quarta-feira, 8 de julho de 2015

Ensaio Filosófico - Exemplo

Toulousse-Lautrec foi um dos pintores que melhor retratou as mulheres e os bordéis franceses do final do século XIX. Na imagem, uma cena do salão da rue des Moulins, em Paris (1894)


A Prostituição no feminino e a Condição da Mulher


Porque é a prostituição uma afronta à dignidade da Mulher, uma violência eterna?



“A jovem rapariga sente o seu corpo a afastar-se dela… nas ruas homens seguem-na com o olhar e comentam a sua anatomia. Ela gostaria de ser invisível; tem medo de se tornar carne e de mostrar carne” (p. 333) 

O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir, p. 333.

               
Introdução

Desde as pornai e hetaera da Grécia Antiga às geishas do Japão medieval, a prostituição é comum a todas as épocas e culturas humanas.
Desde os primórdios da civilização que acompanhou a humanidade, mas, infelizmente, demasiadas vezes aliada a realidades como o tráfico humano, a violação, a coação, a pedofilia, as doenças venéreas e a pobreza.
Muitas vezes considerada imoral e inaceitável, é, no entanto, interessante e útil ao desenvolvimento de uma posição crítica abordar qual a ética da prática em si.
Para tal, começaremos por interpretar textos de dois grandes nomes da filosofia moral sobre a temática da prostituição, Immanuel Kant e John Stuart Mill, de dois filósofos modernos, Foucault e Ole Martin Moen, e terminaremos por dar o nosso próprio parecer sobre a temática, tendo por base as teorias éticas dos autores, e históricas, no caso de Foucault.
Com este ensaio filosófico,pretendemos refletir sobre qual a ética da prostituição.









Desenvolvimento


John Stuart Mill

Qual a posição de John Stuart Mill perante a moralidade da prostituição?

Primeiramente, a leitura que nós faremos agora do posicionamento de John Stuart Mill, quanto à prostituição, é largamente informada por um artigo de ClareMcGlynn, professora catedrática de Lei na Universidade de Durham, Inglaterra.
John Stuart Mill (1806 – 1873), filosofo, economista e político inglês, foi em vida preponente do utilitarismo e do feminismo, porquanto se opôs à noção da inferioridade feminina, considerando-a uma afirmação autoritária sem evidências. Apoiou o sufrágio feminino, defendeu a reforma do casamento, e apoiou sempre a emancipação da mulher, pois considerava as mulheres livres, independentes, racionais e iguais aos homens.
Infelizmente, Stuart Mill fez apenas referências escassas a propósito da prostituição, ao longo de toda a sua extensa obra. No entanto, encontramos, ainda assim, referências a esta no seu ensaio Sobre a Liberdade, na sua correspondência pessoal e noutros textos.
A partir destas referências, Mill surge-nos como um filósofo feminista e sinceramente preocupado com o bem-estar da Mulher.
Mas, por outro lado, devemos considerar o contexto em que Mill discute este tema. Esta não foi para ele uma questão sobre a qual este tenha refletido apenas por curiosidade académica: na época (meados do século XIX), em Inglaterra, a prostituição era um tema de grande interesse social e político, uma questão de tal relevância que era tema central de campanhas eleitorais.
Na sua época, a prostituição era uma das causas de um grave problema de saúde pública: era um dos principais modos de transmissão da sífilis, uma doença sexualmente transmissível bastante contagiosa e mortal, que passava de homens contagiados para prostitutas, destas para os seus clientes e destes para as suas esposas e filhos, chegando assim a grande parte da população.
Portanto, Mill aborda o tema como um problema acima de tudo social, tendo sempre por referência a realidade do seu tempo, ou seja, o que significava a prostituição para a sociedade do século XIX.

Então, Stuart Mill condena ou não a prostituição?

