Foto Eduardo Martins |
Paul Nurse e a Ciência
Paul Nurse. "Corte nas bolsas dá
ideia de que fazer ciência é como jogar no casino"
Presidente da Royal Society esteve em Portugal para uma palestra sobre
ciência. Cortes deixaram-no apreensivo
Paul Nurse, Nobel da Medicina em 2001 e presidente da Royal Society - a
academia de cientistas mais antiga do mundo -, veio a Portugal a semana passada
falar sobre ciência e cultura numa conferência organizada pela Fundação
Francisco Manuel dos Santos. Caiu no meio do turbilhão em torno dos cortes das
bolsas para formação avançada, que relançaram o debate sobre o papel do Estado
na ciência. Defende que é preciso repartir o investimento pela ciência das
descobertas, a básica, e pela aplicada. Mas avisa também que um corte abrupto
arrisca criar a mesma falta de confiança que tanto preocupa quando se fala de
mercados: as mentes mais brilhantes vão equacionar a razão de investir em
Portugal.
Na biografia que enviou para a academia sueca quando ganhou o Nobel conta a
história da sua vida desde a infância na Inglaterra rural. Porque preferiu o
formato intimista ao tradicional CV?
Sempre pensei que para o público é importante ouvir falar dos cientistas
como pessoas normais. Por vezes pomo-nos num pedestal, muito distanciados da
sociedade, como se fossemos pessoas excepcionais. Ao falar da minha infância,
das minhas origens, penso que é mais fácil relacionarem-se comigo. Fui um miúdo
normal, passei por algumas dificuldades na carreira. E ainda tive uma coisa
mais complicada... se leu aquilo até ao fim.
Sim, já em 2008 fez uma adenda em que fala da "ironia final" da
sua vida como geneticista.
Sim, senti que, se tinha começado, tinha de terminar a história. Quando
quis ir trabalhar para os EUA exigiram-me um certificado de nascimento mais
completo para o visto e só então percebi que a minha irmã era afinal minha mãe
e os meus pais meus avós. Parece um romance do século xix. A minha mãe engravidou, foi mandada
para uma tia e eu fiquei com os meus avós, que fingiram ser meus pais. Nunca
ninguém soube de nada. Quando descobri já tinham morrido e nunca pude conversar
com eles sobre isso.
Dois fios condutores dessa história são as origens modestas e o papel da
escola na sua vida. Era uma mensagem?
Vim de uma família pobre, embora me desse muito apoio. Não tinham formação
académica, não tínhamos livros em casa. Foi na escola que tive o meu primeiro
contacto com palavras e ideias. Os meus professores de Ciências e Humanidades
foram cruciais, fizeram-me evoluir de um ponto em que não sabia nada para a
ideia de que a curiosidade e o conhecimento nos podem levar longe e dar
respostas sobre a vida. Quando o escrevi não estava a pensar numa mensagem,
acho que é algo enraizado na minha mente. Mas de facto, ao contar a minha
história e como a educação me fez desenvolver as minhas capacidades e o meu
interesse pelo mundo, estou a sublinhar o poder da educação. Nem toda a gente
vai receber um Nobel, mas uma boa educação permite que toda a gente consiga
perceber melhor o mundo.
Acha que essa compreensão do papel da educação é suficientemente sólida,
sobretudo em momentos de crise?
Acho que a batalha de que a educação é importante está ganha mesmo em
tempos de crise. Penso contudo que precisamos de mais discussão sobre a forma
como ensinamos os nossos alunos. Muitas vezes acaba por ser uma discussão mais
influenciada por opiniões e ideologias que por investigação e validação de
ferramentas. Acho que sabemos que devemos educá-los bem, mas ainda não sabemos
como isso se faz.
Os seus alunos são o topo, mas que lacunas podiam ser trabalhadas?
Tem razão, os alunos que me chegam hoje para formação avançada são o que se
chama la crème de la crème . Mas também tenho filhos e visitei
as escolas em que andaram. Respeito muito o que os professores conseguem fazer
e a dedicação aos alunos, mas penso que há mudanças importantes que é preciso
começar a estruturar. Temos de encorajar as crianças desde a escola primária a
ter interesse no mundo e a interagir com ele. Não a aprenderem só as letras, os
números e a matéria, mas a envolverem-se na descoberta.
Na biografia conta que já com dois filhos sentia que o seu trabalho era
precário e o laboratório no Sussex tinha pouco financiamento. Quando se sentiu
seguro profissionalmente?
Para mim ser cientista sempre foi um privilégio. Sinto-o mais como uma
vocação que como um emprego. De certa forma, nunca pensei muito em ter apoios.
Nesses anos e à medida que me fui especializando no que queria, sem pensar no
que estava na moda ou nas áreas que tinham mais dinheiro, percebi que era
difícil ter apoio e empregos seguros. Não me queixava, percebia que era assim.
Mas como é que pagava as contas?
