Teorias essencialistas da arte
O primeiro problema que qualquer teoria da arte tem de enfrentar é o problema da própria definição de “arte” ou de “obra de arte”. Como podemos então definir “arte”?
As teorias
essencialistas defendem que
existe uma essência de arte, ou seja, que existem propriedades essenciais
comuns a todas as obras de arte e que só nas obras de arte se encontram.
Uma definição
essencialista exige também que tais propriedades sirvam para distinguir a arte
de outras coisas que não são arte. Daí que se procurem apenas identificar as
propriedades essenciais que sejam individuadoras da arte.
Dentro das teorias
essencialistas podemos abordar as seguintes:
Teoria da arte como
imitação
Esta é uma das mais antigas teorias da
arte. Foi, aliás, durante muito tempo aceite pelos próprios artistas como
inquestionável. A definição que constitui a sua tese central é a seguinte:
Uma obra é arte se, e só se, é produzida
pelo homem e imita algo.
A característica própria desta teoria não
reside no facto de defender que uma obra de arte tem de ser produzida pelo
homem, o que é comum a outras teorias, mas na ideia de que para ser arte essa
obra tem de imitar algo. Daí que seja conhecida como teoria da arte como
imitação.
Vários
foram os filósofos que se referiram à arte como imitação. Alguns desprezavam-na
por isso mesmo, como acontecia com o conhecido filósofo grego Platão que, ao
considerar que as obras de arte imitavam os objectos naturais, via essas obras
como imagens imperfeitas dos seus originais. Ainda por cima quando, no seu
ponto de vista, os próprios objectos naturais eram por sua vez cópias de outros
seres mais perfeitos. Já o seu contemporâneo Aristóteles, mantendo embora a
ideia de arte como imitação, tinha uma opinião mais favorável à arte, uma vez
que os objectos que a arte imita não são, segundo ele, cópias de nada.
O
que agora nos interessa, mais do que saber quem defendeu esta teoria, é avaliar
o seu poder explicativo. Vejamos então os principais pontos que perecem
favoráveis a ela:
Adequa-se ao facto incontestável de muitas
pinturas, esculturas e outras obras de arte, como peças de teatro ou filmes
imitarem algo da natureza: paisagens, pessoas, objectos, acontecimentos, etc.
Oferece um critério de classificação das
obras de arte bastante rigoroso, o que nos permite, aparentemente, distinguir
com alguma facilidade um objecto que é uma obra de arte de outro que o não é.
Oferece um critério de valoração das obras
de arte que nos possibilita distinguir facilmente as boas das más obras de
arte. Neste sentido, uma obra de arte seria tão boa quanto mais se conseguisse
aproximar do objecto imitado.
Um aspecto geral desta teoria mostra-nos
que é uma teoria centrada nos objectos imitados. Ela exprime-se frequentemente
através de frases como “este filme é excelente, pois é um retrato fiel da
sociedade americana nos anos 60”, ou como “este quadro é tão bom que mal
conseguimos distinguir aquilo que o artista pintou do modelo utilizado”.
Mas
será uma boa teoria? Para isso temos de testar cada um dos aspectos atrás
apresentados que são favoráveis à teoria, começando pelo primeiro.
Como
o que é afirmado no primeiro ponto é do domínio empírico, não precisamos de
procurar muito para percebermos que, apesar de muitas obras de arte imitarem
algo, são inúmeras aquelas que o não fazem. O que constitui a sua refutação
inequívoca. Obras de arte que não imitam nada encontramo-las tanto na pintura
como na escultura abstractas ou noutras artes visuais não figurativas. De forma
ainda mais notória encontramo-las na literatura e na música. Em relação à
música é até bastante improvável que haja alguma obra musical que imite seja o
que for, apesar de haver quem se tenha batido pela música programática (música
que conta uma história, ilustra um acontecimento ou evoca um cenário natural).
Até porque evocar ou ilustrar com sons não é o mesmo que imitar, a não ser
indirectamente. Conscientes disso, os defensores mais recentes da teoria da
arte como imitação, acabaram por substituir o conceito de imitação pelo
conceito mais sofisticado de representação. Assim já poderíamos dizer que as
quatro primeiras notas da 5.ª Sinfonia de Beethoven não imitam
directamente a morte a bater à porta, mas representam a morte a bater à porta.
O mesmo se passaria com a literatura, da qual talvez não se possa dizer que
imita mas que representa sempre algo que acontece no mundo. Mas, ainda assim,
podemos perguntar: o que representam a pintura Composição (1946)
de Jackson Pollock ou as Suites para Violoncelo Solo de Bach?
