O que é a Moral?
Guiamo-nos pela intuição e por um código apreendido de
regras de bom senso para decidir sobre questões de ética e de moral. O que nos
diz a filosofia e como pode a ciência lançar luz sobre as nossas reacções
emocionais.
Há
acções intrinsecamente erradas ou será que são erradas apenas por causa das
suas consequências? Vamos supor que ao torturar alguém estamos a salvar uma
vida humana, ou dez, ou cem. Se for assim, deveria a tortura ser moralmente
admissível ou até mesmo imperativa? Vamos supor que com a pena de morte
estamos, de facto, a impedir o assassínio e que cada execução pode salvar duas
vidas de inocentes, ou três, ou uma dúzia. Se for assim, deveria a pena de
morte ser moralmente admissível ou talvez até imperativa? E como deveríamos
estar a responder a estas perguntas?
Numa
certa perspectiva, o melhor método, talvez o único viável, seja começar por
examinar as nossas intuições. Algumas pessoas afirmarão convictamente que é
errado que um governo execute ou torture pessoas, mesmo que com tal consiga
travar o crime. Para algumas pessoas, é um dado adquirido que um país não deve
bombardear uma cidade estrangeira e tirar a vida a milhares de civis, mesmo que
venha a poupar muitas mais vidas. Se nos sentirmos inclinados a concordar com
estas conclusões, podemos tentar testá-las, nomeadamente consultando uma vasta
gama de casos hipotéticos. O processo pode ser-nos útil para apurar as nossas
intuições. E até ajudar a perceber a sua concordância e como se relacionam com
os valores universais que aparentemente as justificam e os quais, também elas,
acabam por justificar.
Muitos
filósofos sentem-se inclinados a ver as coisas desta forma. Para testar as
nossas intuições morais e perceber mesmo o que a moralidade exige, ocuparam-se
com uma série de dilemas, na sua maioria conhecidos como Dilemas do Trólei. Eis
dois dos mais importantes:
1.
O Problema do Trólei. Está em pé, ao lado de uma linha férrea, e vê um comboio
a aproximar-se de si. Percebe que os seus travões falharam. Há cinco pessoas
amarradas ao carril. Vão morrer, a não ser que tome uma atitude. E você está
mesmo ao lado de um interruptor. Se o puxar, o comboio muda de linha. O
problema é que há uma pessoa amarrada nessa outra linha e ao puxar o
interruptor irá matá-la. Deve puxá-lo?
2.
O Problema da Ponte. Está numa ponte pedonal a olhar para a linha férrea e vê
um comboio aproximar-se. Percebe que os seus travões falharam. Há cinco pessoas
amarradas ao carril. Vão morrer, a não ser que tome uma atitude. Um homem gordo
está ao seu lado, debruçado na ponte, também a ver o comboio. Se o empurrar,
ele vai cair e estatelar-se nos carris. E porque é obeso, o seu corpo irá
travar o comboio e assim salvar as cinco pessoas — apesar de ele próprio
morrer. Deverá empurrá-lo?
As
intuições da maioria das pessoas sobre estes dois dilemas são muito claras. No
Problema do Trólei, deveria puxar o interruptor; já no Problema da Ponte, não
deveria empurrar o homem gordo. A questão é: o que diferencia estes dois casos?
Uma vez identificada a resposta, talvez estejamos em condições de esclarecer o
que está bem e o que está mal — não só sobre tróleis e pontes pedonais, mas
sobre os pilares onde assenta a ética e os limites ao pensamento utilitarista.
E, na volta, pode-se responder a uma vasta gama de questões que se colocam na
vida real, questões que envolvem não apenas os temas da tortura, da pena de
morte e dos conflitos armados, mas também o uso legítimo da coerção, das nossas
obrigações para com estranhos e, no que respeita a temas de saúde e da
segurança, onde e como devemos situar as análises de custo-benefício.
