quarta-feira, 8 de março de 2023

Moralidade: o que é?

 


O que é a moralidade?


Não estamos a discutir um tema sem importância, mas sim como devemos viver.

Sócrates, na República de Platão (ca. 390 a.C.)


1. O problema da definição

A filosofia moral é a tentativa de ganhar uma compreensão sistemática da natureza da moralidade e do que esta requer de nós — ou, nas palavras de Sócrates, de “como devemos viver”, e porquê. Seria útil se pudéssemos começar com uma definição simples e incontroversa de moralidade, mas isso é impossível. Há muitas teorias rivais, cada uma expondo uma concepção diferente do que significa viver moralmente, e qualquer definição que vá além da formulação simples de Sócrates é susceptível de ofender uma ou outra dessas teorias.

Isto deve colocar-nos de sobreaviso, mas não temos de ficar paralisados. Neste capítulo, vou descrever a “concepção mínima” de moralidade. Como o nome sugere, a concepção mínima é um núcleo que qualquer teoria moral deveria aceitar, pelo menos como ponto de partida. Vamos começar por examinar algumas controvérsias morais recentes, todas relacionadas com crianças deficientes. As características da concepção mínima emergirão da nossa consideração destes exemplos.

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2. Primeiro exemplo: a bebé Teresa

Teresa Ann Campo Pearson, conhecida publicamente como “Bebé Teresa”, é uma criança com anencefalia nascida na Florida em 1992. A anencefalia é uma das mais graves deformidades congénitas. Os bebés anencéfalos são por vezes referidos como “bebés sem cérebro”, e isto dá basicamente ideia do problema, mas não é uma imagem inteiramente correcta. Partes importantes do encéfalo — cérebro e cerebelo — estão em falta, bem como o topo do crânio. Estes bebés têm, no entanto, o tronco cerebral e por isso as funções autónomas como a respiração e os batimentos cardíacos são possíveis. Nos EUA, a maior parte dos casos de anencefalia são detectados durante a gravidez e abortados. Dos que não são abortados, metade nascem mortos. Cerca de trezentos por ano nascem vivos e, em geral, morrem em poucos dias.

A história da bebé Teresa nada teria de notável, não fosse o pedido invulgar feito pelos pais. Sabendo que a bebé não poderia viver por muito tempo e, mesmo que pudesse sobreviver, nunca teria uma vida consciente, os pais da bebé Teresa ofereceram os seus órgãos para transplante. Pensaram que os seus rins, fígado, coração, pulmões e olhos deveriam ir para crianças que pudessem beneficiar deles. Os médicos acharam uma boa ideia. Pelo menos duas mil crianças por ano necessitam de transplantes e nunca há órgãos suficientes disponíveis. Mas os órgãos não foram retirados, porque na Florida a lei não permite a remoção de órgãos até o dador estar morto. Quando, nove dias depois, a bebé Teresa morreu, era demasiado tarde para as outras crianças — os órgãos não podiam ser transplantados por se terem deteriorado excessivamente.

As histórias dos jornais sobre a bebé Teresa suscitaram uma onda de debates públicos. Teria sido correcto remover os órgãos da criança, causando-lhe dessa forma morte imediata, para ajudar outras crianças? Vários “eticistas” profissionais — pessoas empregadas por universidades, hospitais, e escolas de direito, cujo trabalho consiste em pensar nestas coisas — foram solicitados pela imprensa para comentar o tema. Surpreendentemente, poucos concordaram com os pais e os médicos. Apelaram, ao invés, a princípios filosóficos consagrados para se oporem à remoção dos órgãos. “Parece simplesmente demasiado horrível usar pessoas como meios para os objectivos de outras pessoas”, afirmou um destes peritos. Outro explicou: “É imoral matar para salvar. É imoral matar a pessoa A para salvar a pessoa B”. Um terceiro acrescentou: “O que os pais estão realmente a pedir é: matem este bebé moribundo para que os seus órgãos possam ser usados por outra pessoa. Bom, isso é de facto uma proposta horrenda”.

Era realmente horrendo? As opiniões dividiram-se. Estes eticistas pensavam que sim, enquanto os pais da bebé e os médicos pensavam que não. Mas não estamos apenas interessados no que as pessoas pensam. Queremos conhecer a verdade da questão. Teriam os pais razão ou não, de facto, ao oferecer os órgãos da bebé para transplante? Se queremos descobrir a verdade temos de perguntar que razões, ou argumentos, podem ser concedidos a cada uma das partes. O que poderá dizer-se para justificar o pedido dos pais, ou para justificar a ideia de que o pedido estava errado?

