terça-feira, 19 de maio de 2015

O Kant de John Rawls





O KANT DE JOHN RAWLS: APROPRIAÇÕES DA MORAL KANTIANA NA JUSTIÇA COMO EQUIDADE


RESUMO

 Neste trabalho, pretendo expor algumas das apropriações que John Rawls faz da filosofia moral de Kant em sua obra Uma Teoria da Justiça, bem como discutir a necessidade e a legitimidade dessas apropriações. Para tal proposta, farei, a princípio, uma explanação dos conceitos de posição original, véu de ignorância e princípios de justiça, para então aproximá-los dos conceitos kantianos de autonomia, imperativo categórico e outros elementos presentes na moral de Kant. 

Minha tese é a de que Rawls compromete em partes a interpretação de sua teoria da justiça como equidade, sobretudo no que se refere à deliberação das partes na posição original, ao pretender que a escolha dos princípios de justiça, sob as restrições do véu de ignorância, possa ser considerada autônoma em termos kantianos, tal como propõe no §40. 

No entanto, o autor parece lograr êxito ao defender o princípio da diferença e a cooperação social quando faz uso da segunda formulação do imperativo categórico e do dever de auxílio mútuo, respectivamente

. Palavras chave: posição original, autonomia, imperativo categórico. 296

Introdução

Neste trabalho, pretendo expor algumas das apropriações que John Rawls faz da teoria moral de Kant em sua obra Uma Teoria da Justiça, bem como discutir se essas apropriações são legítimas, ou seja, se não se afastam muito da proposta do filósofo de Königsberg, e se não acabam até mesmo por prejudicar em alguns pontos a interpretação da teoria da justiça como equidade.

Sabe-se que John Rawls é leitor de Kant, pois há várias referências a ele não só na obra acima citada, mas também em seu Liberalismo Político e em diversos artigos, como “O construtivismo kantiano na teoria moral”.

Em sua História da Filosofia Moral, Rawls nos apresenta uma visão panorâmica da moral kantiana, discutindo pontos importantes da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Metafísica dos Costumes e Crítica da Razão Prática. 

Em Uma Teoria da Justiça, há referências a Kant em todos os capítulos, sobretudo na seção 40 do Capítulo IV, quando Rawls tenta oferecer uma interpretação na qual as partes da posição original caracterizariam pessoas autônomas, que intentam dar expressão a sua natureza enquanto seres racionais livres e iguais, e os princípios de justiça que se assemelhariam aos imperativos categóricos, por serem frutos de tal deliberação e por sua necessidade de aceitação universal.

Também analisarei outras passagens das seções 29 e 51, onde Rawls defende, com base no imperativo categórico, a cooperação social, o princípio da diferença e o dever natural de auxílio mútuo. 

Antes, porém, de expor tais aproximações, faz-se necessária uma elucidação dos conceitos básicos da teoria da justiça rawlsiana, que são: 

posição original,
véu de ignorância, 
equilíbrio reflexivo  
princípios de justiça.

Esses conceitos serão discutidos à luz do contratualismo, tal como o próprio Rawls sugere. Na medida em que o texto segue, algumas discussões, pormenores serão inevitavelmente deixadas de lado.

A análise das apropriações que Rawls faz de Kant não exige mais do que uma exposição geral das ideias contidas em Uma Teoria da Justiça. 297




 1. A justiça rawlsiana e o contratualismo 

Quando se fala em contratualismo, imediatamente os nomes de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant nos vêm à mente. 

É certo que John Rawls pode ser considerado um herdeiro direto destes autores, em especial dos três últimos, mas sua proposta se afasta da dos modernos em muitos aspectos.

Em primeiro lugar, John Rawls não está preocupado em legitimar alguma forma de governo ou explicar como a sociedade teve sua origem. Sua preocupação é apenas com a justiça; mais especificamente, com a justiça no âmbito social, ou “o modo como as principais instituições sociais distribuem os direitos e os deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens decorrentes da cooperação social” (RAWLS, 2008, p. 8). Seu alvo é a justiça em regimes de democracia constitucional, o que não quer dizer que sua filosofia não seja aplicável a outras formas de governo, nem que estas não possam ser justas.