A
"mãe" do dilema
Em Would
You Kill The Fat Man (Princeton University Press), um livro elegante,
lúcido e amiúde divertido, David Edmonds, um académico da Universidade de
Oxford, explora os Problemas do Trólei e da Ponte e todos os comentários
brilhantes que já foram proferidos à volta do tema. Philippa Foot, que ensinou
Filosofia em Oxford entre 1940 e meados de 1970, foi a “mãe” do Dilema do
Trólei (e também a neta de Grover Cleveland, por duas vezes Presidente dos
Estados Unidos no século XIX).
Naquele
período, Oxford era dominada por homens, mas três dos seus mais proeminentes
filósofos eram mulheres — Foot, Elizabeth Anscombe (que foi recrutada pela
própria Foot) e Iris Murdoch. Edmonds explica que as relações entre elas,
filosóficas e não só, não estavam imunes a complicações várias. M.R.D. Foot,
que veio a tornar-se o marido de Philippa, foi um dos muitos amantes renegados
de Murdoch. O casamento dificilmente aguentou os embates dessa relação
(“Perder-te & perder-te dessa maneira foi uma das coisas mais terríveis que
me aconteceram”, escreveu Murdoch a Philippa). Depois de M.R.D. Foot deixar a
mulher, ela e Murdoch voltaram a ser amigas (e tiveram um breveaffair).
Anscombe
disse uma vez que Foot era a única filósofa de Moral a quem valia a pena estar
atento em Oxford, mas ambas tiveram profundas divergências sobre contracepção e
aborto (para Foot, moralmente aceitáveis). Anscombe discordava veementemente
usando mesmo a expressão “assassina” para descrever “quase todas as mulheres
que escolhem abortar”. Para Foot, Anscombe era “mais papista do que o Papa”.
O
Dilema do Trólei germinou nestes debates. Assombrada pela Segunda Guerra
Mundial e os seus horrores, Foot rejeitava a perspectiva que grassava nalguns
círculos em Oxford de que os julgamentos éticos não representam mais do que
declarações de preferência pessoal. Assim como reivindicava que a melhor forma
de os analisar era perceber como é que palavras mais relevantes são usadas na
linguagem comum. Foot acreditava que os julgamentos éticos podem ser questões
de princípio. Em 1967, publicou um artigo — “The Problem of Abortion and the
Doctrine of the Double Effect”, em tradução literal, “O problema do aborto e a
Doutrina do Duplo Efeito” — uma teoria que se baseia no pressuposto de que um
mau resultado pode ser aceite moralmente se for apenas efeito colateral de uma
boa acção.
A
doutrina do Duplo Efeito baseia-se no pressuposto de que um mau resultado pode
ser aceite moralmente se for apenas efeito colateral de uma boa acção
A Doutrina
do Duplo Efeito é muito conhecida no contexto do pensamento católico. Distingue
de forma precisa entre o que podem ser danos causados de uma forma intencional
— não admissíveis — e os que simplesmente podem vir a acontecer — admissíveis.
De acordo com a teologia católica, uma mulher pode fazer uma histerectomia para
retirar um tumor que põe em perigo a sua vida, mesmo que tal signifique que o
feto morra. A razão que está por trás é salvar-lhe a vida, não a de matar o
feto. Para explorar esta distinção, Foot introduziu uma série de dilemas
hipotéticos, incluindo o Problema do Trólei e o Caso do Transplante — que
questiona se deve um cirurgião matar um homem jovem com a intenção de preservar
os seus órgãos porque irão salvar cinco pessoas em risco de vida. Para Foot, é
claro que tal não deverá ser permitido ao cirurgião, ainda que vidas possam ser
salvas. (Curiosamente, Foot não chega a nenhuma conclusão sobre se uma mulher
deve fazer um aborto mesmo quando a sua vida e a saúde não correm perigo.)
