Hyeonseo Lee speaks at Oslo Freedom Forum 2014 |
Libertação da Caverna
Coreia do Norte:
Hyeonseo Lee fugiu do "melhor país do mundo"
É uma dissidente atípica, Hyeonseo Lee,
uma norte-coreana de 37 anos. Saiu do seu país por curiosidade adolescente e já
não pôde regressar. Foi imigrante ilegal, refugiada. Viveu anos com uma
profunda crise de identidade. "Mas finalmente encontrei-me, a fazer o que
faço e como norte-coreana."
Hyeonseo Lee: "As pessoas perguntam se aquilo é mesmo assim. É
pior"
ENRIC
VIVES-RUBIO
Há uma fotografia no livro A mulher com sete nomes que
parece ter sido tirada nos anos de 1930 ou 40. A preto e branco, mostra uma
mulher com uma criança de três anos às costas, embrulhada num cobertor de
franjas. Foi tirada no estúdio de um fotógrafo por volta de 1984, na Coreia do
Norte. Devemos vê-la, antes de começarmos a ler. Ajuda no exercício de
visualizar os lugares e as cenas, o ambiente e a sociedade onde Hyeonseo Lee
viveu a primeira das suas três vidas.
Era uma vida feliz, conta a autora, que escreveu uma autobiografia que
parece um livro de História, um testemunho político que se lê como um romance.
Ela chamou "memória" ao texto que publicou para contar como
abandonou, sem querer e sem perceber o que estava a fazer, um dos países mais
opacos do mundo.
O livro tem por subtítulo História de uma refugiada da Coreia do
Norte (ed. Planeta) porque foi isso que começou por ser. "Para
sermos um dissidente temos que ter consciência do lugar onde estamos e eu já
tinha começado a perceber algumas coisas, mas tinha vivido toda a minha vida a
pensar que vivia no melhor país do mundo. Pensávamos que éramos os melhores do
mundo, os mais felizes dos seres humanos. Eu nem sequer sabia que vivia numa
ditadura. Quando se vive como na Coreia do Norte, fechados, não sabemos a
situação em que estamos", disse Lee na entrevista que deu ao PÚBLICO em
Lisboa, onde veio divulgar o livro e fazer o seu trabalho de activista que
explica/denuncia a Coreia do Norte. "A imagem que nos davam é
que fora da Coreia do Norte todos eram mendigos, nem tinham sapatos".
Em 1997, quando aos 17 anos atravessou o rio Yalu junto à sua cidade de
Hyesan e entrou no território chinês, moveu-a a curiosidade, não a crítica, a
rejeição. Queria passear no outro lado, que nas imagens da televisão chinesa
que via às escondidas em casa lhe parecia vibrante e diferente do que lhe
tinham ensinado na escola. Tinha nos planos regressar, uns dias depois, mas não
pôde ser. "O que aprendi sobre a China na televisão não tinha nada a ver
com o que contavam. A China parecia melhor, e eu comecei, ingenuamente, a pensar
passar a fronteira, sem saber que ia mudar a minha vida".
Começou por ser uma desertora, diz, a consciência de dissidente e de
activista contra o regime de Pyongyang formou-a depois, quando percebeu o
logro. "Na Coreia do Norte, a doutrinação começa logo no primeiro
dia" de escola, diz no livro. Pelo que conta, começa no primeiro dia de
vida.
Paninhos para limpar os Kim
"Toda a vida familiar, desde comer, socializar e dormir, se desenrolava sob as fotografias [do Grande Líder Kim Il-sung e do Querido Líder Kim Jong-il]. Cuidar das fotografias era o principal dever de cada família. (...) Desde tenra idade que comecei a ajudar a minha mãe a limpá-las. Usávamos um pano especial, fornecido pelo Governo, que não podia ser utilizado para limpar qualquer outra coisa. (...) Mais ou menos uma vez por mês, uma equipa de funcionários que calçava luvas brancas entrava em todas as casas do bloco para inspeccionar os retratos. Se no seu relatório constassem que uma família não os tinha limpo como devia ser, a família corria o risco de ser presa".
