sábado, 31 de maio de 2014

Nietzsche e a educação


Nietzsche e a educação

 IV - Filósofo legislador

A ideia de uma escola de génios, que apenas poderia ser erigida sobre a cinzas (é com ironia que aludo a Hegel) da escola de massas, entrará na constelação que tem a ver com a transmutação de todos os valores. Como sabemos, Nietzsche constrói grande parte da sua obra em torno de uma geneaologia axiológica, isto é, de uma inquirição sem piedade a todas as formas de valores que constituem o mundo moderno. Sejam eles estéticos, como no Nascimento da Tragédia de 1872 ou em Nietzsche Contra Wagner, 1888; epistemológicos, Humano, Demasiado HumanoAurora e Gai Ciência, 1878-82; ou morais, Genealogia da Moral e Anticristo, 1886, 1880, respectivamente.

Transmutar os valores significa desconstruir os que existem para dar forma a uma nova escala, orientada pela vontade de viver a vida material que a necessidade da sorte, ou do azar, nos ditou. Ora, a afirmação da vida far-se-á sempre na singularidade de cada afirmador, o novo homem desta nova axiografia, o sobre-homem (Übermensch), deverá afirmar-se ao mesmo tempo que formula os seus próprios valores, aliás o processo de afirmação deriva obrigatoriamente da criação de uma constituição axiológica própria.

Neste sentido, depois da morte de Deus (uma morte axiológica e teleológica) resta legislar o código com que daremos sentido ao mundo, cada um de nós (apresso muito a argumentação e nem todos os comentadores defendem esta hipertrofia do singular). O sobre-homem será, não um super-homem energitizado e dominador, mas um filósofo legislador. É assim que leio o §211 de Para Além Bem e Mal:

"a sua tarefa [dos novos filósofos] será algo de diferente, pois exige que ele crie valores. Todos os trabalhadores da filosofia, seguindo os nobres modelos que foram Kant e Hegel, têm de estabelecer uma grande quantidade de apreciações valorativas [...] e de pô-las em fórmulas, seja no domínio lógico, seja no político (moral), seja no artístico. [...] Mas os verdadeiros filósofos são comandantes e legisladores. Dizem que deve ser assim; definem primeiro o 'destino' e a 'finalidade' do homem e, ao fazê-lo, dispõem do trabalho prévio de todos os trabalhadores da filosofia, de todos os que dominam o passado. Agarram o futuro com uma mão criadora e tudo o que existe e existiu é para eles um meio, um instrumento, um martelo. O seu 'conhecer' é criar, a sua obra é legislação, a sua vontade de verdade é vontade de potência. Existirão hoje tais filósofos? Terão já existido tais filósofos? Tais filósofos não terão de existir?" (Tradução para a Relógio D'Água, Lisboa, 1997, com ligeiras alterações). 

No mesmo § contrapõe os filósofos legisladores aos "operários da filosofia", cujo modelo são Kant e Hegel.

Daqui retiro que a educação é tarefa de cada um para cada um. A ideia de uma escola que forma cidadãos com determinadas competências para terem "sucesso existencial e profissional" é completamente estranha a esta atomização constitucional. Mais, a escola, porque normaliza, apenas pode formar trabalhadores por conta de outrem da filosofia, operários dos valores já existentes, e nunca filósofos legisladores.

É um novo topos que Nietzsche quer construir, um utopos para outros homens, o sobre-homem deve ser pensado como um outro homem para um outro mundo, ou melhor, um outro homem para formar um outro mundo. E a pedagogia adequada é a do "torna-te aquilo que és!"


 III - Instruir e educar

A visão elitista de Nietzsche, sem que seja um elitismo para todos como defende George Steiner, da cultura e da escola tem consequências na elucidação que levarmos a cabo de instruir e educar.
No Crepúsculo do Ídolos, “O problema de Sócrates”, §5, defende que o “que precisa de ser demonstrado não tem muito valor. ” O que é demonstrável pertence ao campo científico e este é essencialmente democrático devido à sua vocação em estabelecer verdades universais. Assim, a instrução é por natureza científica e democratizante, embora seja necessária ela só forma o “homem do rebanho”, aquele que aceita o que está estabelecido. Pelo contrário, a edução singulariza cada educando, e, para Nietzsche, o aperfeiçoamento do ser humano reside precisamente nessa mesma singularização. O homem é totalmente histórico, não há verdadeiramente “natureza humana” — “o homem é o animal que não está ainda fixado ” (Para Além do Bem e do Mal, §62) —, assim cada um pode, e deve, orientar-se para as suas particularidades. A edução tem, pois, a função de emancipar os indivíduos que podem ter acesso à cultura superior. Ela não deve procurar criar um reino harmonioso, como tantas vezes hoje se defende, a sua função é singularizar os indivíduos, em vez de tornar a cultura comum, isto é, vulgar. Neste sentido, o mestre deve ajudar o discípulo a descobrir-se a si próprio, a emancipar-se do próprio mestre, “pertence à humanidade de um mestre pôr os seus alunos contra ele. (Aurora §447)” De igual modo, “Recompensa-se mal um professor, quando se permanece sempre unicamente seu discípulo. (Ecce Homo, “Prefácio”, §4)”

