Ado dependências
Roberto Saviano: "Sinto-me
velho para experimentar"
Escritor mergulhou
no inferno da cocaína, mesmo sem nunca ter snifado, e admite que a solução é
legalizá-la.
Por Leonardo
Ralha
"Não há
snipers em Lisboa", disse Roberto Saviano, antes do início da entrevista
com a 'Domingo', reagindo às cautelas do polícia português que
zelava pela sua segurança. Foi no terraço envidraçado de um hotel que o
italiano de 35 anos, ameaçado de morte pela Camorra, a Máfia napolitana, devido
a 'Gomorra', falou de 'ZeroZeroZero' (Objectiva), agora lançado em Portugal.
Uma volta ao Mundo em quase 80 cartéis de cocaína.
Quando compramos um
maço de cigarros lemos que o tabaco mata, provoca cancro e impotência. Que
aviso deveria acompanhar um grama de cocaína?
A cocaína tem um duplo
perigo. Dá a sensação de que não nos estamos a drogar, um pouco como se fosse
aperitivo. E não é como um cigarro, que nos põe um pouco melhor e nos faz
companhia. É uma sensação performativa. Julgamos que podemos fazer tudo melhor
e senti-lo de forma intensa.
Trabalha-se mais,
divertimo-nos mais…
Até quando se lê
sob o efeito da cocaína a sensação de realidade é diferente. As letras entram
melhor na cabeça.
Podemos dizer que é
uma realidade aumentada?
Sem dúvida. Mas os
danos são infinitos. O que acontece, quimicamente, é que os neurónios comunicam
uns com os outros continuamente, o que leva a que sintamos tudo de forma mais
forte. As contra-indicações incluem impotência, enfarte, perda de memória e uma
degradação do corpo, progressiva e em grande velocidade. Apesar de no
imaginário das pessoas, a heroína ser a verdadeira droga destruidora.
Uma droga para
porcos, feios e maus…
Mas está a haver um
retorno da heroína. A cocaína vencia porque é snifada, enquanto a heroína
perdia porque era injetada. Mas agora a heroína relançou-se, num ponto de vista
de marketing, porque também se pode snifar ou ser fumada. E é muito diferente
da cocaína. A heroína dá a mesma sensação de um orgasmo, mantido durante 15
minutos. É incrível, mas durante o efeito é impossível guiar, escrever,
trabalhar ou fazer um teste na escola.
Fica-se muito
longe.
E com a princesa
das sensações. Já a coca é o comandante de um exército do quotidiano, que te
faz estar bem e que tem todo um imaginário sexual. Mas é tudo falso. A cocaína
provoca impotência, enquanto te mete na cabeça que sentes tudo mais intenso.
É verdade que se
pode escrever acerca de homicídios sem matar ninguém, mas será possível
escrever sobre cocaína sem snifar sequer uma vez?
Nunca experimentei.
Já vi, mas sinto-me demasiado velho para experimentar. Quando era miúdo vivia
onde era proibido consumi-la.
Não tem
curiosidade?
Tenho muita, mas
sei demasiado acerca dela. E teve muito a ver com a noção de honra do local
onde cresci, pois tínhamos de marcar continuamente diferença em relação aos
outros. Se tivesse crescido aqui ou em Milão, seguramente teria provado.
Sete anos depois de
a sua vida ter mudado, talvez para sempre, por causa de ‘Gomorra’, o que levou
a escrever sobre o mercado mundial da cocaína?
A vingança, no
plano pessoal, e as histórias incríveis. Sou um escritor, e posso inventar, mas
a realidade é tão incrível que seria impossível criar algo assim. Um exemplo:
parte das Antilhas Holandesas um voo regular, com os herdeiros do trono da
Holanda a bordo, e quando chegam ao aeroporto de Schiphol, em
Amesterdão, todos os passageiros eram mulas de droga menos eles, embora ninguém
se conhecesse. Só o príncipe e a princesa é que não estavam envolvidos. Se
pusesse isto num thriller de Hollywood ou num romance policial, torceriam o
nariz e diriam que era um exagero.
