Toulousse-Lautrec
foi um dos pintores que melhor retratou as mulheres e os bordéis franceses do
final do século XIX. Na imagem, uma cena do salão da rue des Moulins, em Paris
(1894)
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A Prostituição no
feminino e a Condição da Mulher
Porque é a prostituição uma afronta à dignidade da
Mulher, uma violência eterna?
“A jovem rapariga
sente o seu corpo a afastar-se dela… nas ruas homens seguem-na com o olhar e
comentam a sua anatomia. Ela gostaria de ser invisível; tem medo de se tornar
carne e de mostrar carne” (p. 333)
O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir, p. 333.
O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir, p. 333.
Introdução
Desde as pornai e
hetaera da Grécia Antiga às geishas do Japão medieval, a prostituição é comum a
todas as épocas e culturas humanas.
Desde os
primórdios da civilização que acompanhou a humanidade, mas, infelizmente,
demasiadas vezes aliada a realidades como o tráfico humano, a violação, a
coação, a pedofilia, as doenças venéreas e a pobreza.
Muitas vezes
considerada imoral e inaceitável, é, no entanto, interessante e útil ao
desenvolvimento de uma posição crítica abordar qual a ética da prática em si.
Para tal,
começaremos por interpretar textos de dois grandes nomes da filosofia moral
sobre a temática da prostituição, Immanuel Kant e John Stuart Mill, de dois
filósofos modernos, Foucault e Ole
Martin Moen, e terminaremos por dar o nosso próprio parecer sobre a
temática, tendo por base as teorias éticas dos autores, e históricas, no caso
de Foucault.
Com este ensaio
filosófico,pretendemos refletir sobre qual a ética da prostituição.
Desenvolvimento
John Stuart Mill
Qual a posição de John Stuart Mill perante a
moralidade da prostituição?
Primeiramente, a leitura que nós
faremos agora do posicionamento de John Stuart Mill, quanto à prostituição, é
largamente informada por um artigo de ClareMcGlynn, professora catedrática de
Lei na Universidade de Durham, Inglaterra.
John Stuart Mill
(1806 – 1873), filosofo, economista e político inglês, foi em vida preponente
do utilitarismo e do feminismo, porquanto se opôs à noção da inferioridade
feminina, considerando-a uma afirmação autoritária sem evidências. Apoiou o
sufrágio feminino, defendeu a reforma do casamento, e apoiou sempre a
emancipação da mulher, pois considerava as mulheres livres, independentes,
racionais e iguais aos homens.
Infelizmente, Stuart
Mill fez apenas referências escassas a propósito da prostituição, ao longo de
toda a sua extensa obra. No entanto, encontramos, ainda assim, referências a
esta no seu ensaio Sobre a Liberdade,
na sua correspondência pessoal e noutros textos.
A partir destas
referências, Mill surge-nos como um filósofo feminista e sinceramente
preocupado com o bem-estar da Mulher.
Mas, por outro
lado, devemos considerar o contexto em que Mill discute este tema. Esta não foi
para ele uma questão sobre a qual este tenha refletido apenas por curiosidade
académica: na época (meados do século XIX), em Inglaterra, a prostituição era
um tema de grande interesse social e político, uma questão de tal relevância
que era tema central de campanhas eleitorais.
Na sua época, a
prostituição era uma das causas de um grave problema de saúde pública: era um
dos principais modos de transmissão da sífilis, uma doença sexualmente
transmissível bastante contagiosa e mortal, que passava de homens contagiados
para prostitutas, destas para os seus clientes e destes para as suas esposas e
filhos, chegando assim a grande parte da população.
Portanto, Mill
aborda o tema como um problema acima de tudo social, tendo sempre por referência
a realidade do seu tempo, ou seja, o que significava a prostituição para a
sociedade do século XIX.
Então, Stuart Mill condena ou não a prostituição?
A posição de Mill
quanto à moralidade da prostituição é uma que a condena, mas que procura
solucionar o problema de um modo diferente daquele dos seus contemporâneos. Neste
primeiro ponto, Mill está alinhado com a visão dominante do seu tempo, que a
considerava um dos “Grandes Males Sociais”, e certamente, pelas suas
consequências práticas: morte, miséria, pobreza, doença e desordem social.
No entanto, é de
interesse ressalvar que qualquer consideração moral relativista é feita em
relação a um dado contexto, sendo que a acima indicada se refere não a um
estado “ideal” , se é que algo assim existe, de prostituição, mas sim à
realidade vivida e sofrida pelos seus contemporâneos.