Em segundo lugar, precisamos substituir o já conhecido termo “estado de natureza” pelo novo “posição original”. Esta posição é puramente hipotética e procedimental, onde pessoas encontram-se numa situação de igualdade para apresentar e defender quais princípios de justiça elas acreditam ser mais razoáveis para nortear seu convívio na sociedade. 

A deliberação acerca desses princípios está sujeita a todo tipo de interferências: desde o desejo das partes em garantir maiores vantagens para si próprias como interferências de concepções de bem que elas compartilham e perspectivas de vida que possuem, entre outras. 

Sendo assim, para assegurar que os princípios escolhidos sejam imparciais e aceitos por todos, Rawls faz uso de um artifício denominado véu de ignorância. Sob este véu, no momento em que deliberam, as partes desconhecem a real situação que ocupam na sociedade. 

Vale também lembrar que as pessoas são mutuamente desinteressadas, ou seja, suas preocupações se restringem apenas a que posição elas próprias, e não as outras partes da posição original, ocupam na sociedade civil. 298 Assim, parece razoável e de modo geral aceitável que ninguém seja favorecido ou desfavorecido pelo acaso ou pelas circunstâncias sociais na escolha dos princípios. 

Também parece haver consenso geral de que deve ser impossível adaptar os princípios às circunstâncias de casos pessoais. Também devemos garantir que determinadas inclinações e aspirações e concepções individuais do bem não tenham influência sobre os princípios adotados. [...] 

Por exemplo, se determinado homem soubesse que era rico, poderia achar razoável defender o princípio de que os diversos impostos em favor do bem-estar social fossem considerados injustos; se ele soubesse que era pobre, seria bem provável que propusesse o princípio oposto. (Ibid., p. 22) Todavia, essas restrições impostas pelo véu de ignorância não são fixas. 

Na medida em que avançamos na escolha dos princípios, pode-se um verificar desequilíbrio destes com nossas crenças morais sobre o que é justo. É certo que, a princípio, devemos nos apoiar sobre tais concepções, pois são de ampla aceitação. Por exemplo, um princípio que engloba uma intuição moral que rejeita a escravidão pode parecer justo e ao mesmo tempo útil para tal proposta, se sua abrangência for tal que ofereça uma luz quanto à distribuição dos bens sociais decorrentes da cooperação social. 

No entanto, se ele entrar em discordância com alguma outra crença moral, temos duas escolhas: podemos abandonar ou reformular tais crenças ou modificar as restrições da posição original. 

Com esses avanços e recuos, às vezes alterando as condições das circunstâncias contratuais, outras vezes modificando os nossos juízos para que se adaptem aos princípios, suponho que acabemos por encontrar uma descrição da situação inicial que tanto expresse condições razoáveis como gere princípios que combinem com nossos juízos ponderados devidamente apurados e ajustados. 

Denomino esse estado de coisas equilíbrio reflexivo (Ibid., p.25). Ao atingirmos tal estado, cremos que as partes serão capazes de escolher princípios de justiça razoáveis e reconhecidamente aceitos por todos. Sobre este ponto, cabem aqui três observações: em primeiro lugar, o equilíbrio 299 reflexivo é o que caracteriza o coerentismo interno da filosofia de Rawls. Não há nenhuma lei ou preceito tomado como verdade axiomática em que se apoie para deduzir outras verdades. Isto já caracteriza um afastamento grande da moral kantiana, que se funda num fato da razão e aceita as leis morais como verdades a priori. Em segundo lugar, esse procedimento contratualista tem por objetivo a construção de princípios de justiça para todo um ordenamento social. 

