segunda-feira, 2 de março de 2015

Dignidade Humana




Dignidade Humana



REFLEXÃO FILOSÓFICA 

O conceito de dignidade humana tem fundamentos na filosofia do mundo ocidental. Embora a história nos informe que nem sempre a dignidade humana foi respeitada, ou mesmo objecto de normas éticas e/ou legais de protecção, o certo é que a filosofia ocidental já se tinha preocupado com esta questão. Infelizmente, foi necessário um conflito mundial para uma tomada de consciência que levou à proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.

 E, tal como se demonstra pela Convenção dos Direitos Humanos e da Biomedicina, assinada em 1997, foi necessário quase meio século para que os países signatários da mesma chegassem à fase da aplicação da mesma à medicina. 

A História, desde a Antiguidade Oriental até à Idade Contemporânea, demonstra que nem sempre houve reconhecimento do primado do ser humano. Desde a escravatura, reinante nas civilizações orientais, clássicas e europeias, até às perseguições da Inquisição, a discriminação social foi notória e pacificamente aceite pelos filósofos coevos.

 Já Aristóteles (384-322 a. C.) e S. Agostinho (354- 430) se tinham debruçado sobre a distinção entre coisas, animais e seres humanos. 

Deve-se a Immanuel Kant (1724-1804), através das suas críticas e análises sobre as possibilidades do conhecimento, nomeadamente a partir das questões: o que posso conhecer ?, o que posso fazer ? e o que posso esperar ? na Crítica da Razão Pura, na Crítica da Razão Prática e na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, uma das contribuições mais decisivas para o conceito de dignidade humana. 

"No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade" (Kant, 1991: 77) 

Como o próprio Kant reconheceu, as respostas às questões colocadas dependiam do nosso conhecimento da natureza do próprio ser humano. O que posso conhecer, fazer ou esperar, depende, em última análise, da minha própria condição humana. Age de tal modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na do outro, sempre e ao mesmo tempo, como um fim e nunca simplesmente como um meio. (Kant) "Para [Kant], o ser humano é um valor absoluto, fim em si mesmo, porque dotado de razão. A sua autonomia, porque ser racional, é a raiz da 9 dignidade, pois é ela que faz do homem um fim em si mesmo" (Roque Cabral, 1998: 33). 

Devemos ainda pensar em dois conceitos: em Kant é principalmente o conceito de respeito que é sublinhado e em Hegel o conceito de reconhecimento, mais básico do que o de respeito. Para ser humano é preciso ser reconhecido enquanto tal e não somente reconhecido como organismo biológico. Por exemplo, se a criança não é reconhecida como aquilo para que tem capacidade (autonomia, liberdade) mas que ainda não realiza, não é considerada como um ser digno. É na relação com o outro que se é reconhecido como ser humano. 

A dignidade é, neste sentido, o efeito deste reconhecimento e a sua fundamentação e neste reconhecimento recíproco o ser humano torna-se capaz de liberdade. Aprendemos com Hegel que todo o processo da cultura é um processo no qual procuramos aceder a níveis cada vez mais profundos de reconhecimento da igualdade. Neste sentido enquanto o outro não for totalmente livre, eu não sou livre.

 Em resumo, a dignidade do ser humano repousa sobre o seu ser real, enquanto esta realidade é capacidade daquilo que ele pode ser, e não apenas sobre o que ele faz efectivamente desta capacidade. Depois da capacidade de autonomia, de autenticidade e de liberdade mediante o reconhecimento do outro, há um outro momento da fundamentação da dignidade: o ser humano é capaz de se elevar acima das circunstâncias imediatas do seu ambiente para colocar questões sobre o sentido do real. Nesta perspectiva o ser humano é atravessado pela "visée" da verdade. 

Temos porém de reconhecer que nós, como indivíduos, em referência às questões acima enunciadas (o que posso conhecer, o que posso fazer, o que posso esperar), somos condicionados não só pela nossa condição biológica, como também pelo contexto sócio-cultural em que nos inserimos. 