O argumento do benefício. A sugestão dos pais baseava-se na ideia de que, uma vez que Teresa ia morrer em breve, os seus órgãos de nada lhe serviam. As outras crianças, no entanto, poderiam beneficiar deles. Assim, o raciocínio parece ter sido o seguinte: Se podemos beneficiar alguém sem fazer mal a outra pessoa, devemos fazê-lo. Transplantar os órgãos beneficia as outras crianças sem prejudicar a bebé Teresa. Logo, devemos transplantar os órgãos.

Será isto correcto? Nem todos os argumentos são sólidos; por isso, não queremos apenas saber que argumentos podem ser aduzidos em defesa de uma dada posição, mas também se esses argumentos são bons. Em geral, um argumento é sólido se as suas premissas são verdadeiras e se a conclusão resulta logicamente delas. Neste caso, poderíamos interrogar-nos sobre a proposição de que Teresa não seria prejudicada. Afinal de contas, ela morreria; isso não é mau para ela? Mas, se reflectirmos, parece claro que, nestas circunstâncias trágicas, os pais tinham razão — estar viva não lhe servia de nada. Estar vivo só é um benefício quando permite a alguém realizar actividades e ter pensamentos, sentimentos, e relações com outras pessoas — por outras palavras, se permite a alguém ter uma vida. Na ausência destas coisas a mera existência biológica não tem valor algum. Por isso, mesmo que Teresa pudesse continuar viva por mais alguns dias, isso nada lhe traria de bom. (Podemos imaginar circunstâncias nas quais outras pessoas beneficiariam em mantê-la viva, mas isso não é o mesmo que ser ela a beneficiar disso.)

O argumento do benefício fornece, pois, uma poderosa razão para o transplante dos órgãos. Quais são os argumentos do lado contrário?


O argumento de que não devemos usar pessoas como meios. Os eticistas que se opuseram aos transplantes usaram dois argumentos. O primeiro baseava-se na ideia de que é errado usar pessoas como meios para os fins de outras pessoas. Retirar os órgãos de Teresa teria sido usá-la em benefício de outras crianças; portanto, não se deve fazê-lo.

Será este argumento sólido? A ideia de que não devemos “usar” pessoas é obviamente apelativa, mas trata-se de uma noção vaga que tem de ser esclarecida. O que significa ao certo? “Usar pessoas” implica geralmente violar a sua autonomia — a sua capacidade para decidirem por si mesmas como viver as suas próprias vidas, segundo os seus próprios desejos e valores. A autonomia de uma pessoa pode ser violada por meio de manipulação, impostura, ou fraude. Por exemplo, posso fingir ser amigo de alguém, quando na verdade estou apenas interessado em conhecer a sua irmã; ou posso mentir a alguém para conseguir um empréstimo; ou posso tentar convencer alguém que gostará de assistir a um concerto noutra cidade, quando quero apenas que me leve até lá. Em todos estes casos, estou a manipular alguém de modo a obter algo para mim próprio. A autonomia é igualmente violada quando as pessoas são forçadas a fazer coisas contra a sua vontade. Isto explica por que razão é errado “usar pessoas”; é errado porque a impostura, a coerção e o engano são errados.

Retirar os órgãos à bebé Teresa não envolveria engano, impostura ou coerção. Será que estaríamos a “usá-la” num outro sentido moralmente significativo? Iríamos, é claro, usar os seus órgãos em benefício de outra pessoa. Mas fazemos isso sempre que realizamos um transplante. Neste caso, no entanto, iríamos fazê-lo sem a sua permissão. Esse facto tornaria o acto errado? Se estivéssemos a fazê-lo “contra” os seus desejos, isso poderia justificar a nossa oposição; seria uma violação da sua autonomia. Mas a bebé Teresa não é um ser autónomo: não tem desejos e é incapaz de tomar por si quaisquer decisões.

Quando as pessoas são incapazes de tomar decisões por si, e outros têm de o fazer em seu lugar, pode-se adoptar duas linhas de orientação razoáveis. Primeiro, podemos perguntar-nos: o que serviria melhor os seus interesses? Se aplicarmos este padrão à bebé Teresa, parece não haver objecções a que lhe retiremos os órgãos, pois, como já vimos, seja qual for a nossa decisão, os seus interesses não serão afectados. Ela, de qualquer maneira, morrerá em breve.

