódio de Mademoiseile Thibaut, enviou o célebre De Sylva para que a examinasse. Sua informação é muito curiosa. O médico declara que é impossível que ela tenha estado tão enferma como afirmam os testemunhos, porque, se tivesse estado, não teria podido melhorar tão depressa e gozar de tão perfeita saúde. Como homem de bom senso, raciocinou segundo as causas naturais, mas o partido que lhe opunha afirmou que tudo era miraculoso e que o informe do médico era a melhor prova disso.
Os molinistas se encontravam num triste dilema. Não se atreviam a afirmar a completa insuficiência do testemunho humano como prova dos milagres. E, de outro lado, eram obrigados a reconhecer que esses milagres tinham sido realizados pelo Diabo e por feiticeiras, embora lhes dissessem que os judeus da Antiguidade já haviam recorrido a este recurso..
Nenhum jansenista teve dificuldade para explicar a cessação dos milagres quando o cemitério foi fechado por decreto real, O que produzia estes efeitos extraordinários era o mero contato com o túmulo [do abade] e, como ninguém podia aproximar-se do túmulo, não se podiam esperar mais tais efeitos. É verdade que Deus poderia derrubar os muros a qualquer momento, mas Ele é dono de suas próprias graças e obras e não nos cabe explicá-las. Ele não derrubou os muros de todas as cidades, como os de Jericó, ao som das trombetas, nem abriu a prisão dos apóstolos, como fez com a de São Paulo?
Nada mais nem menos que o duque de Chatillon, duque e par da França, da mais ilustre familia e estirpe, dá o testemunho de uma milagrosa cura realizada num de seus servos, que havia vivido vários anos em sua casa com uma palpável e visível enfermidade.
Concluirei observando que nenhum clero é mais célebre pelo rigor da vida e dos costumes que o clero secular da França, particularmente os reitores ou curés de Paris que testemunham estas imposturas.
A instrução, o engenho e probidade destes cavalheiros e a autoridade das freiras de Port-Royal os fizeram famosos em toda a Europa. Sem dúvida, todos testemunham o milagre que se produziu na sobrinha do célebre Pascal, cujo talento e vida devota são bem conhecidos. O famoso Racine relata este milagre em sua celebrada História de Port-Royal e o defende com todas as provas fornecidas por uma multidão de freiras, sacerdotes, médicos e homens do mundo, todos de indubitável reputação. Alguns homens de letras, especialmente o bispo de Tournay, creram que este milagre era tão seguro que o usaram para refutar os ateus e os livre-pensadores. A rainha da França, que tinha grandes pre­venções contra Port-Royal, enviou seu próprio médico para examinar o milagre, e o médico voltou completamente convertido. Em uma palavra, a cura sobrenatural era tão incontes­tável que, durante algum tempo, salvou o mosteiro da ruína a que estava ameaçado pelos jesuítas. Se houvesse sido um logro, seguramente teria sido descoberto por tão sagazes e poderosos adversários, e deveriam apressar a ruína de quem o forjou. Nossos teólogos, que podem construir um castelo maravilhoso com materiais tão desprezíveis, que prodi­gioso edifício poderiam levantar com estas e muitas outras circunstâncias que não men­cionei! Quantas vezes teriam ressoado em nossos ouvidos os nomes de Pascal, de Racine, de Arnaud e de Nicole? Mas, se são sábios, seria melhor que adotassem o milagre como mil vezes mais valioso que todo o resto da coleção. Além disso, pode servir-lhes muito mais para sua finalidade. Porque esse milagre se realizou realmente pelo contato de um autêntico espinho sagrado dos sagrados espinhos que compunham a sagrada coroa, a qual etc. (Hume).

– Lucrécio (Hume).

10 – Novum Organum, Lib. II, aph. 29 (Hume).

11 – A ironia que perpassa nesta passagem tem levantado as mais violentas críticas contra Hume. Em grande parte é citada para exemplificar a maneira zombeteira e irresponsável com que ele discute os mais sagrados tópicos. Smith procura, no entanto, justificar a atitude de Hume, interpretando o texto citado em sua perspectiva histórica. Mostra que, na época da Ilustração, as igrejas Reformadas entendiam que a fé, ou mesmo um estudo compreensivo das Escrituras, era impossível sem o auxilio da graça, conferida pela Divindade, e que a fé operava nos homens de modo puramente miraculoso. Foi deste modelo que Hume decalcou, segundo Smith, a sua conclusão. (N. K. Smith, em sua definitiva edição dos Dialogues Concerning Natural Religion, de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 47.) [N. do T.]
SEÇÃO XI – DA PROVIDÊNCIA PARTICULAR E DO ESTADO FUTURO
1 – A edição K tinha o seguinte titulo: Das conseqüências práticas da religião natural. veja-se nota 1, p. 109, seção x.