Assim, para Mill,
na realidade do século XIX, a prostituição era eticamente inaceitável, o que se
torna claro quando se considera que, segundo a teoria utilitária, os prazeres
sexuais são prazeres inferiores, animalidades; existem consequências negativas
da maior gravidade associadas à prostituição, que tornam o fim “repulsivo” para
a prostituta; e que Mill era da convicção de que todos os prazeres corporais
deveriam ser subjugados à razão, já que, segundo este, esses impulsos são
construídos socialmente. Ou seja, o utilitarismo e o individualismo de John
Stuart Mill não se tratam de um modo de legitimar a desregulada satisfação dos
nossos desejos e inclinações, mas sim de teorias filosóficas que nos encorajam
a transcender os nossos desejos e paixões sexuais e animais, através de força
de vontade.
No entanto,
enquanto liberal, Stuart Mill era da convicção que a liberdade de um indivíduo
só acaba quando este causa danos a outro (princípio do dano), pelo que
aceitaria que outros comprassem e vendessem sexo, desde que nenhuma das partes
causasse danos à outra, mesmo que pessoalmente idealizasse a superação destes
instintos.
John Stuart Mill
enuncia este princípio liberal do seguinte modo em Sobre a Liberdade:
“o único fim para o qual o poder pode ser legitimamente exercido sob
qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é para
prevenir dano a outros”
Tradução livre de John Stuart Mill, On Liberty
Tradução livre de John Stuart Mill, On Liberty
Ou seja, John
Stuart Mill é a favor da prostituição apenas quando não se verificam nenhum dos
muitos problemas que a acompanham (doenças, mortes, abusos físicos e
psicológicos, violações…).
Resumindo, isto
significa que embora Mill considerasse a prostituição, tal como era levada a
cabo no seu século, inaceitável, este não constatava nada de objetivamente
errado nesta. Para ele, o caráter da
prostituição refletia apenas aquele daquilo que a envolvia.
Neste excerto constata-se o
carácter crítico de Mill:
“… Supondo (…) que os homens não
são capazes de controlar eficientemente a sua propensão [sexual], devo ainda
assim diferir quando pensa que a prostituição é a melhor válvula de segurança
[para estes impulsos]. Eu, pelo contrário, penso que, com a exceção da violência
pura, não existe nenhum mal maior do que a prostituição, que esta propensão
possa produzir.
De todos os modos de indulgência
sexual, consistentes com a liberdade e a segurança das mulheres, considero a
prostituição como o pior; não só devido às desgraçadas mulheres cuja inteira
existência é sacrificada, mas também pela corrupção inigualável que esta traz
aos homens.”
Tradução
livre de excerto de John Stuart Mill, To
Lord Amberley, The Collected Works of John Stuart Mill, Volume XVII - The Later
Letters of John Stuart Mill 1849-1873 Part IV [1
Por outro lado, segundo Mill, a prostituição não é o menor de dois males que é escolhido para mitigar o anterior, mas sim algo que devia ser e podia ser eliminado na sua forma atual ou, então, reformado, sendo, portanto, a procura de prostitutas algo que não se deve desculpar ou simplesmente aceitar. Mill desafia a ideia de que a procura masculina por prostitutas é legítima e afirma que se deve levar a cabo uma reforma social, baseada numa mudança ética:
“não existe nenhuma inclinação natural tal que [a educação] não seja forte o suficiente para persuadir, e, se necessário, destruir pelo desuso”
Por outro lado, segundo Mill, a prostituição não é o menor de dois males que é escolhido para mitigar o anterior, mas sim algo que devia ser e podia ser eliminado na sua forma atual ou, então, reformado, sendo, portanto, a procura de prostitutas algo que não se deve desculpar ou simplesmente aceitar. Mill desafia a ideia de que a procura masculina por prostitutas é legítima e afirma que se deve levar a cabo uma reforma social, baseada numa mudança ética:
“não existe nenhuma inclinação natural tal que [a educação] não seja forte o suficiente para persuadir, e, se necessário, destruir pelo desuso”
tradução livre de John Stuart Mill, On Nature,
10, 398
E ainda, numa
carta a Lord Amberley:
“esta paixão particular [sexual] vai tornar-se no
homem, tal como já o é com um elevado número de mulheres, completamente sob o
controlo da razão.”
Tradução livre de John Stuart Mill, para
Lord Amberley, 2 de fevereiro de 1870, 17, 1693
Ou seja, John
Stuart Mill propõe que com o evoluir da civilização haverá uma tendência para o
domínio das emoções e para a diminuição da procura da satisfação de prazeres
inferiores, como o são, segundo Mill, os sexuais.
Segundo o filósofo
escocês Alexander Bain, esta opinião de Mill é um reflexo das suas próprias
tendências pessoais, pois, segundo Bain, Stuart Mill era um indivíduo com
impulsos sexuais fracos e algo abaixo da média, pelo que esta sua posição pode
ser uma reação à sua própria sexualidade, embora devamos ter em atenção que de
modo nenhum este facto desacredita os argumentos de Mill, já que tal seria
recorrer a uma falácia ad hominem.