A posição de Mill quanto à moralidade da prostituição é uma que a condena, mas que procura solucionar o problema de um modo diferente daquele dos seus contemporâneos. Neste primeiro ponto, Mill está alinhado com a visão dominante do seu tempo, que a considerava um dos “Grandes Males Sociais”, e certamente, pelas suas consequências práticas: morte, miséria, pobreza, doença e desordem social.
No entanto, é de interesse ressalvar que qualquer consideração moral relativista é feita em relação a um dado contexto, sendo que a acima indicada se refere não a um estado “ideal” , se é que algo assim existe, de prostituição, mas sim à realidade vivida e sofrida pelos seus contemporâneos.
Assim, para Mill, na realidade do século XIX, a prostituição era eticamente inaceitável, o que se torna claro quando se considera que, segundo a teoria utilitária, os prazeres sexuais são prazeres inferiores, animalidades; existem consequências negativas da maior gravidade associadas à prostituição, que tornam o fim “repulsivo” para a prostituta; e que Mill era da convicção de que todos os prazeres corporais deveriam ser subjugados à razão, já que, segundo este, esses impulsos são construídos socialmente. Ou seja, o utilitarismo e o individualismo de John Stuart Mill não se tratam de um modo de legitimar a desregulada satisfação dos nossos desejos e inclinações, mas sim de teorias filosóficas que nos encorajam a transcender os nossos desejos e paixões sexuais e animais, através de força de vontade.
No entanto, enquanto liberal, Stuart Mill era da convicção que a liberdade de um indivíduo só acaba quando este causa danos a outro (princípio do dano), pelo que aceitaria que outros comprassem e vendessem sexo, desde que nenhuma das partes causasse danos à outra, mesmo que pessoalmente idealizasse a superação destes instintos.
John Stuart Mill enuncia este princípio liberal do seguinte modo em Sobre a Liberdade:
“o único fim para o qual o poder pode ser legitimamente exercido sob qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é para prevenir dano a outros” 
Tradução livre de John Stuart Mill, On Liberty

Ou seja, John Stuart Mill é a favor da prostituição apenas quando não se verificam nenhum dos muitos problemas que a acompanham (doenças, mortes, abusos físicos e psicológicos, violações…).
Resumindo, isto significa que embora Mill considerasse a prostituição, tal como era levada a cabo no seu século, inaceitável, este não constatava nada de objetivamente errado nesta. Para ele, o caráter da prostituição refletia apenas aquele daquilo que a envolvia.

Neste excerto constata-se o carácter crítico de Mill:

“… Supondo (…) que os homens não são capazes de controlar eficientemente a sua propensão [sexual], devo ainda assim diferir quando pensa que a prostituição é a melhor válvula de segurança [para estes impulsos]. Eu, pelo contrário, penso que, com a exceção da violência pura, não existe nenhum mal maior do que a prostituição, que esta propensão possa produzir.
                De todos os modos de indulgência sexual, consistentes com a liberdade e a segurança das mulheres, considero a prostituição como o pior; não só devido às desgraçadas mulheres cuja inteira existência é sacrificada, mas também pela corrupção inigualável que esta traz aos homens.” 

Tradução livre de excerto de John Stuart Mill, To Lord Amberley, The Collected Works of John Stuart Mill, Volume XVII - The Later Letters of John Stuart Mill 1849-1873 Part IV [1

Por outro lado, segundo Mill, a prostituição não é o menor de dois males que é escolhido para mitigar o anterior, mas sim algo que devia ser e podia ser eliminado na sua forma atual ou, então, reformado, sendo, portanto, a procura de prostitutas algo que não se deve desculpar ou simplesmente aceitar. Mill desafia a ideia de que a procura masculina por prostitutas é legítima e afirma que se deve levar a cabo uma reforma social, baseada numa mudança ética:

  “não existe nenhuma inclinação natural tal que [a educação] não seja forte o suficiente para persuadir, e, se necessário, destruir pelo desuso” 

tradução livre de John Stuart Mill, On Nature, 10, 398

E ainda, numa carta a Lord Amberley:

“esta paixão particular [sexual] vai tornar-se no homem, tal como já o é com um elevado número de mulheres, completamente sob o controlo da razão.” 

Tradução livre de John Stuart Mill, para Lord Amberley, 2 de fevereiro de 1870, 17, 1693

Ou seja, John Stuart Mill propõe que com o evoluir da civilização haverá uma tendência para o domínio das emoções e para a diminuição da procura da satisfação de prazeres inferiores, como o são, segundo Mill, os sexuais.
Segundo o filósofo escocês Alexander Bain, esta opinião de Mill é um reflexo das suas próprias tendências pessoais, pois, segundo Bain, Stuart Mill era um indivíduo com impulsos sexuais fracos e algo abaixo da média, pelo que esta sua posição pode ser uma reação à sua própria sexualidade, embora devamos ter em atenção que de modo nenhum este facto desacredita os argumentos de Mill, já que tal seria recorrer a uma falácia ad hominem.
Além disso, Mill, ao opor-se à situação da Mulher do tempo, opõe-se também à objetificação da mulher:

