Paixão, Amor e Ódio
ODIAR
A SI MESMO É AUTOFLAGELO
A palavra
paixão carrega consigo dupla rede de significação: por um lado, estar
apaixonado é sentir um amor ardente, um estado de arrebatamento, contentamento,
entusiasmo, bem querer; por outro, é provocar aflição, flagelo, tristeza
intensa em alguém ou a si mesmo, mal querer. Amar e odiar são paixões primárias
mobilizadoras de afetos e definem a relação pulsional entre o Eu e o objeto.
O problema
consiste quando o próprio Eu é o objeto de investimento do ódio. Pode parecer
trivial quando no momento de raiva, a sentença “Eu me odeio” é enunciada. Há,
no entanto, uma dimensão inconsciente deste ódio a si que se revela na forma de
um gozo masoquista: o prazer em sofrer, em imputar-se sofrimento sem
causalidade somática, orgânica. Obter prazer na dor é um autoflagelo.
Na edição
anterior da Arraso destaquei o argumento do filósofo René Descartes no tratado
As Paixões da Alma, publicado em 1649. Definiu seis paixões primárias que fundamentam
todas as demais passíveis de catalogação: admiração, o amor, o ódio, o desejo,
a alegria e a tristeza. No artigo 56, o amor e o ódio são designados como
paixões e estão relacionadas à existência do objeto, permitindo estabelecer o
juízo de valor bom e mau e, por extensão, o juízo moral bem e mal. Quando o
objeto é bom nós o amamos; quando é mau, nós o odiamos. “Quando uma coisa se
nos apresenta como boa em relação a nós, isto é, como nos sendo conveniente e
aprazível, isso nos leva a ter amor por ela; e, quando se nos apresenta como
má, nociva ou desprezível, isso nos incita ao ódio”.
A relevância
de tal argumento está no fato de constituir o alicerce do edifício moral na
modernidade. Desde o século 17, nosso modo de pensar e sentir estão determinados
pelo racionalismo cartesiano – quer tenhamos consciência disso ou não, toda
cultura ocidental moderna se fundamenta no pensamento de Descartes. Seja para
afirmá-lo ou negá-lo: a história do pensamento ocidental está atravessada pelas
ideias que sua obra filosófica transmitiu.
É no cenário
da filosofia moral de Descartes que o médico vienense Sigmund Freud se
confrontou, no final do século 19, com o sofrimento psíquico, ao iniciar sua
prática clínica de tratamento dos sintomas psiconeuróticos. Desde os primórdios
da invenção da psicanálise, Freud reconheceu nas queixas e lamentos de seus
pacientes um modo singular de autoflagelo: os sintomas psíquicos são atos
inconscientes de ódio a si mesmo. O Eu é investido como objeto de paixões
primárias. O ódio a si mesmo é atividade de estado patológico reconhecidamente
sádico que produz uma espécie de gozo masoquista. O ódio dirigido ao outro como
objeto externo é tão somente a expressão inconsciente de um modo de odiar-se
por extensão.
No artigo As
pulsões e seus destinos, publicado na Revista Internacional de Psicanálise em
1915, Freud investigou as paixões (amor e ódio) como estados pulsionais (pulsão
de vida e pulsão de morte) que determinam o funcionamento do aparelho psíquico
do animal falante. As pulsões são o combustível para o funcionamento do
aparelho. O pressuposto básico da teoria psicanalítica está na concepção de um
aparelho psíquico dotado de virtualidade, ou seja, não é localizável
anatomicamente. É, em suma, um aparelho de linguagem capaz de representar
estados afetivos para realizar sua finalidade básica: escoar, descarregar,
eliminar excitações provenientes de estímulos exógenos (vindos de fora, do
mundo exterior) e estímulos endógenos (provenientes do interior do organismo).
O aparelho
psíquico, estruturado em três sistemas (Inconsciente, Eu e Supereu), é
constituído por três pares de opostos: Eu-objeto; prazer-desprazer;
ativo-passivo. Assim, atuam no sujeito humano duas posições que definem a
finalidade das pulsões: amar e ser amado. A primeira (amar) corresponde à
posição ativa do sujeito no ato de desejar; a segunda (ser amado) corresponde à
posição passiva em se fazer objeto do desejo do outro. Freud considerou ainda
que a indiferença, o odiar e o ser amado são os opostos de amar. A oposição amor-ódio
reproduz a polaridade prazer-desprazer. Amamos o que nos causa prazer e odiamos
o que nos causa desprazer.
“Quando o
objeto se torna fonte de sensações prazerosas, produz-se uma tendência motora
que busca aproximá-lo do Eu, incorporá-lo ao Eu; fala-se então da atração que o
objeto dispensador de prazer exerce, e diz-se que ama o objeto. Inversamente,
quando o objeto é fonte de sensações desprazerosas, há uma tendência que se
esforça para aumentar a distinção entre ele e o Eu. Sentimos a repulsão do
objeto e o odiamos; esse ódio pode então se exacerbar em propensão a agredir o
objeto, em intenção de aniquilá-lo”. Parece familiar admitir que a pulsão
conduza a amar o objeto com o qual poderá se realizar na forma de prazer. No
entanto, que a pulsão possa conduzir a odiar um objeto é algo que nos aparece
estranho; sobretudo quando esse objeto é o próprio Eu.
Freud
solicitou ao leitor que admita uma premissa básica: as designações amor e ódio
não se aplicam às relações entre as pulsões e os objetos, mas sim às relações
do Eu com os objetos. A palavra amar se avizinha à esfera da pura relação de
prazer do Eu com o objeto; e a palavra odiar se refere à esfera da relação de
desprazer do Eu com o objeto. “O Eu odeia, abomina, persegue com propósitos
destrutivos todos os objetos que lhe tornam fonte de sensações desprazerosas,
não importando se para ele significam uma frustração de satisfação sexual ou da
satisfação de necessidades de conservação. Pode-se mesmo afirmar que os
autênticos modelos da relação de ódio não provêm da vida sexual, mas da luta do
Eu por sua conservação e afirmação”.
O desafio,
como sempre, é encontrar um equilíbrio: certa moderação entre forças psíquicas
ambivalentes. O excesso de amor a si conduz ao narcisismo e o excesso de ódio a
si conduz ao masoquismo. Decorre destes fenômenos o problema econômico do
narcisismo e do masoquismo ocupar, na atualidade, o centro de investigação,
diagnóstico e tratamento na prática clínica da psicanálise.
fonte:Revista ARRASO /
Edição de Aniversário – Ano 6, nº 41, 2014 –
Publicação do Jornal de Piracicaba
Lola
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