A teoria ética de Kant
Antes de mais….
Esclareça o significado da expressão: "Necessidade da Fundamentação da Moral".
Significa que se deve estabelecer um critério para distinguir uma acção moralmente boa ou correcta de uma acção moralmente incorrecta. Tem a ver com a exigência de encontrar esse critèrio que separe ou distinga o que é, moralmente, certo ou errado.
A fundamentação da
Moral procura responder a questões como:
· Qual
o fundamento da moral?
· Como
poderemos saber se uma acção é moralmente correcta ou incorrecta?
· Como
devemos agir e porquê?
· Qual
o critério que torna uma acção moralmente boa?
· Será
que é a intenção?
· Serão
as consequências da acção?
O
que torna uma acção moralmente boa?
Na tentativa de se fazer uma avaliação moral das nossas acções,
apresentam-se duas teorias morais: a teoria de Kant e a teoria de Stuart Mill.
A teoria moral de Kant vai avaliar a moralidade das nossas acções
baseando-se na intenção com que realizamos as acções. Por sua vez, a teoria
moral de Stuart Mill vai avaliar a moralidade das nossas acções a partir das
consequências das acções. Denomina-se a teoria moral de Kant de teoria
deontológica, porque é uma doutrina moral que se baseia na noção de dever. Para
Kant, na avaliação da moralidade de uma acção aquilo que mais importa é a
intenção com que a pessoa age e não as consequências da acção. Concretamente,
para Kant, a moralidade de uma acção é cumprir o dever por dever.
A teoria de Stuart Mill é denominada teoria utilitarista, porque
defende que o critério para avaliar a moralidade de uma acção é pelas
consequências desta (uma acção é moralmente correcta se promover a felicidade
para o maior número de pessoas).
A questão que se vai
colocar com estas duas teorias morais vai ser a seguinte: Devemos avaliar a
moralidade de uma acção pela intenção com que a realizamos ou pelas
consequências que dela resultam?
1- Que respostas existem acerca da
fundamentação moral?
2- Como se designam?
3- O que as distingue?
A teoria ética de Kant
Para Kant, o critério para averiguar se uma acção possui conteúdo moral
parte da intenção com que o agente realiza uma determinada acção.
Uma acção moral é, para Kant, aquela cuja intenção do agente na sua
realização é desinteressada. Por intenção desinteressada entende Kant a
intenção que não tem como princípio da acção o interesse particular do agente.
Tornando isto mais claro, uma acção apenas possui valor moral se o
princípio que orienta a nossa acção estiver submetido às ordens da nossa razão,
pois apenas deste modo estou a agir sem qualquer tipo de interesse. Estou a
agir por puro respeito às ordens da minha razão e, neste sentido, a intenção
com que realizo a minha acção é puramente desinteressada.
Assim, para Kant, uma
acção possui valor moral quando o indivíduo obedece, não aos seus interesses
particulares, mas apenas e somente às ordens da sua razão.
4- Qual o critério que, segundo Kant,
torna uma ação moralmente boa?
5- Caracterize a ação moral para Kant.
É possível agir de acordo com este princípio
kantiano?
Sim, é possível, pensemos no exemplo do juiz. O juiz, na avaliação de
uma determinada situação, procura encará-la de forma objectiva e imparcial, sem
qualquer tipo de interesse particular nessa avaliação. A intenção com que o
juiz age na avaliação de um determinado caso é puramente desinteressada.
Por que razão o agir cuja intenção é desinteressada é o único agir
válido para Kant? Porque é o único agir que obedece incondicionalmente às
ordens da nossa razão, ordens essas que são universais, as mesmas para todos os
seres racionais. Por sua vez, o agir por interesse é um agir particular,
individualizado, que apenas serve os interesses particulares de um certo
indivíduo. Quererei eu que o princípio de acção do indivíduo que age por interesse
possa ser universalizado? Não.
Imagine o caso de um indivíduo y
que pede dinheiro emprestado a um outro com a intenção de não devolver o
dinheiro. Este indivíduo agiu de acordo com a seguinte máxima: “Sempre que
precisar de dinheiro, peço emprestado com a intenção de não o devolver”. Imagine
agora que todas as pessoas agiam de acordo com este princípio. As pessoas iriam
por deixar de acreditar umas nas outras, gerando-se um profundo clima de
desconfiança nas relações entre as pessoas. As promessas deixariam de fazer
qualquer sentido.
Ora, segundo Kant, o agir que obedece a interesses particulares não
pode ser universalizável, porque esses interesses apenas dizem respeito a um
indivíduo particular e não a todos os indivíduos. O agir cuja intenção é
desinteressada é o único agir que todos queremos universalizado, porque é o
agir cujo princípio não se submete aos interesses particulares do agente.
