RESUMO
Neste trabalho, pretendo expor algumas das
apropriações que John Rawls faz da filosofia moral de Kant em sua obra Uma
Teoria da Justiça, bem como discutir a necessidade e a legitimidade dessas
apropriações. Para tal proposta, farei, a princípio, uma explanação dos
conceitos de posição original, véu de ignorância e princípios de justiça, para
então aproximá-los dos conceitos kantianos de autonomia, imperativo categórico
e outros elementos presentes na moral de Kant.
Minha tese é a de que Rawls
compromete em partes a interpretação de sua teoria da justiça como equidade,
sobretudo no que se refere à deliberação das partes na posição original, ao
pretender que a escolha dos princípios de justiça, sob as restrições do véu de
ignorância, possa ser considerada autônoma em termos kantianos, tal como propõe
no §40.
No entanto, o autor parece lograr êxito ao defender o princípio da
diferença e a cooperação social quando faz uso da segunda formulação do
imperativo categórico e do dever de auxílio mútuo, respectivamente
. Palavras chave:
posição original, autonomia, imperativo categórico. 296
Introdução
Neste trabalho,
pretendo expor algumas das apropriações que John Rawls faz da teoria moral de
Kant em sua obra Uma Teoria da Justiça, bem como discutir se essas apropriações
são legítimas, ou seja, se não se afastam muito da proposta do filósofo de
Königsberg, e se não acabam até mesmo por prejudicar em alguns pontos a
interpretação da teoria da justiça como equidade.
Sabe-se
que John Rawls é leitor de Kant, pois há várias referências a ele não só na
obra acima citada, mas também em seu Liberalismo Político e em diversos artigos,
como “O construtivismo kantiano na teoria moral”.
Em sua História da
Filosofia Moral, Rawls nos apresenta uma visão panorâmica da moral kantiana,
discutindo pontos importantes da Fundamentação da Metafísica dos Costumes,
Metafísica dos Costumes e Crítica da Razão Prática.
Em Uma Teoria da Justiça,
há referências a Kant em todos os capítulos, sobretudo na seção 40 do Capítulo
IV, quando Rawls tenta oferecer uma interpretação na qual as partes da posição
original caracterizariam pessoas autônomas, que intentam dar expressão a sua
natureza enquanto seres racionais livres e iguais, e os princípios de justiça
que se assemelhariam aos imperativos categóricos, por serem frutos de tal
deliberação e por sua necessidade de aceitação universal.
Também analisarei
outras passagens das seções 29 e 51, onde Rawls defende, com base no imperativo
categórico, a cooperação social, o princípio da diferença e o dever natural de
auxílio mútuo.
Antes, porém, de expor tais aproximações, faz-se necessária uma
elucidação dos conceitos básicos da teoria da justiça rawlsiana, que são:
posição original,
véu de ignorância,
equilíbrio reflexivo
princípios de
justiça.
Esses conceitos serão discutidos à luz do contratualismo, tal como o
próprio Rawls sugere. Na medida em que o texto segue, algumas discussões, pormenores serão inevitavelmente deixadas de lado.
A análise das
apropriações que Rawls faz de Kant não exige mais do que uma exposição geral
das ideias contidas em Uma Teoria da Justiça. 297
1. A justiça rawlsiana e o
contratualismo
Quando se fala em contratualismo, imediatamente os nomes de
Hobbes, Locke, Rousseau e Kant nos vêm à mente.
É certo que John Rawls pode ser
considerado um herdeiro direto destes autores, em especial dos três últimos,
mas sua proposta se afasta da dos modernos em muitos aspectos.
Em primeiro lugar,
John Rawls não está preocupado em legitimar alguma forma de governo ou explicar
como a sociedade teve sua origem. Sua preocupação é apenas com a justiça; mais
especificamente, com a justiça no âmbito social, ou “o modo como as principais
instituições sociais distribuem os direitos e os deveres fundamentais e
determinam a divisão das vantagens decorrentes da cooperação social” (RAWLS,
2008, p. 8). Seu alvo é a justiça em regimes de democracia constitucional, o
que não quer dizer que sua filosofia não seja aplicável a outras formas de
governo, nem que estas não possam ser justas.