Dificilmente diríamos que representam algo. Ficamos, deste modo, com uma teoria
que não observa os requisitos anteriormente expostos acerca do que deve ser uma
definição explícita, pois defende que uma condição necessária para algo ser
arte é imitar, e isso não acontece com todas as obras de arte. Trata-se de uma
definição que não inclui tudo o que deveria incluir, deixando assim muito por
explicar.
Em
relação ao segundo aspecto, esta teoria deixa também muito a desejar. O que
referi acerca do ponto anterior acaba também por desconsiderar o critério de
classificação apresentado. Convém, portanto, realçar que o critério de
classificação de arte proposto por esta teoria não pode ser bom, pois ficamos
insatisfeitos ao verificar que há obras que são reconhecidamente arte e não são
classificadas como tal. A conservar este critério, seriam as obras de arte que
deveriam conformar-se à definição de arte e não o contrário. Mas acontece que
nem esta nem nenhuma outra definição de arte disponível é suficientemente forte
para nos fazer abandonar as nossas intuições de que certas obras são arte,
ainda que tais definições as não classifiquem como tal.
Finalmente,
o terceiro ponto também é muito discutível. Apesar de ficarmos muitas vezes
positivamente impressionados com a perfeição representativa de algumas obras de
arte, o seu critério valorativo falha porque muitas outras obras de arte não
poderiam ser consideradas boas nem más, já que não imitam nada. Mas falha ainda
por haver obras que imitam algo sem que nos encontremos alguma vez em condições
de saber se a imitação é boa ou má. Basta pensar em obras que imitam algo que
já não existe ou não é do conhecimento de quem as aprecia. Como podemos saber
se A Escola de Atenas, de Rafael, reproduz com perfeição as
figuras de Platão e Aristóteles ou o ambiente da Academia? Pior, como sabemos
que o Jardim das Delícias, de Bosch, imita bem aquelas figuras
estranhas e inverosímeis, admitindo que algo está a ser imitado? Como podemos
saber se O Nascimento de Vénus, de Botticelli, é uma boa
imitação, se é que, mais uma vez, algo é imitado? E não será abusivo afirmar
que qualquer pintura figurativa tecnicamente apurada é melhor do que o
tosco Auto-Retrato com Chapéu de Palha, de Van Gogh, ou do que
todas as obras impressionistas? Segundo este critério Picasso seria, com
certeza, um artista menor e teríamos de reconhecer que a fotografia é a mais
perfeita de todas as artes. Só que não é isso que acontece. Vemos, assim, que
também em relação ao critério valorativo esta teoria está longe de dar resposta
satisfatória a todas as objecções que se lhe colocam.
Teoria da arte como
expressão
Insatisfeitos com a teoria da arte como
imitação (ou representação), muitos filósofos e artistas românticos do século
XIX propuseram uma definição de arte que procurava libertar-se das limitações
da teoria anterior, ao mesmo tempo que deslocava para o artista, ou criador, a
chave da compreensão da arte. Trata-se da teoria da arte como expressão. Teoria
que, ainda hoje, uma enorme quantidade de pessoas aceita sem questionar.
Segundo a teoria da expressão
Uma obra é arte se, e só se, exprime
sentimentos e emoções do artista.
Vejamos o que parece concorrer a favor
dela:
São muitos e eloquentes os testemunhos de
artistas que reconhecem a importância de certas emoções sem as quais as suas
obras não teriam certamente existido. Mais do que isso, se é verdade, como
parece ser, que a arte provoca em nós determinadas emoções ou sentimentos,
então é porque tais sentimentos e emoções existiram no seu criador e deram
origem a tais obras.
Também nos oferece, como a teoria
anterior, um critério que permite, com algum rigor, classificar objectos como
obras de arte. Com a vantagem acrescida de classificar como arte todas as obras
que não imitam nada, o que acontece frequentemente na literatura e sempre na
música e na arte abstracta.
Mais uma vez oferece um critério
valorativo: uma obra é tanto melhor quanto melhor conseguir exprimir os sentimentos
do artista que a criou.
Uma teoria como esta manifesta-se
frequentemente em juízos como “Este é um livro exemplar em que o autor nos
transmite o seu desespero perante uma vida sem sentido” ou como “O autor do
filme filma magistralmente os seus próprios traumas e obsessões”.
