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FOTO ANTÓNIO PEDRO FERREIRA |
Sophia
A cultura é cara, a
incultura é mais cara ainda
A primeira mulher portuguesa a receber o Prémio Camões, o mais importante
da língua portuguesa, morreu há dez anos. Foi trasladada esta quarta-feira para
o Panteão.
RECORDAR Sophia de Mello Breyner, uma das grandes
poetisas portuguesas do século XX, morreu há precisamente dez anos.
"A arte deve ser livre porque o ato de criação é
em si um ato de liberdade", escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen no
semanário Expresso, a 12 de julho de 1975, num artigo a que chamou "A
cultura é cara, a incultura é mais cara ainda". Este impulso criativo
sempre se mostrou como uma inevitabilidade na vida da poetisa, que se iniciou
na escrita aos 12 anos. Foi ainda jovem, aos 24, que publicou por iniciativa
própria o primeiro livro, intitulado "Poesia".
De origem dinamarquesa, desembarcou no Porto e ali
permaneceu, na Quinta do Campo Alegre (hoje o Jardim Botânico do Porto), onde
viveu com o avô e acabou por crescer. Uma casa cujo jardim foi cortado pela
Ponte da Arrábida e cujos plátanos foram arrancados, disse Sophia numa
entrevista ao "Jornal de Letras" a 5 de fevereiro de 1985.
Talvez tenha sido a ausência desse jardim,
imortalizado no poema "A Casa do Mar", que tenha cravado a temática
'natureza' no universo poético da autora: "A casa que eu amei foi
destroçada/ A morte caminha no sossego do jardim/ A vida sussurrada na
folhagem/ Subitamente quebrou-se não é minha".
Mar, casa, tempo, amor. São ainda outros dos temas do
universo da mítica escritora portuguesa, que não gostava que lhe perguntassem
porque é que escrevia. À poesia, encontrou-a antes de saber que existia a
literatura, disse um dia. Sempre lhe foi natural.
Sophia foi a primeira mulher portuguesa a receber o
Prémio Camões, o mais importante galardão literário da língua portuguesa.
Quando, em 1999, numa entrevista à TSF o jornalista lhe perguntou "porque
não o Nobel?", Sophia respondeu "que o nome do Nobel não vale o de
Camões".
A transparência da palavra, o ritmo melódico dos
versos, a lucidez e pureza da escrita da poetisa inserem-na no panorama da
literatura nacional como uma das autoras mais reconhecidas e amadas pelo
público.
A poesia está na rua
Detentora de vários galardões literários e condecorada
três vezes pela República Portuguesa, a poesia de Sophia situa-se entre uma
sensibilidade estética espiritual e uma poesia social, de denúncia a qualquer
tipo de ataque à dignidade humana (cujo estilo se acentuou durante o período
que antecedeu o 25 de abril de 1974). "Esta é a madrugada que eu esperava
/ O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E
livres habitamos a substância do tempo", escreveu sobre esse dia de abril.
Ainda agora, a intervenção de Sophia subsiste. Exemplo
disso é a presença da frase por ela escrita "a poesia está na rua",
outrora presente no emblemático quadro da pintora Vieira da Silva e
imortalizada hoje pelas várias paredes dos bairros lisboetas.
Também o mar - há muito desbravado - foi das temáticas
mais presentes na sua obra poética, cuja "escrita é de nau e singradura".
Tanto é que o Oceanário de Lisboa expõe os seus poemas em zonas de descanso da
exposição, permitindo aos visitantes absorverem esse mar enaltecido por
"Sophia como quem procura a ilha sempre mais ao sul", escreveu Manuel
Alegre num poema de homenagem.
Foi no dia 2 de julho de 2004 que morreu na sua
residência, em Lisboa, aos 84 anos. Sophia de Mello Breyner Andresen deixa
editada uma vasta obra de poesia, antologia, prosa, ensaios e teatro. Casada
com o jornalista, político e advogado Francisco Sousa Tavares e mãe de cinco
filhos, entre eles o jornalista e escritor Miguel Sousa Tavares, Sophia de
Mello Breyner permanece como uma poetisa intemporal, humana, uma poetisa do e
para o povo.
Ainda o artigo "A cultura é cara, a incultura é
mais cara ainda", que Sophia escreveu para o Expresso: "Quando a Arte
não é livre o povo também não é livre. Onde o artista começa a não ser livre o
povo começa a ser colonizado e a justiça torna-se parcial, unidimensional e
abstrata. Se o ataque à liberdade cultural me preocupa tanto é porque a falta
de liberdade cultural é um sintoma e significa sempre opressão para um povo
inteiro".
Texto original publicado no Expresso de 12 de julho de 1975).
In Expresso, Soraia C. Ribeiro |
16:20 Quarta feira, 2 de julho de 2014
Republicação integral
Em defesa da cultura. O
texto que Sophia escreveu para o Expresso
O Expresso recupera na íntegra um artigo de opinião escrito por Sophia de
Mello Breyner no semanário a 12 de julho de 1975. Foi publicado durante o IV
Governo Provisório e era dirigido ao então ministro da Comunicação Social,
Jorge Correia Jesuíno, que disse que as artes não eram favoráveis aos períodos
revolucionários. O artigo intitulava-se "A cultura é cara, a incultura é
mais cara ainda". Sophia foi trasladada para o Panteão esta quarta-feira.