Além disso, Mill,
ao opor-se à situação da Mulher do tempo, opõe-se também à objetificação da
mulher:
“Em nenhum outro [caso] há esta total ausência
mesmo do mais ligeiro prenúncio de afeição e carinho; é a mulher para o homem
tão completamente uma mera coisa usada simplesmente como um meio, para um
propósito que para ela própria será repulsivo.”
Tradução livre de excerto de John Stuart
Mill,
The Collected Works of John
Stuart Mill [1869]
Curiosamente,
neste excerto, ao contrário do que se poderia pensar, Mill opõe-se à
objetificação da Mulher. De facto, esta posição de Mill surge não de um
utilitarismo puro que transforma a mulher num objeto, mas sim de um
utilitarismo articulado com as suas convicções liberais e feministas.
Tal alerta-nos
para o facto de como é fácil não compreender o ponto de vista deste autor. Em
John Stuart Mill, articulam-se ideias complexas de individualismo,
utilitarismo, liberalismo, feminismo e impiricismo que, quando não são
articuladas convenientemente, nos levam a deduções erradas a propósito das
conceções defendidas pelo autor.
Este é um exemplo
da grande importância de que, quando se pretende discursar sobre um dado tema,
na perspetiva de uma dada corrente filosófica, se deve ler textos do autor que
se dirijam especificamente a essa temática, evitando limitar-se a fazer
suposições baseadas apenas em princípios gerais e nem sempre aplicáveis.
Como já pode ter
deduzido dos excertos acima transcritos, os momentos em que Mill se demonstra
mais inovador são aqueles em que desafia a procura masculina por prostitutas e
exige igualdade de tratamento entre homens e mulheres, mesmo no caso de
regulação da prostituição, sendo que faz tudo isto com base nas suas convicções
éticas enquanto feminista radical para o seu tempo, e até mesmo para o nosso,
liberal e utilitarista.
De facto, para
Mill, as consequências são da maior importância quando se considera a
moralidade da prostituição. Nada é errado por princípio e apenas pelas
consequências que disso advêm.
E quanto à regulação?
A prostituição,
segundo Mill, não pode ser simplesmente legalizada, porque traz consequências
adversas e providencia apenas um prazer menor, legalizá-la é ignorar este facto
e é a tolerancia pelo Estado a uma prática danosa.
Segundo ele, e
embora o seu argumento seja principalmente moral, a legalização da prostituição
poderia também encorajar a sua dessiminação.
Mas, ao contrário
de outros liberais que também são desagradados pela prostituição, mas que exigem
a sua tolerância, Mill tem uma posição de liberalismo ético, ou seja, segundo
ele, a prostituição tem de ser reformada, juntamente com a sociedade, e esta
reforma tem de ter um fundamento ético.
Em suma, Mill não
pode aceitar simultaneamente a legitimação da prática e as assunções associadas
sobre a sexualidade masculina.
“[uma] reforma social genuína deve ter como
premissa a reforma do mundo moral”
John Stuart Mill, Morales “The Corrupting Influence”, 101
John Stuart Mill, Morales “The Corrupting Influence”, 101
Para Mill, o
ideal seria que a prostituição fosse erradicada não pelo controlo estatal mas
pela superação dos impulsos inferiores. Mas, ainda assim, este aceitaria a
descriminalização da prostituição, pois deste modo não se diferencia a prostituição,
tratando-a do mesmo modo que todos os outros modos de trabalho. No entanto,
como sabemos, Stuart Mill é crítico perante a prostituição, os bordéis e
alcoviteiras. Especialmente, perante aqueles que a encorajam para ganho
pessoal, explorando os vulneráveis.
De facto, Mill
tem uma atitude mais em linha com o pensamento feminista radical do que com o
liberal, para ele, a regulação da prostituição não se centra nas prostitutas
mas sim naqueles que as frequentam, a procura masculina de prostitutas é identificada
por Mill como a maior causa da sua continuação. Esta é considerada por Mill
como evidência da dominação masculina da sociedade e de assumpções sobre a
necessidade e validade desta procura.
Embora, Mill
tivesse como ideal a abolição da prostituição, ele via-a como consequência orgânica
de uma reforma ética mais geral, negando reformas legais. Ele envisionava uma
sociedade em que não houvesse nenhuma necessidade de prostituição, em que se
tratasse a atividade sexual de uma forma mais racional. Segundo ele, uma
sociedade em que houvesse igualdade perfeita entre homens e mulheres e em que o
sexo fosse encarado racionalmente, seria uma em que não haveria qualquer
necessidade de prostituição.
