Sobrinho Simões e Arouca
No primeiro dia das
férias da escola apanhava a camioneta para casa dos avós. Cinco horas do Porto
a Arouca. Na aldeia, acompanhava o avô, médico conceituado e olivicultor
premiado, para todo o lado. Nas visitas aos doentes no táxi que subia e descia
estradas apertadas, na viagem até Anadia para comprar os pavios para a
procissão dos fogaréus, nas vistorias aos pomares espalhados pelas serras. O
professor, médico e investigador recupera memórias na terra onde os mais velhos
ainda o tratam por menino Manelzinho.
Há um barulho que não
lhe sai da memória: o das socas de madeira que calcavam o granito das ruas da
aldeia durante a procissão dos fogaréus, dias antes da Páscoa. Esse som saído
dos pés de senhoras e meninas acompanhava o ritmo da marcha fúnebre de Chopin
interpretada pela banda de música. “Aquele ritmado das socas era uma coisa
única.”
Ao pé da casa dos avós paternos, a comadre Maria matava galinhas atrás de
galinhas para lhes arrancar as penas que transformava em delicadas asas de
anjos para as meninas que iriam participar na procissão a que religiosamente a
família Simões assistia da varanda. Banda de música a abrir caminho num
percurso até ao alto do Calvário, homens e mulheres que não se misturavam para
decalcar os últimos momentos da vida de Cristo na terra. Era um momento solene
e as suas irmãs, ainda pequenas, vestiam-se de anjos e seguiam no cortejo. “A
Páscoa era uma coisa muito especial. Desde miúdo, desde que me lembro, passava a
Páscoa com os meus avós.” Em Arouca, na aldeia que era então o centro do seu
mundo.
A Páscoa tinha rituais. Limpava-se a casa de cima a baixo para receber o
padre e o compasso. O pequeno Sobrinho Simões acompanhava o avô médico até
Anadia, aonde iam comprar os pavios de cera que na noite da procissão dos
fogaréus iluminariam as varandas de casa. A compra era feita a um primo direito
do avô, também médico. Durante a viagem, apercebia-se do estatuto do avô. De
Arouca até São João da Madeira, ocupavam os lugares logo atrás do motorista da
camioneta, que lhes reservava o sítio como sinal de respeito. Na troca de
carreira, de São João da Madeira para Oliveira de Azeméis, iam nos lugares do
meio. “Até Anadia já íamos mais atrás na camioneta.”
Na última Páscoa, o professor catedrático, médico e investigador, director
do Ipatimup – Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do
Porto, regressou à casa da família, em Arouca, para assistir à procissão dos
fogaréus organizada pela Santa Casa da Misericórdia local, da qual é “irmão”.
Durante a tarde, a família Simões cumpria a tradição. Espalhava velas pelas
varandas. As netas Mariana, de oito anos, e Mafalda, de seis, filhas do filho
do meio, João, assistirão à procissão pela primeira vez. A mãe do professor vai
recebendo familiares e amigos e a mesa comprida da cozinha, que mantém a imensa
e generosa chaminé das casas mais antigas e que tanto espantam os nórdicos que
ali têm ficado alojados, não tardará a ficar preenchida com os convidados.
O professor acaba de chegar de mais um dia de trabalho. De manhã, recebeu
quatro casos clínicos de Creta, Grécia. Reuniu alguns investigadores para uma
primeira análise. Sem almoçar, faz-se à estrada em direcção a Arouca. E como
sempre que regressa à agora vila combina com o dono da oficina, filho da
afilhada da sua avó, para tratar da viatura. Há sempre amolgadelas para
resolver ou revisões e inspecções a tratar. Confia-lhe as chaves do carro que
dali sairá como novo.
