O Argumento Ontológico
O argumento ontológico e o
problema da possibilidade da existência de Deus
Introdução
No Proslogium, Anselmo de
Aosta (1033-1109) apresentou um dos mais importantes argumentos a favor da
existência de Deus da história da filosofia: o argumento ontológico. Este
argumento sustenta a existência de Deus recorrendo unicamente a premissas
conhecíveis a priori.1 Embora
o argumento ontológico não seja propriamente um único argumento, mas, como
escreve Rowe, “uma família de argumentos” (Rowe, p. 42), pois encontramos
diferentes versões em filósofos como Descartes (1646-1716) e Leibniz
(1646-1716),2 a
versão de Anselmo é a mais importante. A sua importância resulta de levantar um
número elevado de questões filosóficas fundamentais e de ter estimulado uma
série de reflexões ao longo da história da filosofia. No entanto, não tenho a
pretensão de expor todos os comentários e discussões referentes ao argumento de
Anselmo. Tampouco me limito a considerações meramente histórico-filosóficas. O
interesse do presente ensaio é mais específico: apresentarei o argumento a fim
de discutir sua segunda premissa (“será Deus um ser possível?”). O objetivo é
mostrar que o defensor do argumento ontológico está obrigado a admitir que Deus
é um ser nomologicamente impossível (tais conceitos serão explicados ao longo
do texto). E não só isto; pretendo sustentar também que não há boas razões para
aceitar a segunda premissa do argumento. Se a crítica for correta, não podemos
considerar o argumento de Anselmo uma prova sólida a favor da existência de
Deus.
O argumento ontológico e o conceito anselmiano de Deus
Anselmo estava convencido de que, se
aceitássemos apenas três premissas, estaríamos obrigados a aceitar a existência
de Deus mediante uma reductio ad absurdum.3 Vejamos, então, quais são estas premissas:
- Deus existe no pensamento.
- Deus é um ser possível.
- Se algo existe no pensamento e podia existir na
realidade, então podia ser maior do que é.
De início, precisamos examinar cada
premissa em particular; posteriormente, apresentaremos o argumento como um
todo. Não é surpreendente aqui o fato de haver conceitos ainda inexplicados.
Portanto, convém elucidar a respeito de algumas noções importantes, tal como o
conceito anselmiano de Deus. Que entende Anselmo sobre isto? O filósofo
medieval define Deus como o ser maior do que o qual nenhum outro é
pensado (ens quo maius cogitari nequit). No entanto, seguindo
Rowe, é mais fácil compreender esta definição de Anselmo se fizermos uma
ligeira alteração. Ao invés de utilizarmos a palavra “pensado”, entenderemos a
expressão como “o ser maior do que o qual nenhum outro é possível”. Como afirma
Rowe, “esta idéia diz que se um determinado ser é Deus, então nenhum ser
possível pode ser maior que aquele” (Rowe, p. 44). Para tornar esta concepção
mais clara, vejamos algumas propriedades comumente atribuídas ao Deus teísta.
Ao afirmarmos ser Deus o maior de todos os seres possíveis, atribuímos-lhe as
seguintes propriedades essenciais: onipotência, onisciência, suma bondade,
eternidade, distância e independência do mundo e, finalmente, auto-existência.
Destas propriedades essenciais acima elencadas destacaremos apenas alguns
aspectos.
Onipotência
é um conceito fundamental na concepção teísta. Dizer que Deus é onipotente
significa afirmar que Deus pode fazer tudo aquilo no qual não envolva
contradição nos termos (por exemplo, Deus não pode fazer um quadrado redondo),
ademais, não pode fazer aquilo que seja contrário às suas propriedades
essenciais (por exemplo, se Deus é sumamente bom, então não pode praticar o
mal). O conceito de onisciência cumpre também um papel fundamental nesta concepção.
Afirmar que Deus é onisciente significa dizer que Deus é infinitamente sábio
(por exemplo, não possui limitações cognitivas como os seres humanos). Ser
sumamente bom é praticar tão somente atos morais e a impossibilidade de
praticar qualquer ato imoral (ou seja, as ações de Deus, moralmente falando,
são as melhores possíveis). Ser eterno, distante e independente do mundo
implica transcender as leis da física (por exemplo, Deus não está sujeito às
leis do espaço e tampouco às leis do tempo; logo, pode ocupar dois lugares no
espaço ao mesmo tempo e, além disso, estar presente em qualquer tempo —
passado, presente e futuro. Por ser eterno, sempre existiu e jamais perecerá.