Uma concepção de justiça, portanto, não é dada: o que temos são intuições morais acerca do certo e do errado, do justo e do injusto, do bem e do mal, etc. O conhecimento dessa concepção só se dá através dessa construção hipotética, que tem também, entre outros objetivos, uma aceitação geral dos princípios alcançados. Por outro lado, o próprio Rawls descarta a possibilidade de elaborar todo esse processo de construção dos princípios e de adequação de nossas crenças morais às restrições da posição original e do véu de ignorância.

 Dado que as restrições impostas ao véu de ignorância são contingentes e que há grande desacordo entre as pessoas no que se refere às suas crenças morais, é difícil acreditar que tal processo de construção implique necessariamente nos mesmos princípios de justiça. 

Assim, se por um lado há uma generalização “forçada” de preceitos morais, por outro, é possível que toda a situação contratual sirva apenas como uma justificativa para uma intuição de justiça pré-concebida por Rawls.

2. As cláusulas do contrato: os dois princípios de justiça

Os princípios da justiça propostos por Rawls são dois: o primeiro é chamado de princípio da liberdade igual; o segundo pode ser dividido em princípio da diferença e princípio da igualdade equitativa de oportunidades. Sua exposição definitiva ocorre na seção 46 e é a que segue: Primeiro princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema similar de liberdade para todos. 300 Segundo princípio: as desigualdades econômicas e sociais devem ser dispostas de modo a que tanto: (a) se estabeleçam para o máximo benefício possível dos menos favorecidos [...] como (b) estejam vinculadas a cargos e posições abertas a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades. (RAWLS, 2008, p. 376) Há, obviamente, uma maneira desses princípios se relacionar. Para esclarecer tal questão, Rawls elabora um sistema de prioridade entre eles: o primeiro princípio antecede o segundo, e a igualdade de oportunidades precede o princípio da diferença. A razão disto é que Rawls não aceita uma restrição das liberdades básicas em troca de um maior favorecimento socioeconômico ou mais facilidade de acesso a cargos públicos. Estas liberdades compreendem: [...] a liberdade política (o direito ao voto e a exercer cargo público) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; a liberdade individual, que compreende a proteção psicológica, a agressão e a mutilação (integridade da pessoa); o direito à propriedade pessoal e a proteção contra a prisão e detenção arbitrárias, segundo o conceito do Estado de Direito (Ibid., p. 74). Dizer que há uma ordenação léxica, ou seja, de prioridade entre os princípios significa que o primeiro tem um peso absoluto com relação ao segundo e assim por diante. As questões concernentes ao segundo princípio só são discutidas se o primeiro já for totalmente satisfeito ou se não se a aplicar à questão em cheque. 

Por dar preferência à liberdade e à igualdade de oportunidades, Rawls é visto como um liberal. No entanto, ele possui preocupações igualitárias, visto que o princípio da diferença busca atenuar desigualdades socio econômicas, ou ao menos dispô-las de forma que os menos favorecidos tenham alguma vantagem com isso. Conforme disse anteriormente, discussões pormenorizadas como o princípio de poupança justa, princípio da eficiência e da maximização da soma de vantagens não serão tratadas aqui. 

Por razões óbvias, também deixei de lado as discussões acerca do princípio da utilidade e do intuicionismo. Todos esses pontos merecem uma explanação mais cuidadosa; tratar destes assuntos iria muito além da proposta a que o texto se submete. 301 






Rawls e a filosofia moral de Kant


Dadas as explicações anteriores, passemos à análise da apropriação dos termos que John Rawls faz da filosofia moral de Kant.

3. Autonomia e posição original

“Não há novidade alguma na afirmação de que os princípios morais são gerais e universais; e, como já vimos, essas condições, de qualquer modo, não nos levam muito longe. É impossível construir uma teoria moral sobre uma base tão exígua” (Ibid., p.311-12).
Este comentário aparece no início da seção 40 - 

A interpretação kantiana da justiça como equidade - e já nos traz um esboço da leitura rawlsiana da ética de Kant. John Rawls parte do pressuposto que as pessoas são seres de natureza racional, ou seja, acredita que princípios de justiça podem ser objetos de escolha racional. Também acredita que sendo a razão o móbil de nossas escolhas, damos expressão a nossa liberdade.