Mas
também ela se irá revelar uma teoria insatisfatória. As razões são semelhantes
às que apresentei contra a teoria da arte como imitação, pelo que tentarei aqui
ser mais breve.
O
primeiro ponto apresenta várias falhas. Desde logo, é também empiricamente
refutado porque há obras que não exprimem qualquer emoção ou sentimento.
Podemos até admitir que o emaranhado espesso de linhas coloridas do quadro de
Pollock exprime algo ao deixar registados na tela os seus gestos (é geralmente
incluído na corrente artística conhecida como expressionismo abstracto). Mas
podemos dizer o mesmo da maior parte dos quadros de Yves Klein, Mondrian ou de
Vasarely? O grande compositor do nosso século, Richard Strauss, autor de
vários poemas sinfónicos, como o célebre Assim Falava
Zaratustra, esclarecia que as suas obras eram fruto de um trabalho
paciente e minucioso no sentido de as aperfeiçoar, eliminando desse modo os
defeitos inerentes a qualquer produto emocional. E que dizer da chamada música
aleatória (música feita com o recurso a sons produzidos ao acaso)? Além disso,
mesmo que uma obra de arte provoque certas emoções em nós, daí não se segue que
essas emoções tenham existido no seu autor. Se a ingestão de dez copos de vinho
seguidos provocam em mim o sentimento de euforia, daí não se segue que o
vinicultor que produziu o vinho estivesse eufórico. Trata-se, portanto, de uma
inferência falaciosa. Tal como na definição de arte como imitação, o mesmo se
passa aqui, pois acaba por não se verificar a condição necessária segundo a
qual todas as obras de arte exprimem emoções. É, assim, uma má definição.
A
deficiência em relação ao critério de classificação é praticamente a mesma
apontada à teoria da imitação. A única diferença é que, neste caso, uma maior
quantidade de objectos podem ser classificados como arte. Mas nem todas as
obras de arte são, de facto, classificadas como tal.
Sobre
o critério de valoração, também as objecções são idênticas às da teoria da
imitação. Se observarmos este critério, então as obras de arte que não podem
ser consideradas boas nem más são inúmeras. Como podemos nós saber se uma
determinada obra exprime correctamente as emoções do artista que a criou,
quando o artista já morreu há séculos? Na tentativa de apurar até que ponto uma
obra de arte é boa, muitos estudiosos defensores desta teoria lançaram-se na
pesquisa biográfica do artista que a criou, pois só assim estariam em condições
de compreender os sentimentos que lhe deram origem. Alguns deles, como o famoso
pai da psicanálise, Sigmund Freud, até se aventuraram a sondar as profundezas
da psicologia do artista, sem o que uma correcta avaliação da obra não seria
possível. Freud foi ao ponto de o fazer com um artista morto há séculos, como é
descrito no seu livro Uma Recordação de Infância de Leonardo da Vinci.
Supondo que, como já tem acontecido, a obra em causa tinha sido erradamente
atribuída a outro autor, essa obra deixaria de poder ser considerada
obra-prima? E as obras de autores anónimos ou desconhecidos não são boas nem
más? E como avaliar uma obra de arte colectiva ou a interpretação de uma obra
musical? O que conta aqui são as emoções do artista criador ou as do artista
intérprete (ou dos artistas intérpretes, como sucede com a interpretação
da Segunda Sinfonia de Mahler, a qual chega a exigir perto de
250 intérpretes em palco)? Enfim, todas estas perguntas são demasiado
embaraçosas para a teoria da expressão.
Teoria da arte como
forma significante
Verificando que a diversidade de obras de
arte é bem maior do que as teorias da imitação e da expressão fariam supor, uma
teoria mais elaborada, e também mais recente, conhecida como teoria da forma
significante (abreviadamente referida como “teoria formalista”), decidiu
abandonar a ideia de que existe uma característica que possa ser directamente
encontrada em todas as obras de arte. Esta teoria, defendida, entre outros,
pelo filósofo Clive Bell, considera que não se deve começar por procurar aquilo
que define uma obra de arte na própria obra, mas sim no sujeito que a aprecia.
Isso não significa que não haja uma característica comum a todas as obras de
arte, mas que podemos identificá-la apenas por intermédio de um tipo de emoção
peculiar, a que chama emoção estética, que elas, e só elas,
provocam em nós. Por esta razão a incluo nas teorias essencialistas. De acordo
com a teoria formalista de Clive Bell
Uma obra é arte se, e só se, provoca nas
pessoas emoções estéticas.