"Toda a vida familiar, desde comer, socializar e dormir, se desenrolava sob as fotografias [do Grande Líder Kim Il-sung e do Querido Líder Kim Jong-il]. Cuidar das fotografias era o principal dever de cada família. (...) Desde tenra idade que comecei a ajudar a minha mãe a limpá-las. Usávamos um pano especial, fornecido pelo Governo, que não podia ser utilizado para limpar qualquer outra coisa. (...) Mais ou menos uma vez por mês, uma equipa de funcionários que calçava luvas brancas entrava em todas as casas do bloco para inspeccionar os retratos. Se no seu relatório constassem que uma família não os tinha limpo como devia ser, a família corria o risco de ser presa".
O livro de Lee, retalhado em múltiplos capítulos, divide-se em três grandes
partes — nascer e crescer na Coreia do Norte, a vida de uma imigrante ilegal na
China, o percurso até à actual condição de refugiada na Coreia do Sul; três
vidas, portanto. A primeira parte é a mais suculenta, porque relatos em
primeira mão sobre a vida quotidiana no Norte são raros. Testemunhos de
dissidentes não são inéditos — perseguições, prisões, torturas —, mas Lee abre
a porta de um país que estamos habituados a olhar como estranho e de onde,
volta e meia, surgem histórias que parecem irreais, como os
paninhos de limpar o pó aos retratos dos Kim.
"As pessoas perguntam se aquilo é mesmo assim. É pior. Mas as pessoas,
os norte-coreanos, não sabem o que se passa porque não conhecem o conceito de
opressão".
"Há coisas que não podemos saber se são verdade. Mas temos, por
exemplo, a certeza de que Kim Jong-un [o actual líder] mandou matar o tio e outras pessoas do seu círculo mais próximo", diz a autora, que considera este Kim, o terceiro da História da
Coreia do Norte, o mais descontrolado e errático. "O avô dele era um
ditador terrível", diz do fundador do regime. Kim Jong-il, o filho deste e
pai do actual líder, foi um desastre para o povo e para o país, considera.
Quando Hyeonseo Lee saiu da Coreia do Norte, estava Kim Jong-il no poder. O
filho, Kim Jong-un, sucedeu-lhe quando morreu, em 2011.
Por uns instantes, os norte-coreanos que vivem fora do seu país esperaram do
novo Kim, que estudou no estrangeiro e podia ser um homem moderno, outra
espécie de governação. Hyeonseo Lee diz que o percurso que o líder está a fazer
— "está a matar toda a gente que lhe desagrada ou que procura alguma
mudança, os generais" — pode custar-lhe caro. Talvez a vida. Acredita que
Kim Jong-un é incapaz de mudar, de reformar, de melhorar a vida dos
norte-coreanos, e que o regime não resistirá muitos mais anos — este será o
último dos Kim, acredita, e com ele desaparecerá um país chamado Coreia do
Norte. "Acredito na reunificação e acredito que os que fugiram, como eu,
terão um papel importante na reconstrução do país. Quero voltar. Ali é o meu
lugar".
No livro, Lee explica como a idolatria à família Kim é construída para
alimentar a ideia de que tudo o que os norte-coreanos são se deve à dinastia e
que sem ela o povo perde o propósito de existir. São deuses, criaturas
sobrenaturais e perfeitas, e devem ser venerados como eles: "A história do
nascimento do Querido Líder Kim Jong-il provocava-me arrepios na pele. O seu
advento foi anunciado por sinais miraculosos que surgiram nos céus — um duplo
arco-íris sobre o monte Paektu, andorinhas que entoavam cânticos de louvor com
voz humana".
Na escola secundária, tinha aulas de matemática, coreano, arte, ética
comunista, russo, geografia, física e química. Mas "os temas mais
aprofundados centravam-se nas vidas e pensamentos do Grande Líder e do Querido
Líder", e nem um pormenor era deixado ao acaso na estratégia de formatação
ideológica. Problema de matemática num livro da escola de Lee: "Numa
batalha da Grande Guerra da Libertação da Pátria, três corajosos soldados do
Exército do Povo Coreano mataram trinta canalhas imperialistas americanos. Qual
foi a proporção de soldados em combate?". Os americanos, ensinaram-lhe
durante 17 anos, eram feios e cheiravam mal.
"Estamos muito magros"
Lee não esconde que percebeu muito tarde que era uma rapariga privilegiada na Coreia do Norte. Nasceu numa família com estatuto especial que tinha direito a carne e peixe às refeições e confessa que se ofendeu quando foi a casa de uma amiga e não lhe ofereceram nada para comer — ela que, quando ia a casa de Lee, se empanturrava de iguarias.
