Descartes Itinerário Filosófico A. Projecto e dúvida Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que fiz [na Holanda, para onde me retirara]; porque são tão metafísicas e tão pouco vulgares que não agradarão talvez a toda a gente. E todavia vejo-me de certo modo obrigado a falar-vos delas, para que se possa avaliar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes. De há muito tinha notado que, pelo que respeita à conduta, é necessário algumas vezes seguir como indubitáveis opiniões que sabemos serem muito incertas, como já atrás foi dito. Mas agora, que resolvera dedicar-me apenas à descoberta da verdade, pensei que era necessário proceder exactamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se após isso acaso ficaria qualquer cousa nas minhas opiniões que fosse inteiramente indubitável. B. Razões para duvidar e o cogito
Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, eu quis supor
que nada há que seja tal como eles o fazem imaginar. E, porque há homens que
se enganam ao raciocinar, até nos mais simples temas de geometria, e neles
cometem paralogismos, rejeitei como falsas, visto estar sujeito a enganar-me
como qualquer outro, todas as razões de que até então me servira nas
demonstrações. Finalmente, considerando que os pensamentos que temos quando acordados
nos podem ocorrer também quando dormimos, sem que neste caso nenhum seja
verdadeiro, resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no
meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. Mas,
logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso,
eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma cousa. E notando que esta
verdade - eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa
que todas as extravagantes suposições dos cépticos seriam impotentes para a
abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio
da filosofia que procurava.
C. Alma e corpo
Depois, examinando atentamente que cousa eu era, e vendo que podia supor
que não tinha corpo e que não havia qualquer mundo ou qualquer lugar onde eu
existisse; mas que, apesar disso, não podia admitir que não existia; e que
antes, pelo contrário, por isso mesmo que pensava, ao duvidar da verdade das
outras cousas, tinha de admitir como muito evidente e muito certo que
existia; ao passo que bastava que tivesse deixado de pensar para não ter já
nenhuma razão para crer que existia, ainda que tudo o que tinha imaginado
fosse verdadeiro; por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência
ou natureza é apenas o pensamento, que para existir não tem necessidade de
nenhum lugar nem depende de nenhuma cousa material. De maneira que esse eu,
isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo,
mais fácil mesmo de conhecer que este, o qual, embora não existisse, não
impediria que ela fosse o que
é.
D. Critério de verdade
Depois disso, considerei duma maneira geral o que é indispensável a uma
proposição para ser verdadeira e certa; porque, como acabava de encontrar uma
com esses requisitos, pensei que devia saber também em que consiste essa
certeza. E tendo notado que nada há no eu penso, logo existo, que
me garanta que digo a verdade, a não ser que vejo muito claramente que, para
pensar, é preciso existir, julguei que podia admitir como regra geral que é
verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente;
havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as cousas que
concebemos distintamente.
Depois, tendo reflectido que duvidava, e, por consequência, o meu ser não
era inteiramente perfeito, pois claramente via que o conhecer é uma maior
perfeição que o duvidar, lembrei-me de procurar donde me teria vindo o
pensamento de alguma cousa de mais perfeito do que eu era; e conheci com
evidência que deveria ter vindo de alguma natureza que fosse efectivamente
mais perfeita.
E. Deus e as provas da sua existência
Não me era difícil saber donde me teriam vindo os pensamentos que tinha
de muitas outras cousas exteriores a mim, como do céu, da terra, da luz, do
calor e de muitas outras, porque, não notando neles nada de superior a mim,
podia admitir que, caso fossem verdadeiros, dependiam da minha natureza, do
que ela tem de perfeito; e no caso de serem falsos era de mim ainda que
dependeriam, vindos do nada, isto é, do que de imperfeito existe na minha
natureza. Mas o mesmo não acontecia já com a ideia dum ser mais perfeito do
que o meu; porque tê-la formado do nada era manifestamente impossível; e,
porque não repugna menos admitir que o mais perfeito seja uma consequência e
uma dependência do menos perfeito do que admitir que do nada alguma cousa proceda,
não podia também aceitar que tivesse sido criada por mim próprio. De maneira
que restava apenas admitir que tivesse sido posta em mim por um ser cuja
natureza fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que mesmo
tivesse em si todas as perfeições que eu poderia idealizar, isto é, que fosse
Deus, para tudo dizer numa palavra.