A segunda linha de orientação faz apelo às preferências da própria pessoa. Poderíamos perguntar: se pudesse dizer-nos o que quer, que diria ela? Este tipo de pensamento é frequentemente útil quando lidamos com pessoas que sabemos terem preferências mas são incapazes de exprimi-las (por exemplo, um paciente em coma que assinou um testamento). Só que, infelizmente, a bebé Teresa não tem preferências sobre coisa alguma e nunca terá. Não podemos, por isso, obter dela qualquer orientação, nem mesmo na nossa imaginação. A conclusão é que ficamos na contingência de fazer o que consideramos melhor.



O argumento de que matar é errado. Os eticistas recorreram igualmente ao princípio de que é errado matar uma pessoa para salvar outra. Retirar os órgãos de Teresa seria matá-la para salvar outros, afirmaram; por isso, retirar os órgãos seria errado.

Será este argumento sólido? A proibição de matar é certamente uma das regras morais mais importantes. No entanto, poucas pessoas pensam que matar é sempre errado — a maioria das pessoas pensam que algumas excepções são por vezes justificadas. Assim, a questão é saber se retirar os órgãos da bebé Teresa deveria ser encarado como uma excepção à regra. Há muitas razões a favor desta ideia, sendo a mais importante que ela morrerá de qualquer maneira, independentemente do que fizermos, ao passo que retirar-lhe os órgãos permitiria pelo menos fazer algum bem a outros bebés. Qualquer pessoa que aceite isto tomará como falsa a primeira premissa do argumento. Em geral, é errado matar uma pessoa para salvar outra, mas isso nem sempre é assim.

Mas há outra possibilidade. Talvez a melhor maneira de entender toda a situação fosse encarar desde logo a bebé Teresa como morta. Se isto parece insensato, recorde-se que a “morte cerebral” é hoje amplamente aceite como critério para declarar as pessoas legalmente mortas. Quando o critério da morte cerebral foi proposto pela primeira vez, houve resistências baseadas na ideia de que uma pessoa pode estar cerebralmente morta, apesar de muitas coisas continuarem a funcionar no seu interior — com assistência mecânica, o coração pode continuar a bater, pode-se continuar a respirar, e assim por adiante. Mas a morte cerebral foi por fim aceite e as pessoas acostumaram-se a encará-la como “verdadeira” morte. Isto foi sensato, pois quando o cérebro pára de funcionar deixa de haver esperanças de vida consciente.

As anencefalias não satisfazem os requisitos técnicos da morte cerebral tal como é actualmente definida; mas talvez a definição devesse ser reelaborada para as incluir. Afinal de contas, os anencéfalos também não têm perspectivas de vida consciente, pela razão profunda de que não têm cérebro ou cerebelo. Se a definição de morte cerebral fosse reformulada para incluir os anencéfalos, acabaríamos por nos acostumar à ideia de que estes infelizes bebés são nados-mortos e deixaríamos, por isso, de encarar a extracção dos seus órgãos como uma forma de os matar. O argumento baseado na ideia de que matar é errado seria então contestável.

Parece pois, no todo, que o argumento a favor do transplante dos órgãos da bebé Teresa é mais forte do que estes argumentos contra o transplante.


3. Segundo exemplo: Jodie e Mary

Em Agosto de 2000 uma jovem de Gozo, uma ilha junto de Malta, descobriu que estava grávida de gémeos siameses. Sabendo que as instalações de saúde de Gozo não estavam equipadas para lidar com as complicações de um tal nascimento, ela e o marido foram para o hospital St. Mary, em Manchester, Inglaterra, para fazer aí o parto das bebés. As crianças, conhecidas como Mary e Jodie, estavam ligadas pelo baixo abdómen. As suas espinhas dorsais encontravam-se fundidas, e partilhavam um coração e um par de pulmões. Jodie, a mais forte, fornecia sangue à irmã.

Ninguém sabe quantos pares de gémeos siameses nascem por ano. São raros, embora o nascimento recente de três pares no Oregon tenha suscitado a ideia de que o seu número está a crescer. (“Os Estados Unidos têm um excelente serviço de saúde mas os registos são muito pobres”, afirmou um médico.) As causas do fenómeno não são bem conhecidas, mas sabemos com certeza que os gémeos siameses são uma variante de gémeos idênticos. Quando o conjunto de células (o “pré-embrião”) se divide, três a oito dias após a fertilização, surgem os gémeos idênticos; quando a divisão se atrasa mais alguns dias, pode ficar incompleta e os gémeos podem ficar ligados.

Alguns pares de gémeos siameses não têm problemas. Chegam à idade adulta e por vezes casam e têm os seus próprios filhos. Mas o panorama apresentava-se algo cinzento para Mary e Jodie. Os médicos afirmaram que sem intervenção morreriam dentro de seis meses. A única esperança era uma operação para separá-las. Isto salvaria Jodie, mas Mary morreria de imediato.