Para Nietzsche, a educação não deve orientar um vasto movimento social ou político humanista ou nacionalista, à maneira, por exemplo de Tolstoï ou de Wagner, mas desenvolver alguns, poucos, indivíduos superiores. A educação deve seleccionar, muito longe novamente do mito da escola inclusiva dos nossos dias , já que nem todos podem aceder à cultura superior. Esta cultura superior não comporta um programa específico (seria um contra-senso em relação à vontade de singularização), ainda que em Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimento de Ensino aponte o desenvolvimento da língua alemã como o principal desiderato pedagógico para os liceus. Cada escolhido, porque se escolheu a si próprio, não há uma aristocracia de sangue em Nietzsche, deve “tornar-se aquilo que é”.
A Segunda Ode Pítica de Píndaro (“torna-te aquilo que és”) pode ser erigida como máxima pedagógica de Nietzsche. Parece demasiado tautológico "querermos ser aquilo que somos", mas uma pequena reflexão mostra que o seu alcance está além de um mero jogo de palavras: O “eu” que acreditas ser foram afinal os outros que to inculcaram, és apenas uma cópia dos outros, e ser-te-á necessária toda uma vida para te dirigires progressivamente em direcção a ti próprio. Não ouças, pois, as respostas que os mestres te dão, mas ouve com cuidado as questões que levantam para que possas tu próprio responder. Mas não deves ter a pretensão de chegares a verdades dogmáticas, estas vulgarizam, ao contrário do questionamento e da crítica. Não procures estar de acordo, cultiva a tua diferença e um "pathos da distância". Torna-te o que és, procura a tua singularidade por trás das máscaras sociais que os outros te impõem.
Assim, enquanto a instrução ensina cada aluno para “verdades universais”, para uma boa consciência social, para o bem comum, para a igualdade, para a demonstração lógica, para a democracia. A educação deve treinar um número reduzido de indivíduos a serem eles próprios, soberanos, criadores dos seus próprios valores, a desenvolverem a humanidade através do seu exemplo inimitável.
Com isto, Nietzsche aprofunda, radicaliza o sapere aude kantiano. Não apenas “ousa pensar”, como em Kant, mas ousa fazer o teu próprio caminho através do campo dos possíveis. Liberta a tua vontade de poder (que não deve ser lida como vontade de domínio, mas antes de auto-superação). Vê e sente por ti mesmo. Julga segundo os teus próprios critérios. Só assim amarás o destino (amor fati) e desejarás que tudo regresse (eterno retorno do mesmo).
O pensamento pedagógico de Nietzsche está muito longe do desejo iluminista da emancipação universal do género humano. Mas está igualmente distante das propostas pedagógicas mais conservadores, muito orientadas pela cognição como recognição. De uma certa forma, Nietzsche é mais revolucionário do que todas as neo-pedagogias que têm essa pretensão. A escola não deve ser uma instituição de reprodução social (conservadorismo) nem de emancipação geral do ser humano (progressismo). Mas seleccionar os melhores para se tornarem eles próprios, isto é, para matarem a própria escola. O objectivo educativo inspirado por Nietzsche não é levar os neófitos a melhor compreenderem, conhecerem, comunicarem, mas a estimular alguns para que atinjam a sua própria perfeição.


 II - Engendrar grandes homens

As reflexões de Niezsche sobre a educação estão espalhadas por toda a sua obra, das Considerações Intempestivas (principalmente a III, "Schopenhauer Educador", 1874 – onde, pegando no exemplo do filósofo misantropo, refere que “A humanidade deve constantemente trabalhar para engendrar grandes homens – é esta a sua tarefa e nenhuma outra. Friedrich Nietzsche, “Schopenhauer éducateur”, in Considérations inactuelles III, Paris, Gallimard/folio, 1992, capítulo 6, p. 58. ”) até Ecce Homo, livro final da sua vida consciente (“A minha missão, que consiste em preparar à humanidade um momento de suprema consciência de si própria, um Grande Meio-Dia, em que ela olhe para trás e para longe de si, em que saia da dominação do acaso e dos sacerdotes, e ponha, pela primeira vez, como um todo a questão do ‘porquê?’, do ‘para quê’? Ecce Homo, in Obras Escolhidas de Friedrich Nietzsche, vol. 7, Lisboa, Relógio D’Água, 2000, p. 194. ”).