A noite aproxima-se. É na rua, com a mulher, as duas netas, o filho João,
alguns familiares e conhecidos, que Sobrinho Simões vê a procissão passar em
frente à casa com as varandas iluminadas. Minutos antes, chega o director da
Rádio Regional de Arouca com o microfone na mão e não perde a oportunidade para
umas perguntinhas a “um nobre filho desta terra”. O professor sorri e responde
já a procissão saiu da igreja em frente ao mosteiro. “Arouca está diferente do
tempo em que eu era pequeno, tem carros a mais”, comenta, quando a questão
recai sobre a evolução da vila. A procissão aproxima-se e passa. Não há socas a
pisar o granito nem meninas vestidas de anjo com penas de galinha. A banda vai
em último, homens e mulheres desfilam lado a lado. Quatro andores, três de
Cristo, um dos quais que representa a crucificação na cruz, e um de Maria
compõem a procissão religiosa que acaba no Calvário. O “vizinho” Alberto
Teixeira de Brito, que nasceu na casa em frente, até há pouco tempo provincial
dos Jesuítas, integra o cortejo.
“Antigamente a procissão era mais pobre, mais organizada. Sinto uma coisa
qualquer que tem a ver com a memória”, confessa Sobrinho Simões. São as
memórias, e não a fé religiosa, que o conduzem a esse regresso às origens. A
procissão lembra-lhe a família reunida, os rituais de preparação, o estar a pé
até mais tarde. Tenta não faltar à procissão dos fogaréus, mas há uma que não
perde há 24 anos na desabitada aldeia de Drave, lá em cima, aninhada entre
serras. A 15 de Agosto, os familiares de quem lá viveu regressam para a festa
em honra de Nossa Senhora da Assunção. Há procissão, missa rezada na capela e
canções que ganham amplitude e ecoam “num vale muito bonito”. Para lá chegar, é
preciso percorrer caminhos de cabras. O professor assegura que vale a pena e já
lá levou vários amigos para assistirem a esses rituais marianos simples e
emocionantes. “Em Arouca, há uma religiosidade intensa que tem muita
expressão”, observa.
Arouca, a aldeia que virou vila, distante do Porto e do mar, orgulha-se das
suas serras a perder de vista, de aldeias de pouca gente que aprendeu a tirar
da terra o que precisa para viver, de um geoparque que tem pedras parideiras
que saltam das rochas e uma cascata numa frecha que nunca se fecha. Orgulha-se
do que tem de genuíno. E isso agrada-lhe. “Há um universo local de uma
intensidade extraordinária”, refere. “A banda tocava no coreto”, lembra.
No primeiro dia das férias da escola, apanhava no Porto, onde vivia e
estudava, a camioneta que o iria levar a casa dos avós em Arouca. Cinco horas
de viagem com condutores à antiga, que paravam sempre que fosse necessário. Ou
para matar a sede com um copo de vinho americano, ou para as urgências das
bexigas dos passageiros no café mais próximo. Na aldeia dos avós paternos, o
tempo passava devagar e o pequeno Simões sentia-se imortal. Ia com os amigos
nadar para os rios Paiva e Paivó. A estratégia era sempre a mesma, encontrar um
taxista que também gostasse de mergulhar no rio para juntar o útil ao agradável
e conseguir um preço mais barato. “Não íamos para o rio Arda, era perigoso.” À
noite, depois do jantar, juntavam-se no clube local com mesas de bilhar e
cartas para a jogatina. “Jogávamos muitas cartas, principalmente sueca e king”,
recorda. Quando havia, assistiam às sessões de cinema ao ar livre com os bancos
de pau que levavam de casa. Ainda hoje chora no cinema, sobretudo com coisas
boas, muito mais com as chegadas do que com as partidas. “O barco parte e não
me acontece nada, mas quando regressa, é uma choradeira.” Nunca perdeu o
fascínio por essa magia que o cinema tem de fazer acreditar em qualquer coisa.
“Gosto que me aldrabem.” Que o aldrabem com classe, que o façam acreditar no
impossível.
Geração livro de instruções
A casa é sempre um porto seguro e a de Arouca traz-lhe muitas recordações.