Nas raízes filosóficas do conceito de dignidade humana, embora correndo o risco de omitir outros nomes, cremos ser de referir John Stuart Mill (1806-1873). Não resistimos a transcrever uma passagem do seu livro Sobre a Liberdade: "Não é procurando reduzir à uniformidade o que é individualidade, mas cultivando esta, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses de terceiros, que os seres humanos se tornam dignos da sua condição. Nos trabalhos que produzem, contribuem para o enriquecimento da própria sociedade de que fazem parte. Assim tornarão esta mais útil e profícua, e eles próprios mais orgulhosos de dela fazerem parte. Nesta medida, em proporção com a respectiva contribuição, cada pessoa sentir-se-á mais válida para consigo mesma e, nessa medida, mais útil para os outros."

Em resumo, o termo Dignidade Humana é o reconhecimento de um valor. É um princípio moral baseado na finalidade do ser humano e não na sua utilização como um meio. Isso quer dizer que a Dignidade Humana estaria baseada na própria natureza da espécie humana a qual inclui, normalmente, manifestações de racionalidade, de liberdade e de finalidade em si, que fazem do ser humano um ente em permanente desenvolvimento na procura da realização de si próprio. 

Esse projecto de auto-realização exige, da parte de outros, reconhecimento, respeito, liberdade de acção e não instrumentalização da pessoa. Essa auto-realização pessoal, que seria o objecto e a razão da dignidade, só é possível através da solidariedade ontológica com todos os membros da nossa espécie. Tudo o que somos é devido a outros que se debruçaram sobre nós e nos transmitiram uma língua, uma cultura, uma série de tradições e princípios. 

Uma vez que fomos constituídos por esta solidariedade ontológica da raça humana e estamos inevitavelmente mergulhados nela, realizamo-nos a nós próprios através da relação e ajuda ao outro. Não respeitaríamos a dignidade dos outros se não a respeitássemos no outro. 

Na ética moderna, a dignidade humana exprime-se em um 'nós-humanidade' que não é a soma dos 'eus' individuais. Segundo Levinas, "'nós' não é o plural de 'eu'". O ponto de partida para a expressão dessa dignidade situa-se na totalidade dos seres humanos e por isso foi possível afirmar-se que enquanto um ser humano não for livre, nenhum ser humano será livre. A socialização não é porém uma diluição do 'eu' no conjunto da comunidade humana. 

Como vemos todos os dias, todo o ser humano aspira a repetir o seu "paraíso perdido", que foi a fusão total com a mãe. Daí a procura, por vezes desenfreada, de uma relação dual. Ora, o indivíduo acede à sua condição de ser único quando torna possível essa passagem da fusão com a mãe à autonomia. 

É a aprendizagem do 'eu/tu' que Martin Buber tão eloquentemente descreveu e onde alicerçou as condições indispensáveis para a alteridade efectiva. 

Quanto maior e mais alargado for o número de pessoas com quem estabelecemos a relação 'tu/eu', maior é a nossa participação na noosfera e mais forte é a nossa dignidade humana. 

Foi esta noção de uma camada de humanos que envolve toda a Terra que Teilhard de Chardin chamou a noosfera. Ela é interdependente da biosfera e da atmosfera. A evidência desta afirmação encontra-se no nosso quotidiano (vivemos das espécies biológicas e respiramos porque imersos na atmosfera). Mas também a encontramos em certas manifestações religiosas que têm marcado profundamente algumas civilizações. 

Assim, por exemplo, no Budismo não há separação entre o humano e toda a realidade natural que o rodeia. No nosso tempo, esta interdependência é sentida através da acção nefasta do humano sobre a biosfera e sobre a atmosfera. Daí poder inferir-se que a contribuição para a integridade e diversidade das espécies biológicas e para o equilíbrio da atmosfera é, afinal, também contribuir para a defesa da dignidade humana. (...)



CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA
In Reflexão ética sobre a dignidade humana
de Janeiro de 1999


Ler o documento na integra:





Do filme Filhos da Esperança, 1996
“Na solidão, o solitário se devora a si mesmo; Na multidão devoram-no inúmeros. 

Então escolhe.” (Friedrich Nietzsche)









                                               Lola







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