“Em nenhum outro [caso] há esta total ausência mesmo do mais ligeiro prenúncio de afeição e carinho; é a mulher para o homem tão completamente uma mera coisa usada simplesmente como um meio, para um propósito que para ela própria será repulsivo.”
Tradução livre de excerto de John Stuart Mill, 
The Collected Works of John Stuart Mill [1869]

Curiosamente, neste excerto, ao contrário do que se poderia pensar, Mill opõe-se à objetificação da Mulher. De facto, esta posição de Mill surge não de um utilitarismo puro que transforma a mulher num objeto, mas sim de um utilitarismo articulado com as suas convicções liberais e feministas.
Tal alerta-nos para o facto de como é fácil não compreender o ponto de vista deste autor. Em John Stuart Mill, articulam-se ideias complexas de individualismo, utilitarismo, liberalismo, feminismo e impiricismo que, quando não são articuladas convenientemente, nos levam a deduções erradas a propósito das conceções defendidas pelo autor.
Este é um exemplo da grande importância de que, quando se pretende discursar sobre um dado tema, na perspetiva de uma dada corrente filosófica, se deve ler textos do autor que se dirijam especificamente a essa temática, evitando limitar-se a fazer suposições baseadas apenas em princípios gerais e nem sempre aplicáveis.
Como já pode ter deduzido dos excertos acima transcritos, os momentos em que Mill se demonstra mais inovador são aqueles em que desafia a procura masculina por prostitutas e exige igualdade de tratamento entre homens e mulheres, mesmo no caso de regulação da prostituição, sendo que faz tudo isto com base nas suas convicções éticas enquanto feminista radical para o seu tempo, e até mesmo para o nosso, liberal e utilitarista.
De facto, para Mill, as consequências são da maior importância quando se considera a moralidade da prostituição. Nada é errado por princípio e apenas pelas consequências que disso advêm.

E quanto à regulação?

A prostituição, segundo Mill, não pode ser simplesmente legalizada, porque traz consequências adversas e providencia apenas um prazer menor, legalizá-la é ignorar este facto e é a tolerancia pelo Estado a uma prática danosa.
Segundo ele, e embora o seu argumento seja principalmente moral, a legalização da prostituição poderia também encorajar a sua dessiminação.
Mas, ao contrário de outros liberais que também são desagradados pela prostituição, mas que exigem a sua tolerância, Mill tem uma posição de liberalismo ético, ou seja, segundo ele, a prostituição tem de ser reformada, juntamente com a sociedade, e esta reforma tem de ter um fundamento ético.
Em suma, Mill não pode aceitar simultaneamente a legitimação da prática e as assunções associadas sobre a sexualidade masculina.

“[uma] reforma social genuína deve ter como premissa a reforma do mundo moral” 

John Stuart Mill, Morales “The Corrupting Influence”, 101

Para Mill, o ideal seria que a prostituição fosse erradicada não pelo controlo estatal mas pela superação dos impulsos inferiores. Mas, ainda assim, este aceitaria a descriminalização da prostituição, pois deste modo não se diferencia a prostituição, tratando-a do mesmo modo que todos os outros modos de trabalho. No entanto, como sabemos, Stuart Mill é crítico perante a prostituição, os bordéis e alcoviteiras. Especialmente, perante aqueles que a encorajam para ganho pessoal, explorando os vulneráveis.
De facto, Mill tem uma atitude mais em linha com o pensamento feminista radical do que com o liberal, para ele, a regulação da prostituição não se centra nas prostitutas mas sim naqueles que as frequentam, a procura masculina de prostitutas é identificada por Mill como a maior causa da sua continuação. Esta é considerada por Mill como evidência da dominação masculina da sociedade e de assumpções sobre a necessidade e validade desta procura.
Embora, Mill tivesse como ideal a abolição da prostituição, ele via-a como consequência orgânica de uma reforma ética mais geral, negando reformas legais. Ele envisionava uma sociedade em que não houvesse nenhuma necessidade de prostituição, em que se tratasse a atividade sexual de uma forma mais racional. Segundo ele, uma sociedade em que houvesse igualdade perfeita entre homens e mulheres e em que o sexo fosse encarado racionalmente, seria uma em que não haveria qualquer necessidade de prostituição.
Para Mill, o ato de comprar sexo não é em si suficiente para justificar intervenção legal. O que o incomodava era a exploração, motivada monetariamente, das mulheres.
Mas, independentemente do quanto Mill queria acabar com a prostituição e com o jogo, ele não podia fazê-lo sem ir contra os seus próprios princípios, para ele, sempre que não houvesse coação e exploração, a liberdade devia prevalecer.
Quem sabe, talvez devido ao acima discutido, Mill aceitasse a operação de bordéis não coercivos e explorativos, só sujeitando casos mais graves a sanções e regulação.