Nunca estive desempregado, tinha era vínculos de poucas horas e não sabia
onde ia estar dali a seis meses. Havia poucos sítios onde pudesse seguir o meu
caminho. Acabou por correr sempre tudo bem, conseguia as bolsas que pagavam o
meu salário. Mas vivi nessa instabilidade de não saber se no ano seguinte teria
emprego. É um problema comum, acho que faz parte da profissão.
Era o preço a pagar pela liberdade?
De certa forma sim. É normal a profissão de cientista envolver alguma
insegurança, é um problema universal.
Há dias o nosso ministro da Economia disse não ser possível continuar a
suportar um modelo que financia ciência no conforto de estar longe da economia
real. Onde é a fronteira, onde é que o Estado deve pôr dinheiro?
Penso que o problema surge quando se assumem posições extremas e aí parece
que pode haver duas, ambas erradas. Por vezes os políticos têm uma visão de
curto prazo e pensam que a forma de pôr as coisas a andar é investir no
trabalho que está quase na fase aplicada e em áreas mais direccionadas para
isso. Claro que isso é importante, mas não deve esgotar-se aí todo o apoio. Se
se injecta dinheiro só no que é imediato, fica-se sem objectivos. Se as áreas
são controladas de cima para baixo, perde-se o potencial da criatividade. Dizer
que isso não deve ser apoiado, que cabe às empresas, por exemplo, também é um
erro. Precisamos de um espectro alargado de financiamento, da investigação
aplicada à mais orientada para a descoberta. A investigação orientada para a
descoberta é como a semente do milho. Se a queimamos, queimamos a economia. É
só estúpido. Por vezes é difícil explicar isto, sobretudo aos ministros das
Finanças. No Reino Unido temos tido sorte. O ministro George Osborne é um
grande apoiante de toda a ciência. Tenho trabalhado com ele nos últimos anos de
crise. Claro que há cortes, mas tem havido a preocupação de proteger a ciência.
Mas veja-se a Alemanha, a economia mais forte na Europa: nunca cortou o apoio à
ciência, a nenhuma das áreas. O que é preciso perguntar aos vossos ministros é
se será que perceberam bem, se viram mesmo o que estão a fazer os países mais
avançados.
Um dos argumentos é que se estão a passar bolsas individuais para programas
de doutoramento nos institutos, mais estruturados e que vão financiar
igualmente doutoramentos. Faz sentido?
Isso pode reflectir uma certa arrogância, de que há pessoas que sabem o que
é melhor apoiar e fazer. Muitas vezes as decisões sobre que programas apoiar
são tomadas por homens como eu, de cabelo branco, que já passaram há muito o
seu período de ouro criativo. Tendem a centrar-se no óbvio. A vantagem das
candidaturas individuais é haver muitas boas ideias, à partida de pessoas com
qualidade. Se o sistema passar a ser demasiado gerido de cima para baixo acabam
por perder-se. Por vezes é apropriado, não digo que não, mas esses programas
não podem absorver a maior parte do financiamento.
Quando teve a sua melhor ideia?
Bom, quando tinha 20 ou 30 anos e dei os passos que viriam a ser premiados
com o Nobel, sobre o ciclo de vida das células. Não que hoje seja mau, mas não
sou tão bom como era dantes. Talvez pela minha experiência pessoal, a minha
filosofia enquanto gestor de instituições sempre foi deixar as flores
desabrochar. Dar liberdade aos que são bons e deixá-los escolher o que querem
fazer.
É por isso que se rodeia de estudantes e cientistas jovens nos laboratórios
por onde tem passado?
São esses que gosto de apoiar. Quando se tem 20 e 30 também se é ingénuo e
estúpido, mas é-se criativo, tem-se energia e o meu trabalho é ajudá-los a
atravessar esses primeiros anos de ingenuidade e a levantarem-se quando caem.
Não é evitar que isso aconteça dizendo que têm de fazer isto ou aquilo para não
desperdiçar dinheiro ou tentar garantir retorno a curto prazo.
Ao fazer o contrário arriscamo-nos a perder uma geração?
Quando se faz um corte dramático nos estudantes de doutoramento e
pós-doutoramento, como está a acontecer em Portugal, o problema é o impacto que
uma medida dessas tem no momento e o que transmite a longo prazo. Os cientistas
são investimentos a longo prazo. Quando se investe, seja o Estado seja o
próprio estudante, vai-se ter retorno daqui a cinco, dez ou 15 anos. É como
qualquer coisa na economia ou nos mercados. Se não há confiança no sistema, os
jovens brilhantes não vão para lá. Eles vêem, não são estúpidos. Se vêem um
corte abrupto das bolsas, começam a pensar: onde é que me vou meter? Isto é de
doidos, é como jogar no casino. Se já estão dentro do sistema, vão pensar qual
é a ideia de ficar em Portugal. Vão pensar "sou inteligente, tenho o meu
doutoramento, vou para a Alemanha ou outro sítio qualquer". É um grande
disparate.
Lembra-se do seu primeiro contacto com a ciência portuguesa?