Para Kant, o agir cuja intenção é puramente desinteressada é o agir que
cumpre ou respeita o dever pelo próprio dever. O que é isto de cumprir o dever
pelo próprio dever? É agir respeitando de forma incondicional as ordens da
minha razão, sem qualquer tipo de interesse que não seja o do puro respeito
pelas ordens da razão. Para Kant, existem certas regras morais (ordens da minha
razão) que devem ser cumpridas e respeitadas em todas as circunstâncias
possíveis, independentemente das consequências que, ao respeitá-las, possa vir
com elas a produzir.
6- Porque é possível, segundo Kant, agir
de modo racional?
7- Porque é que Kant não defende o agir
particular?
8- Que exemplo podemos dar para mostrar
que há ações que não podem ser universalizadas?
9- Para Kant o que significa agir
desinteressadamente?
10- Segundo Kant, o que é agir por dever?
Para Kant há três tipos de acção:
Para se entender
melhor a noção de dever e a sua integração na filosofia moral de Kant, o
filósofo alemão estabelece três classificações para esta noção, sendo,
sobretudo, a segunda o sentido de dever que nós utilizamos com maior
regularidade, mas à qual Kant não atribui qualquer valor moral.
1 – Contra o Dever - O desrespeito ou incumprimento do dever:
Neste caso, para Kant, a acção não tem qualquer valor moral, porque se
trata da pura e simples desobediência às ordens da nossa razão e, portanto, de
um agir condicionado pelos nossos interesses particulares. Kant rejeita de
imediato este tipo de acção, porque representa precisamente o contrário daquilo
que defende para que possamos agir moralmente.
Aqui verifica-se o agir que se encontra constrangido pelos nossos
interesses e que desrespeita as ordens da nossa razão.
Ex. O João roubou três maçãs da mercearia do Sr.
António, porque não gosta de ficar na fila à espera de ser atendido.
O João aqui desrespeitou por completo as
ordens da sua consciência racional, que lhe diz para não roubar, e fê-lo porque
pura e simplesmente não gosta de esperar, tendo, por isso, submetido o
princípio da sua acção aos seus interesses particulares.
2 – Conforme o Dever - O agir apenas em conformidade
com o dever:
O agir apenas em conformidade com o dever também não serve para Kant,
porque é o caso da pessoa que age de acordo com os seus interesses, mas que não
desrespeita as ordens da sua razão. Também aqui o princípio que orienta a sua
conduta não é o do puro respeito ou obediência incondicionada à razão, mas o do
interesse particular. Ora, também este tipo de acção não possui conteúdo moral
para Kant.
Verifica-se neste caso
que o princípio da nossa acção se encontra submetido aos nossos interesses, mas
não desrespeita as ordens da nossa razão.
Ex.: A mãe da Rita perguntou-lhe onde é que ela foi
na sexta-feira à noite. A Rita disse a verdade à mãe, dizendo-lhe que foi
jantar à pizzaria Matterelo com alguns colegas, mas fê-lo porque sabia que se
mentisse e a mãe descobrisse esta a punha de castigo. Assim sendo, a Rita não
mentiu à mãe, porque sabia que, se mentisse e a mãe descobrisse, esta a punha
de castigo. A Rita cumpriu o dever (não mentir), não por dever (não porque não
deve mentir), mas por interesse (porque tem medo do castigo da mãe). A Rita
agiu por interesse, mas, por acaso, não desrespeitou as ordens da sua razão,
que lhe diz “não deves mentir”. Significa isto que a Rita não obedeceu
incondicionalmente às ordens da sua razão. Apenas se a Rita dissesse para consigo
mesma “Não menti à minha mãe, porque é meu dever não mentir” (em toda e
qualquer circunstância) é que estaria a agir moralmente segundo Kant, porque
estaria a respeitar o dever pelo próprio dever.
3 – Por Dever- O agir que respeita o dever pelo próprio dever:
Para Kant, este é o único agir com valor moral. Porquê? Porque é o
único agir que respeita de forma incondicional as ordens da nossa razão, que
não age submetido a qualquer tipo de interesse ou inclinação. É esse tipo de
acção possível? Sim, temos como exemplo mais evidente o do juiz que decide de
forma objectiva e imparcial um determinado caso.
Outro exemplo: O Gabriel ajudou uma senhora de
idade a atravessar a rua.
O Gabriel praticou
esta acção, porque sabe que é seu dever ajudar pessoas idosas. Neste caso, o
Gabriel cumpriu o dever (ajudar a senhora de idade) pelo próprio dever (pela
própria obrigação moral de ajudar pessoas de idade).
Mas que princípio é
este que me diz que eu devo cumprir o dever pelo próprio dever?