Mas a primeira vez que escreveu longamente sobre educação foi em 1873, elaborando cinco conferências proferidas na cidade de Basileia nesse mesmo ano (Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino Publicadas em francês - além do alemão, inglês e italiano - no volumeLa philosophie à l’époque tragique des Grecs da edição crítica de Giorgio Colli e Mazino Montinari para a Gallimard/folio, Paris, 2000.)

Aí estão expostas algumas das teses que farão de Nietzsche um crítico radical da cultura de massas. Logo no prefácio, de um livro póstumo diga-se, refere que duas correntes perpassam hoje pelos estabelecimentos de ensino: a) “a tendência para alargar o mais possível a cultura” e a “tendência para reduzi-la e enfraquecê-la. (Sur L’avenir de nos établissements d’enseignement, Paris, Gallimard/folio, 200, p. 80.) ” Na primeira, a cultura deve ser dada a um número cada vez mais vasto de pessoas, na segunda, em simetria com a anterior, devem abandonar-se as altas exigências e fazer da cultura um instrumento do Estado. É que o Estado quer funcionários dóceis, disponíveis o mais cedo possível, com uma cultura mediana e prontos a servi-lo acriticamente. A cultura deixa de ter uma valor em si mesma, transformou-se num instrumento do Estado.

Para Nietzsche, pelo contrário, a escola deve fornecer uma alta cultura, apropriada apenas a alguns indivíduos escolhidos: “não é a cultura de massas que pode ser o nosso objectivo, mas a cultura de indivíduos escolhidos, armados para levar a cabo grandes obras que ficarão” (Sur L’avenir..., op. cit., p. 123.)

 I - Professor sem ressentimento

Volto a Nietzsche, não sei bem porquê. Se queremos pensar bem temos de nos afastar dele, introduzir a força do negativo na sua obra (bem sei que acabo de cometer uma heresia), negá-lo sobretudo porque não soube ser leve, rir-se suficientemente dele mesmo. Quis desconstruir o lugar do sério, o perigo de todos os evangelhos da seriedade, mas acabou levando-se demasiado em conta, acreditanto nele, dizendo que era a verdade que saía da sua boca. Enfim, como refere, "Não é bom discípulo quem se limita a sê-lo", é necessário ser um Über-discípulo, um sobre-discípulo se queremos acompanhá-lo e perdoá-lo, também ele foi humano, demasiado humano.

Farei por isso um conjunto de post sobre o seu pensamento acerca da educação.


“Um dia virá onde só teremos um pensamento: a educação.”

Friedrich Nietzsche, Fragmento Póstumo de 1875.

Friedrich Nietzsche foi professor de Filologia Clássica na Universidade de Basileia, Suíça, entre 1869 e 1879. Abandonou o ensino por questões de saúde, que mais tarde, tudo o indica, o levarão à loucura (Janeiro de 1889), mas também, porventura causa secreta do amor fati de quem se tornará explicitamente discípulo em 1888, esse abandono foi a solução para se tornar aquilo que ele era: um espírito livre.
As notícias que há, sobretudo na vasta e rigorosa biografia de Curt Paul Janz (Curt Paul Janz,Friedrich Nietzsche-Biographie, 4 vol. , Carl Hanser Verlag, Munchen-Wien, 1978. Tradução francesa para as Éditons Gallimard em 1984. Para este tema consultar sobretudo o vol. 2.), mostram-nos um professor muito respeitado pelos seus alunos e um par amado na academia (da qual fazia parte o célebre historiador Jacob Burckhardt). Por isso, muito do disse sobre a educação não está minado pelo ressentimento que alimenta tantos génios incapazes de comunicar as suas “verdades”.


Mas Nietzsche não é apenas um pensador profundo sobre o espírito do seu tempo, as suas ideias perduraram, alimentando grandes pensadores ocidentais, como Heidegger, Löwit, Jaspers, Bataille, Derrida, Deleuze, Kofmann, Foucault, Nelson Goodman... (uma espécie de ensino à distância). Além disso tornou-se um ícone, muitas vezes mal compreendido é verdade, do Maio de 68, na sua vertente mais filosófica, uma filosofia da festa, rompendo com a sonolência académica. A imensa revolução teórica originada neste levantamento de massas recolheu em Nietzsche a força para acabar de vez com a tradição metafísica, e mesmo aqueles que hoje se situam claramente na barricada anti-Nietszche reconhecem o quanto devem ao filósofo de Sils-Maria: “Aos estudantes da minha geração, a obra de Nietzsche surgia simultaneamente como a continuação da ‘grande filosofia’ e como instrumento privilegiado da emancipação do pensamento em relação do conjunto da tradição ‘metafísica’. (Philippe Raynaud, “Nietzsche éducateur”, in Pourquoi nous ne sommes pas nietzschéens, Paris, Le Livre de Poche, 1991, p. 207.) 

In blog O Declinio da Filosofia”


 Lola

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