Por ser auto-existente, não necessita da atividade causal de outros seres para
existir (por exemplo, a existência da mesa depende da existência do marceneiro;
Deus, ao contrário, basta-se a si mesmo).
Tais
propriedades caracterizam seguramente a grandiosidade de Deus. É acaso possível
haver ser maior? A grandiosidade de que fala Anselmo não é a grandeza física.
Não se trata, por exemplo, de um grande prédio ou de um grande navio. Trata-se,
antes, de um ser mais elevado e melhor, nomeadamente em termos cognitivos e
morais.
Em
termos cognitivos, pois é inegável a limitação cognitiva dos seres humanos. Mas
Deus é onisciente, e por isso superior aos homens; ou seja, Deus certamente
conhece tudo o que pode ser conhecido mas nós não conhecemos. Portanto, Deus
supera os seres humanos, bem como os demais seres, em capacidades cognitivas.
Em
termos morais, Deus também é maior do que os seres humanos; a sua suma bondade
contribui para a sua grandiosidade. Pelo fato de ser sumamente bom, Deus não
pode praticar o mal (ao contrário de nós, que somos suficientemente não
sagrados para cometermos o mal).
Em
suma, se elencarmos ponto a ponto as propriedades atribuídas ao Deus teísta que
Anselmo tem em mente, veremos que se trata do melhor ser possível, e também o
mais elevado. Trata-se portanto do ser maior do que o qual nenhum outro
é possível, tal como definira Anselmo.
A primeira premissa
Uma vez explicado o conceito de Deus,
podemos passar a discutir a primeira premissa do argumento de Anselmo (a saber,
Deus existe no pensamento). Para melhor compreendê-la, é necessário estabelecer
uma distinção entre coisas que existem tão somente no pensamento e coisas que
existem na realidade. Que significa isso? Imagine, por exemplo, um ser qualquer
— digamos, um dragão. Você pode concebê-lo como existente no pensamento; de
fato, podemos imaginá-lo tal como é descrito nas narrativas de Tolkien e em
demais obras literárias de ficção. Contudo, não podemos afirmar a existência de
dragões na realidade, pois sabemos não ser este o caso. Do mesmo modo, podemos
pensar em unicórnios e, no entanto, não lhes atribuir existência na realidade.
Ao contrário das baleias e das girafas, os dragões e os unicórnios não existem
na realidade. Na perspectiva de Anselmo, sempre que negamos a existência de
algo, admitimo-la como existindo no pensamento. Não é surpreendente que os ateus
afirmem ocorrer o mesmo com Deus. Com efeito, embora concebamos Deus como
existente no pensamento, não o concebemos como existente na realidade, dirão os
ateus: tratar-se-ia meramente de uma sofisticada invenção da imaginação humana.
O ponto interessante a notar é que Anselmo está ciente do fato de, mesmo os
ateus, admitirem a existência de Deus no pensamento. Por negar a existência
divina na realidade, o ateu conseqüentemente tem de admitir a existência de
Deus no pensamento (do mesmo modo, quando negamos a existência de dragões na
realidade, estamos, segundo a perspectiva de Anselmo, a admitir sua existência
no pensamento). Portanto, podemos justificar a primeira premissa de Anselmo com
o seguinte argumento:
1.a. Quando alguém nega a existência de
um ser na realidade, tem de admitir a existência do mesmo no pensamento.
2.b.
Os ateus negam a existência de Deus na realidade.
Logo,
3.c.
Os ateus têm de aceitar a existência de Deus no pensamento.
Entretanto, admitir a existência de Deus
no pensamento parece trivial: o que de fato procuramos saber é se ele existe na
realidade, afirmará o ateu. Vejamos, pois, como Anselmo procede a fim de
persuadir-nos a aceitar a existência de Deus na realidade, e não meramente a
aceitar sua existência no pensamento.