Em segundo lugar,
precisamos substituir o já conhecido termo “estado de natureza” pelo novo
“posição original”. Esta posição é puramente hipotética e procedimental, onde
pessoas encontram-se numa situação de igualdade para apresentar e defender
quais princípios de justiça elas acreditam ser mais razoáveis para nortear seu
convívio na sociedade.
A deliberação acerca desses princípios está sujeita a
todo tipo de interferências: desde o desejo das partes em garantir maiores
vantagens para si próprias como interferências de concepções de bem que elas
compartilham e perspectivas de vida que possuem, entre outras.
Sendo assim,
para assegurar que os princípios escolhidos sejam imparciais e aceitos por
todos, Rawls faz uso de um artifício denominado véu de ignorância. Sob este
véu, no momento em que deliberam, as partes desconhecem a real situação que
ocupam na sociedade.
Vale também lembrar que as pessoas são mutuamente
desinteressadas, ou seja, suas preocupações se restringem apenas a que posição
elas próprias, e não as outras partes da posição original, ocupam na sociedade
civil. 298 Assim, parece razoável e de modo geral aceitável que ninguém seja favorecido
ou desfavorecido pelo acaso ou pelas circunstâncias sociais na escolha dos
princípios.
Também parece haver consenso geral de que deve ser impossível
adaptar os princípios às circunstâncias de casos pessoais. Também devemos
garantir que determinadas inclinações e aspirações e concepções individuais do
bem não tenham influência sobre os princípios adotados. [...]
Por exemplo, se
determinado homem soubesse que era rico, poderia achar razoável defender o
princípio de que os diversos impostos em favor do bem-estar social fossem
considerados injustos; se ele soubesse que era pobre, seria bem provável que
propusesse o princípio oposto. (Ibid., p. 22) Todavia, essas restrições
impostas pelo véu de ignorância não são fixas.
Na medida em que avançamos na
escolha dos princípios, pode-se um verificar desequilíbrio destes com nossas
crenças morais sobre o que é justo. É certo que, a princípio, devemos nos
apoiar sobre tais concepções, pois são de ampla aceitação. Por exemplo, um
princípio que engloba uma intuição moral que rejeita a escravidão pode parecer
justo e ao mesmo tempo útil para tal proposta, se sua abrangência for tal que
ofereça uma luz quanto à distribuição dos bens sociais decorrentes da
cooperação social.
No entanto, se ele entrar em discordância com alguma outra
crença moral, temos duas escolhas: podemos abandonar ou reformular tais crenças
ou modificar as restrições da posição original.
Com esses avanços e recuos, às
vezes alterando as condições das circunstâncias contratuais, outras vezes
modificando os nossos juízos para que se adaptem aos princípios, suponho que
acabemos por encontrar uma descrição da situação inicial que tanto expresse
condições razoáveis como gere princípios que combinem com nossos juízos
ponderados devidamente apurados e ajustados.
Denomino esse estado de coisas
equilíbrio reflexivo (Ibid., p.25). Ao atingirmos tal estado, cremos que as
partes serão capazes de escolher princípios de justiça razoáveis e
reconhecidamente aceitos por todos. Sobre este ponto, cabem aqui três observações:
em primeiro lugar, o equilíbrio 299 reflexivo é o que caracteriza o coerentismo
interno da filosofia de Rawls. Não há nenhuma lei ou preceito tomado como
verdade axiomática em que se apoie para deduzir outras verdades. Isto já
caracteriza um afastamento grande da moral kantiana, que se funda num fato da
razão e aceita as leis morais como verdades a priori. Em segundo lugar, esse
procedimento contratualista tem por objetivo a construção de princípios de
justiça para todo um ordenamento social.
Uma concepção de justiça, portanto,
não é dada: o que temos são intuições morais acerca do certo e do errado, do
justo e do injusto, do bem e do mal, etc. O conhecimento dessa concepção só se
dá através dessa construção hipotética, que tem também, entre outros objetivos,
uma aceitação geral dos princípios alcançados. Por outro lado, o próprio Rawls
descarta a possibilidade de elaborar todo esse processo de construção dos
princípios e de adequação de nossas crenças morais às restrições da posição
original e do véu de ignorância.