Note-se que não se diz que as obras de
arte exprimem emoções, senão estar-se-ia a defender o mesmo que a teoria da
expressão, mas que provocam emoções nas pessoas, o que é bem diferente. Se a
teoria da imitação estava centrada nos objectos representados e a teoria da
expressão no artista criador, a teoria formalista parte do sujeito sensível que
aprecia obras de arte. Digo que parte do sujeito e não que está centrada nele,
caso contrário não seria coerente considerar que esta teoria é formalista.
Tendo
em conta a definição dada, reparamos que a característica de provocar emoções
estéticas constitui, simultaneamente, a condição necessária e suficiente para
que um objecto seja uma obra de arte. Mas se essa emoção peculiar chamada
“emoção estética” é provocada pelas obras de arte, e só por elas, então tem de
haver alguma propriedade também ela peculiar a todas as obras de arte, que seja
capaz de provocar tal emoção nas pessoas. Mas essa característica existe mesmo?
Clive Bell responde que sim e diz que é a forma significante.
Frases
como “Este quadro é uma verdadeira obra prima devido à excepcional harmonia das
cores e ao equilíbrio da composição”, ou como “Aquele livro é excelente porque
está muito bem escrito e apresenta uma história bem construída apoiada em
personagens convincentes e bem caracterizadas”, exprimem habitualmente uma
perspectiva formalista da arte.
Para
já, esta teoria parece ter uma grande vantagem: pode incluir todo o tipo de
obras de arte, inclusivamente obras que exemplifiquem formas de arte ainda por
inventar. Desde que provoque emoções estéticas qualquer objecto é uma obra de
arte, ficando assim ultrapassado o carácter restritivo das teorias anteriores.
Mas
as suas dificuldades também são enormes.
Em primeiro lugar, podemos mostrar que
algumas pessoas não sentem qualquer tipo de emoção perante certas obras que são
consideradas arte. Quer dizer que essas obras podem ser arte para uns e não o
ser para outros? Nesse caso o critério para diferenciar as obras de arte das
outras de que serviria? Teríamos, então, obras de arte que não são obras de
arte, o que não faz sentido. Também não é grande ideia responder que quem não
sente emoções estéticas em relação a determinadas obras não é uma pessoa
sensível, como sugere Bell, o que parece uma inaceitável fuga às dificuldades.
Uma outra dificuldade é conseguir explicar
de maneira convincente em que consiste a tal propriedade comum a todas as obras
de arte, a tal “forma significante”, responsável pelas emoções estéticas que
experimentamos. Clive Bell refere, pensando apenas no caso da pintura, que a
forma significante reside numa certa combinação de linhas e cores. Mas que
combinação é essa e que cores são essas exactamente? E em que consiste a forma
significante na música, na literatura, no teatro, etc.? A ideia que fica é que
a forma significante não serve para identificar nada. Não se trata
verdadeiramente de uma propriedade, pois a forma significante na pintura
consiste numa certa combinação de cores e linhas, mas na música, na literatura,
no cinema, etc., já não podem ser as cores e linhas a exemplificar a forma
significante. Não temos, assim, uma propriedade mas várias propriedades. É
certo que diferentes propriedades podem provocar o mesmo tipo peculiar de
emoções nas pessoas, mas chamar a diferentes propriedades “forma significante”
é de tal forma vago que não se imagina o que poderia constituir uma
contra-exemplo a esta definição. Também a resposta de que a forma significante
é a propriedade que provoca em nós emoções estéticas, depois de dizer que as
emoções estéticas são provocadas pela forma significante é não só inútil mas
decepcionante, já que se trata de uma falácia: a falácia da circularidade.
E agora?
Pelo que se viu, nenhuma das teorias aqui
discutidas parece satisfatória. Tendo reparado nas insuficiências das teorias
essencialistas, alguns filósofos da arte, como Morris Weitz, abandonaram
simplesmente a ideia de que a arte pode ser definida; outros, como George
Dickie, apresentaram definições não essencialistas da arte, apelando, nesse
sentido, para aspectos extrínsecos à própria obra de arte; outros ainda, como
Nelson Goodman, concluíram que a pergunta “O que é arte?” deveria ser
substituída pela pergunta mais adequada “Quando há arte?”. Serão estas teorias
melhores do que as anteriores? Aí está uma boa razão para não darmos por terminada
esta tarefa.
Aires
Almeida
Trabalho
realizado no âmbito da Acção de Formação “O Pensamento Crítico e a Tradição
Socrática na Sala de Aula”, leccionada por Desidério Murcho.
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