2 – Luciano (Hume).

3 – Luciano (Hume).

Id. e Dio (Hume). A referência diz respeito ao imperador Marco Aurélio. [N. do T.]– O amigo cético de Hume, metamorfoseado em Epicuro, inicia aqui a crítica ao “argumento do desígnio”, que, como mencionamos na nota 66, da seção X, é o fundamento da teologia natural e o tema central desta seção. Butler, por exemplo, afirma que o argumento do desígnio é aceito, por princípio, como inquestionável, pois, segundo ele, “não há necessidade de raciocínios abstratos.., para convencer um entendimento sem prevenções, que um Deus que fez e governa o Mundo..., para um espírito sem prevenções, milhares de casos de desígnios unicamente provam um planejador” (Works, ed. Gladstone, Oxford, 1896, vol. II, p. 695). Embora reconheça a irrefutabilidade do “argumento do desígnio”, como essencial para estabelecer um “poder inteligente e invisível”, Hume acredita que esse argumento, por ser de base reflexiva, não desempenha nenhuma função sobre a religião nascente. O homem não começa a acreditar porque participa maravilhado da notável ordem e regularidade da natureza; pelo contrário, à medida que a ordem é mais regular e uniforme, isto é, a natureza é mais perfeita, e à medida que o homem se familiariza com a perfeita ordenação dos fenômenos naturais, diminui seu interesse pelo exame e análise da natureza. Não é, portanto, através da contemplação da uniformidade da natureza que nascem as noções básicas da religião, mas da observação dos eventos da vida e das paixões naturais de medo e esperança que impulsionam constantemente o espírito humano. (Hume, The Natural History of Religion, edição H. E. Root, Stanford University Press, 1967, pp. 24-5 e 28-9.) [N. do T.]

– Na edição K lê-se: “nos degraus ou escala da razão.

– Na edição K lê-se: “escala’ em lugar de “ascensão”.

– Tendo percebido que o suposto Epicuro havia terminado seu longo discurso, Hume interfere em nome do ilustre auditório ateniense e apresenta uma objeção, que basicamente consiste em utilizar o raciocínio por analogia para averiguar a possível semelhança entre as obras humanas e a obra atribuída ao Ser Supremo. [N. do T.]

9 – O amigo cético de Hume refuta a possibilidade do raciocínio por analogia, pelo menos neste caso, tendo em vista a “infinita diferença” dos objetos, pois o que é evidente para as obras e atos humanos não o é em relação às obras de Deus. Ao contrário de um homem que pode ser circunscrito e explicitado pelo gênero Homem, Deus é um “Ser único no universo, que não é compreendido sob nenhuma espécie ou género’, e é conhecido apenas por suas obras. Evidencia-se, assim, que se trata da inferência de um caso particular e único, para justificar um efeito particular e único. Tal situação não permite, como no caso do homem e seu artesanato, maior “liberdade em nossas suposições”, já que a inferência nem é apoiada por experiências anteriores e nem pode ser comparada com outras experiências. [N. do T.]

10 – Em geral, creio que se pode estabelecer como princípio que, se uma causa somente é conhecida pelos seus efeitos particulares, deve ser impossível inferir novos efeitos a partir dessa causa, visto que as qualidades necessárias para produzir estes novos efeitos conjuntamente com os anteriores devem ser diferentes, ou superiores, ou de operação mais exteosa que aqueles que simplesmente produziram o efeito, que é a única origem de nosso suposto conhecimento da causa. Portanto, jamais teremos razão para supor a existência destas qualidades. Afirmar que os novos efeitos procedem simplesmente de uma continuação da mesma energia que já é conhecida pelos primeiros efeitos não removerá a dificuldade. Porque, embora aceitando que o caso seja assim (o que raramente pode ser suposto), a própria continuação e realização de uma energia semelhante (pois é impossível que ela seja totalmente a mesma), afirmo que esta realização de uma energia semelhante, em diferentes periodos de espaço e de tempo, é uma suposição mui arbitrária, e que não pode conservar traços dos efeitos dos quais se derivou originalmente nosso conhecimento da causa. Se concordamos que a causa inferida deve ser rigorosamente proporcional, como deveria sê-lo, ao efeito conhecido, é impossível que possa possuir qualidades pelas quais podem inferir-se novos ou diferentes efeitos (Hume).

