Stephen Law e o problema do mal
Nigel Warburton: O tópico sobre o qual queremos conversar é o problema do mal.
Importa-se de nos dar uma ideia do que se trata?
Stephen Law: Bem, na
verdade existem dois problemas, não apenas um. Se aceitamos à partida a ideia
de que Deus é todo-poderoso, perfeitamente bom e tudo sabe, porque é
que o mal existe ou porque é que o mal existe na quantidade em
que existe? Há aqui dois problemas diferentes. O primeiro é o chamado
problema lógico do mal. Há quem argumente que a existência de Deus é
incompatível com a mínima existência de qualquer espécie sofrimento ou mal. O
outro problema do mal é este: se acreditamos num Deus todo-poderoso e
perfeitamente bom, como explicar que exista tanto sofrimento e
mal no mundo? Seguramente que um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom seria
capaz de produzir um mundo onde existisse muito menos sofrimento, e, sendo Ele
perfeitamente bom, quereria seguramente que o mundo contivesse muito menos
sofrimento. Porque há, então, tanto sofrimento? Portanto, de acordo com o
problema indiciário do mal, é a quantidade de mal o verdadeiro problema, ao
passo que de acordo com o problema lógico é a existência de qualquer mal ou
sofrimento que é considerado o problema. A quantidade de
sofrimento é um indício de que Deus não existe.
NW: Trata então o
sofrimento como mal?
SL: Bem, é claramente um mal,
e tende a ser o mal em que as pessoas se focam quando discutem o problema do
mal. Talvez seja melhor chamar ao problema do mal o problema do sofrimento. A
palavra «mal» acarreta consigo uma grande carga metafísica. Podemos ver-nos
livres de toda a carga metafísica e falar apenas de sofrimento. A existência de
enormes quantidades de sofrimento é claramente um grande problema para quem
acredita num Deus todo-poderoso e perfeitamente bom.
NW: Voltando à distinção
entre o problema lógico do mal e o problema indiciário do mal, pensa que é
igualmente importante discutir tanto um como outro?
SL: Bem, são ambos problemas muito
interessantes. Julgo que aquele que é realmente um problema sério para os
teístas é o problema indiciário. O problema lógico pode ser porventura
resolvido com relativa facilidade. Bastaria mostrar que um Deus todo-poderoso e
perfeitamente bom criaria algum sofrimento se esse sofrimento fosse o preço a
pagar por um bem maior que o superasse. Seria um mundo melhor apesar de conter
em si sofrimento. Soa paradoxal, mas não é. Por exemplo, poderia dizer-se que a
compaixão e a comiseração são grandes virtudes e que é importante que as
pessoas tenham a oportunidade de exibir essas virtudes, mas que só é possível
exibi-las se algumas pessoas sofrerem e pudermos sentir por elas comiseração.
NW: Esse é, portanto, o
problema lógico. Mas o problema indiciário é: porque há tanto sofrimento?
SL: Correcto. Do que se trata neste
caso não é mostrar que o sofrimento é incompatível com um Deus todo-poderoso e
perfeitamente bom, mas que um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom não
produziria seguramente um mundo que contivesse em si tanto sofrimento. Para
mim, este argumento arruma mais ou menos de vez com a questão de se saber se
Deus existe ou não existe. Parece-me realmente que há indíciosempíricos
esmagadores contra a existência de um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom.
