Estado Islâmico
GRAEME WOOD
O autoproclamado Estado Islâmico não é um simples grupo de psicopatas. É um
grupo religioso com crenças cuidadosamente pensadas, entre elas a de que será
ele o agente do apocalipse que se aproxima. Aqui explicamos o que isso
significa para a sua estratégia — e como acabar com ela.
De onde veio e quais são as suas
intenções? A simplicidade destas perguntas pode ser enganadora e poucos líderes
ocidentais parecem saber as respostas. Em Dezembro, o New York Times publicou
declarações confidenciais do major Michael K. Nagata, o comandante de Operações
Especiais dos Estados Unidos no Médio Oriente, em que este admitia que não
conseguia perceber o autoproclamado Estado Islâmico (EI). “Não conseguimos
derrotar a ideia [por trás do movimento]”, disse. “Nem sequer conseguimos
perceber a ideia.” No último ano, o Presidente Barack Obama tem-se referido ao
Estado Islâmico ora como “não islâmico”, ora como “a equipa de novatos” da
Al-Qaeda, comentários que revelam a confusão sobre o grupo e que podem ter
contribuído para erros de estratégia grosseiros.
O EI conquistou Mossul, no Iraque, em
Junho passado, e já exerce poder sobre uma área maior do que o Reino Unido.
Desde Maio de 2010 que Abu Bakr al-Baghdadi é o seu líder, mas até ao Verão
passado, a última vez que tinha sido filmado fora sob cativeiro americano em
Camp Bucca durante a ocupação do Iraque, onde aparecia numas imagens
granuladas. Então, a 5 de Julho do ano passado, durante o Ramadão, subiu ao
púlpito da Grande Mesquita de al-Nuri, em Mossul, para um sermão em que se
autodeclarava o primeiro califa ao fim de várias gerações — fazendo um up
grade na resolução da sua imagem, que passou de granulada a alta
definição, e da sua posição de guerrilheiro fugido das autoridades a comandante
de todos os muçulmanos. O afluxo de jihadistas que se seguiu, vindo de todo o
mundo, foi inédito em ritmo e quantidade, e ainda não parou.
De certa forma, a nossa ignorância sobre
o Estado Islâmico é compreensível: é um reino obscuro e poucos foram até lá e
regressaram. Baghdadi só falou para as câmaras uma vez, mas o seu discurso e os
incontáveis vídeos de propaganda e encíclicas do EI estão acessíveis na
Internet, e os apoiantes do califado têm feito tudo o que está ao seu alcance
para dar a conhecer o seu projecto. Podemos concluir que o EI rejeita que a paz
seja uma questão de princípio; que deseja um genocídio; que as suas posições o
tornam constitucionalmente incapaz de certas mudanças, mesmo que estas garantam
a sua sobrevivência; e que se considera o agente — e actor principal — do fim
do mundo, que está iminente.
O
regozijo de um membro do EI numa parada em Raqqa, no Norte da Síria, a 30 de
Junho, para celebrar a declaração de um califado STRINGER
O Estado Islâmico, também conhecido como
Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), segue uma variante específica do
islão, cuja crença no Dia do Juízo Final tem importância na sua estratégia e
poderá ajudar o Ocidente a conhecer melhor o inimigo e prever o seu
comportamento. A sua subida ao poder é menos parecida com o triunfo da
Irmandade Muçulmana no Egipto (um grupo que os líderes do EI consideram
apóstata) do que com a realidade alternativa distópica que [os líderes de
seitas americanas] David Koresh ou Jim Jones quiseram criar para governar não
apenas umas centenas de pessoas, mas oito milhões.
Não temos sabido compreender a natureza
do Estado Islâmico. Primeiro, tendemos a ver o jihadismo como monolítico e a
aplicar a lógica da Al-Qaeda a uma organização que, sem dúvida, a ofuscou. Os
apoiantes do Estado Islâmico com quem falei ainda se referem a Osama bin Laden
como “xeque Osama”, um título honorífico. Mas o jihadismo evoluiu desde a época
áurea da Al-Qaeda, entre 1998 e 2003, e muitos jihadistas desprezam as
prioridades do grupo e a sua actual liderança.