Dado que as restrições impostas ao véu de
ignorância são contingentes e que há grande desacordo entre as pessoas no que
se refere às suas crenças morais, é difícil acreditar que tal processo de
construção implique necessariamente nos mesmos princípios de justiça.
Assim, se
por um lado há uma generalização “forçada” de preceitos morais, por outro, é
possível que toda a situação contratual sirva apenas como uma justificativa
para uma intuição de justiça pré-concebida por Rawls.
2.
As cláusulas do contrato: os dois princípios de justiça
Os princípios da
justiça propostos por Rawls são dois: o primeiro é chamado de princípio da
liberdade igual; o segundo pode ser dividido em princípio da diferença e
princípio da igualdade equitativa de oportunidades. Sua exposição definitiva
ocorre na seção 46 e é a que segue: Primeiro princípio: cada pessoa deve ter um
direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que
seja compatível com um sistema similar de liberdade para todos. 300 Segundo
princípio: as desigualdades econômicas e sociais devem ser dispostas de modo a
que tanto: (a) se estabeleçam para o máximo benefício possível dos menos
favorecidos [...] como (b) estejam vinculadas a cargos e posições abertas a
todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades. (RAWLS, 2008, p.
376) Há, obviamente, uma maneira desses princípios se relacionar. Para
esclarecer tal questão, Rawls elabora um sistema de prioridade entre eles: o
primeiro princípio antecede o segundo, e a igualdade de oportunidades precede o
princípio da diferença. A razão disto é que Rawls não aceita uma restrição das
liberdades básicas em troca de um maior favorecimento socioeconômico ou mais
facilidade de acesso a cargos públicos. Estas liberdades compreendem: [...] a
liberdade política (o direito ao voto e a exercer cargo público) e a liberdade
de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; a liberdade
individual, que compreende a proteção psicológica, a agressão e a mutilação
(integridade da pessoa); o direito à propriedade pessoal e a proteção contra a
prisão e detenção arbitrárias, segundo o conceito do Estado de Direito (Ibid.,
p. 74). Dizer que há uma ordenação léxica, ou seja, de prioridade entre os
princípios significa que o primeiro tem um peso absoluto com relação ao segundo
e assim por diante. As questões concernentes ao segundo princípio só são
discutidas se o primeiro já for totalmente satisfeito ou se não se a aplicar à
questão em cheque.
Por dar preferência à liberdade e à igualdade de
oportunidades, Rawls é visto como um liberal. No entanto, ele possui
preocupações igualitárias, visto que o princípio da diferença busca atenuar
desigualdades socio econômicas, ou ao menos dispô-las de forma que os menos
favorecidos tenham alguma vantagem com isso. Conforme disse anteriormente,
discussões pormenorizadas como o princípio de poupança justa, princípio da
eficiência e da maximização da soma de vantagens não serão tratadas aqui.
Por
razões óbvias, também deixei de lado as discussões acerca do princípio da
utilidade e do intuicionismo. Todos esses pontos merecem uma explanação mais
cuidadosa; tratar destes assuntos iria muito além da proposta a que o texto se
submete. 301
Rawls e a filosofia moral de Kant
Dadas as explicações anteriores, passemos à análise da apropriação
dos termos que John Rawls faz da filosofia moral de Kant.
3. Autonomia e posição original
“Não há novidade
alguma na afirmação de que os princípios morais são gerais e universais; e,
como já vimos, essas condições, de qualquer modo, não nos levam muito longe. É
impossível construir uma teoria moral sobre uma base tão exígua” (Ibid.,
p.311-12).
Este comentário
aparece no início da seção 40 -
A interpretação kantiana da justiça como
equidade - e já nos traz um esboço da leitura rawlsiana da ética de Kant. John
Rawls parte do pressuposto que as pessoas são seres de natureza racional, ou
seja, acredita que princípios de justiça podem ser objetos de escolha racional.
Também acredita que sendo a razão o móbil de nossas escolhas, damos expressão a
nossa liberdade.