Não seria
verosímil…
Encontro
constantemente histórias ligadas ao narcotráfico que, mesmo sem serem
inverosímeis, são extremas.
Ao contrário da
heroína, existe uma visão quase benévola da cocaína. Como é que isto se
explica?
Na realidade não
cria uma dependência igual. Se injetares três vezes heroína, estás agarrado. A
cocaína pode ter uso lúdico e, de facto, é possível que não te reduza a um
verme. Além disso, estava ligada a um estatuto de poder e de dinheiro. Hoje é
utilizada para conseguir trabalhar mais.
Está muito
associada aos corretores de bolsa nas principais praças financeiras.
Mas encontrei
muitos trabalhadores das obras que tomam coca para aguentarem mais horas.
Compram em grupo, e assim conseguem pagá-la. A estratégia mental é a seguinte:
se snifo para poder receber mais, não é uma droga má. É uma espécie de bebida
energética.
Logo no início de
‘ZeroZeroZero’, considera a divisão do território mexicano entre os cartéis
mais importante para o mundo em que vivemos do que o fim da Guerra Fria. Admite
que isso é um exagero?
Voluntário.
Exagerei para poder dizer que essa divisão foi verdadeiramente importante.
Nessa altura o Mundo ignorou o que os cartéis mexicanos estavam a fazer, e que
hoje em dia conta muito para os EUA, mas também para Portugal, para Espanha e
para toda a Europa.
Algumas coisas
importantes acabam por ser ignoradas…
E não é porque haja
censura política, mas sim censura mediática, pois considera-se que não
interessa contar essas histórias. Para a Europa é tudo secundário, a não ser
quando acontece um massacre, e encontram uma centena de cadáveres degolados.
Descreve com
detalhe os crimes de traficantes de droga de todo o Mundo e aquilo que têm em
comum é a brutalidade extrema. Trata-se de um código?
Tem a ver com a
necessidade de eliminar a concorrência. À menor suspeita, esquarteja-se. Ligo
muito a violência a um imperativo económico. Quem não agir assim acaba morto. E
claro que as decapitações e a tortura, usadas sobretudo pelos cartéis latinos –
os italianos um pouco menos -, são sobretudo marketing. As decapitações são
inspiradas nos islamitas.
Mas as decapitações
de cartéis como Los Zetas, do México, não aparecem nos telejornais, ao
contrário das que são feitas pelo Estado Islâmico.
Não aparecem nos
telejornais de todo o Mundo, mas já apareceram nos mexicanos. Tanto assim
que Los Zetas decidiram matar sempre por volta das seis e meia ou sete da
tarde, para conseguirem ser notícia de abertura. Se executassem mais cedo
arriscavam-se a ser ultrapassados por outro homicídio.
Se um headhunter
tivesse de recrutar um líder para o narcotráfico, que características exigiria
aos candidatos?
Boa pergunta!
(risos) Capacidade de viver na absoluta ausência de tudo, tendo o poder como
único objetivo.
Têm de ser
espartanos?
São os últimos
calvinistas do Ocidente. Quando vão para a cadeia, impressiona-me o seu
silêncio. Morrem atrás das grades em vez de denunciarem. Há um sentimento de
sacrifício e as organizações criminosas mais fortes têm esta lógica. Constato-o,
quase com respeito.
Enquanto fazia
pesquisa para o livro esteve em Ciudad Juárez, a localidade mexicana que bate
recordes de homicídios devido às lutas entre traficantes?
Sim. Tive a
estranha sensação de que uma parte da sociedade, mais branca, mais espanhola,
acha que tudo o que envolve o narcotráfico acontece longíssimo e nunca atingirá
quem não se meter a jeito. Alguns bairros são seguríssimos.
Que conselho daria
a um jovem de Ciudad Juárez que quisesse escrever um retrato parecido com
aquele que fez de Nápoles no seu livro ‘Gomorra’?