A segunda premissa
O segundo passo da estratégia de Anselmo
consiste em afirmar a possibilidade da existência de Deus na realidade. Há pelo
menos três sentidos diferentes em afirmar a possibilidade da existência de Deus
na realidade. Podemos afirmar que é metafisicamente possível Deus existir na
realidade. Também podemos afirmar que é nomologicamente possível Deus existir
na realidade. E, finalmente, podemos afirmar que é logicamente possível Deus
existir na realidade. Temos aqui, portanto, três sentidos diferentes de
possibilidade, a saber, possibilidade metafísica, nomológica e física. Mas o
que significa exatamente cada uma delas?
Metafisicamente
possível é aquilo que é realmente possível. A possibilidade metafísica permite
que algo seja possível se for consistente com as leis “metafísicas” — sejam
elas quais forem. Por exemplo, se as leis metafísicas incluem as leis da
lógica, afirmaremos ser metafisicamente impossível chover e não chover ao mesmo
tempo, ou Sócrates não ser Sócrates. Por outro lado, se considerarmos as leis
metafísicas de modo a incluir as leis das ciências, diremos que é
metafisicamente impossível a água não ser H2O ou um objeto dar a volta à galáxia num microsegundo.
Assim, Deus é um ser metafisicamente possível se, e somente se, for consistente
com as leis metafísicas.
Por
sua vez, algo é nomologicamente possível se for consistente com as leis da
ciência. Por exemplo, é fisicamente impossível viajar mais depressa do que a
luz, assim, é uma impossibilidade nomológica qualquer objeto viajar mais depressa
do que a luz. Já Sócrates ter nascido no Egito, ao invés de ter nascido em
Atenas, é uma possibilidade nomológica. Não há qualquer transgressão das leis
científicas no fato de Sócrates poder ter nascido no Egito. Também não é uma
impossibilidade nomológica alguém saltar de pára-quedas. Mas um ser humano dar
um salto até à Lua é algo nomologicamente impossível. Tudo aquilo que não for
permitido pelas leis da ciência é nomologicamente impossível. Positivamente,
tudo aquilo que é permitido pelas leis científicas é nomologicamente possível.
Um
âmbito de possibilidade certamente mais amplo é o da possibilidade lógica. Uma
coisa só é logicamente possível se sua negação não é nem implica uma
contradição. Todo o resto é logicamente possível. Não é uma impossibilidade
lógica saltar até a Lua, a água não ser H2O, Sócrates não ser humano, etc. Mas disso não se
segue que tudo seja possível. Há sem dúvida coisas que são logicamente
impossíveis. Pense, por exemplo, no conceito de triângulo sem três lados. É
sequer possível que tal coisa exista na realidade? Não há dúvidas de que
responderíamos negativamente. Portanto, seguindo este raciocínio, negaríamos
não só a existência, mas também a possibilidade de existirem quadrados
redondos, solteiros casados, triângulos sem três lados, etc. Não podemos de
modo algum — na perspectiva de Anselmo — aceitar a possibilidade de existirem
coisas que sejam contradições nos termos. Mas o conceito de Deus não implica
contradição nos termos. O ponto capital parece então ser o seguinte: se algo
não é uma impossibilidade lógica (por exemplo, chover e não chover ao mesmo
tempo, existir um solteiro que seja ao mesmo tempo casado), então não há
problemas em afirmar que este algo possa existir na realidade. Como Deus, na
perspectiva de Anselmo, não é um ser logicamente impossível, segue-se então que
ele poderia existir na realidade. Assim, sustentaremos a segunda premissa com o
seguinte argumento:
2.a. Se algo é logicamente possível,
então é possível que exista na realidade.
2.b.
Deus é logicamente possível.
Logo,
2.c.
