Profissionais de saúde no Hospital Curry Cabral |
O vírus do bem comum
Vou
trabalhar ao lado dos meus, nos Cuidados Intensivos, com um orgulho que não
cabe em mim por trabalhar na melhor equipa do planeta, para salvar os que estão
entre a vida e morte. Que é o que sempre fizemos e sempre vamos fazer.
Nunca tínhamos ouvido
tanta gente a falar do bem comum. Há um vírus que reforça a fragilidade da vida
humana e há um vírus do bem comum. É incrível como este vírus está a contaminar
tanta gente. É incrível como está a alterar os comportamentos individuais.
É incrível como este vírus julga os que por ele não foram infectados, é
incrível como é altamente contagioso. Castigamos, acusamos, ameaçamos os que
por ele não se deixam infectar. Pedimos ao mundo que nos ajude a gritar aos
berros que é preciso pensar no bem comum.
Mas quanto tempo
durará esta infecção? Será que rapidamente vamos ficar todos imunes?
Eu peço, desde logo,
imensa desculpa por não me conseguir separar em pessoas diferentes, em
pensamentos desconexos da minha realidade, ou em julgamentos parcelados e
incoerentes. Não consigo. A minha opinião sobre esta tragédia mistura-se com as
memórias que teimo em não esquecer.
Não me esqueço que no
Iémen olhei nos olhos famílias inteiras que perderam irmãos, filhos e pais, e
braços e pernas, no meio de milhares de crianças a morrer à fome. Não me
esqueço que no Sudão do Sul todos os dias vi crianças a morrer de malária, e
todos os dias via a dor no olhar das mães a levar os corpos sem vida dos
meninos para casa.
Não me esqueço que na
Síria, no meio das bombas, vi o reaparecimento da poliomielite (outrora
erradicada) que mata ou incapacita crianças para o resto das vidas. Não me
esqueço que no Paquistão, num mês, morreram-me nas mãos dez mulheres por
hemorragia pós-parto. A esmagadora maioria dos médicos da minha área nunca viu
isto uma única vez.
Não me esqueço que o
coronavírus não entra na prisão de Faixa de Gaza, porque também não entra o
vírus do bem comum. Não me esqueço que a duração da(s) guerra(s) do
Afeganistão anda, lado a lado, com a esperança média de vida daquele país.
Não me esqueço do que
já chorei por ver que mais ninguém chora por eles. Não me esqueço que apenas vi
uma pontinha do icebergue, não me esqueço que já andei tantas vezes no limite
da sanidade mental a pedir com jeitinho, sem revolta e sem julgamentos
que pensem no bem comum.
Não me esqueço que
quando me perguntam como são os Cuidados Intensivos nas minhas missões a resposta é: “Não há. Os que deles
precisam, morrem!” Que é exactamente o que vai acontecer quando/se este
coronavírus chegar a uma fatia enormíssima da população mundial, onde esbarra o
vírus do bem comum.
Várias pessoas
dizem-me que a minha experiência em cenários de guerra vai ser muito útil.
Pois. Não sei. O futuro o dirá. É verdade que já vi de muito perto dez das
piores guerras dos últimos tempos. Mas eu nunca fiz parte delas.
Com o meu risco posso
eu bem, e nunca foi a vida dos meus que esteve em risco. As emoções que trago
comigo são das histórias dos outros, que eu tento contar ao mundo. Há uma
gestão de emoções que tem muitas semelhanças, sem dúvida, e espero ser útil
nesse sentido também.
Mas há uma coisa onde
eu encontro um paralelismo inacreditável, no que à gestão de vítimas de uma
guerra diz respeito. Não são as bombas e os tiros que matam. Esses também
matam, mas pouco em termos percentuais. O que mata milhares, e às vezes
milhões, são os danos colaterais. É da pobreza de recursos, de infra-estruturas,
de material e medicamentos para tudo e mais alguma coisa, e da falta de pessoas
válidas para trabalhar, que se morre numa guerra. Isso é que mata 99% das
vítimas de uma guerra. Mas se não houvesse bombas e tiros, não haveria danos
colaterais.
E quais vão ser os
danos colaterais desta “guerra” que vivemos agora?
Há uma falácia no ar,
que isto vão ser duas semanas mais complicadas. Esqueçam isso. Vão ser no
mínimo dois a três meses de clausura. Vai destruir a economia de uma forma que
não tem precedentes. Vão ser empresas a cair como baralho de cartas.
Desemprego, pobreza, fome, agitação social. Os ricos vão ficar menos ricos, os
médios vão aguentar no limite, os pobres vão para a rua. E os que estão na rua
vão morrer à fome. Os mais frágeis são os que vão sofrer mais.
Quando o cinto aperta,
quem mais vai sofrer são as Organizações Não Governamentais. A ajuda
humanitária, a tal do bem comum, é a que mais sofre. A nível local e
internacional. Os pobres, os velhos, os incapacitados, os doentes, etc.,
etc....