Que tenha muita
coragem e que escreva para lá dos crimes. Deve contar o Mundo através de Ciudad
Juárez em vez de contar Ciudad Juárez ao Mundo. Isso é importante. As pessoas
gostam muito de filmes e séries acerca de mafiosos porque revêem toda a lógica
da vida quotidiana através deles.
Lê-se em
‘ZeroZeroZero’ que a cocaína faz girar o Mundo. Se fosse um país, a sua
economia teria lugar no G8 ou no G20?
Sem dúvida. Aliás,
a cocaína tem uma enorme presença entre os países do G8, tanto na existência de
todas as drogas imagináveis quanto na presença de capital proveniente do
narcotráfico no sistema financeiro. Demonstrou-se quando o Wachovia Bank teve
de pagar multa de 160 milhões de dólares aos EUA por lavar dinheiro através de
casas de câmbio no México.
É possível fazer
especulações acerca da riqueza gerada pela cocaína?
Mundialmente, e não
apenas em cocaína, a droga pode representar, 54 a 100 mil milhões de euros.
Sendo o
investimento mais rentável do Mundo, não deixa de ser verdade que a cocaína
acarreta riscos que não existem em negócios legais…
Morre-se. É um
risco. Todas as pessoas que conheci e que se tornaram camorristas acabaram por
morrer. Vai-se preso ou acaba-se por morrer. Em 90 por cento dos casos só se
chega aos 40 anos tendo a defesa de estar na cadeia.
A Colômbia assegura
a maior parte da produção mundial de cocaína, mas os intermediários mexicanos
têm uma fatia maior dos lucros, devido à proximidade dos EUA. A cocaína é um
negócio como o imobiliário, em que o importante é localização, localização,
localização?
A força do México
vem da proximidade e da grande comunidade emigrante que vive nos EUA, mas
também de uma elevada ferocidade e de ligações inteligentes à política. Na
Colômbia, Pablo Escobar cometeu o seu maior erro ao tentar construir uma
carreira política, o que o tornou demasiado visível para que o Mundo pudesse
ignorar. De qualquer forma, segundo dados muito recentes, o Peru passou a ser o
maior produtor mundial, seguido da Colômbia e da Bolívia, enquanto os EUA
continuam a ser o megamercado.
Devemos encarar
como uma boa notícia as escassas referências que faz a Portugal neste livro?
Talvez sim, talvez
não. Por um lado, a política portuguesa de considerar os toxicodependentes
pessoas com problemas e não criminosos é genial. Há alguns anos Portugal era, juntamente
com a Espanha, a verdadeira porta de entrada de droga na Europa, mas agora o
produto chega mais facilmente a outros países, como a Holanda. Por outro lado,
não me fio muito nos dados da polícia portuguesa, pois os brasileiros do
Primeiro Comando da Capital, de São Paulo, e do Comando Vermelho, do Rio
de Janeiro, têm presença em Lisboa.
Observa que um
grama custa muito menos em Portugal do que noutros países europeus. A cocaína
adapta-se ao nível de vida de cada país ou perde simplesmente pureza?
A coca portuguesa
vem do Brasil, e como eles compram muita, podem baixar o preço. Mas também se
pode misturar outros produtos e, de facto, assiste-se a uma adaptação ao
dinheiro disponível. Nos piores momentos de crise vi cocaína a ser vendida a
dez euros em Nápoles.
Defende no livro
que a legalização da cocaína poderia ser uma solução. O Mundo está pronto para
isso?
Não está. E não
gostaria que fosse legalizada, mas é a melhor solução.
O que aconteceria
aos narcotraficantes?
Procurariam
legalizar-se, como a família Kennedy, que fazia contrabando de álcool antes de
ter um presidente. Uma parte dos narcotraficantes seriam reintegrados na
sociedade, mas na América do Sul é possível que se dedicassem aos sequestros.
Ficará contente se
um único leitor deixar de consumir cocaína depois de saber tudo o que o tráfico
implica?
Se um não começar a snifar, um deixar de consumir e um tomar consciência do
inferno que envolve a cocaína. São os três resultados que imagino ao escrever
este livro.
Lola
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