11 – Convém observar que isto que Hume denomina desinteressadamente de um “problema” representa de fato a dificuldade mais séria de todo o diálogo. E que Hume duvida que uma causa, sendo tão singular e particular, possa ser conhecida unicamente pela inspeção de seu efeito, que é igualmente singular e particular. A sua dúvida é um corolário direto e óbvio do que ficou dito anteriormente a propósito dos raciocínios a priori e experimental. O primeiro tipo de raciocínio importa em admitir que qualquer coisa concebível pode ser a causa de qualquer coisa. Enquanto o segundo tipo considera que apenas os eventos relacionados por conjunção constante, dos quais tivemos experiência direta, ou são análogos a outros eventos experienciados, oferecem base suficiente e necessária para se levantar a inferência de um pela presença do outro. Ora, as ultimas condições não são preenchidas quando se trata do raciocínio modelado pelo “argumento do desígnio’, pois supomos o universo, um efeito singular e incomparável, ser a prova de Deus, uma causa não menos singular e incomparável, vimos que a inferência causal se baseia em uma “espécie de objetos”, ou seja, na conjunção repetida de múltiplos casos que são exatamente similares, ou que apresentam certo grau de analogia com os seus atributos. Portanto, quando deparamos com algo que não pertence a “nenhuma espécie”, não podemos através da experiência e da observação inferir algo que o ultrapasse; e, por causa de sua singularidade, não podemos igualmente averiguá-lo mediante o raciocínio por analogia. [N. do T.]

SEÇÃO XII – DA FILOSOFIA ACADÊMICA OU CÉTICA – PRIMEIRA PARTE
– A crítica ao método de Descartes, especialmente do Discours de la Méthode, feita por Hume, é evidente nesta passagem. Para Hume não existem princípios evidentes e convincentes e não podemos igualmente confiar totalmente em nenhuma de nossas faculdades espirituais. A dúvida, para ele, não é provisória como a de Descartes. O progresso que o entendimento humano chega a alcançar é considerado hipotético. Toda dedução é incerta e sujeita a constantes revisões. As descobertas filosóficas devem ser, segundo Hume, circunscritas pelo probabilismo, ou melhor, todas as explicações devem ser vistas como tentativas destinadas a serem substituidas por outras. [N. do T.]

2 – Hume, no entanto, admite que o ceticismo cartesiano, sendo mais moderado, pode ser encarado como razoável. Em verdade, o que ele entende por moderado neste contexto reflete, de certa maneira, as regras do método de Descartes, como aparecem na segunda parte do Discours de la Méthode. [N. do T.]

3 – Hume dedica a segunda parte desta seção ao estudo deste ceticismo, com referência ao raciocínio abstrato e ao raciocínio moral. [N. do T.]

4 – Citamos este argumento do Dr. Berkeley. Na realidade, a maioria dos escritos deste mui engenhoso autor constituem as melhores lições de ceticismo que se podem encontrar entre os filósofos antigos e modernos, sem excetuar a Bayle. No frontispício do seu livro declara, todavia, tê-lo escrito tanto contra os céticos como contra os ateus e livre-pensadores, o que é indubitavelmente muito certo. Mas que todos os seus argumentos, embora dirigidos a outro fim, são em realidade meramente céticos, pode ser observado pelo fato de que eles não admitem resposta e não produzem convicção. Seu único efeito consiste em causar uma momentânea surpresa, irresolução e confusão, que resultam do ceticismo (Hume).

SEGUNDA PARTE
1 – Qualquer que seja a disputa acerca dos pontos matemáticos, devemos admitir que há Pontos físicos, isto é, partes da extensão que não podem ser divididas ou diminuídas, nem pela visão e nem pela imaginação. Estas imagens, portanto, que se acham presentes na fantasia ou nos sentidos, são completamente indivisíveis. Por conseguinte, os matemáticos devem admitir que são menores que qualquer parte real da extensão. Sem dúvida, nada parece mais seguro à razão que um número infinito destes pontos compondo uma extensão infinita. E deve ser ainda mais certo que um número infinito daquelas partes infinitamente pequenas que devem supor-se infinitamente divisíveis (Hume).
Hume, em conformidade com Bayle, assumindo que a doutrina dos pontos matemáticos é indefensável, recorre à hipótese dos pontos físicos, entendendo por físicos os pontos qualitativamente caracterizados em termos visíveis e tangíveis. (Bayle,Dictionnaire historique et critique, 5ª ed., Amsterdã, 1734, verbete “Zenon”.) O conhecimento que Hume tinha da obra de Bayle pode ser constatado pelas notas que ele mantinha durante a feitura do Tratado em que o nome de Bayle aparece mencionado cinco vezes. (Veja-se, de E. C. Mossner, “Hume’s Early Memoranda”, 1729-1740, Journal of the History of Ideas, vol. IX, n 4, outubro, 1948, pp. 492-518.) [N. do T.]