Como essas
características estão presentes em todos os seres humanos, somos todos iguais,
ao menos nesses aspectos. Esse esboço, todavia, não é tão claro em Uma Teoria
da Justiça.
A primeira divergência entre os autores se
refere à existência de princípios morais (e de justiça) a priori e
independentes da experiência e das contingências da vida humana. Para Rawls,
somos pessoas capazes de ter desejos racionais, como desejar certos bens
primários (liberdades, oportunidades, rendimentos decorrentes da cooperação
social, etc.), ter determinados objetivos de vida e compartilhar de alguma
concepção de bem, bem como de uma concepção de justiça.
A deliberação sob o véu
de ignorância não priva o conhecimento das sujeições e contingências da vida
cotidiana, mas o conhecimento de nossa ocupação na sociedade e nosso
posicionamento com relação a essas contingências.
Como as partes estão todas
sob as mesmas restrições, o desconhecimento dessas contingências nos leva a uma
deliberação racional, igual e livre.
O Kant de Rawls crê que uma ação autônoma
ocorre apenas enquanto expressão dessa natureza racional igual e livre.
Sabe-se, no entanto, que não é essa a proposta do filósofo alemão.
Kant não
discordaria de que uma ação autônoma é a expressão dessa natureza, mas
reduzi-la a esses pontos caracteriza 302 um recorte muito grande da moral de
Kant, recorte este que obscurece o real sentido do termo autonomia.
Na visão do filósofo
de Königsberg, existem leis morais a priori, independentes de toda experiência
e de qualquer contingência da vida humana. A existência desses princípios
caracteriza um fato da razão pura prática. Da existência dessas leis provém a
necessidade das ações em seu cumprimento.
“O homem, com efeito, afetado por tantas
inclinações, é na verdade capaz de conceber a ideia de uma razão pura prática,
mas não é tão facilmente dotado de força necessária para tornar eficaz in
concreto no seu comportamento” (KANT, 1974, p.199).
O papel de nossa
razão, para Kant, é o de formar uma boa vontade. Nela está contida o desejo. O
arbítrio, na medida em que determina a si mesmo com princípios puros, é chamado
de livre-arbítrio e implica boa vontade. Em outras palavras, o arbítrio que se
submete a lei moral por dever, ou seja, pela necessidade mesma dessa sujeição
em respeito a essa lei, é o arbítrio livre. A distinção entre vontade e
arbítrio só aparece na introdução à Metafísica dos Costumes. No entanto, um
arbítrio que determina a si mesmo caracteriza a independência da vontade de
impulsos sensíveis.
Em outras palavras, uma vontade livre é constituída
necessariamente, porém não exclusivamente, de um arbítrio autônomo. “[...] que
outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, isto é, a
propriedade da vontade de ser lei para si mesma? [...] assim, pois, vontade livre
e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa” (Ibid., p.243).
Para Kant, portanto, só há autonomia numa ação
cuja máxima respeita a lei moral. Rawls, além de desconsiderar os pontos
supracitados, ainda precisa de vários acréscimos, como as caracterizações da
posição original e do véu de ignorância, para sustentar a autonomia das partes.
Assim sendo, qual a
necessidade do paralelo com Kant?
Rawls, na medida em
que procura se afastar de uma fundamentação metafísica dos princípios de
justiça, afasta-se também de uma concepção mais profunda de pessoa. A
interpretação empírica da autonomia kantiana não auxilia o entendimento, por
permitir que uma série de problemas a 303 esse respeito sejam levantados, tais
como os que acima esboço, e talvez a proposta de Rawls manteria seu valor e
independência sem tal aproximação.
4. O imperativo
categórico e a cooperação social
Kant nos dá um exemplo interessantíssimo na
segunda seção de sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Deve um homem
próspero auxiliar a outros em dificuldade? Segundo Kant, não é possível querer
que um princípio de não cooperação valha como uma lei de natureza, visto que
noutro momento a pessoa pode estar numa situação semelhante, ou seja, na
esperança de auxílio (Ibid., p.225).
Assim diz a segunda formulação do
imperativo categórico de Kant: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto
na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como
fim e nunca simplesmente como meio” (Ibid., p.229).