Sophia de Mello Breyner Andresen |
14:04
Quinta, 3 de Julho de 2014
CRITICA
Sophia de Mello Breyner critica as declarações do
Ministro da Comunicação Social Jorge Correia Jesuíno, sobre a cultura num
artigo de 1975!
"1 - A ARTE deve ser livre porque o ato de
criação é em si um ato de liberdade. Mas não é só a liberdade individual do
artista que importa. Sabemos que quando a Arte não é livre o povo também não é
livre. Há sempre uma profunda e estrutural unidade na liberdade. Onde o artista
começa a não ser livre o povo começa a ser colonizado e a justiça torna-se
parcial, unidimensional e abstrata. Se o ataque à liberdade cultural me
preocupa tanto é porque a falta de liberdade cultural é um sintoma e significa
sempre opressão para um povo inteiro.
2 - NÃO PENSO que exista uma arte para o povo. Existe
sim uma arte para todos à qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe
deve ser possibilitado através dos meios de comunicação. Primeiro os
"aedos" cantaram no palácio dos reis gregos "o canto venerável e
antigo". Era uma arte profundamente aristocrática. Depois os rapsodos
cantaram esse mesmo canto na praça pública. E Homero, foi, como se disse, o
educador da Grécia. Isto é: a cultura foi posta em comum. E por isso os gregos
inventaram a democracia. A política começa muito antes da política.
Penso que nenhum socialismo real será possível se a
cultura não foi posta em comum. Quando o aedo, ou poeta medieval cantavam na
praça o seu poema era ouvido por todos, mesmo pelo analfabeto. E viajava por
todo o país e de país em país: por isso o mirandês canta Mirandolim-Marlbourg.
Depois a cultura fechou-se em livros e os analfabetos
e os pobres foram rejeitados. Tudo se tornou mais complexo e complexado. As
comunidades foram divididas e cada homem foi dividido dentro de si
próprio. Será preciso um enorme paciente e múltiplo e obcecado esforço
para construir o mundo de outra maneira. E é preciso que nenhum dirigismo
esmague esse esforço.
É evidente que no mundo atual encontramos a par da
arte uma meta-arte. O cubismo é uma meta pintura, uma pintura sobre a pintura.
Arte e meta-arte alimentam-se e inspiram-se mutuamente e penso que este é um
dos caminhos, uma das possibilidades. Foi a ler Proust e Rimbaud que aprendi a
escrever para crianças. O simplismo e o populismo nunca conduzirão a nada. Se
João Cabral de Melo é capaz de escrever uma obra como "Morte e Vida
Severina" é porque é capaz de escrever "Uma Faca só Lâmina".
"Morte e Vida Severina" é um poema que todos entendem, mas nele as
imagens são tão precisas, e os versos tão densos como em "Uma Faca só
Lâmina".
Creio que o "poema para todos" é, dentro da
cultura em que estamos, o poema mais difícil de escrever. Creio que esse poema
é necessário e por isso tenho procurado encontrar um caminho para ele. Por isso
em "Livro Sexto" invoquei
O canto para todos
Por todos entendido
Mas sei que esse poema não se programa. E por isso, já depois do 25 de abril
escrevi:
Um poema não se programa
Porém a disciplina
Sílaba por sílaba
O acompanha
Mas a disciplina do poema não é a da política.
O poema é disciplinado pela sua própria necessidade.
Nem o próprio artista se pode programar a si próprio.
O Ministro da Comunicação Social disse que os períodos revolucionários não eram
propícios às artes de vanguarda. Não podemos esquecer que também Hitler e
Salazar não se entendiam bem com a arte de vanguarda e que ambos a perseguiam.
Um verdadeiro período revolucionário está aberto a todas as formas de criação.
3 - É EVIDENTE que há incoerência. As campanhas de
dinamização são mais políticas do que culturais. Fazem um doutrinamento
político que deve ser feito pelos partidos. Pois não há doutrinamento apartidário.
Não há angelismo político. Um doutrinamento político que se apresenta como
apartidário é necessariamente ambíguo.
Vivemos no pluralismo. Mas não queremos viver na
ambiguidade. Queremos que o pluralismo seja nítido e declarado com clareza. Que
todo aquele que exerce uma atividade de doutrinamento político diga aos outros
o partido a que pertence ou que apoia.
Queremos uma revolução clara. Queremos a clareza e a
coerência dessa clareza. Este país tem neste momento uma intensa consciência da
necessidade de clareza.
A política é um capítulo da moral. O povo que somos
votou conscientemente e quer a política que escolheu. Queremos justiça social
concreta mas sabemos que essa justiça só se poderá construir na liberdade e na
verdade.
Sabemos muito claramente o que não queremos. Não
queremos a violência, não queremos que a liberdade seja sofismada. Não queremos
nem inquisições nem perseguições. Não queremos política da terra queimada. Não
queremos política imposta. E no plano da cultura queremos acima de tudo que a
política não seja anti-cultura.
A demagogia é a traição cultural da revolução. Porque
a demagogia é a arte de ensinar um povo a não pensar. Um provérbio africano
diz: Uma palavra que está sempre na boca transforma-se em baba. Não queremos
continuar a suportar a baba dos slogans.
Querer fazer política cultural quando os meios de
comunicação estão inundados de demagogia é uma incoerência radical. O ministro
da comunicação referiu-se ao facto de o trabalho dos artistas ser agora pago
pelo povo. Também muitos jornais são agora pagos pelo povo e todos os dias
custam ao povo uma despesa escandalosa.
A cultura é cara. A incultura acaba sempre por sair
mais cara. E a demagogia custa sempre caríssimo."
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