Talvez
a Doutrina do Duplo Efeito possa explicar porque é correcto puxar o interruptor
no Problema do Trólei (quando a intenção é não matar ninguém) mas já é errado
matar um jovem homem no Caso do Transplante (cuja morte é intencional). Mas,
numa argumentação mais intrincada, Foot conclui, por fim, que, nestes casos, a
melhor forma para explicar as nossas intuições contraditórias será equacionar,
não entre os efeitos intencionais e os previsíveis, mas antes entre obrigações
negativas (como o imperativo de não matar uma pessoa) e as positivas (como a de
salvar uma pessoa). Num artigo escrito posteriormente, Foot enfatizava que no
Problema do Trólei a questão reside em redireccionar uma ameaça latente, que
poderá ser moralmente aceitável (mais do que criar uma nova ameaça, como
acontece no Caso do Transplante).
O
Problema da Ponte foi concebido por Judith Tarvis Thomson, uma filósofa do
Massachusetts Institute of Technology, e granjeou-lhe fama. Ao impor uma
distinção moral entre o Problema do Trólei e o Poblema da Ponte, Thomson chamou
a atenção para os direitos das pessoas. Na sua perspectiva, o homem gordo tem o
direito a não ser empurrado e morto, mas o mesmo não é verdade para o infeliz
que está amarrado ao carril no Problema do Trólei. “A moral não nos exige que
deixemos que um pesado fardo vindo do nada caia para cima de cinco [pessoas],
quando sabemos que o podemos fazer cair em cima de apenas uma.” Um transeunte
não pode empurrar alguém para a morte, mas pode, legitimamente, procurar
minizar os efeitos, “o número de mortes que serão o resultado de uma ameaça que
já existe”.
Quando
Edmonds reflecte sobre estas questões do trabalho de Thomson, diz que ela está
a ser discípula de Emmanuel Kant, que acreditava que as pessoas não devem ser
apenas meios para atingir fins de outrem. A própria Foot já se referia à
“existência de uma moralidade que recusa culpabilizar o sacrifício de um em
prol do bem de muitos... [e] garante a cada indivíduo um determinado espaço
moral, um espaço que outros não devem invadir”. Muitas pessoas acreditam que
quando dizemos que é moralmente inaceitável empurrar o homem gordo (ou roubar
órgãos vitais, ou torturar ou executar pessoas), estamos a dar respostas
profundamente enraizadas no pensamento kantiano, e têm toda a razão.
Regras
que nos guiem
Claro
que é verdade que a corrente utilitarista rejeita aquele tipo de intuições e
insiste que o que interessa é o “bem de muitos”. De acordo com os princípios do
utilitarismo, tanto o Problema do Trólei como o da Ponte se assemelham e são de
fácil resolução. Devemos puxar o interruptor e empurrar o homem gordo porque é
melhor salvar cinco pessoas do que uma só. Mas numa outra discussão que emerge
do próprio Problema da Ponte — e que pode salvaguardar a posição do homem gordo
—, John Stuart Mill salienta que, do ponto de vista do utilitarismo, pode ser
melhor a adopção de medidas muito claras que sustentem e até valorizem a noção
de “utilidade” em geral, no sentido do bem-estar de todos e até na do Estado social,
mesmo que isso possa levar a minorar a noção de utilidade em alguns casos
individuais. Nas palavras de Edmonds: “Seria um desastre se, de cada vez que
agimos, tivéssemos de reflectir sobre as consequências da nossa acção. Por um
lado, porque seria um processo mais demorado; por outro, criaria um mal-estar
popular. Muito melhor é ter um conjunto de regras que nos guiem.”
Por
princípio, juízes partidários do utilitarismo estariam dispostos a condenar um
inocente, a executá-lo até, se a consequência beneficiasse o bem-estar de
todos. Mas um utilitarista tem também de compreender que, se o nosso sistema
legal tivesse abertura para descurar a questão da inocência e da culpa, poderia
muito bem colapsar. Em muitas situações, seguimos um código de regras simples
que até agora têm provado ser bem sucedidas no que diz respeito ao conjunto da
sociedade, e que facilitam muito mais a vida do que se apenas observássemos
caso a caso. Escreve Edmonds: “Seria muito desestabilizador se nos tivéssemos
de preocupar com a ideia de que cada vez que visitamos um parente doente no
hospital poderíamos ser nós próprios a acabar escalpelizados e com o cirurgião
a retirar-nos os nossos órgãos. É por isso que nos devemos conformar com estas
regras predefinidas.”