Tratando do exemplo acima,
Kant afirma que deve haver uma identificação dos objetivos de outrem com os
meus próprios, visto que o fim natural de todos os homens é a felicidade. Não
contribuir para a realização desses fins significa ignorar a humanidade como
fim em si mesma.
Rawls serve-se dessa formulação em sua obra magna na seção 29,
onde expõe alguns dos seus principais argumentos a favor dos dois princípios da
justiça. No que se refere a essa apropriação, é também uma interpretação de
Kant à luz de seu contratualismo, mas não se distancia da doutrina
originalmente proposta pelo filósofo alemão. Pelo contrário, neste caso, o
exemplo de Rawls permanece muito próximo à formulação de Kant– ao menos no que
tange à sua filosofia moral– e não engendra nenhum abandono à doutrina
originalmente proposta.
Vejamos: Na interpretação contratualista, tratar os
homens como fins em si mesmos implica, no mínimo, tratá- los segundo os
princípios com os quais todos concordariam numa situação original de igualdade.
[...] significa aceitar abdicar de ganhos que não contribuem para as
expectativas de todos. Em contraste, considerar as pessoas como meios significa
se dispor a impor perspectivas de vida 304 ainda mais baixas às pessoas menos
favorecidas (RAWLS, 2008, p.220-21).
Na medida em que as partes desconhecem a
real situação que ocupam na sociedade, um sistema de cooperação social se
aparenta mais vantajoso para todos. Em termos reais, a probabilidade numérica
de fazer parte da parcela menos favorecida economicamente da sociedade é maior.
Assim, embora alguns possam querer “arriscar” uma vantagem maior para si, é
racional que busquem maximizar o bem-estar e as condições de vida dos
pertencentes dessa parcela, pois podem pertencer a ela.
Nas seções 29 a 31 da
segunda parte da Metafísica dos Costumes1 , Kant deixa clara a obrigatoriedade
moral do dever de beneficência, correspondente ao dever rawlsiano de auxílio
mútuo. E esse dever, além de universal, deve ser público. Com tais
considerações, é possível afirmar que tanto Rawls quanto Kant concordariam que
a cooperação social é um dever de todos os cidadãos2 .
Sobre este ponto, resta
ainda uma questão a ser levantada quanto às exigências morais e legais. Kant
elabora, na introdução à Metafísica dos Costumes, uma distinção crucial: “A
coincidência de uma ação com a lei do dever é a legalidade (legalitas) – a da
máxima da ação com a lei é a moralidade (moralitas) da mesma” (KANT, 2004, p.
31). Há várias distinções feitas por Kant, em especial no tocante às leis
(externas, práticas, morais, positivas, etc).
Não me atentarei a todos estes os
pormenores. O importante aqui é ressaltar aqui que, em termos kantianos, as
exigências do princípio da diferença não se restringem apenas ao âmbito legal
(ou jurídico), mas adentram no âmbito moral (ou ético). Em outras palavras, ao
aceitar que o dever de auxílio mútuo deva ser uma exigência não apenas moral,
mas também jurídica, Rawls está assumindo que os cidadãos devam partilhar de
uma mesma concepção de bem, ou de uma mesma “doutrina abrangente”. 1 Nesta referência,
faço uso da tradução de Edson Bini.
Em todas as outras referências, a menção é
apenas à primeira parte da Metafísica dos Costumes, intitulada Princípios
Metafísicos da Doutrina do Direito e cuja tradução foi realizada por Artur
Morão. 2 Rawls estava ciente disso. Ver notas 8 da seção 21 de (p.161) e nota 4
da seção 51 (p.422) de Uma Teoria da Justiça. 305 Esta discussão pode se
estender por diversas vias. Por exemplo, pode-se alegar que a exigência da
cooperação social pelo princípio da diferença justifica-se apenas
prudencialmente e que as partes da posição original escolheriam a cooperação
social apenas como uma forma de maximização do bem-estar, aproximando-se uma
visão utilitarista.