Mas antes de falarmos disso, seria vantajoso que
pensássemos no que, em geral, torna uma crença razoável. As pessoas sentem-se
frequentemente confundidas quanto à razoabilidade e à verdade. O que quero
sublinhar acerca da razoabilidade é que se trata de uma questão de grau. As crenças
podem ser mais ou menos razoáveis. Algumas crenças são realmente muito
razoáveis, algumas um pouco menos razoáveis, algumas não são excepcionalmente
razoáveis mas não são irrazoáveis, e há mesmo algumas crenças que são
claramente irrazoáveis. Há uma escala de razoabilidade na qual
podemos posicionar as crenças. Tome-se a crença de que o Japão existe. Nunca lá
estive, nunca vi o Japão com os meus próprios olhos, mas parece ser algo em que
é muito razoável acreditar, pois possuo indícios esmagadores de que o Japão
existe. Já comi em restaurantes de sushi, conheci pessoas que afirmam ser
japonesas e não tenho qualquer razão para pensar que exista uma vasta
conspiração internacional para levar os ocidentais a pensar que o Japão existe
quando não é esse o caso. Dito isto, não posso provar inequivocamente sem
qualquer margem para dúvidas que o Japão existe. Talvez aquelas pessoas que
afirmam ser japonesas tenham passado horas a maquilhar-se antes de eu as ter
conhecido. Apesar disso, é muito razoável eu pensar que o Japão existe. Outras
crenças são um pouco menos razoáveis mas ainda assim bastante razoáveis. Há
vida inteligente em outros planetas noutras partes do universo? Não é algo em
que seja irrazoável acreditar. Sabemos que a vida inteligente se desenvolveu
aqui. Sabemos que há milhões e milhões de planetas como este. Por outro lado,
não temos qualquer prova dessa vida inteligente. Descendo na escala de
razoabilidade chegamos a crenças como a de que existem fadas, duendes e de que
Elvis Presley está vivo e de boa saúde e que mora em Sintra. Há crenças para as
quais poucas provas há e para as quais há mesmo muitas provas em contrário,
apesar do que dizem alguns sites da Internet.
NW: Temos então esta escala
de crenças que vai do muito plausível ao muito implausível. Como é que isto nos
ajuda relativamente ao problema de saber se Deus existe ou não?
SL: Bem, o que é importante não é
saber se há uma prova conclusiva – uma prova
acima de qualquer dúvida. Pode dar-se o caso de não nos ser possível provar
de forma conclusiva sem qualquer margem para dúvidas que Deus existe, e pode
dar-se também o caso de não nos ser possível provar de forma conclusiva sem
qualquer margem para dúvidas que Deus não existe. Mas mesmo que não possamos
provar uma coisa nem outra, pode ainda assim ser possível estabelecer que a
crença em Deus é de facto muito razoável ou – e esta é a minha perspectiva –
muito irrazoável, apesar de não se poder refutá-la. A questão não é de todo a
de saber se temos ou não «provas»: trata-se de uma questão de razoabilidade. As
pessoas religiosas não podem dizer:«Não se pode provar nem uma coisa nem outra,
logo é uma questão de fé, e o ateísmo é tanto uma posição de fé como o teísmo».
Isto não é, pura e simplesmente, verdade. Mesmo que não possamos «provar» nem
uma coisa nem outra, pode bem dar-se o caso de o ateísta conseguir obter razões
fantasticamente boas para pensar que Deus não existe, porventura tão boas
quanto aquelas que nos levam a pensar que não existem fadas no fundo do meu
jardim. Afinal, não posso provar categoricamente que não existem fadas no fundo
do meu jardim.
NW: Vejamos, disse que a crença em Deus não é uma posição razoável.
Porque tem essa convicção?
SL: Apontaria duas coisas. Antes de
mais, olhe-se para muitos daqueles argumentos populares a favor da existência
de Deus que os não filósofos consideram persuasivos – tal como o argumento do
desígnio. Muitas pessoas dizem: «Quais as possibilidades de o universo ter sido
constituído tal como é, de modo a existirem planetas estáveis e a que a vida
pudesse ter-se desenvolvido? É astronomicamente improvável que essa situação
pudesse existir por acaso. Portanto, é razoável acreditar que exista qualquer
espécie de inteligência por detrás do universo». Pode ser. Mas um problema com
este argumento é que se trata apenas de um argumento a favor da existência de
uma inteligência superior. Talvez seja um bom argumento. Não penso que o seja,
mas, a título meramente argumentativo, vou admitir que o é. Que
conclusões podemos tirar acerca da personalidade ou do carácter moral dessa
inteligência? E a resposta é: na verdade, nenhuma. Porquê concluir que o
criador é o Deus judaico-cristão – que é todo-poderoso, perfeitamente bom e
supremamente benevolente? Porquê tirar essa conclusão? Não nos foi dada qualquer
razão para tirar essa conclusão. Tudo o que nos foi dito até agora foi que
existe uma qualquer espécie de inteligência por detrás das coisas. Portanto,
este argumento popular fracassa.