Mesmo
aceitando esta conclusão, os utilitaristas deveriam estar preparados para
admitir que seria aceitável, obrigatório até, empurrar o homem gordo sob
determinadas circunstâncias — por exemplo, se se desse o caso de não pôr a
coesão social em risco, ou de nunca ninguém vir a saber o que se passou.
Por
princípio, juízes partidários do utilitarismo estariam dispostos a condenar um
inocente, a executá-lo até, se a consequência beneficiasse o bem-estar de
todos. Mas se o nosso sistema legal tivesse abertura para descurar a questão da
inocência e da culpa, poderia muito bem colapsar
Como
resposta, Edmonds invoca o famoso argumento de Bernard Williams segundo o qual
os utilitaristas, perante este tipo de problemas, apontam na direcção errada.
Williams inventou um problema, que entretanto se tornou largamente conhecido e
que postula algo parecido com o da Ponte: uma personagem de nome Jim vai dar a
uma cidade da América do Sul onde homens armados se preparam para disparar
sobre 20 pessoas. O líder daqueles homens comunica a Jim que, se for ele
próprio a disparar sobre uma das pessoas, libertará os restantes 19. Deverá Jim
disparar?
Williams
argumenta que a integridade da pessoa é importante, logo os utilitaristas estão
errados quando acreditam que a escolha de Jim está facilitada pelo simples
facto de 20 serem mais do que um. Nas palavras de Edmonds, o problema é este:
“Tudo o que interessa aos utilitaristas é aquilo que é capaz de produzir o
melhor resultado, e não quem produz esse resultado ou como se lá chegou.” Para
muitos filósofos, Williams está de facto no bom caminho e identificou uma séria
objecção ao que é preconizado pelo utilitarismo, uma objecção que, no Problema
da Ponte, ajuda a resgatar as nossas intuições.
Para
outro debate, Williams trouxe o caso de um homem que, perante o dilema de poder
salvar uma de duas pessoas em perigo, escolhe salvar a sua própria mulher. De
forma memorável, Williams salienta que se o homem parasse para pensar em quem
salvar, e se estaria ou não a ser imparcial, seria “pensamento a mais”. Algumas
pessoas podem dizer o mesmo acerca do Problema da Ponte. Do ponto de vista
moral, a resposta correcta poderá ser a recusa pura e simples de empurrar um
inocente para a morte.
Edmonds
está consciente de que os psicólogos e economistas comportamentais levantaram
questões sérias sobre o pensamento intuitivo, questões que podem criar
obstáculos a filósofos como Foot, Thomson e Williams. No trabalho pioneiro que
foi o de Daniel Kahneman e Amos Tversky, eles mostravam como as nossas
intuições são altamente vulneráveis à “moldura”. Se for dito às pessoas que 90%
daqueles que são submetidos a uma cirurgia estarão vivos ao fim de cinco anos,
a tendência será pensar que a intervenção é uma boa ideia. Pelo contrário, se
lhes for dito que 10% morrem ao fim de cinco anos, então tenderão a pensar que
é uma má ideia. O cenário também conta. Quando as pessoas estão de bom humor —
por exemplo, por causa do tempo meteorológico ou por estarem a ler histórias
felizes — as suas intuições podem ser diferentes do que quando estão zangadas
ou tristes.
Cientistas
comportamentais (como o são Kahneman e Tversky) também mostraram que as pessoas
confiam na heurística ou em regras simples do consenso [regras que não
pretendem ser rigorosas nem aplicáveis a todas as situações], regras estas que
podem conduzir a erros sistemáticos. Quando as pessoas dependem da heurística,
substituem uma pergunta fácil por outra difícil. Kahneman associa a heurística
àquilo que ele chama “pensar rápido”, que se encontra nas formas mais
intuitivas do sistema cognitivo, algo que os psicólogos descrevem como Sistema
1 [a heurística constitui-se de regras baseadas na experiência ao invés das
baseadas na procura algorítmica que chega a uma solução correcta depois de o
problema ser combinado com todas as soluções possíveis]. “Pensar devagar” evita
a heurística para favorecer abordagens mais deliberadas, intencionais, e isso é
um produto do Sistema 2.