Bin Laden encarava o seu terrorismo como
o prólogo de um califado que não contava ver realizado durante o seu tempo de
vida. A sua organização era flexível e operava como uma rede geograficamente dispersa
de células autónomas. Pelo contrário, o Estado Islâmico precisa de território
para se legitimar e de uma estrutura hierarquizada que o governe. (A sua
burocracia divide-se nos ramos civil e militar, e o seu território em
províncias.)
A segunda razão pela qual não o
compreendemos tem que ver com uma campanha bem intencionada mas desonesta que
nega ao EI a sua natureza religiosa medieval. Peter Bergen, que em 1997 fez a
primeira entrevista a Bin Laden, intitulou o seu primeiro livro de Holy
War, Inc., em parte por reconhecer Bin Laden como uma figura do mundo
secular moderno. Bin Laden corporatizava o terror e fez dele um franchising.
Exigia concessões políticas específicas, tal como a retirada das forças
americanas da Arábia Saudita. Os seus soldados rasos moviam-se com confiança no
mundo moderno. Na véspera de morrer, Mohamed Atta [um dos atacantes do 11 de
Setembro] fez compras no Walmart e jantou na Pizza Hut.
É uma tentação fazer encaixar no Estado
Islâmico a observação de que os jihadistas são pessoas seculares modernas, com
preocupações políticas modernas, vestidas com disfarces religiosos medievais.
Na realidade, muito daquilo que o grupo faz parece ilógico, a não ser que seja
analisado à luz do seu empenho sincero e cuidadosamente arquitectado em
transportar a civilização para um ambiente do século VII e da crença de que
será o portador do apocalipse.
Os porta-vozes mais articulados dessa
intenção são os próprios responsáveis e apoiantes do Estado Islâmico. Falam com
gozo dos “modernos”. Em conversas, insistem que não irão — nem podem —
afastar-se dos conceitos de governação integrados no islão pelo profeta Maomé e
os seus primeiros seguidores. Falam frequentemente em código e com alusões que
parecem estranhas ou antiquadas a não-muçulmanos e que se referem a tradições e
textos específicos do islão dos primórdios.
Para dar um exemplo: em Setembro, o
xeque Abu Muhammad al-Adnani, o principal porta-voz do Estado Islâmico, apelou
aos muçulmanos dos países ocidentais, como a França e o Canadá, a encontrarem
um infiel e “esmagarem a sua cabeça com uma pedra”, envenenarem-no,
atropelarem-no com um carro ou “destruírem as suas colheitas”. Aos ouvidos
ocidentais, os castigos de pendor bíblico — o apedrejamento e a destruição de
colheitas — justapõem-se estranhamente ao seu incitamento mais modernizado de
homicídio com um veículo. (E como se pretendesse mostrar que pode aterrorizar
usando apenas o imaginário, Adnani chamou o secretário de Estado
norte-americano, John Kerry, “ancião não circuncidado”.)
Mas Adnani não estava a dizer apenas
inutilidades. O seu discurso estava entrelaçado de fundamentos jurídicos e
teológicos, e o seu apelo à destruição de colheitas ecoa ordens de Maomé para
que se deixasse os poços de água e as colheitas dos inimigos em paz — a não ser
que os exércitos do islão se encontrassem numa posição defensiva, e nesse caso
os muçulmanos nas terras dos kuffar, ou infiéis, deveriam ser
impiedosos e envenenar à vontade.
A realidade é que o Estado Islâmico é
islâmico. Muito islâmico. Sim, tem atraído psicopatas e pessoas à procura de
aventura, saídos sobretudo das populações marginalizadas do Médio Oriente e da
Europa. Mas a religião pregada pelos seus mais fervorosos seguidores vem de uma
interpretação coerente do islão.
Abu Bakr al-Baghdadi no célebre sermão em Mossul
durante o qual se
autoproclamou califa REUTERS
TV
Praticamente todas as grandes decisões e
leis promulgadas pelo Estado Islâmico aderem ao que chama — na sua imprensa e
nas suas declarações, nos seus painéis informativos, matrículas, material de
escritório e moedas — “metodologia profética”, o que significa seguir
rigorosamente a profecia e o exemplo de Maomé. Os muçulmanos podem rejeitar o
Estado Islâmico; quase todos fazem-no. Mas fingir que não é verdadeiramente um
grupo religioso e milenar, com uma teologia que tem de ser compreendida para
ser combatida, já levou os Estados Unidos a subestimá-lo e a apoiar esquemas
tontos para o debelar. Temos de entender a genealogia intelectual do Estado
Islâmico se queremos uma resposta que não o fortaleça ainda mais mas que o
ajude a auto-imular-se pelo seu próprio excesso de zelo.