2 – Não me parece impossível evitar estas contradições e absurdos se se admite, propriamente falando, que não há idéias gerais ou abstratas, mas que todas as idéias são, na realidade, particulares, aderidas a um termo geral que evoca, em certas ocasiões, a outros particulares que se parecem, em certas circunstâncias, com a idéia presente no espírito. Assim, quando usamos o termo ‘cavalo”, imediatamente vem em nossa mente a idéia de um animal branco ou preto, de determinado tamanho ou forma; mas como o termo “cavalo” é geralmente aplicado a animais de outras cores, formas e tamanho, estas idéias, embora não estejam agora presentes na imaginação, são facilmente recordadas pelo nosso raciocínio e as conclusões [que fazemos] procedem da mesma maneira, isto é, como se elas realmente estivessem presentes. Se se admite isto – como parece razoável – conclui-se que todas as idéias de quantidade, acerca das quais raciocinam os matemáticos, não são mais que particulares e semelhantes às sugeridas pelos sentidos e a imaginação e, por conseguinte, não podem ser indefinidamente divisíveis. E suficiente levar isto em consideração, sem desenvolver mais o assunto, o que é decerto coerente com o fato de todos os amantes da ciência não se exporem ao ridículo e ao desprezo dos ignorantes por suas conclusões. Esta parece ser a solução mais fácil de todas estas dificuldades (Hume).

3 – Ao contrário de Bayle, que define o pirronismo como “a arte de debates sobre todas as coisas sem jamais assumir qualquer posição, a não ser a suspensão do juízo” (Bayle, ob. cit., verbete “Pyrrhon”, tomo IV, pp. 669-674), Hume não o considera como uma “arte”, mas como uma série de argumentos que implica o desenvolvimento de um certo tipo de atitude acerca de todos os problemas práticos e teóricos. O núcleo da tese pirrônica consiste em destacar que acerca de qualquer problema não há base racional para determinar que tipo de solução deve ser dada ao objeto em discussão. Quando, por exemplo, dois juízos entram em conflito, não há base racional para se optar por um dos dois. Portanto, nenhuma área prática ou teórica é possível de ser alçada ao nível do conhecimento seguro e indispensável. Hume concorda que a análise pirrônica não pode ser racionalmente refutada, mas admite que ninguém jamais acreditou ou pode acreditar nela, pois, segundo ele, a natureza destrói os argumentos céticos a tempo, e os impede de exercer qualquer considerável influência sobre o entendimento” (Tratado, I, ii, IV, p. 187). A aderência de Hume ao naturalismo (em verdade, o loco de sua atitude positiva), constitui o antídoto mais adequado contra as investidas pirrônicas. Isto porque o mesmo tipo de fatores naturais que formam nossa existência biológica determina igualmente nossa existência psicológica e exige de nós que mantenhamos, por vezes, opiniões sem considerarmos sua evidência. (Vejam-se, de Popkin, “David Hume: His Pyrrhonism and His Critique of Pyrrhonism”, in Chapeil, ob. cit. p. 54; de N. K. Smith, ob. cit., passim, e “The Naturalism of Hume”, Mind, 1906.) [N. do T.]
TERCEIRA PARTE
– Hume mostra claramente, tanto aqui como na seção V, seu desejo de ser considerado um seguidor da última Academia [N. do T.]

2 – O ímpio princípio da filosofia antiga: ex nihilo, nihil fit, pelo qual ficava excluída a criação da matéria, deixa de ser um principio, segundo esta filosofia. Não apenas a vontade do Ser Supremo pode criar a matéria, mas, pelo que sabemos, a priori, a vontade de qualquer outro ser poderia criá-la, ou qualquer outra causa que a imaginação mais caprichosa poderia designar (Hume).

3 – O ceticismo moderado consiste sobretudo em “limitar nossas investigações aos objetos que mais bem se adaptam à exígua capacidade do entendimento humano”. Hume visa, deste modo, nas últimas páginas desta Investigação, esboçar um quadro geral dos diferentes ramos do saber humano, e a idéia central que orienta seu esquema se baseia na divisão mais ampla entre o “conhecimento” e a “crença”. (Veja-se Flew, ob. cit., p. 270.) [N. do T.]


ACRÓPOLIS

Versão eletrônica do livro “Investigação Acerca do Entendimento Humano”
Autor: David Hume
Créditos da digitalização:
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