Que objeções a esta tese?

- Não será utópico supor que uma reforma moral tão profunda é possível?
- Como pode o caráter moral da prostituição variar tanto de situação para situação?
- Não é utópico assumir que as pessoas têm um controlo tão profundo sob as suas próprias tendências? É o celibato uma opção prática?
- Será que, de facto, não há nada de objetivamente errado com a prostituição?
- Pode uma pessoa dispor de si própria de tal forma sem ser objetificada?
- Como pode um liberal aceitar a regulação governamental numa troca comercial entre dois adultos livres e conscientes?
- Não estará Stuart Mill a contradizer-se, enquanto utilitarista, ao negar a objetificação da mulher?
- Como pode um feminista permitir a prostituição?







Immanuel Kant


Qual a posição de Kant quanto à moralidade da prostituição?

"... Permitir que uma pessoa, com vista no lucro, seja utilizada por outra para a satisfação do seu desejo sexual, se faça de si mesmo um objeto de procura e disponha do seu corpo como se fosse um objeto é igual a tornar-se em algo em que outro satisfaz o seu apetite, da mesma forma como ele satisfaz a sua fome ao comer um bife. Mas já que a inclinação é dirigida para o próprio sexo e não para a humanidade, é claro que assim, sacrifica-se parcialmente a humanidade e corre-se um risco moral. Os seres humanos, portanto, não têm o direito moral a oferecerem-se, como se fossem coisas para o uso de outros e para a satisfação das suas propensões sexuais, com vista ao lucro.” 

Tradução livre de um excerto de Immanuel Kant, A Filosofia do Direito

É difícil encontrar uma condenação mais completa da prostituição do que a posição tomada pelo filósofo Immanuel Kant (1724\1804).

A sua posição reflete, em parte, o contexto social e histórico do filósofo, pois enquadra-se no contexto histórico da Alemanha do séc XIII, país em que a prostituição era perseguida por motivos religiosos, devido à reforma protestante, que levou a um crescente fervor religioso e também devido ao aparecimento da sífilis.
A posição de Kant perante a prostituição e o matrimónio é claramente cristã. Para Kant a relação íntima tem de ser, necessariamente, um ato de envolvimento emocional.
Para ele, a prostituição é, também, um exemplo extremo da utilização do ser humano meramente como um meio para atingir um fim, considerando-a mesmo desprezível, pois os seres humanos, e não o seu trabalho e serviços, são os objetos de prazer. A prostituição coloca o ser humano no mesmo fundamento que um animal. Faz da humanidade um instrumento e desonra-a, colocando-a num nível similar à natureza animal. Kant conclui que a sexualidade expõe a humanidade ao perigo da igualdade aos animais.

“ É verdade que o homem não tem inclinação para apreciar a carne de outro, assim não há uma inclinação que possamos chamar de um apetite para desfrutar outro ser humano. Referimo-nos antes a um impulso sexual. O homem pode, é claro, usar um outro ser humano como um instrumento para o seu serviço; ele pode usar suas mãos, seus pés, e até mesmo todos os seus poderes; ele pode usá-lo para seus próprios fins, com o consentimento do outro. Mas não há nenhuma maneira em que um ser humano pode ser feito um objeto de indulgência para outro, exceto por meio do impulso sexual.”