Para Mill, o ato
de comprar sexo não é em si suficiente para justificar intervenção legal. O que
o incomodava era a exploração, motivada monetariamente, das mulheres.
Mas, independentemente
do quanto Mill queria acabar com a prostituição e com o jogo, ele não podia fazê-lo
sem ir contra os seus próprios princípios, para ele, sempre que não houvesse
coação e exploração, a liberdade devia prevalecer.
Quem sabe, talvez
devido ao acima discutido, Mill aceitasse a operação de bordéis não coercivos e
explorativos, só sujeitando casos mais graves a sanções e regulação.
Que objeções a esta tese?
- Não será
utópico supor que uma reforma moral tão profunda é possível?
- Como pode o
caráter moral da prostituição variar tanto de situação para situação?
- Não é utópico
assumir que as pessoas têm um controlo tão profundo sob as suas próprias
tendências? É o celibato uma opção prática?
- Será que, de
facto, não há nada de objetivamente errado com a prostituição?
- Pode uma pessoa
dispor de si própria de tal forma sem ser objetificada?
- Como pode um
liberal aceitar a regulação governamental numa troca comercial entre dois
adultos livres e conscientes?
- Não estará
Stuart Mill a contradizer-se, enquanto utilitarista, ao negar a objetificação
da mulher?
- Como pode um
feminista permitir a prostituição?
Immanuel Kant
Qual a posição
de Kant quanto à moralidade da prostituição?
"...
Permitir que uma pessoa, com vista no lucro, seja utilizada por outra para a
satisfação do seu desejo sexual, se faça de si mesmo um objeto de procura e
disponha do seu corpo como se fosse um objeto é igual a tornar-se em algo em
que outro satisfaz o seu apetite, da mesma forma como ele satisfaz a sua fome
ao comer um bife. Mas já que a inclinação
é dirigida para o próprio sexo e não para a humanidade, é claro que assim,
sacrifica-se parcialmente a humanidade e corre-se um risco moral. Os seres
humanos, portanto, não têm o direito moral a oferecerem-se, como se fossem
coisas para o uso de outros e para a satisfação das suas propensões sexuais,
com vista ao lucro.”
Tradução livre de um excerto de Immanuel Kant, A Filosofia do Direito
Tradução livre de um excerto de Immanuel Kant, A Filosofia do Direito
É difícil encontrar uma condenação mais completa
da prostituição do que a posição tomada pelo filósofo Immanuel Kant
(1724\1804).
A sua posição
reflete, em parte, o contexto social e histórico do filósofo, pois enquadra-se
no contexto histórico da Alemanha do séc XIII, país em que a prostituição era
perseguida por motivos religiosos, devido à reforma protestante, que levou a um
crescente fervor religioso e também devido ao aparecimento da sífilis.
A posição de Kant
perante a prostituição e o matrimónio é claramente cristã. Para Kant a relação
íntima tem de ser, necessariamente, um ato de envolvimento emocional.
Para ele, a prostituição é,
também, um exemplo extremo da utilização do ser humano
meramente como um meio para atingir um fim, considerando-a mesmo desprezível, pois
os seres humanos, e não o seu trabalho e serviços, são os objetos de prazer. A
prostituição coloca o ser humano no mesmo fundamento que um animal.
Faz da humanidade um instrumento e desonra-a, colocando-a num nível similar à
natureza animal. Kant conclui que a sexualidade expõe a humanidade ao perigo da
igualdade aos animais.
“ É verdade que o
homem não tem inclinação para apreciar a carne de outro, assim não há uma
inclinação que possamos chamar de um apetite para desfrutar outro ser humano.
Referimo-nos antes a um impulso sexual. O homem pode, é claro, usar um outro
ser humano como um instrumento para o seu serviço; ele pode usar suas mãos,
seus pés, e até mesmo todos os seus poderes; ele pode usá-lo para seus próprios
fins, com o consentimento do outro. Mas não há nenhuma maneira em que um ser
humano pode ser feito um objeto de indulgência para outro, exceto por meio do
impulso sexual.”
Tradução livre de um excerto de Immanuel Kant, A Filosofia do Direito
Tradução livre de um excerto de Immanuel Kant, A Filosofia do Direito
A preferência
pelo sexo desse humano, é um princípio da degradação de natureza humana, na
medida em que dá origem à preferência de um sexo em relaçãoao outro, e àdesonrado
sexo através da satisfação do desejo. Por exemplo, o desejo que o homem tem por
uma mulher não é direcionado para ela enquanto um ser humano, mas porque ela é
uma mulher; o facto de que ela é um ser humano não é de nenhum interesse para
sua inclinação; apenas o seu sexo é o objeto de seus desejos. Para Kant, a
natureza humana é assim subordinada a essa inclinação, é sacrificada ao sexo.