Esse princípio é o que se encontra presente na consciência de todos os
seres racionais e que Kant denomina de lei moral, uma lei da nossa razão. A lei
moral é a lei que nos diz o seguinte: “Deves cumprir sempre e em todas as
circunstâncias o dever por puro respeito pelo dever”. Para Kant, uma acção
apenas é moralmente válida, se se subordinar a este princípio de conduta – a
lei moral, cumprimento esse a que a nossa razão nos obriga. Ao respeitar a lei
moral, lei da nossa consciência racional, estou a respeitar uma lei que todos
nós devemos respeitar enquanto seres racionais que somos.
Aquele que não obedece à lei moral está a agir de forma imoral, porque
está a desrespeitar esta lei e, sendo a lei moral, a lei da nossa consciência
racional, aquele que a desrespeita está também a agir de forma irracional.
Ora, se agir moralmente é cumprir aquilo que a lei moral ordena por
simples respeito à lei moral, esta lei da nossa razão traduz-se assim num
imperativo categórico, na medida em que se assume como uma lei incondicional
(não se submete a condições para o seu cumprimento, mas enuncia: “Tu deves
sempre e em todas as circunstâncias...”) e formal (não me diz quais são as
regras ou os deveres que devo cumprir, mas como devo cumprir essas mesmas
regras morais ou esses deveres), ao estabelecer o cumprimento do dever como um
fim em si mesmo e não como um meio para alcançar algo. O imperativo categórico
surge assim como uma ordem incondicionada, dizendo-me aquilo que devo fazer
como um fim em si mesmo e não como um meio para obter um fim. Tal como as
próprias regras morais, as quais me dizem: “Deves fazer isto...” ou “Não deves
fazer aquilo...“, mas não me dizem “Deves fazer isto, se queres obter aquilo”.
O se aqui transforma aquilo que eu devo fazer numa ordem condicionada. Condicionada
por quê? Por aquilo que eu pretendo obter ou concretizar. Aquilo que eu devo
fazer transforma-se num simples meio para esse fim. Ora, para Kant, este modo
de agir não tem qualquer mérito moral, porque estou a transformar as ordens da
minha razão num meio para obter um fim.
Qual a necessidade de
imperativos da razão?
(A completar)
Como distinguir imperativos hipotéticos de
imperativos categóricos?
O imperativo hipotético é uma ordem
condicionada, na medida em que se submete a condições para que cumpramos o
dever, dizendo-me o seguinte: “Tu deves fazer isto, se queres obter aquilo”.
Por exemplo, eu devo dizer a verdade, se quero ficar bem visto perante os
vizinhos do meu bairro. Ora, a expressão que temos aqui tem a seguinte forma:
Eu digo a verdade (cumpro o dever) para não ficar mal visto perante os outros
(não pelo próprio dever, mas por interesse). Cumpro o dever, não pelo próprio
dever, como um fim em si mesmo, mas como um meio para obter um fim. (O
imperativo hipotético é o princípio que norteia a acção do indivíduo que age
apenas em conformidade com o dever.)
Pelo contrário, o imperativo
categórico é uma ordem incondicionada, na medida em que não se
submete a qualquer condição para que realizemos uma certa acção, anunciando o
seguinte: “Tu não deves mentir aos teus pais, porque esse é teu dever”. Não
devo mentir aos meus pais, porque é meu dever não mentir em todas as
circunstâncias possíveis e não por causa de qualquer outro interesse ou
inclinação. Neste caso, estou a cumprir o dever pelo próprio dever, não minto
porque é meu dever não mentir. Para Kant, mentir é sempre incorrecto, sejam
quais forem as circunstâncias em que me encontro, porque para Kant as regras morais
são absolutas, não existem excepções para um eventual incumprimento dessas
mesmas regras.
Cumpro o dever como um fim em si mesmo e não como um meio para obter outro fim.
Kant formulou o imperativo categórico sob diversos
modos.
Apenas apresentamos outras duas modalidades diferentes, mas que, ao fim
ao cabo, se permutam entre si.
São elas:
“Age segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo
tempo que se torne lei universal.” (agir de um modo tal que eu queira que o
princípio que determina a minha acção seja também ele seguido por todos os
indivíduos)
Imagine a seguinte
situação:
A Eva precisava de
dinheiro. Pediu algum dinheiro emprestado ao Bernardo com a promessa de lho
devolver, mas já tinha a intenção de não lhe devolver o dinheiro.
A Eva agiu de acordo com a seguinte máxima: “Sempre
que precisar de dinheiro, peço o dinheiro emprestado, mas com a intenção de não
o devolver”.