Como essas características estão presentes em todos os seres humanos, somos todos iguais, ao menos nesses aspectos. Esse esboço, todavia, não é tão claro em Uma Teoria da Justiça.

 A primeira divergência entre os autores se refere à existência de princípios morais (e de justiça) a priori e independentes da experiência e das contingências da vida humana. Para Rawls, somos pessoas capazes de ter desejos racionais, como desejar certos bens primários (liberdades, oportunidades, rendimentos decorrentes da cooperação social, etc.), ter determinados objetivos de vida e compartilhar de alguma concepção de bem, bem como de uma concepção de justiça. 

A deliberação sob o véu de ignorância não priva o conhecimento das sujeições e contingências da vida cotidiana, mas o conhecimento de nossa ocupação na sociedade e nosso posicionamento com relação a essas contingências. 

Como as partes estão todas sob as mesmas restrições, o desconhecimento dessas contingências nos leva a uma deliberação racional, igual e livre. 

O Kant de Rawls crê que uma ação autônoma ocorre apenas enquanto expressão dessa natureza racional igual e livre. Sabe-se, no entanto, que não é essa a proposta do filósofo alemão. 

Kant não discordaria de que uma ação autônoma é a expressão dessa natureza, mas reduzi-la a esses pontos caracteriza 302 um recorte muito grande da moral de Kant, recorte este que obscurece o real sentido do termo autonomia.

Na visão do filósofo de Königsberg, existem leis morais a priori, independentes de toda experiência e de qualquer contingência da vida humana. A existência desses princípios caracteriza um fato da razão pura prática. Da existência dessas leis provém a necessidade das ações em seu cumprimento.

 “O homem, com efeito, afetado por tantas inclinações, é na verdade capaz de conceber a ideia de uma razão pura prática, mas não é tão facilmente dotado de força necessária para tornar eficaz in concreto no seu comportamento” (KANT, 1974, p.199).

O papel de nossa razão, para Kant, é o de formar uma boa vontade. Nela está contida o desejo. O arbítrio, na medida em que determina a si mesmo com princípios puros, é chamado de livre-arbítrio e implica boa vontade. Em outras palavras, o arbítrio que se submete a lei moral por dever, ou seja, pela necessidade mesma dessa sujeição em respeito a essa lei, é o arbítrio livre. A distinção entre vontade e arbítrio só aparece na introdução à Metafísica dos Costumes. No entanto, um arbítrio que determina a si mesmo caracteriza a independência da vontade de impulsos sensíveis. 

Em outras palavras, uma vontade livre é constituída necessariamente, porém não exclusivamente, de um arbítrio autônomo. “[...] que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, isto é, a propriedade da vontade de ser lei para si mesma? [...] assim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa” (Ibid., p.243).

 Para Kant, portanto, só há autonomia numa ação cuja máxima respeita a lei moral. Rawls, além de desconsiderar os pontos supracitados, ainda precisa de vários acréscimos, como as caracterizações da posição original e do véu de ignorância, para sustentar a autonomia das partes.

Assim sendo, qual a necessidade do paralelo com Kant?

Rawls, na medida em que procura se afastar de uma fundamentação metafísica dos princípios de justiça, afasta-se também de uma concepção mais profunda de pessoa. A interpretação empírica da autonomia kantiana não auxilia o entendimento, por permitir que uma série de problemas a 303 esse respeito sejam levantados, tais como os que acima esboço, e talvez a proposta de Rawls manteria seu valor e independência sem tal aproximação.


4. O imperativo categórico e a cooperação social

 Kant nos dá um exemplo interessantíssimo na segunda seção de sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Deve um homem próspero auxiliar a outros em dificuldade? Segundo Kant, não é possível querer que um princípio de não cooperação valha como uma lei de natureza, visto que noutro momento a pessoa pode estar numa situação semelhante, ou seja, na esperança de auxílio (Ibid., p.225). 

Assim diz a segunda formulação do imperativo categórico de Kant: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (Ibid., p.229). 