O mesmo acontece com outros, como os argumentos
cosmológicos da primeira causa mais toscos. «Porque há sequer alguma coisa? Tem
de haver um criador que tenha trazido tudo à existência». Certo, há um criador,
mas porque é que se pensa que é o Deus judaico-cristão? Portanto, estes
argumentos não são bons argumentos a favor da existência de um Deus
todo-poderoso e perfeitamente bom. Pior ainda, há indícios fantasticamente bons
contra a existência de um tal criador. Esses indícios são os que dão lugar ao
problema do mal.
NW: Mas os teístas têm
habitualmente respostas para o problema do mal, conhecidas por teodiceias, que
explicam como pode haver mal no mundo.
SL: Sim. Uma das mais populares é a
explicação do sofrimento pelo livre-arbítrio. Há várias versões. As mais
simples dizem: «Deus deu-nos o livre-arbítrio. Não nos fez autómatos que fazem
apenas aquilo que Deus ordena ou nos obriga a fazer, como se fôssemos
marionetas dançando ao ritmo dos seus cordelinhos. Deus cortou os cordelinhos,
libertou-nos, de modo a que pudéssemos fazer as nossas escolhas, tomar as
nossas decisões e agir de acordo com estas. Infelizmente, escolhemos por vezes
fazer o que não é correcto e originamos guerras, roubamos e assim por diante. O
sofrimento é uma consequência, mas esse sofrimento é compensado pelo bem do
livre-arbítrio».
NW: É um argumento que me
parece bastante convincente. O que há nele de errado?
SL: Bem, um problema é que não
consegue explicar muito sofrimento, como, por exemplo, o sofrimento produzido
pelos desastres naturais. Não há muito tempo houve um terramoto no Paquistão no
qual dezenas de milhares de crianças ficaram esmagadas debaixo dos edifícios.
Tinham acabado de chegar à escola e ficaram encurralados sob os escombros,
morrendo passados dias ou mesmo, em alguns casos, semanas. Como podemos
explicar isto de um modo que seja compatível com a existência de um Deus
todo-poderoso e perfeitamente bom? Não chega dizer «Bem, há-de ter alguma coisa
a ver com o livre-arbítrio humano», pois nós não produzimos terramotos, nem
mesmo acidentalmente. Além disso, não esqueçamos que não são apenas os seres
humanos a sofrer desta maneira. Quem tenha visto o programa Planeta
Terra da BBC saberá que partilhamos o mundo com muitos seres
sencientes cujas vidas são absolutamente horríveis. Não apenas actualmente,
pois tem sido assim durante centenas de milhões de anos. Há cerca de 200
milhões de anos houve um acontecimento que provocou uma extinção em massa –
possivelmente um cometa, não sabemos exactamente, mas sabemos que desapareceram
da face da terra 95 por cento das espécies. Terá provocado um sofrimento
inimaginável. Clarificando melhor o problema indiciário do mal, podemos expô-lo
deste modo: um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom podia pôr algum mal
no mundo, mas não poria nem um único grama de sofrimento gratuito e inútil, um
único grama que fosse. Ora, quando olho para essas centenas de milhões de anos
de horror inimaginável, parece-me que não se pode manter sensatamente que
exista um tal ser.
NW: O que acabou de dizer
acerca das centenas de milhões de anos de sofrimento aponta, talvez, não para
um Deus bom mas para um Deus não muito simpático.