Há livros antigos nas estantes de madeira, fotos a preto e branco na sala da
frente. O corredor está ligeiramente inclinado, a cozinha à moda antiga respira
espaço, as portadas protegem as janelas. “As famílias vivem muito das casas. As
casas antigas dão-nos um sentido de pertença. Uma casa de onde se vem tem um
valor muito grande”, afirma. A casa de Arouca foi comprada pelo bisavô, o
médico Manuel Rodrigues Simões, no final do século XIX.
Morada do avô, filho único e médico e do pai também filho único e médico.
Todos com Manuel no primeiro nome. Casa mantida na família até hoje, com jardim
e piscina nas traseiras, cavalariças e casa dos caseiros. E árvores de fruto
plantadas pelo professor. Fica a dois passos do imponente Mosteiro de Arouca,
aonde ia, de vez em quando, à missa com a avó, que seguia as cerimónias
religiosas na cadeira com o nome Simões gravado na madeira.
Da casa, vê-se a Senhora da Mó, com a cruz lá do alto. Na noite de 7 de
Setembro, véspera do dia do seu aniversário — Sobrinho Simões nasceu a 8 de
Setembro — há uma ceia só para homens naquele local de culto no sopé da serra.
O avô não faltava e levava uma garrafa de vinho branco e uma malga de marmelada
para o convívio masculino. O neto mais velho também ia.
O avô Manuel Rodrigues Simões Júnior foi a referência. Nos cartões de
visita, escrevia médico e olivicultor premiado em terceiro lugar. Etnólogo,
investigador, ajudou a fundar o museu de arte-sacra de Arouca. Era o médico da
aldeia que recebia os doentes em casa num gabinete ao cimo das escadas do lado
esquerdo, agora transformado em quarto dos brinquedos. “O meu avô tinha um
princípio, não se levava dinheiro a ninguém de Arouca.” A gratidão batia-lhe à
porta em galinhas, cabritos, cabras, muitos animais e toda a variedade de
legumes. Os ingredientes caseiros sentiam-se nos sabores genuínos das
refeições. “A refeição era um ritual. Era uma cozinha de géneros e muito
farta”, lembra.
Quando o avô era chamado de urgência para ir ver doentes em lugares
recônditos da serra, sentava-se ao seu lado no táxi. Ficava à conversa com o
taxista enquanto esperava que a consulta terminasse. Médico, historiador,
etnólogo, olivicultor com um terceiro prémio a nível nacional, com o terceiro
azeite com menor acidez. O homem que tudo sabia e que tudo ensinava ao neto
mais velho. “O meu avô nunca achou graça a ver doentes. Tinha uma grande
solidez de propriedade do saber.” Adorava as coisas da terra. Produzia azeite e
vinho branco, acompanhava o crescimento dos pomares. Percorria as plantações
espalhadas por aquele generoso território e partilhava com o neto os truques
para enxertos infalíveis que ia construindo na cabeça depois de muitas
leituras. “Romãs, nestes sítios? É para esquecer. Nesta região, o que dá são
pêras e maçãs”, avisa.
Nessas viagens, por serras isoladas e caminhos de terra batida, percebeu
que nem todos eram iguais. Olhava para os pés e entendia as diferenças. Os seus
protegidos por botas ou sapatos, os dos outros miúdos descalços e sujos com o
pó ou lama da terra. “Os caseiros viviam muito mal. As condições em que as
pessoas viviam eram miseráveis.”
Numa família de médicos, era difícil escapar. “Tinha muitos exemplos. Ser
médico era um rótulo.” O pai Manuel Sobrinho Rodrigues Simões deixou Arouca
para estudar Medicina. Foi médico, professor e investigador na área de
Bioquímica. “Quando era pequeno, ia com o meu pai para o laboratório, via-o
misturar dois líquidos sem cor e aquilo ficava azul e amarelo”. Ficava
maravilhado.