O homem não pode
dispor-se a ele mesmo porque ele não é uma coisa; segundo Kant, ele nem sequer
é a sua propriedade; se dissesse que sim estaria a ser contraditório, pois é
impossível alguém ser simultaneamente uma pessoa e um objeto, o proprietário e
a propriedade.
Kant argumenta
que o Homem não pode dispor de si mesmo como se fosse sua propriedade, e fá-lo
da seguinte forma:
Premissa 1 : Não
se pode ser simultaneamente proprietário e propriedade
Premissa 2 : O
Homem é proprietário
Conclusão: O
Homem não pode ser considerado sua própria propriedade.
Esta conclusão
pode ser contestada pois Kant não justifica a veracidade da primeira premissa,
partindo do princípio que ela é verdadeira para desenvolver a sua conclusão. No
entanto, como este tipo de argumentos assenta na verdade das suas premissas, se
a 1º premissa for falsa a conclusão torna-se equivoca.
Mas o que distingue, para Kant, a moralidade da
relação sexual do matrimónio da da prostituição?
“O amor sexual
pode, naturalmente, ser combinado com o amor humano e assim levar com ele as
características de afeto, mas quando é feito só pelo satisfação, não é nada
mais do que um apetite. É uma degradação da natureza humana; pois assim que uma
pessoa se torna um objeto de apetite para outro, todos os motivos morais de
relacionamento deixam de funcionar e a pessoa torna-se uma coisa que pode ser
tratada e utilizada como tal por cada um. Este é o único caso em que um ser
humano é projetado pela natureza como objeto de gozo do outro.”
Tradução livre
de um excerto de Immanuel Kant, A
Filosofia do Direito
Para Kant, diz-se
que um homem ama alguém quando ele tem uma inclinação por outra pessoa. Esse
amor que significa o verdadeiro amor humano, não admite nenhuma distinção entre
o tipo de pessoa amada. Em contraste, um amor que brota meramente por impulso
sexual não pode ser considerado amor de nenhuma forma, é apenas um apetite.
“É o desejo
sexual que está na raiz da prostituição; é por isso que temos vergonha dele, e
que todos os moralistas rígidos e aqueles que tinham pretensões de ser
considerado como santos, tentaram suprimi-lo. É verdade que sem ele um homem
estaria incompleto; estaria imperfeito enquanto ser humano; no entanto, os
homens fizeram pretensão sobre esta questão e tentaram suprimir estas
inclinações porque elas de certo modo degradam a humanidade.”
Tradução livre de
um excerto de Immanuel Kant, A Filosofia
do Direito
A única condição
na qual estamos livres para fazer uso do nosso desejo sexual depende do direito
de dispor a pessoa como um todo - sobre o bem-estar e felicidade e, geralmente,
sobre todas as circunstâncias do mesmo. Se eu tenho o direito sobre toda a
pessoa, também tenho o direito sobre a sua parte e por isso tenho o direito de
usar a mesma para a satisfação do meu desejo sexual. Mas como sou eu merecedor
de obter todos os direitos de uma pessoa? Kant defende que só dando a essa
pessoa os mesmos direitos sobre a totalidade de mim mesmo. Isto acontece apenas
no casamento. O Matrimónio é um acordo entre duas pessoas que concedem
mutuamente direitos recíprocos e iguais, cada um deles compromete-se a entregar
a totalidade da sua pessoa para a outra com um direito completo de dispor sobre
ele. Desta forma, as duas pessoas se tornar uma unidade de vontade. Assim a
sexualidade leva a uma união dos seres humanos, e só essa união permite o
exercício da satisfação da sexualidade possível.
Em contraste, na
prostituição, o ser humano torna-se objeto para outrem. Isto coloca a união
sexual entre os dois sujeitos como uma relação de gozo sob a lei do direito
onde eu procuro ser adquirido, me tornar objeto de gozo.
É possível a prostituição regulada pela lei?
A prostituição
origina uma questão fundamental das relações humanas, do direito contemporâneo
e da psicanálise. Trata-se de pensar a posição do sujeito como objeto de gozo
do outro pautado pela lei.
Se por um lado, a
noção de humanidade e de pessoa como um fim em si mesmo torna-nos sujeitos, por
outro lado, torna-se difícil pensar na possibilidade de um ato de prostituição
entre duas pessoas que representam a humanidade em si mesmas, onde nenhuma seja
colocada como objeto.
Daí origina uma última questão: É possível a
prostituição regulada pela lei?
De um ponto de
vista ético, a prostituição é claramente inaceitável pois é uma afronta à
dignidade humana e consequentemente à humanidade.