SL: Podemos considerar isso como
uma hipótese. Existe um Deus todo-poderoso e absolutamente mau. A primeira
coisa que notará é que essa hipótese é tão bem sustentada pelos habituais argumentos
a favor da existência de Deus quanto a hipótese do Deus bom. Se há um
arquitecto, porque não um arquitecto mau em vez de um bom arquitecto? Se há uma
primeira causa, porque não uma causa primeira má em vez de uma causa primeira
boa? Se acredito num Deus mau, posso servir-me desses argumentos tão
eficazmente como quando acredito num Deus cristão.
Mas, é claro, ninguém vai acreditar num Deus mau.
Porquê? Bem, olhemos pela janela lá para fora. O que vejo neste momento são
crianças felizes e sorridentes brincando de um lado para o outro sob um sol
radioso. Porque haveria um Deus mau de permitir tal coisa? Seguramente, um ser
supremamente maligno estaria interessado em torturar-nos para toda a eternidade
com um ferro em brasa e não em produzir arco-íris, alegria, sol e gelados. Há
demasiadas coisas boas no mundo para que isto seja a criação de um ser
supremamente poderoso e supremamente mau. Podemos ver que este problema –
chamemos-lhe o problema do bem – é simplesmente o inverso do problema do mal.
Se acreditamos num Deus todo-poderoso e perfeitamente bom temos de explicar
porque é que há tanta coisa má. Se acreditamos num Deus todo-poderoso e
completamente mau temos de explicar porque é que há tanta coisa boa. Na
verdade, parece-me que se podem provavelmente desenvolver alguns argumentos
engenhosos para lidar com o problema de se saber porque é que um Deus mau nos
dá a desfrutar um belo pôr-do-sol. Para tornar mais extrema a nossa
apreciação do terrível horror e fealdade da vida do dia-a-dia: porque nos
dá ele corpos jovens, em boa forma e belos? Bem, fá-lo apenas por cerca de dez
ou quinze anos. Depois, vagarosa e inevitavelmente, as pessoas vão caindo na
decadência e decrepitude até acabarem por morrer, irremediavelmente feias,
incontinentes e a cheirar a xixi, tendo tido uma existência curta e, em última
análise, sem sentido. Quer dizer, que melhor maneira podia haver para maximizar
o sofrimento do que dar-nos algo de bom durante um curto período para depois o
tirar a pouco e pouco e inexoravelmente? A maior parte das teodiceias podem ser
voltadas de pernas para o ar. E quando as viramos de pernas para o ar deste
modo, elas revelam-se anedóticas. Portanto, a questão é: porque levamos tão a
sério as teodiceias a que estamos habituados? Na escala da razoabilidade,
coloco o Deus mau muito em baixo. Mas essa é exactamente a razão pela qual
coloco o Deus bom muito em baixo na mesma escala.
NW: Então qual é a crença
razoável?
SL: Para voltar à escala da
razoabilidade, parece-me que as hipóteses do Deus mau e do Deus bom se
encontram ambas muito abaixo nessa escala. Uma
descrença um pouco menos irrazoável seria que háalguma espécie
de inteligência, mas que não é nem perfeitamente boa nem má. Talvez exista um
Deus e ele tenha dias bons e dias maus. Se olharmos para o Deus do Antigo
Testamento é óbvio que esse ser não é supremamente benevolente. Comporta-se
antes a maior parte do tempo como um filho da mãe extremamente irascível, embora
tenha os seus dias bons. Se olharmos para o mundo, ele parece estar mais de
acordo com esta hipótese do que com a do Deus mau ou a do Deus bom. Mas, para
ser franco, acho que podemos e devemos provavelmente pôr de parte todos os
deuses.
Stephen Law ensina na Universidade de Londres e é editor da revista Think.
David Edmonds & Nigel
Warburton, Philosophy Bites. 25 Philosophers on 25 Inriguing Subjects (Oxford,
2010, pp. 210-218). Trad. Carlos Marques.
Lola
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