I. Devoção
Em Novembro, o Estado Islâmico publicou um vídeo tipo info-comercial a ligar as suas origens a Bin Laden. Reconheceu Abu Mussab al-Zarqawi, o líder brutal da Al-Qaeda no Iraque entre 2003 até à sua morte, em 2006, como um progenitor mais directo, seguido sequencialmente por outros líderes guerrilheiros antes de chegar a Baghdadi, o califa. Uma omissão assinalável: o sucessor de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, o cirurgião oftalmológico egípcio que actualmente lidera a Al-Qaeda. Zawahiri não jurou obediência a Baghdadi e é cada vez mais odiado pelos seus colegas jihadistas. Para o seu isolamento, não ajuda a sua falta de carisma; nos vídeos parece sempre estar aborrecido. Mas a separação entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico há muito que vem sendo fabricada e ajuda, pelo menos em parte, a explicar os excessos sanguinários do EI.
Em Novembro, o Estado Islâmico publicou um vídeo tipo info-comercial a ligar as suas origens a Bin Laden. Reconheceu Abu Mussab al-Zarqawi, o líder brutal da Al-Qaeda no Iraque entre 2003 até à sua morte, em 2006, como um progenitor mais directo, seguido sequencialmente por outros líderes guerrilheiros antes de chegar a Baghdadi, o califa. Uma omissão assinalável: o sucessor de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, o cirurgião oftalmológico egípcio que actualmente lidera a Al-Qaeda. Zawahiri não jurou obediência a Baghdadi e é cada vez mais odiado pelos seus colegas jihadistas. Para o seu isolamento, não ajuda a sua falta de carisma; nos vídeos parece sempre estar aborrecido. Mas a separação entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico há muito que vem sendo fabricada e ajuda, pelo menos em parte, a explicar os excessos sanguinários do EI.
O companheiro de isolamento de Zawahiri
é um religioso jordano chamado Abu Muhammad al-Maqdisi, de 55 anos, que será o
arquitecto intelectual da Al-Qaeda e que é o mais importante jihadista
desconhecido do público americano. Maqdisi e o EI estão de acordo na maior
parte das questões doutrinárias. Ambos se identificam com a ala jihadista de um
ramo do sunismo chamado salafismo, do árabe al salaf al salih, os
“fundadores devotos”. Ou seja, o próprio Maomé e os seus primeiros seguidores,
que os salafistas honram e seguem como modelo de todo e qualquer comportamento,
incluindo a guerra, as vestes, a vida familiar, até os cuidados com os dentes.
Maqdisi ensinou Zarqawi, que partiu para
a guerra no Iraque com os seus conselhos em mente. Mas, com o tempo, Zarqawi
excedeu o fanatismo do seu mestre e foi criticado por ele. Isto devido ao seu
gosto por espectáculos sanguinários — e, do ponto de vista doutrinário, o seu
ódio aos outros muçulmanos, a ponto de os excomungar e matar. No islão, a
prática do takfir, ou excomunhão, é teologicamente perigosa. “Se um
homem diz ao seu irmão ‘és um infiel’, então um deles está certo”, diz o
profeta. Se o acusador estiver errado, ele próprio cometeu apostasia ao fazer
uma falsa acusação. O castigo da apostasia é a morte. Zarqawi alargou sem temor
o tipo de comportamentos que tornam os muçulmanos infiéis.
Maqdisi escreveu ao seu antigo discípulo
dizendo-lhe que precisava de ser mais cauteloso e “não fazer proclamações cegas
de takfir”, ou “proclamar as pessoas como apóstatas devido aos seus
pecados”. A diferença entre um apóstata e um pecador pode parecer subtil, mas é
um ponto fundamental da divergência entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico.