Olhemos
para a heurística da representatividade, em concordância com quais dos nossos
julgamentos intuitivos sobre probabilidades são influenciados pelas nossas
avaliações sobre a proximidade (no sentido de que
A
“se parece com” B). A heurística da representatividade é comummente
exemplificada pelas respostas que as pessoas dão sobre a hipotética carreira de
uma mulher de nome Linda, algo que é descrito da seguinte forma:
Linda
tem 31 anos, é solteira, eloquente e muito inteligente. Licenciou-se em
Filosofia. Enquanto estudante preocupava-se enormemente com questões
relacionadas com justiça social e discriminação, e era ainda activa em
manifestações antinucleares.
Solicitou-se
às pessoas que fizessem uma lista, por ordem de prioridade, de oito possíveis
futuros para a Linda. Vários responderam assistente social na área psiquiátrica
e professora de escola primária; as duas principais escolhas foram “empregada
de balcão num banco” e “empregada de balcão num banco [e também] activista no
movimento feminista”.
Se
antes de serem inquiridas sobre o Problema da Ponte as pessoas tiverem
assistido a uma comédia, há uma propensão para empurrar o homem gordo, mais do
que se tiverem visto um documentário entediante
A
maioria respondeu ser menos esperado que fosse uma mera empregada de balcão num
banco. Antes, empregada de balcão mas feminista. E este é um erro óbvio (o que
se chama um erro de conjunção), no qual se pensa que os elementos A e B são
mais parecidos entre si do que a probabilidade de A sozinho. Por uma questão de
lógica, um resultado sozinho é mais provável do que um resultado que inclua
esse mesmo e ainda um outro. É um erro que advém da heurística da
representatividade. Numa primeira e rápida apreciação, a descrição de Linda
aparenta combinar com “empregada de balcão de banco e activista no movimento
feminista”.
Ao
reflectir sobre este exemplo, Stephen Jay Gould observa o seguinte: “Sei [a
resposta correcta], mas o pequeno homunculus [homenzinho] dentro da minha
cabeça continua aos pulos para cima e para baixo, a gritar — ‘espera, ela não
pode simplesmente ser uma empregada de balcão do banco; lê a descrição.”
Com
respeito para com o Problema do Trólei, as intuições são igualmente afectadas
pelos enquadramentos e contextos. Quando pela primeira vez se pergunta às
pessoas sobre o Problema da Ponte, e em seguida lhes damos também o Problema do
Trólei, elas inclinam-se para não accionar o interruptor neste último caso. Se
antes de serem inquiridas sobre o Problema da Ponte as pessoas tiverem
assistido a uma comédia, há uma propensão para empurrar o homem gordo, mais do
que se tiverem visto um documentário entediante. Se o homem gordo tiver um nome
e for o de Tyrone Payton, os liberais tenderão mais depressa a empurrá-lo do
que se o seu nome for Chips Ellsworth III (como se conclui, os conservadores
não são afectados por nomes destes) [os casos hipotéticos de Tyrone e Chips
foram estudados por David Pizarro, académico da Cornell University, e
prender-se-iam com a cor da pele, sendo presumível que Tyrone fosse negro e
Chips branco]. E se a questão envolver não um homem gordo, mas um gordo macaco
(que terá de ser empurrado para salvar cinco macacos), bem, então as pessoas
ficam muito mais utilitárias e mais dispostas a empurrar.