Podemos dizer que, por princípio, os direitos humanos também impedem tomar posse de um corpo humano como quem toma posse de uma maçã ou uma caneta. Esta restrição não só vale para o corpo dos outros, também não somos proprietários do próprio corpo e não podemos dispor dele como bem entender.
Podemos dizer que, por princípio, os direitos humanos também impedem tomar posse de um corpo humano como quem toma posse de uma maçã ou uma caneta. Esta restrição não só vale para o corpo dos outros, também não somos proprietários do próprio corpo e não podemos dispor dele como bem entender.
No entanto, há um
conflito entre os princípios da ética e a realidade da política, que podem
sacrificar a ética de uma ação em prol de outras razões vistas pela política
como mais vantajosas para a sociedade.
Atualmente, a
realidade é que vários países do primeiro mundo estão a adotar leis que tratam
a prostituição como se fosse qualquer outro negócio. Na Holanda legalizaram os
bordéis, e as prostitutas passaram a ter os mesmos direitos que qualquer outro
trabalhador: carteira assinada, plano de saúde e reforma.
A nossa época
revela-se como aquela em que a dignidade da pessoa, essa noção iluminista
desenvolvida por Kant, se torna totalmente desrespeitada. O desenvolvimento das
sociedades de mercado capitalistas, veio realçar quão ilusória era a distinção
kantiana. Para a moral atual, o valor seja do que for reside no preço. Todos os
seres humanos, e todas as suas criações, sublimes que elas sejam, estão no
mercado, entregues à lei da oferta e da procura, à espera de quem os
compre. Este é o padrão de moralidade que rege em absoluto toda a vida
social, política e económica
Desta forma, há
um perigo inerente à prostituição na sociedade capitalista, transformar o corpo
num bem de mercado é sujeitá-lo às leis de oferta e procura, atribuindo-lhe um
valor monetário sem dúvida muito inferior ao seu valor humano.
Que objeções podem ser levantadas a Kant?
- Será a
prostituição sempre uma afronta à dignidade humana?
- Não será
possível respeitar o valor humano da prostituta?
- Se o ser humano
não pertence a si próprio, a quem pertence?
- Será a prostituição
sempre uma prática abusiva? Porque se proíbe a prostituição com base num
desrespeito pela dignidade humana, enquanto se mantem legais profissões ainda
mais miseráveis?
-Não será a
relação casual uma alternativa ao matrimónio?
- Em que consiste
a objetificação em Kant? Se consiste no uso de outrem como meio, porque não se
levanta o mesmo tipo de objeção moral a todo o tipo de profissões mal
remuneradas?
Michel Foucault
Terá á hipótese
repressiva, teoria proposta por Foucault, influenciado a prostituição?
Michel Foucault,
filósofo francês, no seu livro "A Vontade de Saber", primeiro
volume da "História da Sexualidade", discute o que ele nomeia de
hipótese repressiva.
A sociedade vive desde o século XVIII, com a ascensão da burguesia, uma fase de repressão sexual. Nesta fase, o sexo reduz-se à sua função reprodutora e o casal procriador torna-se o modelo central. Tudo o que esteja para além desta função torna-se anormal - é expulso, negado e reduzido ao silêncio. A justificação seria que, numa época em que a força de trabalho é muito explorada, as energias não podem ser dissipadas nos prazeres. Em contrapartida, a sociedade burguesa - hipócrita - vê-se forçada a algumas concessões. A sexualidade deixava de ser ilegítima em locais onde pudesse dar lucros, como nas casas de prostituição.
Que objeções à hipótese repressiva?
Segundo Michel
Foucault, a hipótese repressiva vem sendo aceite quase como uma verdade
absoluta ao longo dos tempos. No entanto, ainda que certas explicações funcionem,
elas não podem ser encaradas como verdades absolutas, pois, segundo ele, a
verdade nada mais é do que uma mentira que não pode contestada num determinado
momento.
A hipótese
repressiva não é contestada porque serve bem à sociedade actual. Foucault
afirma que, para nós, é gratificante formular em termos de repressão as
relações de sexo e poder por uma série de motivos. Primeiramente, porque, se o
sexo é reprimido, o simples facto da repressão ganha contornos de transgressão.
Segundo, porque, aceitando-se a hipótese repressiva, pode-se vincular revolução
e prazer, pode-se falar num período em que tudo vai ser bom: o da liberação
sexual. Sexo, revelação da verdade, inversão da lei do mundo são, hoje, coisas
ligadas entre si.
Finalmente, insiste-se na hipótese repressiva porque nela tudo o que se diz sobre o sexo ganha um valor mercantil.
Finalmente, insiste-se na hipótese repressiva porque nela tudo o que se diz sobre o sexo ganha um valor mercantil.
Então até que ponto terá a hipótese repressiva
influenciado a prostituição?