Negar a santidade do Corão ou as
profecias de Maomé é claramente uma apostasia. Mas Zarqawi e os seus
companheiros consideram que muitas outras acções podem afastar um muçulmano do
islão. Estas incluem, em alguns casos, vender álcool ou drogas, usar roupas
ocidentais ou rapar a barba, votar em eleições — mesmo se for num candidato
muçulmano — ou ser-se laxista na acusação de apostasia. Ser xiita, como são a
maioria dos árabes iraquianos, também encaixa nos critérios, porque o Estado
Islâmico encara o xiismo como uma inovação e inovar no Corão é negar a sua
perfeição inicial. (O Estado Islâmico defende que algumas práticas comuns dos
xiitas, como a adoração em alguns túmulos de imãs e a autoflagelação pública,
não têm base no Corão nem no exemplo do profeta.) Isto significa que cerca de
200 milhões de xiitas estão marcados para morrer. Tal como os chefes de Estado
de todos os países muçulmanos, que elevaram as leis feitas pelos homens acima
dasharia, concorrendo ao cargo ou aprovando leis que não foram feitas
por Deus.
Seguindo a doutrina takfiri,
o Estado Islâmico compromete-se a purificar o mundo matando um número elevado
de pessoas. A falta de objectividade das notícias vindas do seu território
torna desconhecida a verdadeira extensão da chacina, mas os comentários feitos
nas redes sociais na região sugerem que as execuções individuais acontecem mais
ou menos continuamente, e as execuções em massa são separadas por poucas
semanas. Os “apóstatas” muçulmanos são as vítimas mais comuns. Isentos das execuções
sumárias estão os cristãos que não resistirem ao novo governo. Baghdadi
permite-lhes viver, desde que paguem uma taxa especial, conhecida como jizya,
e reconheçam a sua subjugação. A autoridade corânica para esta prática não é
questionada.
Zawahiri não jurou obediência a Baghdadi e é cada vez mais odiado
pelos
seus colegas jihadistas REUTERS
Zarqawi alargou sem temor o tipo de comportamentos que
tornam os muçulmanos
infiéis REUTERS/IGCD
As guerras religiosas na Europa já
acabaram há séculos e desde então que os homens deixaram de morrer em larga
escala devido a obscuras disputas teológicas. Daí talvez a incredulidade e a
negação com que os ocidentais receberam as notícias das práticas e da teologia
do Estado Islâmico. Muitos recusam-se a acreditar que este grupo é tão
religioso como diz ser, ou tão antiquado e apocalíptico como as suas acções
sugerem.
O cepticismo é compreensível. No
passado, os ocidentais que acusavam os muçulmanos de seguir cegamente as
escrituras antigas eram criticados por académicos — nomeadamente o falecido
Edward Said — que afirmavam que chamar antiquados aos muçulmanos era geralmente
apenas mais uma maneira de os denegrir. Em vez disso, defendiam estes
académicos, olhe-se para as condições em que estas ideologias se formam — má
governação, mudanças de costumes, a humilhação de viver em terras que apenas
são valorizadas pelo seu petróleo.
Sem o reconhecimento destes factores,
nenhuma explicação para o crescimento do Estado Islâmico ficará completa. Mas
se nos focarmos apenas neles e excluirmos a ideologia estamos a incorrer noutro
tipo de desvio ocidental: o de que se a ideologia religiosa não quer dizer
muito em Washington ou Berlim, seguramente será igualmente irrelevante em Raqqa
ou Mossul. Quando um carrasco com uma máscara diz Allahu Akbar enquanto
decapita um apóstata, às vezes fá-lo por razões religiosas.
Muitas organizações religiosas
muçulmanas não radicais foram ao ponto de dizer que o Estado Islâmico é, na
verdade, não islâmico. Claro que é reconfortante saber que a vasta maioria dos
muçulmanos não tem qualquer interesse em substituir os filmes de Hollywood por
execuções públicas como entretenimento nocturno. Mas, como diz o académico de
Princeton Bernard Haykel, o grande especialista na teologia do grupo, os
muçulmanos que dizem que o Estado Islâmico não é islâmico estão “envergonhados
e a ser politicamente correctos, com uma perspectiva cor-de-rosa da sua própria
religião”, que negligencia “o que histórica e juridicamente a sua religião
exigiu”. Muitas das negações da natureza religiosa do Estado Islâmico, afirma
ele, estão enraizadas numa “tradição cristã de um disparatado diálogo
inter-religioso”.
Todos os académicos a quem fiz perguntas
sobre o EI me mandaram falar com Haykel. Na voz que sai da sua barbicha
mefistofélica há um ligeiro sotaque estrangeiro de uma localização indefinida.