Tratando do exemplo acima, Kant afirma que deve haver uma identificação dos objetivos de outrem com os meus próprios, visto que o fim natural de todos os homens é a felicidade. Não contribuir para a realização desses fins significa ignorar a humanidade como fim em si mesma. 

Rawls serve-se dessa formulação em sua obra magna na seção 29, onde expõe alguns dos seus principais argumentos a favor dos dois princípios da justiça. No que se refere a essa apropriação, é também uma interpretação de Kant à luz de seu contratualismo, mas não se distancia da doutrina originalmente proposta pelo filósofo alemão. Pelo contrário, neste caso, o exemplo de Rawls permanece muito próximo à formulação de Kant– ao menos no que tange à sua filosofia moral– e não engendra nenhum abandono à doutrina originalmente proposta. 

Vejamos: Na interpretação contratualista, tratar os homens como fins em si mesmos implica, no mínimo, tratá- los segundo os princípios com os quais todos concordariam numa situação original de igualdade. [...] significa aceitar abdicar de ganhos que não contribuem para as expectativas de todos. Em contraste, considerar as pessoas como meios significa se dispor a impor perspectivas de vida 304 ainda mais baixas às pessoas menos favorecidas (RAWLS, 2008, p.220-21). 

Na medida em que as partes desconhecem a real situação que ocupam na sociedade, um sistema de cooperação social se aparenta mais vantajoso para todos. Em termos reais, a probabilidade numérica de fazer parte da parcela menos favorecida economicamente da sociedade é maior.

 Assim, embora alguns possam querer “arriscar” uma vantagem maior para si, é racional que busquem maximizar o bem-estar e as condições de vida dos pertencentes dessa parcela, pois podem pertencer a ela. 

Nas seções 29 a 31 da segunda parte da Metafísica dos Costumes1 , Kant deixa clara a obrigatoriedade moral do dever de beneficência, correspondente ao dever rawlsiano de auxílio mútuo. E esse dever, além de universal, deve ser público. Com tais considerações, é possível afirmar que tanto Rawls quanto Kant concordariam que a cooperação social é um dever de todos os cidadãos2 . 

Sobre este ponto, resta ainda uma questão a ser levantada quanto às exigências morais e legais. Kant elabora, na introdução à Metafísica dos Costumes, uma distinção crucial: “A coincidência de uma ação com a lei do dever é a legalidade (legalitas) – a da máxima da ação com a lei é a moralidade (moralitas) da mesma” (KANT, 2004, p. 31). Há várias distinções feitas por Kant, em especial no tocante às leis (externas, práticas, morais, positivas, etc). 

Não me atentarei a todos estes os pormenores. O importante aqui é ressaltar aqui que, em termos kantianos, as exigências do princípio da diferença não se restringem apenas ao âmbito legal (ou jurídico), mas adentram no âmbito moral (ou ético). Em outras palavras, ao aceitar que o dever de auxílio mútuo deva ser uma exigência não apenas moral, mas também jurídica, Rawls está assumindo que os cidadãos devam partilhar de uma mesma concepção de bem, ou de uma mesma “doutrina abrangente”. 1 Nesta referência, faço uso da tradução de Edson Bini. 

Em todas as outras referências, a menção é apenas à primeira parte da Metafísica dos Costumes, intitulada Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito e cuja tradução foi realizada por Artur Morão. 2 Rawls estava ciente disso. Ver notas 8 da seção 21 de (p.161) e nota 4 da seção 51 (p.422) de Uma Teoria da Justiça. 305 Esta discussão pode se estender por diversas vias. Por exemplo, pode-se alegar que a exigência da cooperação social pelo princípio da diferença justifica-se apenas prudencialmente e que as partes da posição original escolheriam a cooperação social apenas como uma forma de maximização do bem-estar, aproximando-se uma visão utilitarista. 