Pergunta Kant: Poderia este princípio de acção tornar-se lei universal,
ou melhor, quereria eu que este princípio de acção se tornasse lei universal?
Não, eu não o iria querer, porque, se o quisesse, o princípio destruía-se a si
mesmo. Como? Na medida em que a promessa, tal como é entendida, deixaria de
fazer qualquer sentido, porque, ao prometer, ninguém iria acreditar na minha
palavra, gerando-se como consequência necessária um clima de desconfiança geral
no relacionamento entre as pessoas.
Repare neste outro
exemplo igualmente elucidativo que Kant nos transmite:
Imagine que o Bruno
toma como princípio de acção o seguinte: “Recuso-me a ajudar em toda e qualquer
circunstância os necessitados”. Iria o Bruno querer que todas as pessoas
tomassem como princípio das suas acções o princípio enunciado pelo Bruno? Não,
o Bruno não o iria querer.
Que implicações a transformação desse princípio de acção em lei
universal iria ter para o Bruno? Aconteceria o seguinte: no momento em que o
Bruno precisasse de auxílio, ninguém o iria auxiliar. Ora, o Bruno não pode
aceitar esta situação. Logo, o princípio a partir do qual o Bruno coordena
algumas das acções não é, segundo Kant, moralmente correcto.
Outra formulação do
imperativo categórico é a seguinte:
“Age
de tal maneira que uses a tua humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de
qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como
meio.” (agir de um modo tal que, ao agir, encare o outro como o fim da minha
acção e não simplesmente como um meio para visar algo)
O exemplo anterior, da pessoa que pede dinheiro emprestado com a
intenção de não o devolver, ilustra bem esta situação, mas pelo lado negativo.
A pessoa que pede dinheiro emprestado e não o devolve está a encarar a pessoa a
quem pede dinheiro como um meio para obter um outro fim, está a colocar a
pessoa ao serviço dos seus interesses.
Para Kant, a pessoa tem de ser tratada sempre como um fim em si mesma e
nunca como um meio, porque é o único ser de entre as várias espécies de seres
vivos que pode agir moralmente. Se não existissem os seres humanos, não poderia
haver bondade moral no mundo e, nesse sentido, o valor da pessoa é absoluto.
Ora, para Kant, estes são precisamente os dois critérios sem os quais
não podemos atribuir moralidade às nossas acções: o agirmos de acordo com uma
máxima universal e o agirmos encarando os outros como fins em si mesmos e não
simplesmente como meios, critérios esses que se permutam entre si. (ao agir
segundo uma máxima universal, estou a encarar o outro como um fim em si mesmo
e, por sua vez, ao encarar o outro como um fim em si mesmo, estou a agir
segundo uma máxima universal).
Ora, a esta capacidade
do indivíduo agir de acordo com a lei moral denomina Kant de autonomia da
vontade. Autonomia da vontade porque o indivíduo não está a agir condicionado
pelos seus interesses ou inclinações sensíveis, mas num puro respeito pela lei
da sua própria consciência racional. Ao obedecer à lei moral, estou a obedecer
a uma lei da minha própria razão. Kant denomina esta vontade que cumpre o dever
pelo próprio dever de boa vontade. (Nota: A autonomia da vontade identifica-se em
Kant com o agir que cumpre o dever pelo próprio dever.)
Por sua vez, à
incapacidade do indivíduo determinar a sua conduta pela lei moral chama Kant
vontade heterónoma. A vontade heterónoma é aquela que cumpre o dever, não por
dever, mas por interesse, mas também a vontade que simplesmente não cumpre o
dever.
Ex.: Cumprir o dever porque a sociedade o exige,
porque Deus o requer ou porque os meus pais querem é, para Kant, aquilo que é
próprio de uma vontade heterónoma, porque cumpro o dever, não por dever, mas
por interesse (nos vários casos do exemplo apresentado, porque alguém –
sociedade, Deus ou pais – me diz que devo cumprir o dever). [Nota: A vontade
heterónoma em Kant identifica-se com o agir apenas em conformidade com o
dever.]
Mas por que razão haveremos
nós de obedecer à lei moral?
Kant diria que a lei moral é uma lei da nossa razão e é a racionalidade
que nos constitui como seres humanos e nos distingue das outras espécies. Ora,
como nós não queremos agir como agem os animais das outras espécies, então o
nosso dever enquanto seres humanos é o de agir de acordo com a lei moral.
Agir de acordo com a lei moral é aquilo que nos constitui como seres
livres, porque não ajo condicionado por qualquer interesse ou inclinação, mas
num respeito puro e incondicional à lei da minha própria razão. É este agir
livre, enquanto pura obediência às ordens da nossa razão, que nos constitui
igualmente como pessoas, seres com a capacidade de agir moralmente.
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