A isso acrescentei que, visto conhecer algumas perfeições que não
possuía, não era o único ser que existia (empregarei aqui, se o consentirdes,
alguns termos de escolástica), mas que necessariamente devia existir algum
outro mais perfeito, do qual dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que
possuía. Porque, se eu fosse o único ser, independente de qualquer outro, e
de mim próprio tivesse recebido todo esse pouco pelo qual participava do ser
perfeito, teria podido dar a mim próprio, pela mesma razão, todo o muito que
reconhecia faltar-me, e ser dessa maneira eu próprio infinito, imutável,
omnisciente, omnipotente, em suma ter todas as perfeições que atribuía a Deus.
[…]
F. O mundo
Depois disso, quis ainda pensar outras verdades, e, tomando por tema a
matéria dos geómetras, a qual concebia como um corpo contínuo, ou, um espaço
indefinidamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade,
divisível em muitas partes, que podem ter diversas formas e grandezas, pois
os geómetras supõem tudo isto na sua matéria, revi algumas das suas
demonstrações mais simples. E, tendo notado que essa grande certeza, que
todos lhes atribuem, se funda apenas em serem compreendidas com evidência,
segundo a regra por mim há pouco indicada, notei também que nada existia
nelas que me garantisse a existência dos objectos a que se referem.
Porque, por exemplo, eu compreendia bem que sendo dado um triângulo, é
necessário que os seus três ângulos sejam iguais a dois ângulos rectos; mas,
apesar disso, nada via que me garantisse que no mundo existe
qualquer triângulo. Ao passo que, voltando a examinar a ideia dum ser
perfeito, notava que a existência está contida nessa ideia, do mesmo modo, ou
mais evidentemente ainda, que na dum triângulo está compreendido serem os
seus três ângulos iguais a dois rectos, ou na esfera serem todos os seus
pontos equidistantes do centro; e que, por conseguinte, é pelo menos tão
certo como qualquer demonstração de geometria que Deus, que é esse ser
perfeito, é ou existe.
[…]
Enfim, se há ainda quem não se persuada bem da existência de Deus e da
alma com as razões que apresentei, quero dizer-lhes que é menos certa a
existência de todas as outras cousas, de que se julgam talvez mais seguros,
como ter um corpo, existirem astros e uma terra e outras cousas semelhantes.
(…)
Na verdade, em primeiro lugar, aquilo mesmo que há pouco adoptei como
regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras as cousas que concebemos
muito clara e distintamente, não é certo senão porque Deus é ou existe, ser
perfeito de que nos vem tudo que em nós existe. Donde se segue que as nossas
ideias ou noções, cousas reais que provêm de Deus, não podem deixar de ser
verdadeiras na medida em que são claras e distintas. (…)
[…]
G. As Ideias
Note-se que digo razão, e não imaginação ou sentidos. Porque, embora
vejamos o sol muito claramente, não devemos julgar por isso que ele tenha a
grandeza que lhe vemos; e podemos à vontade imaginar distintamente uma cabeça
de leão unida ao corpo duma cabra, sem que tenhamos de concluir, por isso,
que no mundo existem quimeras: porque a razão não garante que seja verdadeiro
o que assim vemos ou imaginamos. Mas garante-nos bem que todas as nossas
ideias ou noções devem ter algum fundamento verdadeiro; porque não seria
possível que Deus, que é inteiramente perfeito e verídico, as tivesse posto
em nós sem isso.
[…]
|
DESCARTES, R. (1637)
Discurso do Método.
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