As Pandemias: nós e os outros
Só por si, a palavra Pandemia assusta. A
nossa sensação de vulnerabilidade e de falta de controle dispara.
Contextualizar o momento que vivemos é importante.
As bactérias, fungos e vírus que estão no
nosso corpo perfazem quase 40% das células e mais de 90% da informação genética
que transportamos. É de facto espantoso que as pandemias não tenham surgido com
muito mais frequência.
Nós somos “ecossistemas ambulantes”:
transportamos triliões de células de bactérias e fungos e um número
incalculável dos mais variados vírus. Felizmente, são, na sua grande maioria,
indispensáveis para o normal funcionamento do nosso corpo (e até do nosso
cérebro)! Hoje sabemos que esta espantosa colaboração virtuosa entre tantos
“inquilinos” é o resultado de milénios de adaptação, para que a presença de uns
fosse reconhecida como essencial para a sobrevivência de todos.
É a evolução a funcionar!
Infelizmente, volta e meia, ou aparece um
novo “inquilino” perigoso, ou o sistema deixa de funcionar. As razões para que
tal aconteça podem ser ambientais ou genéticas. As ambientais resultam da
exposição a novos vetores, promovida pela nossa mobilidade entre continentes,
pelas alterações climáticas, ou até pelo contacto com outras espécies animais.
As genéticas podem ter a ver com diferentes mutações não só das células humanas
que afetam os nossos sistemas de defesa, como da dos próprios “inquilinos” que
se tornam indesejados. Frequentemente as razões são até difíceis de
categorizar.
Quando tal acontece, o resultado pode
originar uma Pandemia.
As pandemias do último milénio estão bem
documentadas. Entre as que mataram dezenas de milhões de seres humanos
incluem-se a Peste Negra (séc. 14, até 200M†), a Varíola (séc. 16, até 56M†), a
Gripe Espanhola (séc. 20, até 50M†) e o VIH/SIDA (já com perto de 35M†).
As menos mortíferas (raramente atingindo
1M†), nos últimos dois séculos, foram a Cólera, a Febre Amarela, a Gripe
Asiática, a SARS, a MERS, o Ébola, a Gripe Suína e agora o COVID-19.
Enquanto não surgem novos fármacos,
incluindo vacinas, as intervenções no controle das pandemias continuarão a ser
essencialmente não-farmacológicas. Ou seja, a implementação de mecanismos que
bloqueiem ao máximo as cadeias de infeção. Várias formas de prevenção de contágio,
incluindo o isolamento e a quarentena das populações, são os mais utilizados.
A grande questão tem sido sempre saber
durante quanto tempo e qual o nível de isolamento necessário. Cada nova
pandemia exige um acompanhamento rigoroso da sua evolução para tentar perceber
até que ponto, a informação histórica acumulada pode ser útil.
A pandemia associada ao COVID-19 foi
declarada muito recentemente (a 11 de março). Já conhecemos a estrutura do
vírus (assim como das suas variantes genéticas) e algumas das principais vias
de contaminação. Mas temos ainda muitas incógnitas. Quem são os que transmitem
o vírus, mesmo quando assintomáticos, e durante quanto tempo? A que ritmo
estará o vírus a sofrer mutações que o possam tornar mais ou menos virulento?
Por que é que as crianças muito jovens apresentam sintomas menos graves? Qual o
número de infetados abaixo do qual deixará de ser uma pandemia? Etc.
Neste momento exércitos inteiros de
investigadores estão à procura de uma vacina. Mas é evidente que nenhuma vacina
estará no mercado sem ter sido testada rigorosamente em ensaios clínicos. Será
daqui a um ano? Seis meses? Dezoito meses? Três anos?
Enquanto esperamos pelos dados biológicos,
enfrentamos grandes desafios psicológicos e sociológicos. A forma como cada um
de nós encara um novo risco depende de muitos fatores. E a maneira como os
governos lidam com esta multiplicidade de variáveis é crítica para o
fortalecimento das instituições democráticas.
É fundamental percebermos que muitas
decisões terão de ser tomadas na ausência de toda a informação desejada.
O isolamento total e completo de cada
cidadão é praticamente impossível. Mas reduzir até ao limite desejável a
possibilidade de contágio, principalmente dos mais vulneráveis, é o que todos
desejamos. Como é também o desejo de todos os responsáveis de saúde. Só que os
governos têm a responsabilidade adicional de, na medida do possível, manter os
serviços essenciais do país a funcionar. Serviços esses que empregam
trabalhadores nos mais diversos ramos da economia e que também devem ser
protegidos.
E a chave está exatamente na palavra possível.
Se para cada um de nós, a noção do
possível é muito variável, o importante é que possamos manter a nossa confiança
na experiência técnica acumulada dos que ajudam a fundamentar as decisões
políticas. Avaliar de forma continuada as medidas que devem ser tomadas para
lidar com esta pandemia, a nível local, nacional e europeu ou internacional, é
um trabalho complexo e exaustivo. Implica não só acompanhar a progressão do
conhecimento sobre o vírus, como também perceber como é que populações inteiras
lidam com a incerteza.
É minha convicção que Portugal se encontra
numa situação privilegiada para lidar com este desafio. A aposta no
conhecimento que temos feito ao longo das últimas três décadas, assim como o
grande reforço dos últimos anos dado ao Serviço Nacional de Saúde, coloca-nos
numa posição muito especial quando comparamos com muitos outros países. Apesar
da uma literacia em saúde mediana, a maioria dos nossos cidadãos tem consciência
que é através do conhecimento, em todos os domínios, que as soluções serão
encontradas. Domínios esses que incluem as ciências naturais e sociais, mas
também as humanidades, e onde a competência dos nossos profissionais é
claramente reconhecida.
A apreensão que todos sentimos é normal. A
pandemia não vai terminar nem amanhã, nem na semana que vem, nem no mês
seguinte. Teremos de continuar a caminhar de forma atenta, sabendo de antemão
que as estratégias podem ter de ser alteradas a qualquer momento. A coragem
política demonstrada pelas decisões ponderadas e lúcidas tomadas, a todos os
níveis, deve fortalecer a nossa confiança.
Para já, o principal desafio desta
pandemia é o de uma cidadania responsável. Será que estamos todos dispostos a
proteger a saúde dos outros como se fosse a nossa, mesmo se for necessário
assumirmos riscos desconhecidos? Estamos todos envolvidos.
Alexandre Quintanilha
Expresso, 23.03.2020
Lola
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