O que me fez começar a levar Portugal a sério foi mais o contacto humano
que os trabalhos científicos. Trabalhei sempre em institutos procurados por
cientistas de todo o mundo e a certa altura comecei a ver cada vez mais
portugueses a ter posições, quer como estudantes quer como investigadores. Em
termos de evolução, penso sempre em Portugal e Espanha em conjunto porque acho
que evoluíram graças ao investimento sustentado nos últimos 20 anos. Quando eu
era estudante ne- nhum destes países era levado a sério em termos científicos e
agora é. Não digo que hoje estejam no top, mas, em comparação com outros países
mediterrânicos, estão avançados. Agora há cortes. Se o corte nas bolsas, por
exemplo, for o problema de um ano, tudo bem. Mas se reflectir uma visão
política de que não é importante, é grave. Preocupa-me o impacto que terá na
comunidade científica e na motivação dos jovens. Se for assim, provavelmente
será um grande erro.
Qual é a sua ideia dos cientistas portugueses?
A ciência é um meio interessante: é universal mas ao mesmo tempo deixa-se
influenciar por idiossincrasias locais. É uma cultura universal de respeito
pelas observações e necessidade de verificação. É céptica por natureza, rejeita
dogmas. Se for aos EUA, à China ou a Cuba, é fácil falar com um cientista com
base nestes pressupostos. Dito isto, há diferenças que nos complementam e fazem
que a pluralidade nos laboratórios seja uma mais-valia. Em Inglaterra não acho
que trabalhemos intensamente, mas somos criativos. No Oriente, na China e no
Japão, põe-se muita ênfase no processamento de dados. Nos EUA há muito dinheiro
e seguem-se os temas quentes e na moda, o que é importante mas não se pode
ficar por aí. Penso que em Portugal e em Espanha há muito aquela coisa latina
do entusiasmo com as ideias, os projectos e os resultados. Ter pessoas assim à
nossa volta é motivador...
Vai lançar o Instituto Francis Crick. Qual é a idei a?
Vai ser um grande instituto, com 1400 cientistas e 2 mil pessoas no total,
todas no mesmo laboratório. Será provavelmente o maior instituto da Europa. Não
vou ter departamentos académicos. Vou ter 100 grupos de investigação, que não
vão estar sujeitos a uma disciplina ou área. Vamos estar ligados às três
principais universidades de Londres - a University, a Imperial e a King's.
Quero promover contacto entre os cientistas, os professores e os alunos, numa
agenda multidisciplinar. Por fim, vai ser centrado na juventude. Dois terços
dos cientistas vão estar na primeira fase da carreira.
É um privilégio receber um Nobel, estar à frente da academia científica
mais antiga do mundo (Royal Society) e ainda ter energia para lançar o
instituto?
Estou numa posição privilegiada, mas acho que sempre estive. Consegui fazer
tudo muito cedo, terminei o doutoramento aos 23 anos, fui Nobel aos 57. Não é
comum criar um centro de investigação desta forma pouco ortodoxa e é só porque
sou respeitado pelo meu trabalho que consigo fazê-lo. Vamos cometer erros, mas
gosto de pensar que vamos fazer investigação científica mas também experiências
sobre como se faz investigação. Normalmente as pessoas demoram tanto a
conseguir um lugar que depois replicam o estilo do que se lá se faz. Não
queremos isso, queremos romper barreiras e perceber se isso dará melhor
ciência.
Já recebeu candidaturas de Portugal?
Sim, já tenho algumas. Mas agora tenho de pô-las de lado porque estamos a
tratar da concepção do instituto e da ligação às universidades, o que é um
processo complexo. Provavelmente só vamos começar a recrutar em 2016. Se tudo
correr bem, Portugal há-de recuperar entretanto e talvez não venhamos recrutar
muitos cientistas.
A sua biografia fala da sua visão idealista da ciência como força
libertadora e progressista da humanidade. Hoje é precisa mais do que nunca?
A ciência hoje é precisa mais do que nunca, mas sempre foi precisa mais do
que nunca. Não só para pôr a andar a economia, mas porque é a base de todos os
temas que preocupam a humanidade e que temos de começar a discutir com mais
argumentos científicos. Seja a escassez de água sejam as alterações climáticas.
Precisamos de indivíduos capazes de estudar, mas também de comunicar e inte-
ragir com a sociedade para que prevaleça essa racionalidade. Para a ciência ter
impacto, a sociedade tem de estar confortável com ela. Isso não é assim porque
a ciência é provavelmente a actividade humana mais revolucionária, mais que a
política: veja-se a discussão sobre as células estaminais, sobre o início e o
fim da vida, sobre a Terra não ser o centro do universo. Os cientistas têm de
conseguir comunicar e envolver as pessoas. Têm de envolver aplicações práticas,
mas têm de conseguir expressar-se. E digo isto reconhecendo que os cientistas
nem sempre são pessoas com quem é fácil falar.
Como é estar sentado na cadeira de cientistas como Isaac Newton, também
presidente da Royal Society?
A Royal Society basicamente inventou a ciência moderna. Não foi só ele que
esteve na cadeira onde estou hoje, todos os meus antecessores são grandes
vultos. Por muito que me orgulhe, estar nesse lugar é assustador.
Marta F. Reis
In Ionline, 29 de janeiro de 2014
Lola
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