Tradução livre de um excerto de Immanuel Kant, A Filosofia do Direito

A preferência pelo sexo desse humano, é um princípio da degradação de natureza humana, na medida em que dá origem à preferência de um sexo em relaçãoao outro, e àdesonrado sexo através da satisfação do desejo. Por exemplo, o desejo que o homem tem por uma mulher não é direcionado para ela enquanto um ser humano, mas porque ela é uma mulher; o facto de que ela é um ser humano não é de nenhum interesse para sua inclinação; apenas o seu sexo é o objeto de seus desejos. Para Kant, a natureza humana é assim subordinada a essa inclinação, é sacrificada ao sexo.
O homem não pode dispor-se a ele mesmo porque ele não é uma coisa; segundo Kant, ele nem sequer é a sua propriedade; se dissesse que sim estaria a ser contraditório, pois é impossível alguém ser simultaneamente uma pessoa e um objeto, o proprietário e a propriedade.

Kant argumenta que o Homem não pode dispor de si mesmo como se fosse sua propriedade, e fá-lo da seguinte forma: 
Premissa 1 : Não se pode ser simultaneamente proprietário e propriedade
Premissa 2 : O Homem é proprietário
Conclusão: O Homem não pode ser considerado sua própria propriedade.
Esta conclusão pode ser contestada pois Kant não justifica a veracidade da primeira premissa, partindo do princípio que ela é verdadeira para desenvolver a sua conclusão. No entanto, como este tipo de argumentos assenta na verdade das suas premissas, se a 1º premissa for falsa a conclusão torna-se equivoca.

Mas o que distingue, para Kant, a moralidade da relação sexual do matrimónio da da prostituição?

“O amor sexual pode, naturalmente, ser combinado com o amor humano e assim levar com ele as características de afeto, mas quando é feito só pelo satisfação, não é nada mais do que um apetite. É uma degradação da natureza humana; pois assim que uma pessoa se torna um objeto de apetite para outro, todos os motivos morais de relacionamento deixam de funcionar e a pessoa torna-se uma coisa que pode ser tratada e utilizada como tal por cada um. Este é o único caso em que um ser humano é projetado pela natureza como objeto de gozo do outro.” 

Tradução livre de um excerto de Immanuel Kant, A Filosofia do Direito

Para Kant, diz-se que um homem ama alguém quando ele tem uma inclinação por outra pessoa. Esse amor que significa o verdadeiro amor humano, não admite nenhuma distinção entre o tipo de pessoa amada. Em contraste, um amor que brota meramente por impulso sexual não pode ser considerado amor de nenhuma forma, é apenas um apetite.

“É o desejo sexual que está na raiz da prostituição; é por isso que temos vergonha dele, e que todos os moralistas rígidos e aqueles que tinham pretensões de ser considerado como santos, tentaram suprimi-lo. É verdade que sem ele um homem estaria incompleto; estaria imperfeito enquanto ser humano; no entanto, os homens fizeram pretensão sobre esta questão e tentaram suprimir estas inclinações porque elas de certo modo degradam a humanidade.”

Tradução livre de um excerto de Immanuel Kant, A Filosofia do Direito

A única condição na qual estamos livres para fazer uso do nosso desejo sexual depende do direito de dispor a pessoa como um todo - sobre o bem-estar e felicidade e, geralmente, sobre todas as circunstâncias do mesmo. Se eu tenho o direito sobre toda a pessoa, também tenho o direito sobre a sua parte e por isso tenho o direito de usar a mesma para a satisfação do meu desejo sexual. Mas como sou eu merecedor de obter todos os direitos de uma pessoa? Kant defende que só dando a essa pessoa os mesmos direitos sobre a totalidade de mim mesmo. Isto acontece apenas no casamento. O Matrimónio é um acordo entre duas pessoas que concedem mutuamente direitos recíprocos e iguais, cada um deles compromete-se a entregar a totalidade da sua pessoa para a outra com um direito completo de dispor sobre ele. Desta forma, as duas pessoas se tornar uma unidade de vontade. Assim a sexualidade leva a uma união dos seres humanos, e só essa união permite o exercício da satisfação da sexualidade possível.
Em contraste, na prostituição, o ser humano torna-se objeto para outrem. Isto coloca a união sexual entre os dois sujeitos como uma relação de gozo sob a lei do direito onde eu procuro ser adquirido, me tornar objeto de gozo.

É possível a prostituição regulada pela lei?

A prostituição origina uma questão fundamental das relações humanas, do direito contemporâneo e da psicanálise. Trata-se de pensar a posição do sujeito como objeto de gozo do outro pautado pela lei.
Se por um lado, a noção de humanidade e de pessoa como um fim em si mesmo torna-nos sujeitos, por outro lado, torna-se difícil pensar na possibilidade de um ato de prostituição entre duas pessoas que representam a humanidade em si mesmas, onde nenhuma seja colocada como objeto.