Por outro lado, poder-se-ia analisar se o abandono dessa
“doutrina abrangente” em O Liberalismo Político resulta também no abandono do
princípio da diferença, e de que forma Rawls trata a cooperação social nos
escritos posteriores a Uma Teoria da Justiça. No entanto, alguns pontos são
claros. Rawls parece não levar em consideração a distinção de Kant entre
permissões legais e exigências morais, como bem observa Pavão: “Adotando os
princípios da filosofia jurídica de Kant, pode-se afirmar que, embora
eticamente obrigatória, a ajuda aos pobres não é juridicamente obrigatória,
sendo permitido, pois, não ajudar aos pobres” (PAVÃO, 2011, p. 12-13). No
entanto, a formulação do princípio da diferença é justificável, do ponto de
vista moral, através do imperativo categórico e de outras premissas da
filosofia moral de Kant. Saber se este princípio está de acordo com a filosofia
jurídica do filósofo de Königsberg, ou se há outras formas de justificar a
distribuição de bens e vantagens através de um sistema de cooperação social
resulta em outros problemas que não serão discutidos aqui.
5. Considerações
finais
Sabemos que Rawls, como já foi dito no início do texto, foi um exímio
leitor de Kant. Uso aqui o adjetivo “exímio”, pois além de aprofundar e
discutir os principais pontos da filosofia moral de Kant em sua História da
Filosofia Moral, o filósofo norte-americano ainda serve-se de vários aspectos
da doutrina kantiana em sua obra Uma Teoria da Justiça. Essas apropriações
renderam a Rawls inúmeras críticas e qualificações, dentre elas, o adjetivo de
“kantiano”. Posteriormente, em seu artigo “O construtivismo kantiano na teoria
moral”, o filósofo, visando se defender de possíveis críticas de índole
kantiana, faz questão de posicionar-se sobre este adjetivo: 306 A teoria da
justiça como equidade, evidentemente, não é uma teoria kantiana no sentido
estrito. Ela se afasta do texto de Kant em inúmeros pontos.
O adjetivo kantiano
exprime apenas uma analogia, não uma identidade; ele indica que minha doutrina
se parece, em boa parte, com a de Kant, e isso se dá a respeito de muitos
pontos fundamentais, pelo que está bem mais próxima dela do que das outras
doutrinas morais tradicionais que nos servem como termos de comparação (RAWLS,
2002, p.48). As críticas que dirijo a Rawls neste texto não são necessariamente
de índole kantiana. Meu objetivo não foi verificar a consistência do pensamento
de Rawls com base na filosofia moral ou jurídica de Kant, mas contrapor as duas
teorias e verificar sob quais condições a analogia com Kant foi bem sucedida e
sob quais não foi.
Embora, como já disse, eu creia que a teoria da justiça como
equidade de Rawls mantenha seu valor independentemente de paralelos com a
doutrina de Kant (ou de qualquer outro autor), a analogia da segunda formulação
do imperativo categórico com o princípio da diferença e com o dever de auxílio
mútuo foi suficiente para justificar, ao leitor leigo de Kant, a moralidade da
cooperação social.
Entretanto, a apropriação do termo “autonomia” tal como
proposto na seção 40 de Uma Teoria da Justiça se apresentou distante demais da
doutrina originalmente proposta por Kant, além de conter inúmeros acréscimos.
Penso, nesse caso, que uma definição do termo autonomia com base no conceito de
pessoa seria suficiente para as pretensões almejadas na justiça como equidade.
307 6.
Referências Bibliográficas
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica
dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. In: Crítica da razão pura e outros
textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 195-256.
______.
Metafísica dos Costumes Primeira Parte: Princípios Metafísicos da Doutrina do
Direito. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2004. PAVÃO, Aguinaldo.
“Crítica aos princípios da teoria da justiça como equidade de Rawls a partir da
filosofia jurídica e política de Kant”. Texto não publicado, 2011. RAWLS, John.
História da Filosofia Moral. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
______. O construtivismo kantiano na teoria moral. In:
______.
Justiça e Democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes,
2002. p. 43- 140.
______.O Liberalismo Político. Tradução de Álvaro de Vita.
São Paulo: Martins Fontes, 2011.
______. Uma Teoria da Justiça. Tradução de
Jussara Simões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Danilo de Oliveira Caretta Orientador: Prof. Dr. Aguinaldo Pavão
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