Por outro lado, poder-se-ia analisar se o abandono dessa “doutrina abrangente” em O Liberalismo Político resulta também no abandono do princípio da diferença, e de que forma Rawls trata a cooperação social nos escritos posteriores a Uma Teoria da Justiça. No entanto, alguns pontos são claros. Rawls parece não levar em consideração a distinção de Kant entre permissões legais e exigências morais, como bem observa Pavão: “Adotando os princípios da filosofia jurídica de Kant, pode-se afirmar que, embora eticamente obrigatória, a ajuda aos pobres não é juridicamente obrigatória, sendo permitido, pois, não ajudar aos pobres” (PAVÃO, 2011, p. 12-13). No entanto, a formulação do princípio da diferença é justificável, do ponto de vista moral, através do imperativo categórico e de outras premissas da filosofia moral de Kant. Saber se este princípio está de acordo com a filosofia jurídica do filósofo de Königsberg, ou se há outras formas de justificar a distribuição de bens e vantagens através de um sistema de cooperação social resulta em outros problemas que não serão discutidos aqui. 

5. Considerações finais 

Sabemos que Rawls, como já foi dito no início do texto, foi um exímio leitor de Kant. Uso aqui o adjetivo “exímio”, pois além de aprofundar e discutir os principais pontos da filosofia moral de Kant em sua História da Filosofia Moral, o filósofo norte-americano ainda serve-se de vários aspectos da doutrina kantiana em sua obra Uma Teoria da Justiça. Essas apropriações renderam a Rawls inúmeras críticas e qualificações, dentre elas, o adjetivo de “kantiano”. Posteriormente, em seu artigo “O construtivismo kantiano na teoria moral”, o filósofo, visando se defender de possíveis críticas de índole kantiana, faz questão de posicionar-se sobre este adjetivo: 306 A teoria da justiça como equidade, evidentemente, não é uma teoria kantiana no sentido estrito. Ela se afasta do texto de Kant em inúmeros pontos. 

O adjetivo kantiano exprime apenas uma analogia, não uma identidade; ele indica que minha doutrina se parece, em boa parte, com a de Kant, e isso se dá a respeito de muitos pontos fundamentais, pelo que está bem mais próxima dela do que das outras doutrinas morais tradicionais que nos servem como termos de comparação (RAWLS, 2002, p.48). As críticas que dirijo a Rawls neste texto não são necessariamente de índole kantiana. Meu objetivo não foi verificar a consistência do pensamento de Rawls com base na filosofia moral ou jurídica de Kant, mas contrapor as duas teorias e verificar sob quais condições a analogia com Kant foi bem sucedida e sob quais não foi. 

Embora, como já disse, eu creia que a teoria da justiça como equidade de Rawls mantenha seu valor independentemente de paralelos com a doutrina de Kant (ou de qualquer outro autor), a analogia da segunda formulação do imperativo categórico com o princípio da diferença e com o dever de auxílio mútuo foi suficiente para justificar, ao leitor leigo de Kant, a moralidade da cooperação social.

 Entretanto, a apropriação do termo “autonomia” tal como proposto na seção 40 de Uma Teoria da Justiça se apresentou distante demais da doutrina originalmente proposta por Kant, além de conter inúmeros acréscimos. Penso, nesse caso, que uma definição do termo autonomia com base no conceito de pessoa seria suficiente para as pretensões almejadas na justiça como equidade. 307 6.

 Referências Bibliográficas 

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. In: Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 195-256.
 ______. Metafísica dos Costumes Primeira Parte: Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2004. PAVÃO, Aguinaldo. “Crítica aos princípios da teoria da justiça como equidade de Rawls a partir da filosofia jurídica e política de Kant”. Texto não publicado, 2011. RAWLS, John. História da Filosofia Moral. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
 ______. O construtivismo kantiano na teoria moral. In: 
______. Justiça e Democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 43- 140.
 ______.O Liberalismo Político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 
______. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Jussara Simões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.


Danilo de Oliveira Caretta Orientador: Prof. Dr. Aguinaldo Pavão 

Tirado daqui


Ver, também 

http://link.springer.com/article/10.1007%2FBF00147730#page-1

                                               Lola


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