Daí origina uma última questão: É possível a prostituição regulada pela lei?

De um ponto de vista ético, a prostituição é claramente inaceitável pois é uma afronta à dignidade humana e consequentemente à humanidade.
Podemos dizer que, por princípio, os direitos humanos também impedem tomar posse de um corpo humano como quem toma posse de uma maçã ou uma caneta. Esta restrição não só vale para o corpo dos outros, também não somos proprietários do próprio corpo e não podemos dispor dele como bem entender.
No entanto, há um conflito entre os princípios da ética e a realidade da política, que podem sacrificar a ética de uma ação em prol de outras razões vistas pela política como mais vantajosas para a sociedade.
Atualmente, a realidade é que vários países do primeiro mundo estão a adotar leis que tratam a prostituição como se fosse qualquer outro negócio. Na Holanda legalizaram os bordéis, e as prostitutas passaram a ter os mesmos direitos que qualquer outro trabalhador: carteira assinada, plano de saúde e reforma.
A nossa época revela-se como aquela em que a dignidade da pessoa, essa noção iluminista desenvolvida por Kant, se torna totalmente desrespeitada. O desenvolvimento das sociedades de mercado capitalistas, veio realçar quão ilusória era a distinção kantiana. Para a moral atual, o valor seja do que for reside no preço. Todos os seres humanos, e todas as suas criações, sublimes que elas sejam, estão no mercado, entregues à lei da oferta e da procura, à espera de quem os compre. Este é o padrão de moralidade que rege em absoluto toda a vida social, política e económica
Desta forma, há um perigo inerente à prostituição na sociedade capitalista, transformar o corpo num bem de mercado é sujeitá-lo às leis de oferta e procura, atribuindo-lhe um valor monetário sem dúvida muito inferior ao seu valor humano.

Que objeções podem ser levantadas a Kant?

- Será a prostituição sempre uma afronta à dignidade humana?
- Não será possível respeitar o valor humano da prostituta?
- Se o ser humano não pertence a si próprio, a quem pertence?
- Será a prostituição sempre uma prática abusiva? Porque se proíbe a prostituição com base num desrespeito pela dignidade humana, enquanto se mantem legais profissões ainda mais miseráveis?
-Não será a relação casual uma alternativa ao matrimónio?
- Em que consiste a objetificação em Kant? Se consiste no uso de outrem como meio, porque não se levanta o mesmo tipo de objeção moral a todo o tipo de profissões mal remuneradas?




Michel Foucault



Terá á hipótese repressiva, teoria proposta por Foucault, influenciado a prostituição?



Michel Foucault, filósofo francês, no seu livro "A Vontade de Saber", primeiro volume da "História da Sexualidade", discute o que ele nomeia de hipótese repressiva.

 A sociedade vive desde o século XVIII, com a ascensão da burguesia, uma fase de repressão sexual. Nesta fase, o sexo reduz-se à sua função reprodutora e o casal procriador torna-se o modelo central. Tudo o que esteja para além desta função torna-se anormal - é expulso, negado e reduzido ao silêncio. A justificação seria que, numa época em que a força de trabalho é muito explorada, as energias não podem ser dissipadas nos prazeres. Em contrapartida, a sociedade burguesa - hipócrita - vê-se forçada a algumas concessões. A sexualidade deixava de ser ilegítima em locais onde pudesse dar lucros, como nas casas de prostituição.

Que objeções à hipótese repressiva?

Segundo Michel Foucault, a hipótese repressiva vem sendo aceite quase como uma verdade absoluta ao longo dos tempos. No entanto, ainda que certas explicações funcionem, elas não podem ser encaradas como verdades absolutas, pois, segundo ele, a verdade nada mais é do que uma mentira que não pode contestada num determinado momento.
A hipótese repressiva não é contestada porque serve bem à sociedade actual. Foucault afirma que, para nós, é gratificante formular em termos de repressão as relações de sexo e poder por uma série de motivos. Primeiramente, porque, se o sexo é reprimido, o simples facto da repressão ganha contornos de transgressão. Segundo, porque, aceitando-se a hipótese repressiva, pode-se vincular revolução e prazer, pode-se falar num período em que tudo vai ser bom: o da liberação sexual. Sexo, revelação da verdade, inversão da lei do mundo são, hoje, coisas ligadas entre si. 
Finalmente, insiste-se na hipótese repressiva porque nela tudo o que se diz sobre o sexo ganha um valor mercantil.

