Entregar a TAP?
NÃO
HÁ UMA SÓ RAZÃO PARA ENTREGAR A TAP
Há quase vinte anos que sucessivos governos tentam passar a ideia de que é
forçoso vender a TAP. Tal ideia é falsa e não assenta em qualquer argumento que
possa contrariar os evidentes e irreversíveis danos para o país, para a sua
política externa, para a sua economia e para os portugueses, que a sua venda
representaria. E há quase vinte anos que os sucessivos governos tudo têm feito,
por acção ou inacção, para conduzir a TAP a uma situação de ruptura que possa
criar na opinião pública a ideia de que só resta a alternativa de nos livrarmos
da TAP, para “pôr fim ao vazadouro”. Não há aqui sombra de inocência.
O primeiro argumento é o da necessidade de refinanciar a TAP e a
impossibilidade de o fazer com dinheiros públicos por tal contrariar as normas
europeias. Esse foi o principal motivo esgrimido pelo actual Governo, mas sem
nunca fazer demonstração cabal do mesmo. Porém, essa impossibilidade foi agora
expressamente negada pela comissária europeia responsável: ou seja, o Governo
mentiu. Sem pudor.
Desmascarada a mentira, o Governo reformula o argumento: o financiamento
público só seria consentido pela UE, com a contrapartida da “reestruturação” da
empresa — o que significaria despedimentos, diminuição de rotas, eventualmente
corte de salários. E o que a TAP precisa, dizem-nos, é de investimentos que
assegurem o seu “crescimento” — o que só pode ser garantido por privados. Este
argumento é de uma hipocrisia chocante. Em primeiro lugar, porque a TAP não
precisa de crescer: o que precisa é de assegurar a dimensão actual do serviço
que presta, o qual já é bem mais vasto do que seria imaginável numa empresa de
um país desta dimensão. Em segundo lugar, a “reestruturação”, que será sempre
necessária e desejável, seria inevitavelmente pior (em despedimentos, diminuição
de rotas e de meios) se feita por privados tendo como objectivo único o aumento
dos lucros de exploração. Olhem para a “reestruturação” da Iberia e concluam.
Por fim, a necessidade de refinanciar a empresa não obriga a que o modo
escolhido seja a da sua entrega em bloco a uma empresa estrangeira. Com vontade
e imaginação, o Governo conseguiria, entre investidores institucionais,
dispersão de parte do capital em bolsa e escolha de um parceiro estratégico,
privatizar uma parte, assegurar o financiamento e manter uma posição de
controle e influência efectivos. Basta atentar nos motivos invocados para a
requisição civil decretada, para perceber que aquilo que o Governo agora quer
evitar é exactamente o que não conseguirá evitar no futuro, com a venda em bloco
da TAP. Haja coerência: se a TAP é estratégica para o Governo se opor a esta
greve, também é, então, para uma venda em que os mesmos danos podem ser
causados habitualmente e sem necessidade de qualquer greve.
Mas o fatal argumento financeiro tem outro calcanhar de Aquiles: o core
business da TAP é uma actividade que dá lucros: a voar e a funcionar, a TAP dá
lucro. Onde perde dinheiro, contaminando pela negativa os resultados de toda a
empresa, é no negócio da manutenção no Brasil (a M&E), resultante de uma
desastrosa decisão de compra jamais explicada. A pergunta é, pois: porque não
se fecha a M&E? Ao longo dos anos, ouvi, como resposta a esta pergunta, a
explicação de que tal criaria um sério problema nas relações diplomáticas com o
Brasil. Ou seja: no Brasil, a TAP salvou generosamente do desemprego 2000
trabalhadores da falida Varig, mas, ao fazê-lo, teria criado uma obrigação
perpétua. Portanto, mais vale despachar a TAP do que ousar resolver o problema
do Brasil — coisa que, obviamente, será de imediato resolvida por quem comprar
a TAP. Mas depois de termos visto como a Cimpor e a PT foram tratadas pelos
brasileiros após a sua venda, depois de constatar os inestimáveis serviços que
a TAP tem prestado ao Brasil nos últimos anos, ligando directamente à Europa
destinos como São Salvador, Brasília, Belo Horizonte ou Porto Alegre, cabe
perguntar que justificação têm tais pruridos diplomáticos? Por que razão a
nossa diplomacia nunca se atreve a invocar a reciprocidade e o interesse mútuo?