Os pais, católicos devotos, não permitiram a operação baseando-se na ideia de que isso anteciparia a morte de Mary. “Pensamos que a natureza deve seguir o seu curso”, afirmaram os pais. “Se é a vontade de Deus que as crianças não sobrevivam, assim seja”. O hospital, convencido da sua obrigação de fazer os possíveis para salvar pelo menos uma das crianças, solicitou permissão aos tribunais para separar as bebés contra o desejo dos pais. Os tribunais concederam permissão e a 6 de Novembro a operação foi realizada. Tal como se esperava, Jodie sobreviveu e Mary morreu.

Ao meditar neste caso devemos separar a questão de quem deveria tomar a decisão da questão de qual deve ser a decisão. Podemos pensar, por exemplo, que a decisão devia caber aos pais, caso em que nos oporemos à intromissão dos tribunais. Mas continua em aberto a questão independente de saber qual seria para os pais (ou qualquer outra pessoa) a escolha mais sensata. Vamos concentrar-nos nesta última questão: nas circunstâncias descritas, seria correcto ou errado separar as gémeas?


O argumento de que devemos salvar tantos bebés quanto possível. O argumento óbvio a favor da separação das gémeas é que podemos escolher entre salvar um bebé ou deixar ambos morrer. Não é claramente melhor salvar um deles? Este argumento é tão atraente que muitas pessoas concluirão, sem mais, que isto resolve o problema. No auge da controvérsia sobre o caso, quando os jornais estavam cheios de histórias acerca de Jodie e Mary, o Ladies Home Journal encomendou uma sondagem para descobrir o que os americanos pensavam. A sondagem mostrou que 78 % aprovavam a operação. As pessoas estavam obviamente persuadidas pela ideia de que devemos salvar tantos bebés quanto possível. No entanto, os pais de Jodie e Mary pensavam que há um argumento ainda mais forte do lado contrário.


O argumento da santidade da vida humana. Os pais amavam as duas filhas e pensavam que seria errado sacrificar uma delas para salvar a outra. Naturalmente, não eram os únicos a defender esta perspectiva. A ideia de que toda a vida humana tem valor, independentemente da idade, raça, classe social ou deficiência, está no centro da tradição moral ocidental. É especialmente enfatizada em obras religiosas. Na ética tradicional, a proibição de matar seres humanos inocentes é tida como absoluta. Não importa se o assassinato visa servir um propósito meritório; simplesmente não pode fazer-se. Mary é um ser humano inocente, não podendo por isso ser morta.

Será este um argumento sólido? Por uma razão surpreendente, os juízes que avaliaram o caso em tribunal pensaram que não. Negaram a pertinência do argumento tradicional neste caso. O juiz Robert Walker afirmou que a realização da operação não mataria Mary. Ela seria simplesmente separada da irmã e depois “morreria, não por ser intencionalmente morta, mas porque o seu próprio corpo não pode manter a sua vida”. Por outras palavras, a causa da sua morte não seria a operação mas a sua própria debilidade. Os médicos parecem ter favorecido também esta perspectiva. Quando a operação foi finalmente realizada, executaram todos os procedimentos para tentar manter Mary viva — “concedendo-lhe todas as possibilidades” — mesmo sabendo da inutilidade do esforço.

O argumento do juiz pode parecer um pouco sofístico. Poderíamos pensar, seguramente, que pouco importa dizer que a morte da Mary é causada pela operação ou pela debilidade do seu corpo. De qualquer das maneiras ela vai morrer, e a sua morte acontecerá mais cedo do que se não tivesse sido separada da irmã.

Há, no entanto, uma objecção mais natural ao argumento da santidade da vida, que não depende de um argumento tão forçado. Podemos responder que não é sempre errado matar seres humanos inocentes. Em situações raras pode mesmo ser correcto. Em particular se a) o ser humano inocente não tem futuro por estar condenado a morrer em breve, independentemente do que façamos; b) o ser humano inocente não quer continuar a viver, talvez por estar tão pouco desenvolvido mentalmente que não pode de todo ter desejos; e c) se matar o ser humano inocente permitir salvar as vidas de outros, que podem desenvolver-se e ter vidas boas e plenas — nestas circunstâncias pouco frequentes, pode justificar-se matar um inocente. É claro que muitos moralistas, sobretudo os pensadores religiosos, não se deixarão convencer. No entanto, esta é uma linha de pensamento que muitas pessoas podem achar persuasiva.