O
papel das emoções
Nos
últimos anos, os neurocientistas têm também trabalhado sobre as intuições. Como
reage o cérebro humano ao Problema do Trólei e ao da Ponte? Joshua Greene, um
psicólogo de Harvard, tem desenvolvido trabalho significativo nesta área,
tentando combinar as respostas que as pessoas dão com as mudanças que realmente
acontecem no cérebro. Ele reivindica que o Problema da Ponte envolve mais os
sectores das emoções do que o do Trólei. Greene e os seus assistentes e
co-autores [na dissertação “The Terrible, Horrible, No Good, Very Bad Truth
About Morality and What To Do About It”] descobriram que “há variações
sistemáticas no papel que as emoções ocupam nos julgamentos morais” e que as
áreas do cérebro associadas à emoção se tornam muito mais activas quando em
presença do Problema da Ponte. O mais surpreendente deste argumento é que as
partes emocionais do nosso cérebro, que se desenvolvem mais cedo e operam de
forma automática e rápida, estão tendencialmente mais propensas a sentimentos
de uma obrigação moral — e nisso conducentes a abordagens que os
filósofos chamam “deontológicas”.
Greene
e os seus co-autores desenvolveram vários estudos que suportam esta conclusão.
Por exemplo, pessoas que têm um determinado tipo de lesão cerebral que
interfere com regiões normalmente mais associadas à emoção do que à cognição
são mais propensas a empurrar o homem gordo do que aquelas que não apresentem
esse tipo de lesão. Assim como pessoas que têm um estilo mais verbal do que
“cognitivo” — no sentido de que apresentam melhores resultados em testes de
avaliação visual do que nos de avaliação verbal — estão mais inclinados para
defender abordagens deontológicas (e para se recusarem a empurrar o homem
gordo). Segundo palavras dos próprios autores, “à imaginação visual cabe um
papel importante no desencadear das respostas emocionais automáticas que
sustentam as avaliações deontológicas”.
Pode
ser tentador pensar nestas descobertas para defender o utilitarismo, mas essa é
uma tentação a que devemos resistir. Suponhamos que os sectores emocionais do
cérebro realmente produzem de imediato intuições deontológicas. Não significa
isso que sejam intuições erradas. Para saber se o são, precisamos de um
argumento moral e não de um scanner ao cérebro.
Há
de facto diferenças entre “intencional e apenas previsível”. Para Edmonds, a
solução para o Problema do Trólei como para o da Ponte reside na aceitação
dessa diferença, e isso pesa nas nossas intuições
Já
alertado para esta questão, Edmonds termina por nos dar, ainda que de forma
breve, a sua própria opinião. Diz-nos que a Doutrina do Duplo Efeito garante a
solução mais acertada, e que Foot e Thomson conduziram os filósofos em
direcções erradas quando se recusaram a aceitar isso mesmo. É de relembrar o
que nos diz a Doutrina do Duplo Efeito, que distingue entre danos provocados
intencionalmente — não moralmente aceites — e danos meramente previsíveis —
como acontece quando uma cirurgia para remover um tumor que coloca em risco a
vida da pessoa pode provocar um aborto. Edmonds insiste que esta doutrina tem
“uma poderosa ressonância intuitiva” e que há de facto diferenças entre
“intencional e apenas previsível”. Para Edmonds, a solução para o Problema do
Trólei como para o da Ponte reside na aceitação dessa diferença, e isso pesa
nas nossas intuições. Pensa ele que “a solução tem muitas virtudes: é simples e
económica, não aparenta ser arbitrária e apela à intuição perante um vasto
número de casos. É a razão pelo qual o homem gordo estaria seguro pelo menos de
mim”.
Edmonds
escreveu um livro lúcido, imparcial e divertido. Mas o debate que lança levanta
dúvidas sobre o método generalizado de solucionar questões de ética, com o qual
ele se compromete e no qual o Problema da Ponte pode ser visto como um caso
extremo. O método socorre-se de dilemas morais inusitados, na maioria muito
além de nossas experiências mais banais, e pede às pessoas que identifiquem as
suas intuições sobre a solução mais aceitável. Se o método é usado com
precaução, as intuições, ainda que muito respeitadas, não têm de ser
necessariamente encaradas como imperativas. Assim, por um lado temos Edmonds,
que, em defesa da Doutrina do Duplo Efeito, reivindica que “um vasto número de
casos atraem as nossas intuições”; por outro, o enfoque, defendido por Foot,
Thomson e Williams, que reagimos intuitivamente perante casos em particular que
parecem confundir o pensamento utilitário. Mas será que deveríamos mesmo
atribuir um papel relevante a estas reacções?