Em relação à
sexualidade, Foucault dizia que:
"Não se deve
descrever a sexualidade como um ímpeto rebelde, estranha por natureza e indócil
por necessidade a um poder que, por sua vez, esgota-se na tentativa de
sujeitá-la e muitas vezes fracassa em dominá-la inteiramente. Nas relações de
poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados de maior
instrumentalidade, utilizável no maior número de manobras e podendo servir de
ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias."
Então, a hipótese
repressiva explica, em parte, a existência de certos estabelecimentos de
confissão, onde os sentimentos sexuais "impróprios" poderiam ser
libertados com segurança. Foucault identifica a prostituição como um desses
pontos de venda.
Como é difícil
manter relações sexuais sem ser em relacionamentos estáveis, as pessoas compram
sexo. Enquanto ele for um produto em escassez, o seu mercado continuará a existir.
Assim, através da repressão da sexualidade
feminina – na maioria das sociedades a
mulher que “se preserva” ainda é mais valorizada – é possivelmente o principal
motivo de a grande maioria das ofertas serem dirigidas aos homens. Assim,
podemos concluir que o valor económico da mulher na prostituição, em certa
parte, advém da castidade resultante da repressão sexual vivida durante séculos.
Qual a opinião de um filósofo contemporâneo
relativamente a este tema?
Ole
Martin Moen (doutor
em filosofia pela Universidade de Oslo e pesquisador na mesma em ética aplicada)
explora este tema num artigo em destaque, disponível gratuitamente em http://jme.bmj.com (jornal de ética médica).
Martin é de opinião de que para
aqueles que aceitam o sexo casual, têm motivação, precisam de dinheiro e são
capazes de trabalhar num local seguro - vender
sexo pode ser uma opção prudente.
Para ele, os muitos problemas
que acompanham a prostituição devem-se a motivos externos: más condições de
trabalho, exclusão social e legal, falta de segurança, falta de higiene,
construções sociais, humilhação pública, crime organizado, violentações,
pobreza e abuso de drogas.
Para ele, se alguém empregado numa profissão considerada moral sofresse destes males não seria difícil de deduzir que sofreria do mesmo tipo de traumas que apresenta uma prostituta (depressão, impulsos suicidas, abuso de drogas…) e que, portanto, os danos que a prostituição causa advêm de outros fatores.
Para ele, se alguém empregado numa profissão considerada moral sofresse destes males não seria difícil de deduzir que sofreria do mesmo tipo de traumas que apresenta uma prostituta (depressão, impulsos suicidas, abuso de drogas…) e que, portanto, os danos que a prostituição causa advêm de outros fatores.
Para ele, uma prostituição livre
destes males é uma possibilidade séria e que, portanto, deve ser levada em
conta.
Para chegar à
conclusão de que a prostituição não é sempre maleficente, Moen parte… do princípio de
que...
... o sexo causal é moral, ao contrário de Kant, ou seja, que se pode
participar em atividades de foro sexual sem se envolver emocionalmente.
… de que a
falsificação do orgasmo não tem consequências adversas para a prostituta,
fazendo um paralelo com a profissão de ator, pois fingir também é um requisito
nessa, mesmo quando há uma grande dissonância entre o que o ator sente e o que
tem de aparentar sentir.
… de
que o ato de “vender o corpo” não supõe que este “arrendamento” não tenha restrições,
respeitando a segurança e a integridade da(/o) prostituinte.
… de
que quando a prostituta não se encontra desesperada ou é de outro modo coagida,
a prostituição não envolve mais dominância económica do que qualquer outra
profissão.
… de que a
procura de prostituição surge de impulsos biológicos e não de construções
sociais ou patriarcais que visam a subordinação das mulheres.
… de que a
prostituição não implica, forçosamente, exploração financeira, sugerindo, como
exemplo, as prostitutas de luxo ou “acompanhantes”, que ganham substancialmente
mais do que a maioria da população. Por exemplo, na Austrália, as prostitutas
de luxo estas nos 10% mais bem pagos em termos de vencimento anual.
… do princípio de
que os problemas psicológicos que atormentam muitas prostitutas se devem a
fatores externos a esta.
… do princípio de
que os perigos que as prostitutas enfrentam se devem, mais uma vez, a fatores
externos, aos ambientes em que trabalham e a uma falta de segurança que poderia
ser suplantada se a prostituição não fosse uma atividade clandestina.
… do princípio de
que a prostituição nem sempre envolve o uso de força ou a fraude e que, portanto,
quando se define objetificação como o uso de outrem sem o seu consentimento ou
sem consideração pela outra pessoa, não é forçoso que a prostituição seja uma
forma de objetificação.
Assim, este filósofo apresenta
uma posição pró-legalização, embora, tal como Stuart Mill, considere
fundamental uma reforma ética necessariamente precedente de uma verdadeira reforma social.