É possível que Deus exista na realidade.4
A terceira premissa e a reductio ad absurdum
Finalizaremos a primeira parte de nossa
exposição com a terceira premissa do argumento de Anselmo, a saber, se
algo existe no pensamento e podia existir na realidade, então podia ser maior
do que é. Esta premissa pressupõe a noção de que a existência confere
grandiosidade, ou seja, afirma que a existência de algo na realidade é maior do
que a existência de algo meramente no pensamento. Por exemplo, na perspectiva
de Anselmo, um dragão existente é maior (em termos de grandiosidade) do que um
dragão inexistente, visto que o primeiro possui a qualidade de existência e o
segundo não. As qualidades que conferem grandiosidade não são apenas as que atribuímos
à concepção teísta de Deus. É claro que as propriedades essenciais desta
concepção tornam Deus o maior ser (em termos de grandiosidade) de todos os
possíveis (como vimos, a bondade e a sabedoria moral são características
produtoras de grandiosidade). Mas a terceira premissa de Anselmo parece sugerir
o seguinte: quando falamos de uma mesma coisa, se esta pode existir na
realidade mas não existe, então poderia ser maior do que é. Por exemplo,
supondo que seja possível um unicórnio existir na realidade, diremos que
poderia ser maior do que é: um unicórnio existente na realidade é maior do que
um unicórnio que existe meramente no pensamento.
Com
Deus não é diferente. Como admitimos a possibilidade de Deus existir na
realidade, admitiremos também que poderia ser maior do que é, caso aceitemos a
terceira premissa. Contudo, tal afirmação leva-nos a uma conclusão
surpreendente. Supondo que admitamos as premissas 1 a 3, temos de aceitar, como
afirmou Anselmo, a existência de Deus na realidade. Lembremos que o Deus de
Anselmo é o maior, em termos de grandiosidade, de todos os possíveis. Vejamos
agora o argumento como um todo:
- Deus existe no pensamento.
- Deus é um ser possível.
- Se algo existe no pensamento e podia existir na
realidade, então podia ser maior do que é.
Mas por que temos de aceitar a
existência de Deus na realidade mediante unicamente estas três premissas? Como
afirmei, ao invés de convencer-nos diretamente a aceitar a existência de Deus
na realidade, Anselmo convida-nos a negar sua existência na realidade. Se
supusermos que tal Deus não existe na realidade, ocorrerá o seguinte:
- Deus não existe na realidade (suposição da reductio).
- Se Deus não existe na realidade, então — dada a
premissa 3 — poderia haver um ser maior do que ele.
Logo,
- Há um ser maior do que Deus. Ou melhor, há um ser
maior do que o ser maior do que o qual nenhum outro é possível.
Dado que 6 é uma contradição, pois não é
possível haver ser maior do que Deus justamente pelo fato de Deus ser o maior
de todos os seres, concluímos:
- Deus existe na realidade bem como no
entendimento.
Com esta reductio Anselmo
pensa que prova a existência de Deus. Como podemos observar, o filósofo
medieval pensa que, a partir de uma simples análise do conceito de Deus,
podemos estabelecer a sua existência na realidade e, para tanto, oferece-nos
este argumento. No entanto, foram muitas as críticas ao seu argumento
desenvolvidas ao longo da história da filosofia. Infelizmente, não podemos
expor toda a discussão e debate que se seguiu.5 O ataque que faremos ao argumento de Anselmo
dirige-se à sua segunda premissa. Se conseguirmos negá-la, então não teremos de
aceitar o argumento.
Possibilidade e existência de Deus
Sustentamos a segunda premissa com o
seguinte argumento: se algo é logicamente possível, então é possível (ou seja,
este algo é metafisicamente possível). Vejamos novamente como justificamos a
segunda premissa:
2.a. Se algo é logicamente possível,
então é possível que exista na realidade.
2.b.
Deus é logicamente possível.
Logo,
2.c.
É possível que Deus exista na realidade
Como Deus é logicamente possível,
segue-se então que é de fato possível. Quando aplicamos este argumento a Deus
parece não haver problema algum. Entretanto, alterando o exemplo, o argumento
apresenta-se muito contra intuitivo.
Se algo é logicamente possível, então é
realmente possível.
É
logicamente possível que Sócrates tenha sido um cão.
Logo,
É
realmente possível (ou metafisicamente possível) que Sócrates tenha sido um
cão.
