Análise lógica do poema “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”, de Alberto Caeiro
O Tejo é mais belo que o rio que
corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
O poema começa mal, com uma
contradição. Mas, pensa o leitor benévolo, talvez a intenção seja introduzir
uma grande ideia, “grande” no sentido de “contra-intuitiva”, que pareça um
paradoxo mas afinal não o seja. Vejamos.
Porque o Tejo não é o rio que corre
pela minha aldeia,
Surge neste verso uma tentativa de
explicar o paradoxo anterior, como se um paradoxo se pudesse tornar verdadeiro
com uma explicação. Podia ser ao menos uma explicação subtil, que confundisse o
leitor exigindo-lhe criatividade para desvendar a falácia; mas não é porque
compara conceitos demasiado distintos: beleza e rio.
Ele afirma que o Tejo não é mais
belo que o rio que corre pela sua aldeia porque não é esse rio. Mas e se fosse,
seria mais belo que ele próprio?
Talvez o poeta queira mostrar, no
fundo e sem jeito, que não há comparação entre o Tejo e o rio que corre pela
sua aldeia. Mas então, pergunto eu, porque é que os compara ao longo de quase
todo o poema?
O Tejo tem grande navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
Depreende-se daqui que o poeta
pensa que todas as pessoas, sem excepção, sabem que o Tejo termina no mar (que
não é um mar e sim um oceano), mas que poucas sabem que todos os rios terminam
em mares e oceanos. O poeta julga que o destino do rio da sua aldeia é secreto, um
conhecimento a que só ele e uns poucos têm acesso, apesar de haver uma regra
geral que se lhe pode aplicar para obter esse conhecimento e que é aprendida na
terceira classe.
É um delírio poético, poder-se-ia
dizer… Mas o que é que o poema tem que conduza a algum delírio, se ainda não
fez até aqui senão constatar o óbvio depois de ter lançado um paradoxo, também
ele fácil de desmanchar?
E donde ele vem.
É da nascente. Para se achar a
nascente de um rio, basta segui-lo no sentido contrário ao da água. Para o
poeta isso é ainda um segredo bem guardado. É possível que acredite que os
livros da primária não fazem parte de um plano nacional de educação, sendo
exclusivamente distribuídos na sua aldeia. Talvez pense que é um imperativo
político, ou um desígnio divino, que aquela aldeia apenas possua os segredos
profundos da escola primária. Ou talvez não passe de um caso de demência.
Vejamos como prossegue:
E por isso, porque pertence a menos
gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Mais um engano grosseiro: um rio
pouco conhecido não pertence a menos gente do que um mais conhecido. Todos os
rios, neste país, pertencem ao Estado Português – ou pelo menos a parte deles
que atravessa o território nacional.
E mais livre que o Tejo não será,
já que está sujeito às mesmas leis físicas, como todos os outros rios
existentes no mundo. Contudo o verso parece sugerir uma atrocidade geral: que
as coisas que pertencem a menos gente são, por isso, mais livres. Mas como é
que, digamos, uma árvore é mais livre se pertencer a um proprietário do que uma
que pertence a dez? Tem mais liberdade para fazer o quê exactamente? Decidir
quantos frutos é que quer gerar por ano? Erguer as raizes e ir ao shopping? A
mesma questão se aplica aos rios ou a outra coisa qualquer. O que é um rio mais
livre? É um rio que pode decidir correr para a nascente ou subir montanhas?
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
Partindo destes versos coloquei a
questão a um aluno avançado, já na quarta classe, e ele sabiamente respondeu:
“se todos os rios vão dar ao oceano, e se além do oceano há a América e a
fortuna, então o rio da aldeia desse palerma também vai lá dar, se tiver água
suficiente para chegar a algum lado”. Assim é.
O rio da minha aldeia não faz pensar
em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Tendo começado com uma incoerência,
para o poeta é lógico terminar com outra. Depois de 20 versos que orbitam em
torno do rio da sua aldeia, decide concluir que o dito curso de água não faz
pensar em nada. Absolutamente nada – nem mesmo neste poema, que forçosamente
terá sido escrito a pensar noutro rio qualquer.
Outra possibilidade é o autor estar
a afirmar que todo o poema foi escrito sem pensar. Mas se foi escrito sem
pensar porque haveremos de acreditar no verso que indica que foi escrito sem
pensar?
As agressões à lógica vão-se
revelando como matrioshkas. Mas não é apenas a lógica que sai atingida deste
aglomerado incoerente de palavras; atente-se na amarga generalização aqui
implícita: “não faz pensar em nada”. O poeta não escreve “não me faz pensar em nada”, ou seja, generaliza a torpeza mental a
todos os seres pensantes, nos quais o leitor estará incluído. O que ele diz, de
forma pouco subtil, é que nenhuma pessoa tem capacidade para pensar em alguma
coisa relacionada com o rio da sua aldeia – nenhuma pessoa excepto ele mesmo,
que não sem arrogância e presunção prova que o consegue escrevendo estes versos
transbordantes de atropelos à lógica e generalizações hostis.
Alberto Caeiro é um artista cuja
agressividade e narcisismo só são superados pela ausência de raciocínio lógico.
Criado nos pastos, transporta a sua rudeza selvagem para uma poesia de índole
violenta e absurda coberta por uma capa (rota) de falsa e bucólica inocência. É
neste sentido um grande poeta. Os seus versos são como enxadas atiradas à
cabeça dos intelectuais citadinos que, com os óculos partidos, sorriem sem dentes
por sentir a paz que imaginam existir no espírito simples mas universal de
Caeiro, algures entre as ovelhas e as estrelas, numa qualquer província ao ar
livre mais quente e saudável do que os seus quartos sombrios.
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