Lee não esconde que percebeu muito tarde que era uma rapariga privilegiada na Coreia do Norte. Nasceu numa família com estatuto especial que tinha direito a carne e peixe às refeições e confessa que se ofendeu quando foi a casa de uma amiga e não lhe ofereceram nada para comer — ela que, quando ia a casa de Lee, se empanturrava de iguarias.
Por entre a "normalidade", surgiam os "episódios".
Assistiu à sua primeira execução — um enforcamento público — aos sete anos, foi
ensinada a não falar de nada a não ser de trivialidades, viu vizinhos
denunciarem vizinhos, colegas espiarem colegas, famílias inteiras a
desaparecerem, levadas pela polícia política, a Bowibu.
Veneravam-se os Kim, os "olhos na parede" — "Obrigada pela
nossa comida, Respeitável Pai e Líder Kim Il-sung", dizia antes de pegar
nos pauzinhos —, mas "não havia lealdade, havia medo", diz na
entrevista Hyeonseo Lee, que também descreve os anos da grande fome da década
de 1990.
Não fala de estatísticas, de razões para a falta de alimentos, das mudanças
no mundo e nas estratégias políticas de Pyongyang. Coerente com o resto do
livro, o capítulo da grande fome é um conjunto de histórias "banais".
"Comecei a ver gente a morrer na rua. Foi um choque." Viu gente
caída de fome, corpos esqueléticos a boiar no rio, colegas de escola que
desapareceram — quando os pais deixaram de ter comida, as crianças deixaram de
ir à escola — e leu a carta que a tia escreveu a anunciar que já estava morta.
"Quando leres isto, nenhum de nós os cinco será já deste mundo. Estamos
muito magros, ainda que recentemente os nossos corpos tenham começado a inchar.
Estamos à espera da morte. O meu único desejo antes de morrer é comer um
bocadinho de bolo de milho".
"No ano de 1996 [tinha 16 anos], a cultura do nosso país mudou de
forma notória", relata no livro. "À medida que a fome alastrava,
começaram a surgir por toda a província rumores de canibalismo. Na ocasião pensei
que se deveria tratar de psicopatas, porque as pessoas nunca seriam capazes de
recorrer a isso. Agora, já não tenho tanta certeza. Depois de ter falado com
muita gente que nesse tempo esteve às portas da morte, percebi que a fome pode
levar as pessoas à loucura".
"Levei algum tempo a perceber" o que se passava, confessa no
livro. "Recordei-me como tinha sido desabrida com a minha amiga Sun-i por
não me ter oferecido nada para comer em sua casa. Senti-me envergonhada".
Sair das trevas
Na China, Lee conheceu outras pessoas como ela, imigrantes ilegais, envergonhados por serem norte-coreanos, maltratados por serem norte-coreanos, com medo de serem apanhados e deportados. Pensou no suicídio. Decidiu partir, escolheu a Coreia do Sul. "Por que razão queres ir para o país dos nossos inimigos?", perguntou-lhe a mãe.
Na China, Lee conheceu outras pessoas como ela, imigrantes ilegais, envergonhados por serem norte-coreanos, maltratados por serem norte-coreanos, com medo de serem apanhados e deportados. Pensou no suicídio. Decidiu partir, escolheu a Coreia do Sul. "Por que razão queres ir para o país dos nossos inimigos?", perguntou-lhe a mãe.
Chegou à Tailândia de avião, daí partiu para Seul:
— Sou da Coreia do Norte. Procuro asilo político.
— Bem-vinda à Coreia.
Parecia fácil. Não foi. Antes de ser oficialmente uma refugiada, houve um tempo
de prisão, de desconfiança, de espera, houve os interrogatórios para apanhar
espiões mandados por Pyongyang, a inadaptação (a mãe e o irmão, que conseguiu
fazer sair do Norte, chegaram a querer voltar, incapazes de se ajustar a uma
cultura tão diferente num país onde o norte-coreano é olhado "de cima para
baixo").
Hyeonseo Lee significa "brilho do Sol" ou "boa sorte" e
foi ela que o escolheu quando saiu das trevas. É apenas o mais recente dos sete
nomes que teve desde que nasceu. "Sim, vivi uma grande crise de identidade
até recentemente, até há três anos", diz a autora e activista anti-regime
de Pyongyang em Lisboa. Mas finalmente encontrei-me. Encontrei-me a fazer o que
faço e encontrei-me como norte-coreana".
In Publico
ANA GOMES FERREIRA
12/10/2015 - 07:49
Lola
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