Se
juntarmos a perspectiva de Mills sobre as virtudes de regras claras, simples e
pré-definidas com um pouco de psicologia, poderíamos abordar a questão da
seguinte forma: muitos dos nossos julgamentos morais são reflexo da heurística
moral, dos nossos princípios morais, que geralmente funcionam. Não devemos
mentir nem roubar; não devemos torturar; e certamente não devemos empurrar
pessoas para a morte. É expectável e importante que assim seja, que todos
sigamos regras como estas. Quanto mais não seja porque se nos pomos a pensar
caso a caso, se devemos ou não mentir, torturar ou empurrar alguém para a
morte, podemos acabar por o fazer mais vezes do que seria aconselhável. Se
calhar, podemos avaliar e julgar de forma impulsiva; se calhar, em proveito próprio.
As interdições morais só nos fazem bem.
É
por esta razão que quando Bernard Williams se refere “a demasiado pensamento”
isso nos é útil, ainda que possa não ser pelos argumentos que apresenta. Não
deve ser encarado como uma maneira de objectar o utilitarismo, mas como um modo
airoso de reter o funcionamento automático e natural da heurística moral
(incluindo o que nos leva a dar prioridade às pessoas que amamos). Se esta
perspectiva estiver correcta, então é também feliz a noção de que as pessoas intuitivamente
se opõem à ideia de empurrar o homem gordo. Não desejamos viver numa sociedade
em que as pessoas se sintam confortáveis por andar a empurrar pessoas para a
morte — ainda que a resposta moral correcta no caso do Problema da Ponte seja,
de facto, empurrar o homem gordo.
Seguindo
esta perspectiva, não podemos concordar com Foot, Thomson e Edmonds, quando
estes assumem que as nossas intuições morais sobre os dilemas mais invulgares
carregam já por si uma autoridade independente e são merecedoras de todo o
respeito, ao invés de as encararem como subprodutos de um desejável código de
regras morais. Em consequência, a empreitada de fazer filosofia tomando como
referência esses mesmos dilemas está inadvertidamente a replicar os trabalhos
iniciais de Kahneman e Tversky, ao desmascarar situações fora do comum perante
as quais as nossas intuições, que normalmente são sensatas, acabam por disparar
em várias frentes mas falhar o alvo. A ironia é que, onde Kahneman e Tversky
procuravam demonstrar as razões dessa falha, acaba por ser algo que serve as
teorias de vários filósofos que estão convictos de que as intuições deveriam
ter maior peso e ser levadas em conta quando julgamos sobre aquilo que nos é
exigido pela moral. É legítimo perguntar se o trabalho de Kahneman, Tversky e
os seus discípulos pode conduzir-nos a repensar as nossas intuições, mesmo no
domínio da moral.
Nada
do que eu disse confirma que seria aceitável empurrar o homem gordo. Quando
Kahneman e Tversky investigaram a heurística, fizeram-no nas suas áreas de
risco e incerteza, onde podiam provar que os humanos cometem erros lógicos. Já
no domínio da moral, tal não é possível. Mas aqueles que permitiriam que cinco
pessoas morressem talvez possam considerar a possibilidade de que as suas
intuições são reflexo de uma certa perspectiva como a do homunculus de Gould,
aos pulos e aos gritos: “Não matem o inocente.” A verdade é que esse homenzinho
pode estar certo. Mas se calhar deveríamos estar a prestar atenção a outras
vozes.
CASS R. SUNSTEIN,
IN PUBLICO DE 27 DE JULHO DE 2014
CASS R. SUNSTEIN,
IN PUBLICO DE 27 DE JULHO DE 2014
Sem comentários:
Enviar um comentário