Sobrinho Simões nasceu há 66 anos em Cedofeita e é a primeira geração da
família no Porto. Andou no liceu Alexandre Herculano, licenciou-se em Medicina
na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto com média de 19 valores. Não
passou despercebido no seu percurso escolar. Especializou-se em Anatomia
Patológica com 20 valores. Doutorou-se em Patologia no Porto e aos 29 anos
partiu para o Instituto de Cancro na Noruega para o pós-doutoramento. Levou os
filhos pequenos e a mulher, também médica. “Sinto-me em casa na Noruega.
Conheço Oslo como se fosse o Porto”, revela. Através da saúde conquistou o respeito
da comunidade norueguesa, chegou a ser o “ponta-de-lança” em algumas
investigações entre a Noruega e outros países.
Sobrinho Simões é uma referência mundial na área de investigação das
doenças cancerígenas, director do Ipatimup, uma das instituições mais notáveis
em investigações relacionadas com as ciências da saúde, sobretudo com o cancro.
Descobriu que as células do cancro da tiróide se comiam a si próprias.
Autofágicas, mas persistentes. Não desapareciam, alimentavam-se delas próprias.
“O cancro é igualzinho a nós”, diz o investigador que analisa casos
complicados.
Com o avô e o pai, percebeu que não seria um médico de bata branca. “Nunca
quis salvar vidas.” Não fez muitas urgências médicas. “Gosto de estudar as
doenças pelo problema intelectual que me colocam. Preciso sempre de uma
justificação”, afirma. É um patologista obsessivo, sempre a pensar. “Tenho a
sorte de a realidade me fazer as perguntas.”
Surpreende-se com as novas tecnologias, com a capacidade intuitiva da nova
geração que mexe em máquinas e equipamentos sem consultar qualquer papel, com
os dedos sempre prontos para mexer em botões ou teclas. “Pertenço à geração do
manual de instruções, que lê tudo antes de tocar em qualquer aparelho. Sou
incapaz de mexer nos botões sem primeiro perceber para que servem”, revela.
Prefere fazer as revisões dos documentos científicos no papel e não no ecrã do
computador.
Sobrinho Simões tem vários prémios no currículo. O Prémio Bordalo, o Prémio
Pessoa. E quando abre o armário de orgulhos são pessoas que saem de lá.
Investigadores que trabalharam e trabalham consigo e que são considerados os
melhores do mundo no que fazem. É isso que o satisfaz. Continua a comandar o
barco com a certeza de que há muitos bons marinheiros. “Estou no circuito, mas
já não sou eu.”
Este Verão, deixará o Porto uma vez mais em direcção a Arouca. Passará três
semanas na casa da família, irá novamente a Drave a 15 de Agosto, passeará a pé
com os netos — tem seis — pelas ruas da vila, ouvirá com certeza alguém
chamar-lhe menino Manelzinho. Os da sua geração tratam-no por tu. Voltará a
encontrar-se com amigos para juntos voltarem a procurar plantas carnívoras,
visitarem as antigas minas do ouro negro, o volfrâmio, para os lados de Rio de
Frades. “Arouca é linda e não está estragada. Tem muita qualidade de vida.”
In Publico de 3 De Maio de 2014
Por Sara Dias Oliveira
Lembro-me perfeitamente de ver o neto do Dr. Simões (o pai e o avô que eu conheci eram médicos) a acompanhar a malta jovem de Arouca em que se integrava um ou dois dos meus tios maternos! Hoje o cientista de renome é um marco relevante na investigação cientifica do nosso pais nomeadamente no campo das doenças do foro oncologico!
Sabe bem ouvi-lo falar de AROUCA - A comadre Maria referenciada no texto é, precisamente, a minha avo materna!
E se for uma conversa com o Dr. Julio Machado Vaz?
Confesso, é, simplesmente, um momento de SONHO!
Foto João Martins |
Lola
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