Então até que ponto terá a hipótese repressiva influenciado a prostituição?

Em relação à sexualidade, Foucault dizia que:

               

"Não se deve descrever a sexualidade como um ímpeto rebelde, estranha por natureza e indócil por necessidade a um poder que, por sua vez, esgota-se na tentativa de sujeitá-la e muitas vezes fracassa em dominá-la inteiramente. Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados de maior instrumentalidade, utilizável no maior número de manobras e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias."

Então, a hipótese repressiva explica, em parte, a existência de certos estabelecimentos de confissão, onde os sentimentos sexuais "impróprios" poderiam ser libertados com segurança. Foucault identifica a prostituição como um desses pontos de venda.


Como é difícil manter relações sexuais sem ser em relacionamentos estáveis, as pessoas compram sexo. Enquanto ele for um produto em escassez, o seu mercado continuará a existir.
Assim, através da repressão da sexualidade feminina – na maioria das sociedades a mulher que “se preserva” ainda é mais valorizada – é possivelmente o principal motivo de a grande maioria das ofertas serem dirigidas aos homens. Assim, podemos concluir que o valor económico da mulher na prostituição, em certa parte, advém da castidade resultante da repressão sexual vivida durante séculos.









Qual a opinião de um filósofo contemporâneo relativamente a este tema?


 Ole Martin Moen (doutor em filosofia pela Universidade de Oslo e pesquisador na mesma em ética aplicada) explora este tema num artigo em destaque, disponível gratuitamente em http://jme.bmj.com (jornal de ética médica).
Martin é de opinião de que para aqueles que aceitam o sexo casual, têm motivação, precisam de dinheiro e são capazes de trabalhar num local seguro  - vender sexo pode ser uma opção prudente.

Para ele, os muitos problemas que acompanham a prostituição devem-se a motivos externos: más condições de trabalho, exclusão social e legal, falta de segurança, falta de higiene, construções sociais, humilhação pública, crime organizado, violentações, pobreza e abuso de drogas. 

Para ele, se alguém empregado numa profissão considerada moral sofresse destes males não seria difícil de deduzir que sofreria do mesmo tipo de traumas que apresenta uma prostituta (depressão, impulsos suicidas, abuso de drogas…) e que, portanto, os danos que a prostituição causa advêm de outros fatores.

Para ele, uma prostituição livre destes males é uma possibilidade séria e que, portanto, deve ser levada em conta.

Para chegar à conclusão de que a prostituição não é sempre maleficente, Moen parte… do princípio de que...
... o sexo causal é moral, ao contrário de Kant, ou seja, que se pode participar em atividades de foro sexual sem se envolver emocionalmente.
… de que a falsificação do orgasmo não tem consequências adversas para a prostituta, fazendo um paralelo com a profissão de ator, pois fingir também é um requisito nessa, mesmo quando há uma grande dissonância entre o que o ator sente e o que tem de aparentar sentir.
…  de que o ato de “vender o corpo” não supõe que este “arrendamento” não tenha restrições, respeitando a segurança e a integridade da(/o) prostituinte.
…  de que quando a prostituta não se encontra desesperada ou é de outro modo coagida, a prostituição não envolve mais dominância económica do que qualquer outra profissão.
… de que a procura de prostituição surge de impulsos biológicos e não de construções sociais ou patriarcais que visam a subordinação das mulheres.
… de que a prostituição não implica, forçosamente, exploração financeira, sugerindo, como exemplo, as prostitutas de luxo ou “acompanhantes”, que ganham substancialmente mais do que a maioria da população. Por exemplo, na Austrália, as prostitutas de luxo estas nos 10% mais bem pagos em termos de vencimento anual.
… do princípio de que os problemas psicológicos que atormentam muitas prostitutas se devem a fatores externos a esta.
… do princípio de que os perigos que as prostitutas enfrentam se devem, mais uma vez, a fatores externos, aos ambientes em que trabalham e a uma falta de segurança que poderia ser suplantada se a prostituição não fosse uma atividade clandestina.
… do princípio de que a prostituição nem sempre envolve o uso de força ou a fraude e que, portanto, quando se define objetificação como o uso de outrem sem o seu consentimento ou sem consideração pela outra pessoa, não é forçoso que a prostituição seja uma forma de objetificação.