Como podemos observar, o defensor do
argumento ontológico parece ter de sustentar que tudo o que é logicamente
possível é metafisicamente possível. Isto porque Deus parece que é um ser
nomologicamente impossível. Uma coisa só é nomologicamente possível se for
consistente com as leis da ciência. Deus é nomologicamente possível se, e
somente se, é consistente com as leis da ciência. Pelo fato de Deus ser capaz
de estar em dois lugares ao mesmo tempo, por exemplo, não podemos considerá-lo
como um ser nomologicamente possível. Além disso, a onipotência divina assegura
que Deus pode fazer tudo aquilo no qual não envolva contradições. Não há
qualquer contradição em afirmar que Deus viaja mais depressa do que a luz,
ainda que seja fisicamente impossível viajar mais depressa do que a luz. Isto é
suficiente para afirmarmos que Deus é um ser nomologicamente impossível.
Entretanto,
ao considerar que a possibilidade lógica é uma possibilidade real (tal como
observamos na premissa 2.a.) enfrentamos um problema: esta pressuposição viola
uma de nossas intuições básicas: a de que nem toda a possibilidade lógica é uma
possibilidade real. Será realmente possível que amanhã nos tornemos elefantes
voadores? Que Wittgenstein, na verdade, tivesse sido uma raquete de tênis ao
invés de um ser humano? Intuitivamente, responderíamos que não. Além disso, o
problema não é somente o fato de violar uma de nossas intuições fundamentais.
Quando afirmamos que Deus é um ser possível estamos a pressupor sem
justificação que uma possibilidade lógica é uma possibilidade real. Por que
devemos acreditar que tudo aquilo que é logicamente possível é de fato
possível? O que o defensor do argumento ontológico teria de fazer é defender
esta idéia ao invés de meramente pressupô-la. Se não há razões para aceitar que
uma possibilidade lógica é uma possibilidade real, então podemos rejeitar a
segunda premissa do argumento ontológico.
Além
do mais, parece mais intuitivo supor que a possibilidade real seja a
possibilidade nomológica. Se fizermos isto, não teremos de aceitar que Sócrates
poderia ter sido um cão ou Wittgenstein uma raquete de tênis. Entretanto, se afirmamos
que só o que é nomologicamente possível é metafisicamente possível, teremos de
recusar a mera possibilidade de Deus existir na realidade, ou seja, Deus seria
um ser metafisicamente impossível. Contudo, não precisamos defender esta idéia
para negar o argumento ontológico. O que compete ao defensor do argumento
ontológico é mostrar por que toda a possibilidade lógica é uma possibilidade
real. Infelizmente não há razões para aceitar esta suposição. E se não a
aceitamos, o argumento de Anselmo não é uma prova sólida da existência de Deus.
Uma possível objeção do defensor do argumento
ontológico
Uma das maneiras de o defensor do
argumento ontológico rejeitar minha objeção seria a seguinte: não é preciso
pressupor que tudo o que é logicamente possível é realmente (ou
metafisicamente) possível. Pode-se apenas pressupor que nem tudo o que é
nomologicamente impossível é realmente impossível. Embora seja nomologicamente
impossível viajar mais depressa do que a luz, não se segue que seja realmente
impossível viajar mais depressa do que a luz, pois as leis da natureza podem
ser metafisicamente contingentes. O teísta argumentaria a favor da
possibilidade real de viajar mais depressa do que a luz, apesar de isso não ser
nomologicamente possível. O defensor do argumento ontológico não precisaria
assim de pressupor que tudo o que é logicamente possível é realmente (ou
metafisicamente) possível; só teria de pressupor que algumas coisas que são
nomologicamente impossíveis são realmente possíveis. Portanto, ficaria imune à
minha crítica que questiona o primeiro pressuposto, defendendo que embora Deus
seja nomologicamente impossível, daí não se segue que é metafisicamente
impossível.