Que objeções a esta ese?
Esta posição é controversa e objetável, pelo que se podem colocar as seguintes questões:
Esta posição é controversa e objetável, pelo que se podem colocar as seguintes questões:
- Não será
utópico supor que se pode isolar o comércio do sexo dos problemas sociais e
psicológicos que a acompanham?
- Não será esta
posição contra - intuitiva? Todos sabemos que as prostitutas sofrem muito por
serem prostitutas.
- O autor parte
do princípio de que o sexo casual é ético. Será este ponto assim tão pouco
controverso?
Conclusão
Como fazer sentido de toda estas conceções?
Até que ponto se podem compatibilizar estas posições?
Até que ponto se podem compatibilizar estas posições?
Bem, provavelmente as posições
que mais facilmente se compatibilizam são as de John Stuart Mill e Ole Martin
Owen, já que ambos apresentam conceções éticas relativistas.
Mais difícil será compatibilizar
as posições destes com a de Kant pois este vê algo de errado na prostituição em
si: ao contrário de Mill e de Ole, que consideram que a prostituição pode ser
uma profissão tão ou mais digna do que outra qualquer, Kant vê nela uma afronta
à dignidade humana, já que, segundo este, esta reside nas diferenças que
existem entre os seres humanos e os animais, e a objetificação do ser humano
redu-lo à animalidade.
No entanto, é claro que Kant,
Mill e Ole concordariam sob certas circunstâncias: sempre que todos
considerassem que, como Kant, a prostituição implica objetificação da mulher.
A maior diferença entre Kant e os restantes pensadores está no facto de Kant considerar tal uma constante, enquanto que Mill e Ole consideram que esta é um subproduto do mau funcionamento da sociedade e da sua economia.
Quanto a Foucault, é difícil criar paralelos entre o seu discurso e o dos restantes autores, já que no seu texto reflete sobre filosofia da história, ao explicar como fenómenos históricos criaram a prostituição moderna. Portanto, esta sua visão pode ser facilmente articulada com a de qualquer um dos restantes filósofos.
A maior diferença entre Kant e os restantes pensadores está no facto de Kant considerar tal uma constante, enquanto que Mill e Ole consideram que esta é um subproduto do mau funcionamento da sociedade e da sua economia.
Quanto a Foucault, é difícil criar paralelos entre o seu discurso e o dos restantes autores, já que no seu texto reflete sobre filosofia da história, ao explicar como fenómenos históricos criaram a prostituição moderna. Portanto, esta sua visão pode ser facilmente articulada com a de qualquer um dos restantes filósofos.
São, também, propostas soluções
para este problema, que poderiam ter aplicabilidade em discussões práticas
sobre como solucionar este problema social: a regulação da prostituição, a
reforma social e a reforma ética dos indivíduos através do autocontrolo das
emoções pela razão, da procura da satisfação destes desejos apenas em relações
monogâmicas e de investimento total recíproco, pela igualdade entre homens e
mulheres, pela reforma da visão do Estado e da sociedade das prostitutas, pelo
desaparecimento da repressão social burguesa...
Concluindo, consideramos que
este trabalho foi de grande interesse para nós pois permitiu-nos abrir os
nossos horizontes ideológicos e obter uma visão mais global deste tema,
compreendendo as suas implicações éticas e sociais. Estudamos ambos os extremos
desta questão axiológica e procuramos chegar a um meio-termo em que se encontre
a compatibilização destas. Assim, desenvolvemos uma posição crítica a propósito
de um dos grandes problemas sociais da atualidade e de todos os tempos.
Globalmente, conclui-se que a
prostituição, na sua forma atual, é, sem dúvida, imoral, como o atestam os
muitos e trágicos relatos de numeras prostitutas e prostitutos e o estudo ético
destas questões, quer seja pelas suas implicações sociais, económicas e no bem-estar
físico e psíquico das prostitutas, pelo desrespeito pela dignidade humana que
daí advém, das liberdades individuais ou ainda pela pobre situação socioeconómica
e legal das prostitutas.
Bibliografia e Webgrafia:
Immanuel Kant, Deveres para com o corpo respetivamente ao
impulso sexual
Immanuel Kant, A Filosofia do Direito
Michel Foucault, A Vontade de Saber
John Stuart
Mill, Morales “The Corrupting Influence”
John Stuart
Mill, The Collected Works of John Stuart Mill
John Stuart
Mill, On Liberty
John Stuart
Mill, On Nature
Ole Martin Moen, Is prostitution harmful?
Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo
http://www.ncgsjournal.com/
Por Gonçalo Rocha
e Pedro Justo - alunos do 10°A
Friné o Trata de Blancas – Débora Arango (1907-2005) OBRIGADO! Lola |
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