 Assim, este filósofo apresenta uma posição pró-legalização, embora, tal como Stuart Mill, considere fundamental uma reforma ética necessariamente precedente de uma verdadeira reforma social.

Que objeções a esta ese?

 Esta posição é controversa e objetável, pelo que se podem colocar as seguintes questões:

- Não será utópico supor que se pode isolar o comércio do sexo dos problemas sociais e psicológicos que a acompanham?
- Não será esta posição contra - intuitiva? Todos sabemos que as prostitutas sofrem muito por serem prostitutas.
- O autor parte do princípio de que o sexo casual é ético. Será este ponto assim tão pouco controverso?



Conclusão

Como fazer sentido de toda estas conceções? 

Até que ponto se podem compatibilizar estas posições?


 Bem, provavelmente as posições que mais facilmente se compatibilizam são as de John Stuart Mill e Ole Martin Owen, já que ambos apresentam conceções éticas relativistas.

Mais difícil será compatibilizar as posições destes com a de Kant pois este vê algo de errado na prostituição em si: ao contrário de Mill e de Ole, que consideram que a prostituição pode ser uma profissão tão ou mais digna do que outra qualquer, Kant vê nela uma afronta à dignidade humana, já que, segundo este, esta reside nas diferenças que existem entre os seres humanos e os animais, e a objetificação do ser humano redu-lo à animalidade.

No entanto, é claro que Kant, Mill e Ole concordariam sob certas circunstâncias: sempre que todos considerassem que, como Kant, a prostituição implica objetificação da mulher.

A maior diferença entre Kant e os restantes pensadores está no facto de Kant considerar tal uma constante, enquanto que Mill e Ole consideram que esta é um subproduto do mau funcionamento da sociedade e da sua economia.

 Quanto a Foucault, é difícil criar paralelos entre o seu discurso e o dos restantes autores, já que no seu texto reflete sobre filosofia da história, ao explicar como fenómenos históricos criaram a prostituição moderna. Portanto, esta sua visão pode ser facilmente articulada com a de qualquer um dos restantes filósofos.

São, também, propostas soluções para este problema, que poderiam ter aplicabilidade em discussões práticas sobre como solucionar este problema social: a regulação da prostituição, a reforma social e a reforma ética dos indivíduos através do autocontrolo das emoções pela razão, da procura da satisfação destes desejos apenas em relações monogâmicas e de investimento total recíproco, pela igualdade entre homens e mulheres, pela reforma da visão do Estado e da sociedade das prostitutas, pelo desaparecimento da repressão social burguesa...

Concluindo, consideramos que este trabalho foi de grande interesse para nós pois permitiu-nos abrir os nossos horizontes ideológicos e obter uma visão mais global deste tema, compreendendo as suas implicações éticas e sociais. Estudamos ambos os extremos desta questão axiológica e procuramos chegar a um meio-termo em que se encontre a compatibilização destas. Assim, desenvolvemos uma posição crítica a propósito de um dos grandes problemas sociais da atualidade e de todos os tempos.

Globalmente, conclui-se que a prostituição, na sua forma atual, é, sem dúvida, imoral, como o atestam os muitos e trágicos relatos de numeras prostitutas e prostitutos e o estudo ético destas questões, quer seja pelas suas implicações sociais, económicas e no bem-estar físico e psíquico das prostitutas, pelo desrespeito pela dignidade humana que daí advém, das liberdades individuais ou ainda pela pobre situação socioeconómica e legal das prostitutas.

Bibliografia e Webgrafia:

Immanuel Kant, Deveres para com o corpo respetivamente ao impulso sexual
Immanuel Kant, A Filosofia do Direito
Michel Foucault, A Vontade de Saber
John Stuart Mill, Morales “The Corrupting Influence”
John Stuart Mill, The Collected Works of John Stuart Mill
John Stuart Mill, On Liberty
John Stuart Mill, On Nature
Ole Martin Moen, Is prostitution harmful?
Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo


http://www.ncgsjournal.com/

Por Gonçalo Rocha
 e Pedro Justo - alunos do 10°A




Friné o Trata de Blancas – Débora Arango (1907-2005)



OBRIGADO!

                                           Lola


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