4. Terceiro exemplo: Tracy Latimer

Tracy Latimer, uma menina de doze anos vítima de paralisia cerebral, foi morta pelo pai em 1993. Tracy vivia com a família numa quinta de uma pradaria de Saskatchewan, no Canadá. Numa manhã de Domingo, enquanto a mulher e os filhos estavam na missa, Robert Latimer pôs Tracy na cabina da sua carrinha de caixa aberta e asfixiou-a com o fumo do escape. Na altura da morte, Tracy pesava menos de dezoito quilos; diz-se que tinha “um nível mental idêntico ao de um bebé de três meses”. A senhora Latimer afirmou ter ficado aliviada por encontrar Tracy morta ao chegar a casa e acrescentou que “não tinha coragem” para o fazer por si.

O senhor Latimer foi julgado por homicídio, mas o juiz e os jurados não quiseram tratá-lo com demasiada dureza. O júri considerou-o apenas culpado de homicídio de segundo grau e recomendou ao juiz para ignorar a sentença obrigatória de 25 anos de prisão. O juiz concordou e sentenciou Latimer a um ano de cadeia, seguido de um ano de prisão domiciliária na sua quinta. No entanto, o Supremo Tribunal do Canadá revogou a sentença e ordenou a imposição da sentença obrigatória. Robert Latimer está ainda detido, cumprindo uma pena de 25 anos.

Questões legais à parte, será que o senhor Latimer fez algo de errado? Este caso envolve muitas das questões que já vimos nos outros casos. Um argumento contra o senhor Latimer é que a vida de Tracy tinha valor moral, não tendo ele, por isso, o direito de matá-la. Em sua defesa pode-se responder que a situação de Tracy era tão catastrófica que ela não tinha quaisquer perspectivas de uma “vida” em qualquer sentido além do puramente biológico. A sua existência estava reduzida a nada mais do que sofrimento sem sentido, pelo que matá-la foi um acto de misericórdia. Considerando estes argumentos, parece que talvez o senhor Latimer tenha agido de forma defensável. Houve, no entanto, outros argumentos avançados pelos seus críticos.


O argumento com base no mal de discriminar os deficientes. Quando Robert Latimer foi sentenciado com tolerância pelo tribunal, muitos deficientes encararam o facto como um insulto. O presidente da “Voz de Saskatoon de Pessoas com Deficiências”, que sofre de esclerose múltipla, afirmou: “Ninguém tem o direito de decidir se a minha vida tem um valor inferior a outra. Essa é a grande questão”. Tracy foi morta por ser deficiente, afirmou, e isso é inadmissível. As pessoas deficientes deveriam ser tão respeitadas e ter tantos direitos como qualquer outra pessoa.

Que podemos dizer disto? A discriminação contra qualquer grupo de pessoas é, naturalmente, um assunto sério. É inaceitável, porque implica tratar algumas pessoas de forma diferente de outras, quando não há diferenças relevantes entre elas para o justificar. Exemplos correntes envolvem coisas como a discriminação no local de trabalho. Suponha-se que se recusa um trabalho a uma pessoa cega, simplesmente porque o patrão não gosta da ideia de empregar alguém incapaz de ver. Isto não é diferente de recusar empregar alguém por ser negro ou judeu. Para sublinhar o quanto isto é ofensivo, poderíamos perguntar por que razão essa pessoa é tratada de forma diferente. É menos capaz de fazer o trabalho? É mais estúpida ou menos diligente? Merece menos o emprego? É menos capaz de beneficiar da circunstância de estar empregada? Se não há qualquer boa razão para a excluir, então é simplesmente arbitrário tratá-la desta forma.

Mas há algumas circunstâncias nas quais pode justificar-se tratar os deficientes de forma diferente. Por exemplo, ninguém iria defender seriamente que uma pessoa cega deveria ser empregada como controladora de tráfego aéreo. Uma vez que podemos explicar facilmente por que motivo isto não é desejável, a “discriminação” não é arbitrária e não é uma violação dos direitos da pessoa deficiente.

Devemos pensar na morte de Tracy Latimer como um caso de discriminação de deficientes? O senhor Latimer argumentou que a paralisia cerebral de Tracy não era a questão. “As pessoas andam a dizer que isto é uma questão relacionada com deficiências”, afirmou, “mas estão enganadas. Isto diz respeito a tortura. Para Tracy, tratava-se de uma questão de mutilação e tortura.” Antes da sua morte, Tracy fora submetida a uma importante e delicada intervenção cirúrgica às costas, ancas e pernas, e havia ainda mais cirurgias planeadas. “Tendo em conta a combinação de um tubo para alimentação, varetas nas costas, a perna cortada e bamba e ainda as chagas causadas pela permanência na cama”, afirmou o pai, “como podem as pessoas dizer que ela era uma menina feliz?” No julgamento, três dos médicos de Tracy deram o seu testemunho sobre a dificuldade de lhe controlar as dores. O senhor Latimer negou, por isso, que ela tenha sido morta devido à paralisia cerebral; foi morta devido à dor, e por não haver esperança para ela.