Quantas pessoas se mata ao destruir a economia?
Será
que a cura não vai matar muito mais que a doença? Sei que quem tem mais no
bolso vai achar que eu sou um criminoso, e quem já amanhã pode ir viver para
debaixo da ponte vai perceber melhor porque vos questiono. Crucifiquem-me à
vontade por fazer esta pergunta.
Mas vou aceitar. Sou
democrata. Aceito a liderança de quem sabe mais do que eu. Tenho convicções
fortes, mas sempre um espaço grande para, humildemente, poder estar errado. Sou
um jogador de equipa e, na verdade, pouco sei sobre os dados todos desta
equação. Acho que ninguém sabe. E vou trabalhar ao lado dos meus, nos Cuidados
Intensivos, com um orgulho que não cabe em mim por trabalhar na melhor equipa
do planeta, para salvar os que estão entre a vida e morte. Que é o que sempre
fizemos e sempre vamos fazer.
Só que, desta vez, a
trabalhar a dobrar ou a triplicar, a formar à pressa os que puderem ajudar e,
cheios de medo, se a nossa função não estará a pôr em risco as nossas vidas e
daqueles pelos quais dávamos a vida, porque somos o grupo de maior
risco.
Vão ser tempos de
emoções muito fortes, mas o ser humano adapta-se e segue em frente. E das
lágrimas passará aos sorrisos. Eu nem sempre confio em mim, mas confio até ao
fim dos tempos na equipa em que trabalho, pela competência, organização, saber
médico, resiliência, poder de impacto e muita, muita humanidade a cada acção.
De médicos, enfermeiros, auxiliares, profissionais de limpeza, administrativos,
técnicos, farmacêuticos, psicólogos, nutricionistas, e muitos mais que me estou
a esquecer.
Já dei de caras com
o burnout duas vezes na minha vida, no Paquistão e no Iémen, e
garanto-vos que é difícil de gerir as emoções. Falem sobre as vossas
emoções. É bom ver homens e mulheres fortes a chorar.
Mas vamos ver também
que no meio da dor, do egoísmo e da hipocrisia, aparecerá o melhor de muitos
seres humanos, os verdadeiramente bons. E, só por estes, vale a pena ver o
mundo girar. Obrigado por me inspirarem.
Vamos ver como
responde a medicina privada no maior desafio de saúde dos nossos tempos. Para
já tem servido para fazer dinheiro às custas dos testes para ansiosos, testes
estes que fazem muita falta no público. Quando isto passar, não se esqueçam
onde se faz a verdadeira medicina, e cada vez que se alimenta a privada se
destrói o Serviço Nacional de Saúde. Não se esqueçam.
Agora sentimos o que é
estar do lado dos discriminados. Temo que as consequências políticas e
ideológicas vão ser catastróficas. Porque “eles” agora estão
caladinhos, mas depois vão gritar pela culpa dos estrangeiros e dos estranhos.
Dos estranhamente iguais a nós. Veremos o que sobra daqui. O mundo dos que
querem as fronteiras fechadas ou o mundo dos que vêem que estes (e outros)
problemas só se resolvem se pensarmos como unos. Já percebemos que para salvar
o planeta temos de nos unir, talvez agora se veja que nunca haverá qualquer
sustentabilidade com tanta desigualdade.
Já fiz várias
promessas resolutivas a mim próprio para quando isto acabar. Vão doer-me, mas
acho que é pelo melhor. Espero que façam o mesmo, que levem este bem
comum até ao fim dos tempos, que ajudem os que já não estão a receber
salário, que ajudem os que vão para o desemprego, os que morrem à fome, os que
em todas as partes do mundo estão a ser infectados pelo coronavírus, mas não
pelo vírus do bem comum.
Agora que a morte de
tantos nos parece tão próxima, não poupem na bondade, no carinho, no cuidado,
no amor e na compaixão. Não deixem palavras bonitas por dizer, não deixem pazes
por fazer, não deixem que a última palavra tenha sido amarga. Estamos
todos a sofrer.
Façam a economia
girar. Cada vez que lavarem as mãos, abram o vosso coração àqueles que não têm
e que vão ficar sem água em casa. Pensem na saúde como um bem para
todos. Eu vou ao supermercado com calma, comprar o que preciso. E quando
não houver, prometo que vou trabalhar na mesma, com fome. E isto vai durar.
Espero que o vírus do
bem comum tenha vindo para ficar, espero que me
perdoem por dizer a minha opinião mastigada com tantas dores, e espero do fundo
do coração estar errado. Todos somos vítimas das nossas incoerências (eu,
tantas vezes!), mas, num momento de grandes reflexões, façam-nas de coração
aberto, escrevam num papel e façam-nas durar.
Animem-se. O vírus
passa. Esperemos que o bem comum não.
Dr. Gustavo Carona
16 de Março de 2020, 17:55
Farmácia na Polónia |
Lola
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