Leitura filosófica do texto
Como sabemos a Filosofia faz-se e exprime-se nos textos de filósofos que requerem um esforço interpretativo no sentido de podermos privar com as ideias que presidiram à sua elaboração ou então, e porque não, fazer re-leituras à luz das problemáticas actuais!
Não são as questões filosóficas intemporais?
Então, como proceder à leitura de um texto filosófico?
- Leitura atenta do texto;
- Identificar o tema global do texto;
- Identificação do problema subjacente;
- dar atenção aos conceitos fundamentais
- compreendê-los com a ajuda de um dicionário de filosofia;
- identificar a tese apresentada pelo autor;
- Enunciar os argumentos apresentados;
- Refutar a tese do autor;
- Conclusão
Passemos, agora, a uma observação atenta de um texto:
Livre-arbítrio e responsabilidade humana
A minha tese é a
seguinte: a pessoa que está convencida que tem liberdade de escolha ou
livre-arbítrio tem um maior sentido de responsabilidade do que a pessoa que
pensa que o determinismo absoluto governa o universo e a vida humana. O
determinismo no sentido clássico significa que todo o fluir da história,
incluindo todas as escolhas humanas e as acções, estão completamente
determinadas desde o início dos tempos. Quem quer que acredite que "o que
tem que ser, será" pode tentar escapar à responsabilidade moral apesar de
ter agido erradamente defendendo que tal estava predestinado por leis rígidas
de causa e efeito.
Mas se a livre escolha
realmente existe na altura de escolher, os homens têm claramente
responsabilidade moral por decidirem entre duas ou mais alternativas genuínas,
e o álibi determinista não tem qualquer peso. Assim, o coração da nossa
discussão radica na questão de saber se é verdade que temos livre escolha ou se
é verdadeiro o determinismo universal. Tentarei resumir brevemente as razões
principais que apontam para a existência de livre-arbítrio.
Primeiro: há uma
intuição vulgar imediata e poderosa, que é partilhada por virtualmente todos os
seres humanos de que existe liberdade de escolha. Esta intuição parece-me tão
forte como a sensação de prazer ou de dor; e a tentativa dos deterministas
provarem que esta intuição é falsa é tão artificial como a pretensão […] de que
a dor não é real. Claro que a existência desta intuição não prova por si a
existência da liberdade de escolha, mas justamente por ser uma intuição tão
forte, coloca o ónus da prova do lado dos deterministas, que têm que provar que
se baseia numa ilusão.
Segundo: podemos recusar
o argumento determinista admitindo, ou até insistindo, que há uma grande
quantidade de determinismo no mundo. O determinismo na forma de leis causais do
tipo "se…então…" governa não só o funcionamento de inúmeros
movimentos corporais como o funcionamento de grande parte do universo. Podemos
estar contentes com o facto dos sistemas respiratório, digestivo, circulatório,
e dos batimentos cardíacos, funcionarem deterministicamente — pelo menos até
avariarem. O determinismo versus livre-arbítrio é uma
falsa questão; o que nós sempre tivemos foi um determinismo e um livre-arbítrio relativos. O
livre-arbítrio sempre esteve limitado pelo passado e por um conjunto vasto de
leis causais do tipo "se…então…". Ao mesmo tempo, os seres humanos
usam o livre-arbítrio para tirarem partido daquelas leis determinísticas que
fazem parte da ciência e das máquinas que produziram. A maioria de nós guia
carros, e somos nós e não estes quem decide quando e para onde vão. O
determinismo usado de forma sábia e controlada — o que nem sempre se verifica —
pode tornar-nos mais livres e felizes.
Terceiro: o determinismo
é algo relativo, não apenas porque os seres humanos têm liberdade de escolha,
mas também porque a contingência e o acaso são um traço fundamental do cosmos.
A contingência percebe-se melhor na intersecção de sequências de eventos
independentes entre si sem qualquer conexão causal prévia. O meu exemplo
favorito é o da colisão do transatlânticoTitanic com um iceberg, a meio da noite de 14 de Abril de 1912. Foi um
acidente terrível em que morreram mais de 1500 pessoas. A deriva do iceberg desde
o norte e o percurso do Titanic de oeste a partir de
Inglaterra representam claramente duas sequências causais de eventos
independentes.
Se, por hipótese, um
grupo de especialistas tivesse sido capaz de identificar as duas sequências
causais e assegurar que tal catástrofe estava predeterminada desde o momento em
que o transatlântico deixou o porto de Southampton, ainda assim isso não
perturbaria a minha teoria. A relação espaço-tempo do iceberg e
do Titanic,
desde que este iniciou a sua viagem, seria, em si, uma relação de contingência,
já que não haveria qualquer causa relevante para a explicar.
Como referi, a presença
constante da contingência no mundo é igualmente provada pelo facto de todas as
leis naturais assumirem a forma de sequências ou relações do tipo "se…, então…".
O elemento se é obviamente condicional e demonstra a coexistência
habitual da contingência com o determinismo. A actualidade da contingência nega
a ideia de uma necessidade total e universal a operar em todo o universo. No
que diz respeito as escolhas humanas, a contingência assegura que as
alternativas de que temos experiência são indeterminadas relativamente ao acto
de escolher, o que faz depois que uma delas seja determinada.