O argumento da derrapagem. Isto conduz naturalmente a outro argumento. Quando o Supremo Tribunal do Canadá confirmou a sentença de Robert Latimer, Tracy Walters, directora da Associação Canadense de Centros para uma Vida Independente, afirmou-se “agradavelmente surpreendida” pela decisão. “Teria sido na verdade uma bola de neve e um abrir de portas a outras pessoas para decidirem quem vive e quem morre”, afirmou.

Outros defensores dos deficientes fizeram eco desta ideia. Podemos compreender Robert Latimer, afirmaram alguns, podemos até ser tentados a pensar que Tracy está melhor morta. No entanto, é perigoso pensar desta forma. Se aceitarmos qualquer tipo de morte piedosa, iremos dar a uma “derrapagem” inevitável, e no final toda a vida terá perdido o seu valor. Onde devemos pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não merece ser protegida, o que dizer então de outros deficientes? Que dizer dos velhos, doentes e outros membros “inúteis” da sociedade? Neste contexto, refere-se frequentemente os nazis, que queriam “purificar a raça”, e a implicação é que se não queremos acabar como eles, é melhor não darmos os perigosos primeiros passos.

Tem-se usado “argumentos da derrapagem” do mesmo género em relação a todo o tipo de questões. O aborto, a fertilização in vitro (FIV) e, mais recentemente, a clonagem, foram criticados devido ao que podem conduzir. Uma vez que estes argumentos envolvem especulações sobre o futuro, são manifestamente difíceis de avaliar. Por vezes, é possível verificar, em retrospectiva, que as preocupações eram infundadas. Isto aconteceu com a FIV. Em 1978, quando nasceu Louise Brown, a primeira “bebé proveta”, houve uma série de previsões medonhas sobre o que o futuro poderia reservar para ela, a sua família e a sociedade como um todo. Mas nada de mau aconteceu, e a FIV tornou-se um procedimento de rotina usado para ajudar milhares de casais a ter filhos.

Quando o futuro é desconhecido, pode, no entanto, ser difícil determinar se um argumento deste tipo é sólido. Por outro lado, pessoas razoáveis podem discordar sobre o que poderia acontecer caso se aceitasse a morte piedosa em casos como o de Tracy Latimer. Isto dá origem a um tipo frustrante de impasse: os desacordos quanto aos méritos da argumentação podem depender simplesmente das inclinações prévias dos interlocutores — as pessoas inclinadas a defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões são irrealistas, enquanto as pessoas predispostas a condená-lo insistem na sensatez das previsões.

Vale a pena notar, no entanto, que este tipo de argumento é atreito a usos abusivos. Se não concordamos com alguma coisa, mas não temos qualquer bom argumento contra ela, podemos sempre fazer uma previsão sobre as suas possíveis consequências; por mais implausível que a previsão seja, ninguém pode provar que esteja errada. Este método pode ser utilizado para contestar quase tudo. Essa é a razão pela qual os argumentos deste tipo devem ser abordados com cuidado.

5. Razão e imparcialidade

O que se pode aprender com tudo isto sobre a natureza da moral? Para começar, podemos tomar nota de dois aspectos principais: primeiro, os juízos morais têm de se apoiar em boas razões; segundo, a moral implica a consideração imparcial dos interesses de cada indivíduo.


Raciocínio moral. Os casos da bebé Teresa, Jodie e Mary e Tracy Latimer, bem como muitos outros que serão discutidos neste livro, podem despertar sentimentos fortes. Estes sentimentos são frequentemente sinal de seriedade moral e podem, pois, ser objecto de admiração. Mas podem também ser um obstáculo à descoberta da verdade: quando temos sentimentos fortes relativamente a uma questão, é tentador pressupor que sabemos pura e simplesmente o que a verdade não pode deixar de ser, sem mesmo termos de tomar em consideração os argumentos do lado contrário. Infelizmente, não podemos confiar nos nossos sentimentos, por mais fortes que sejam. Os nossos sentimentos podem ser irracionais: podem não ser mais do que resultados de preconceito, egoísmo ou condicionamento cultural. (Numa dada altura, os sentimentos das pessoas diziam-lhes, por exemplo, que os membros de outras raças eram inferiores e que a escravatura fazia parte do próprio plano divino das coisas.) Além disso, os sentimentos de pessoas diferentes dizem-lhes frequentemente coisas opostas: no caso de Tracy Latimer, o sentimento forte de algumas pessoas é que o seu pai devia ter sido condenado a uma pena longa, enquanto outras têm o sentimento igualmente forte de que ele nunca devia ter sido acusado. Estes sentimentos não podem, no entanto, estar ambos correctos.