Mas
se Deus é nomologicamente impossível e se o teísta não parte do pressuposto de
que toda a possibilidade lógica é uma possibilidade real, terá de pressupor que
Deus é um ser metafisicamente (ou realmente) possível. Mas este pressuposto,
apesar de evitar a objeção por mim levantada, tem um grave problema para o
teísta: afinal, não é óbvio que Deus seja metafisicamente possível. O defensor
do argumento ontológico estaria a pressupor sem maiores razões que Deus é um
ser realmente possível. Ao invés de justificar a segunda premissa, simplesmente
a toma como óbvia: pressupõe algo que deveria justamente provar. Isto é
suficiente para tornar o argumento — no mínimo — muitíssimo menos cogente. Nem
mesmo neste caso o argumento ontológico poderia ser uma prova sólida a favor da
existência de Deus. Esta suposição, que afirma a possibilidade metafísica de
Deus existir, tornaria simplesmente o argumento menos cogente porque obrigaria
a aceitar uma premissa muito menos plausível.6
Pedro Merlussi
Notas
- Um argumento é a priori quando
todas as suas premissas são conhecíveis pelo pensamento apenas, ou quando
não precisamos recorrer às nossas capacidades perceptivas. Ou seja, não
precisamos recorrer à experiência para conhecer uma proposição como que
dois mais dois é igual a quatro. No caso do argumento ontológico, não
precisamos recorrer à experiência para conhecer suas premissas. Dos
argumentos mais famosos a favor da existência de Deus (como o cosmológico
e do desígnio), o ontológico é o único a priori.
- Observa-se outras formas do argumento ontológico
em Descartes (nomeadamente na Meditação V), Espinosa (Ética,
parte I, teoremas 7-11) e Leibniz (Nouveaux Essais sur l’Entendement
Humain, livro IV, cap.10; Monadologia, seçs. 44-45).
- Reductio ad absurdum (lat., redução ao absurdo) “é um método indireto de demonstração
que prova a verdade de uma proposição pela impossibilidade de aceitar as
conseqüências que derivam de sua contraditória” (Mora 2004: 2476). Ao
invés de demonstrar diretamente a existência de Deus, Anselmo supõe a
inexistência de Deus. A partir disso, conclui o seguinte: se afirmamos que
Deus não existe, teremos um resultado contraditório. Portanto, devemos
aceitar a existência de Deus.
- Este argumento não está presente no texto de
Anselmo, mas, infelizmente, o filósofo também não fornece razão para
aceitar a segunda premissa. Mesmo que a segunda premissa seja verdadeira,
devemos saber por que ela o é (e quanto a isso Anselmo não oferece
razões). Portanto, o que parece mais plausível supor é que se uma coisa
não implica contradições nos termos, então se segue que ela seja possível
de existir na realidade. Ao aceitar este argumento parece que temos
justificação para aceitar a segunda premissa.
- A primeira objeção ao argumento de Anselmo
encontra-se no texto Livro em Favor do Insensato do monge
Gaunilo de Marmoutiers. A resposta de Anselmo a esta objeção pode ser
encontrada tanto em Obras Completas de San Anselmo, Madri,
Biblioteca de Autores Cristianos, 1952–1953, vol. I, como também em Philosophy of
Religion: A Guide and Anthology, Oxford, Oxford University Press,
2000. Uma crítica que muito mais tarde se tornou
célebre pode ser encontrada em Kant, Crítica da Razão Pura.
Além disso, para uma exposição clara e introdutória das diversas objeções
cf. Rowe.
- Este trabalho foi realizado no âmbito da
disciplina Filosofia da Religião, ministrada por Desidério Murcho na UFOP.
Bibliografia
·
Anselmo de Aosta, “Anselm argues that God cannot be
thought not to exist”, in Philosophy of Religion: A Guide and
Anthology. New York: Oxford University Press, 2000.
·
—— “Anselm replies to Gaunilo” in Philosophy
of Religion: A Guide and Anthology. New
York: Oxford University Press, 2000.
·
—— “Proslógion”, in Opúsculos
Selectos de Filosofia Medieval, Trad. A.S. Pinheiro. Braga: Faculdade
de Filosofia, 1984.
·
Branquinho, João; Murcho, Desidério;
Gomes, Nelson (orgs), Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
·
Davies, Brian, “Ontological Arguments” in Philosophy
of Religion: A Guide and Anthology. New
York: Oxford University Press, 2000.
·
Murcho, Desidério, Essencialismo
Naturalizado. Coimbra: Angelus Novus, 2002.
·
Rowe, William L. Introdução à
Filosofia da Religião, Trad. Vítor Guerreiro. Revisão científica de
Desidério Murcho. Vila Nova de Famalicão: Quasi, no prelo.
Sem comentários:
Enviar um comentário