A minha quarta razão é
que o significado aceite de potencialidade,
nomeadamente, de que todo o objecto e acontecimento no cosmos têm
possibilidades plurais de comportamento, interacção e desenvolvimento, deita
por terra a tese determinista. Se quiseres realizar uma viagem de férias no
próximo Verão, pensarás sem qualquer dúvida em inúmeros destinos possíveis
antes de te decidires. O determinismo implica que isso não seja mais do que
teatro, pois estás determinado escolher precisamente o destino que escolheste.
Quando relacionamos o padrão causal com a ideia de potencialidade, verificamos
que a causalidade mediada pela escolha livre pode ter o seu efeito apropriado
na actualização de qualquer uma das diversas possibilidades existentes.
Quinto: os processos
normais do pensamento humano estão ligados à ideia de potencialidade tal como a
descrevi, e do mesmo modo tendem a mostrar que a liberdade de escolha é real.
Pensar envolve constantemente concepções gerais, universais ou abstractas sob
as quais são classificados os diferentes particulares. No caso que discuti na
minha quarta razão, "viagem de férias" era a concepção geral e os
diferentes lugares que poderias visitar eram os particulares, as alternativas,
as potencialidades, que alguém podia livremente escolher. Se de facto não
houver liberdade de escolha, então a função do pensamento humano de resolver
problemas torna-se supérflua e numa máscara de faz-de-conta.
Sexto: é esclarecedor
para o problema da liberdade de escolha perceber que apenas existe o presente,
e que é sempre alguma actividade presente que dá origem ao passado, no mesmo
sentido em que um esquiador deixa atrás de si um trilho na neve quando desce
uma colina. Tudo o que existe — o vasto conjunto agregado de matéria inanimada,
a imensa profusão de vida anterior, o ser humano em toda a sua diversidade —
existe ou existem apenas como acontecimentos quando ocorrem neste instante
exacto, que é agora. O passado está morto e passado; existe apenas na medida em
que se exprime nas estruturas e actividades presentes.
A actividade do presente
imediatamente anterior estabelece os fundamentos através dos quais opera o
presente imediato. O que aconteceu no passado tanto cria limitações como
possibilidades, que condicionam sempre o presente. Mas condicionar neste
sentido não significa o mesmo que determinar; cada dia se desenvolve a partir
de agora no seu próprio momento, actualizando novos padrões de existência,
mantendo e destruindo outros. Portanto, quando um homem escolhe e age no
presente não é inteiramente controlado pelo passado, mas parte da evolução
interminável do poder cósmico. É um agente activo e iniciador, que, montado na
onda de um dado presente, delibera entre alternativas abertas para alcançar
decisões relativamente às muitas e diversas fases da sua vida.
A minha sétima razão é
que a doutrina do determinismo universal e eterno se auto-refuta quando
consideramos, por redução ao absurdo, todas as suas implicações. Se as nossas
escolhas e acções de hoje estivessem determinadas ontem, então estariam
igualmente determinadas antes de ontem, no dia do nosso nascimento, no dia do
nascimento do nosso sistema solar e da terra há biliões de anos. Considere-se
então a consequência: para o determinismo, o chamado impulso
irresistível que os sistemas jurídicos reconhecem quando julgam
crimes cometidos por pessoas insanas, deve ser considerado com o mesmo vigor
para as acções realizadas por pessoas sãs e virtuosas. Segundo a filosofia
determinista, o homem bom sente um impulso irresistível para dizer a verdade,
para ser bom para os animais e para expor a corrupção na política.
Oito: são inúmeras as
palavras que perdem o seu significado normal no novo dialecto do determinismo.
Refiro-me a palavras comoabstenção, proibição, moderação e remorso. Uma vez provada a verdade do determinismo, teríamos
que rasurar grande parte dos dicionários existentes e redefinir uma grande
quantidade de coisas. Por exemplo, que significado deveria ter proibição quando
já está determinado que irás recusar o segundo cocktail de
Martini? Em boa verdade, só se pode proibir quando se quer impedir alguém de
fazer alguma coisa que esteja no seu alcance fazer. Mas segundo o determinismo
não poderias aceitar o segundococktail por já estar
predeterminado que dirás "Não". Não estou a dizer que a natureza deva
conformar-se aos nossos usos linguísticos, mas os hábitos linguísticos dos
seres humanos, que evoluíram ao longo da imensidão dos tempos, não podem ser
negligenciados na análise do livre-arbítrio e do determinismo.
Finalmente, não penso
que o termo "responsabilidade moral" possa manter o seu significado
tradicional, a não ser que exista liberdade de escolha. Segundo a perspectiva
da ética, da lei e do direito criminal, é difícil entender como um determinista
consistente possa ter um sentido de responsabilidade pessoal adequado
relativamente ao desenvolvimento de padrões éticos decentes. Mas a questão
permanecerá independentemente de terem sido ou de alguma vez poderem vir a ser
deterministas consistentes, ou até do facto de o livre-arbítrio ser um traço
inato e tão profundamente característico da natureza humana, como sugeriu
Jean-Paul Sartre ao afirmar "Não somos livres para deixar de ser
livres".
Corliss
Lamont
Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira
Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira
Retirado de
"Freedom of the Will and Human Responsibility", in Pojman,
Louis P. (2006), Philosophy: The Quest for Truth, 6.ª ed. Nova Iorque, Oxford University Press, pp.
367-368.
Corliss Lamont (March 28, 1902 – April 26, 1995), was a socialist philosopher, and advocate of various left-wing and civil liberties causes.
Lola
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