Assim, se queremos descobrir a verdade, temos de tentar deixar que os nossos sentimentos sejam guiados tanto quanto possível pelos argumentos que se podem fornecer a favor de cada uma das perspectivas opostas. A moralidade é, antes de mais e acima de tudo, uma questão de aconselhamento racional. Em qualquer circunstância dada, a acção moralmente correcta é aquela a favor da qual existirem melhores razões.

Este não é um aspecto de somenos importância sobre uma pequena gama de perspectivas morais; é um requisito lógico geral que tem de ser aceite por qualquer pessoa, independentemente do seu posicionamento sobre qualquer questão moral em particular. A ideia fundamental pode enunciar-se de forma simples. Suponha-se que se afirma que alguém devia fazer isto ou aquilo (ou que fazer isto ou aquilo seria errado). Pode-se legitimamente perguntar por que motivo se deve fazê-lo (ou por que razão seria errado fazê-lo), e se não se puder dar qualquer boa razão, pode-se rejeitar o conselho como arbitrário ou infundado.

Neste aspecto, os juízos morais são diferentes das expressões de gosto pessoal. Se alguém afirma “Eu gosto de café”, não necessita ter uma razão para tal — está meramente a declarar um facto sobre si mesmo, nada mais do que isso. Uma “defesa racional” do facto de gostar ou não de café é algo que não existe, não havendo por isso discussão possível do caso. Desde que uma pessoa esteja a dar conta dos seus gostos de forma precisa, o que diz tem de ser verdade. Além do mais, não há nisso qualquer implicação de que as outras pessoas tenham de ter o mesmo gosto; se todas as outras pessoas do mundo detestarem café, isso não importa. Por outro lado, se alguém afirma que algo é moralmente errado, precisa de ter razões para tal, e se as suas razões forem sólidas, as outras pessoas têm de reconhecer a sua força. Pela mesma lógica, se não tiver boas razões para o que diz, está simplesmente a produzir ruídos e não vale a pena dar-lhe atenção.

Naturalmente, nem todas as razões passíveis de serem apresentadas são boas. Há bons e maus argumentos, e muita da perícia do pensamento moral consiste em saber distinguir uns de outros. Mas como podemos reconhecer as diferenças? Como devemos proceder para avaliar argumentos? Os exemplos que analisámos ilustram alguns aspectos pertinentes.

A primeira coisa a fazer é entender com clareza os factos. É frequente isto não ser tão fácil como parece. Uma fonte de problemas relaciona-se com a dificuldade que por vezes existe em estabelecer os “factos” — as questões podem ser tão complexas e difíceis que nem mesmo os especialistas concordam entre si. Outro problema é o preconceito humano. É frequente querer acreditar numa versão dos factos por apoiar os nossos preconceitos. Quem reprova a acção de Robert Latimer, por exemplo, quererá acreditar nas previsões do argumento da derrapagem; quem o compreende, não vai querer acreditar nessas previsões. É fácil imaginar outros exemplos do mesmo género: pessoas que não querem dar dinheiro para a caridade consideram com frequência que as organizações de caridade são esbanjadoras, mesmo quando não têm grandes provas disso; e as pessoas que não gostam de homossexuais afirmam que a comunidade gay inclui um número desmesurado de pedófilos, apesar das provas em contrário. Mas os factos existem independentemente dos nossos desejos, e o pensamento moral responsável começa quando tentamos ver as coisas como elas são.

Depois de os factos terem sido estabelecidos tão bem quanto possível, os princípios morais entram em jogo. Nos nossos três exemplos, estavam envolvidos um conjunto de princípios: que não devemos “usar” as pessoas; que não devemos matar uma pessoa para salvar outra; que devemos fazer o que beneficie as pessoas afectadas pelas nossas acções; que toda a vida é sagrada; e que é errado discriminar os deficientes. A maioria dos argumentos morais consiste na aplicação de princípios aos factos de casos particulares, e por isso o que importa saber é se os princípios são sólidos e se estão a ser aplicados de forma inteligente.

