Mas, se bem que Mill avance uma das posições da teoria ética cristã para justificar o princípio utilitarista, não podemos afirmar que a ética do cristianismo seja igualmente uma teoria consequencialista, como é a teoria utilitarista. A ética cristã apresenta-nos uma lista de deveres – os Dez Mandamentos – que devemos cumprir em toda e qualquer situação da nossa vida, independentemente das consequências que o cumprimento desses deveres possa produzir, os quais se apresentam simultaneamente como deveres que proíbem a realização de certos actos.
Constatamos deste modo a principal diferença entre as duas teorias: para a ética cristã temos de respeitar certos deveres, independentemente das consequências que resultem desse cumprimento, enquanto para o utilitarismo não temos de respeitar qualquer dever como princípio da nossa acção, apenas temos de realizar a acção de modo a que produza a maior felicidade possível para o maior número de pessoas.
A teoria ética cristã não atende às consequências da nossa acção para que a acção tenha valor moral, a teoria utilitarista apenas atende às consequências da nossa acção para que a acção tenha valor moral. Para a ética cristã, os meios não justificam os fins, enquanto, para a teoria utilitarista, os meios justificam os fins.
Para perceber melhor esta diferença entre as duas teorias, repare no seguinte exemplo:
Imagine que o Diogo vai numa excursão de férias pela costa africana e é raptado por alguns habitantes de uma aldeia. O chefe desta aldeia propõe-lhe que mate um indivíduo da aldeia que foi apanhado a roubar, caso contrário afirma que matará cerca de trinta mulheres da sua aldeia à descrição.
Imagine que o Diogo vai numa excursão de férias pela costa africana e é raptado por alguns habitantes de uma aldeia. O chefe desta aldeia propõe-lhe que mate um indivíduo da aldeia que foi apanhado a roubar, caso contrário afirma que matará cerca de trinta mulheres da sua aldeia à descrição.
O que faria o defensor da teoria ética cristã na situação do Diogo? E o defensor do teoria utilitarista?
O defensor da teoria ética cristã não matava o indivíduo que foi apanhado a roubar, mesmo sabendo que a sua decisão iria resultar na morte de trinta pessoas inocentes, porque, se matasse o indivíduo, estaria a violar um dos Mandamentos Divinos. Ora, o defensor desta teoria jamais pode violar um dos deveres enunciados pelos Dez Mandamentos. Logo, a sua única alternativa era a de não matar o indivíduo.
O defensor da teoria utilitarista matava o indivíduo que foi apanhado a roubar, porque a sua decisão de não matar uma pessoa iria salvar a vida a outras trinta pessoas. Ao não colocar em causa a vida de trinta pessoas, o defensor da teoria utilitarista estava a agir de acordo com o princípio da sua teoria, de acordo com o qual devemos agir de forma a promover a felicidade no maior número possível de pessoas, entendendo por felicidade o prazer e a ausência de dor e sofrimento.
Ora, entre a acção de matar uma pessoa e a acção de matar trinta, a acção que evita a dor e o sofrimento no maior número de pessoas é a primeira, a de matar apenas uma pessoa. Logo, para o defensor do utilitarismo, entre estas duas possibilidades de acção, aquela que para si é a mais moralmente correcta é a que conduz à morte do indivíduo que foi apanhado a roubar.
Constata-se assim melhor a diferença de perspectivas éticas que existe entre o utilitarismo e o cristianismo.
Utilitarismo e egoísmo ético
Como temos visto, a teoria ética de Stuart Mill assume-se como uma teoria consequencialista, na medida em que a moralidade da nossa acção resulta do fim obtido com a acção. Se bem se lembra, também em relação ao egoísmo ético uma acção seria correcta ou incorrecta atendendo às consequências da acção.
Em que medida?
Porque para o egoísmo ético uma acção é boa ou má consoante vise ou não os nossos próprios interesses.
Não obstante esta semelhança relativamente ao aspecto consequencialista das duas teorias – tanto uma como outra teoria avaliam a acção como sendo boa ou má a partir das consequências –, não podemos dizer que as duas teorias se equivalem. Existe uma diferença de fundo entre elas.
Enquanto para o egoísmo ético devemos procurar agir de forma a promover o nosso próprio bem-estar e felicidade, sendo essa para o egoísta ético a única forma moralmente válida de acção, para o utilitarista devemos procurar agir de forma a promover a felicidade de todos os implicados com a nossa acção (incluindo a felicidade do próprio agente). Ora, enquanto o defensor do egoísmo ético assume uma postura egoísta relativamente àquilo que devemos fazer, o defensor da teoria do utilitarismo assume uma postura essencialmente altruísta [a minha acção é correcta se promover de forma imparcial (ou seja, sem distinções) os interesses de todas e cada uma das pessoas implicadas pela acção, sendo o interesse de cada pessoa a obtenção da felicidade].
Assim, Mill não entende por felicidade apenas a felicidade do agente, mas a felicidade para o maior número possível de pessoas. Para que uma acção tenha valor moral, não é suficiente que a felicidade seja apenas a do agente, mas é necessário que seja a felicidade de todas as pessoas implicadas pela acção realizada.
In Platano Editora
Lola
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