A TAP é, segundo creio, a segunda empresa exportadora do país, gerando 75% das
suas receitas no estrangeiro, e tem sede cá, pagando os seus impostos aqui e
não no Luxemburgo (250 milhões por ano, que, em mãos privadas...voariam). É, do
ponto de vista económico, político e diplomático, sem sombra de dúvida, a mais
importante embaixada de Portugal no mundo. Se outras não houvesse, seriam
razões suficientes para a manter em mãos públicas. Mas há outra razão,
habitualmente desprezada pelos fanáticos das privatizações: o interesse dos
consumidores. No passado (por exemplo, no Governo de Cavaco Silva), os
contribuintes foram chamados a meter dinheiro na TAP para tapar buracos de má
gestão, erros políticos ou excessos sindicais. Esse dinheiro que pagámos
deveria implicar que alguma responsabilidade moral houvesse para com os
contribuintes na hora da venda. Porque a justificação de que então pagámos por
um serviço ao país e aos portugueses cai agora pela base. Sendo portuguesa e
sediada em Portugal, a TAP serve os portugueses, que daqui saem e aqui voltam,
como nenhuma outra companhia. Mas isso acabará no dia em que deixar de estar em
mãos portuguesas: os exemplos da EDP, da ANA, da Galp, da PT, aí estão, todos
eles, para não deixar criar ilusões sérias de que uma TAP privada nos servirá
pior, mais caro e sem qualquer consideração pelos interesses estratégicos do
país. Continuará a voar a preços subsidiados para as Ilhas, mas quem pagará o
subsídio serão os contribuintes; talvez continue a voar para destinos como São
Tomé, Guiné-Bissau ou Venezuela, mas só se compensada financeiramente pelo
Estado, em obediência à fatal fórmula lucros privados/prejuízos públicos; e,
dependendo dos interesses de quem a comprar, coisas como o hub da Portela, as
rotas da diáspora, os destinos importadores de turismo ou exportadores de bens,
poderão ser livremente abandonados sem que os governos possam fazer alguma
coisa (esqueçam a treta dos 34% em mãos do Estado, no longo prazo de... dois
anos).
Restam os argumentos políticos. O primeiro é o de que o PS também quis vender a
TAP. É verdade que sim, ninguém se esqueceu da brilhante iniciativa de João
Cravinho de fundir a TAP sob o mando da Swissair, a pior companhia aérea
europeia de então — um projecto só falhado pela falência da Swissair. Mas o que
temos nós ou a TAP a ver com isso? Se o PS mudou de ideias, ainda bem: só os
burros não mudam, quando todos os sinais lhes demonstram que estão errados. O
segundo argumento “político” é a extraordinária razão “democrática”, brandida
esta semana pelo secretário de Estado Sérgio Monteiro: seria “negar a
democracia” ignorar que “os accionistas foram consultados e se pronunciaram”
(isto é, o Governo, representante do accionista único); que o programa do
Governo previa a privatização da TAP; que “80% da representação parlamentar a
apoia”; e que, como terá lido nos astros, “há um amplo consenso na sociedade
quanto à importância de privatizar a companhia”.
Caro dr. Sérgio Monteiro, caro primeiro-ministro: se a democracia e a vontade
popular são argumentos para privatizar a TAP, façam uma coisa muito simples:
uma sondagem séria entre os portugueses aqui residentes e os da emigração para
ficarem a saber o que eles querem. Eu calo-me para sempre, se ganharem a
sondagem.
Miguel Sousa Tavares,
em Jornal Expresso, 20 de dezembro de 2014
Tema, Tese, Argumentos e contra argumentos!
Vamos là analisar!
Lola
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