Seria bom que houvesse uma receita simples para construir bons argumentos e evitar os maus. Infelizmente, não há um método simples. Os argumentos podem fracassar de diversas maneiras, como se torna evidente pela diversidade de argumentos sobre os bebés deficientes; e devemos estar sempre atentos à possibilidade de novas complicações e novas formas de erro. Mas isso não é surpreendente. A aplicação mecânica de métodos rotineiros nunca é um substituto satisfatório para a inteligência crítica, seja em que área for. O pensamento moral não é excepção.


O requisito de imparcialidade. Praticamente todas as teorias morais importantes incluem a ideia de imparcialidade. A ideia básica consiste em considerar os interesses de cada indivíduo como igualmente importantes; do ponto de vista moral, não há pessoas privilegiadas. Portanto, cada um de nós tem de reconhecer que o bem-estar dos outros é tão importante como o nosso. Ao mesmo tempo, a exigência de imparcialidade elimina qualquer esquema que trate os membros de determinados grupos como de certa forma inferiores, como os negros e os judeus foram por vezes tratados, entre outros.

O requisito de imparcialidade está intimamente ligado à ideia de que os juízos morais têm de se apoiar em boas razões. Considere-se a posição de um racista branco, por exemplo, que defende ser correcto que os melhores empregos sejam reservados para as pessoas brancas. Essa pessoa sente-se bem com uma situação na qual os executivos das principais empresas e os responsáveis do governo, entre outros, são brancos, enquanto os negros ficam restringidos a tarefas sobretudo subalternas; apoia ainda as disposições sociais por meio das quais esta situação se perpetua. Podemos agora perguntar pelas razões para isto; podemos perguntar por que motivo se pensa que isto está correcto. Haverá alguma coisa nos brancos que os torne mais adequados para os cargos mais bem pagos e mais prestigiados? Serão eles inerentemente mais inteligentes ou mais empreendedores? Será que se importam mais consigo mesmos e com as suas famílias? Serão capazes de beneficiar mais por terem tais cargos à sua disposição? Em cada um destes casos a resposta parece ser “não”; e se não houver qualquer boa razão para tratar as pessoas de maneira diferente, a discriminação é inaceitavelmente arbitrária.

Assim, o requisito de imparcialidade não é mais do que uma condenação da arbitrariedade no tratamento das pessoas. É uma regra que nos proíbe de tratar uma pessoa de forma diferente de outra quando não há uma boa razão para fazê-lo. Mas se isto explica o que está errado no racismo, explica igualmente por que razão em alguns casos especiais não é racista tratar as pessoas de maneira diferente. Suponha-se que um realizador de cinema estava a fazer um filme sobre a vida de Martin Luther King, Jr. Teria uma razão muito boa para não recrutar Tom Cruise para o papel de protagonista. É claro que a escolha deste actor não faria sentido. Por haver uma boa razão para isso, a “discriminação” do realizador não seria arbitrária, não sendo por isso vulnerável a críticas.

6. A concepção mínima de moralidade

A concepção mínima pode agora ser apresentada de forma breve: a moralidade é, pelo menos, o esforço para orientar a nossa conduta pela razão — isto é, para fazer aquilo a favor do qual existem melhores razões — dando simultaneamente a mesma importância aos interesses de cada indivíduo que será afectado por aquilo que fazemos.

Isto oferece, entre outras coisas, uma imagem do que significa ser um agente moral consciente. O agente moral consciente é alguém preocupado imparcialmente com os interesses de todos os que são afectados por aquilo que ele, ou ela, fazem; alguém que cuidadosamente filtra os factos e examina as suas implicações; que aceita princípios de conduta somente depois de os examinar, para ter a certeza de que são sólidos; que está disposto a “dar ouvidos à razão”, mesmo quando isso significa ter de rever convicções prévias; alguém que, por fim, está disposto a agir com base nos resultados da sua deliberação.

É claro que, como seria de esperar, nem todas as teorias éticas aceitam este “mínimo”. Como teremos oportunidade de ver, este retrato do agente moral tem sido posto em causa de várias maneiras. No entanto, as teorias que rejeitam a concepção mínima debatem-se com sérias dificuldades. A maioria dos filósofos apercebeu-se disto, e por isso a maior parte das teorias da moralidade incorpora, de uma forma ou outra, a concepção mínima. Não discordam sobre o mínimo, mas sobre como poderemos alargá-lo, ou talvez modificá-lo, de maneira a chegar a uma concepção moral inteiramente satisfatória.

James Rachels

Elementos de Filosofia Moral (Lisboa: Gradiva, 2004), Cap. 1.



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