Segundo Haykel, as fileiras do Estado
Islâmico estão profundamente impregnadas de fervor religioso. Há citações do
Corão por toda a parte. “Mesmo os soldados rasos veiculam estas coisas
constantemente”, diz Haykel. “Olham para as câmaras e repetem as suas doutrinas
básicas como uma fórmula, e fazem-no a toda a hora.” Encara a afirmação de que
o Estado Islâmico distorceu os textos do islão como uma coisa ridícula, apenas
justificada por uma enorme ignorância. “As pessoas querem absolver o islão”,
comenta. “É aquele mantra ‘o islão é uma religião de paz’. Como se houvesse uma
coisa como ‘o islão’! É aquilo que os muçulmanos fazem e a forma como
interpretam os seus textos.” Esses textos são partilhados por todos os
muçulmanos sunitas, não apenas pelo Estado Islâmico. “E estes tipos têm tanta
legitimidade como quaisquer outros.”
Todos os muçulmanos reconhecem que as
primeiras conquistas de Maomé não foram limpas e que as leis da guerra
transmitidas no Corão e nas narrativas sobre a governação do profeta foram
calibradas para encaixar numa época turbulenta e violenta. Pelas estimativas de
Haykel, os combatentes do EI retrocederam ao islão inicial e estão a reproduzir
fielmente as suas regras de guerra. Este comportamento inclui uma série de
práticas que os muçulmanos modernos tendencialmente se recusam a admitir que
são parte integrante dos textos sagrados. “A escravatura, a crucificação e as
decapitações não são uma coisa que uns amalucados [jihadistas] escolheram
selectivamente no meio de uma tradição medieval”, comenta. Os combatentes do EI
“mergulharam numa tradição medieval e estão a querer trazê-la inteira para a
actualidade”.
O Corão refere especificamente que a
crucificação é um dos poucos castigos permitidos aos inimigos do islão. A taxa
aos cristãos encontra um apoio claro no Surah al-Tawbah, o nono
capítulo do Corão, que encoraja os muçulmanos a combater os cristãos e judeus
“até que estes paguem a jizya com uma submissão voluntária, e
se sintam eles próprios subjugados”. O profeta, que todos os muçulmanos
consideram exemplar, impôs estas regras e possuía escravos.
Os líderes do Estado Islâmico consideram
ser seu estrito dever copiar Maomé e reavivaram tradições que há centenas de
anos estavam adormecidas. “O que é espantoso neles não é só o seu literalismo,
mas também a seriedade com que lêem estes textos”, diz Haykel. “Há uma
seriedade obsessiva e constante que os muçulmanos normalmente não têm.”
Até ao aparecimento do Estado Islâmico,
nenhum grupo nos últimos séculos tentara uma fidelidade tão radical ao modelo
profético para além dos wahhabitas da Arábia do século XVIII.
Conquistaram a maior parte do que é agora a Arábia Saudita, e as suas práticas
estritas sobreviveram ali numa versão diluída da sharia. Mas Haykel
aponta para uma distinção importante entre os grupos: “Oswahhabitas não
eram exuberantes na sua violência.” Estavam rodeados de muçulmanos e
conquistaram terras que já eram islâmicas. “O ISIS, pelo contrário, está
realmente a querer reavivar o período inicial.” Os primeiros muçulmanos estavam
rodeados de não muçulmanos, e o Estado Islâmico, devido às suas tendências takfiri,
considera-se na mesma situação.
Se a Al-Qaeda quis recuperar a
escravatura, nunca o disse. E porque haveria de querer? O silêncio sobre a
escravatura reflecte provavelmente um pensamento estratégico, com a necessidade
de atrair a simpatia popular: quando o EI começou a escravizar pessoas, até
alguns dos seus apoiantes se retraíram. Ainda assim, o califado continuou a
abraçar a escravatura e a crucificação sem se desculpabilizar. “Vamos conquistar
a vossa Roma, quebrar os vossos crucifixos e escravizar as vossas mulheres”,
prometeu Adnani, o porta-voz, numa das suas ameaças periódicas ao Ocidente. “Se
não o fizermos a tempo, então os nossos filhos e netos o farão e venderão os
vossos filhos como escravos no mercado de escravos.”
Em Outubro, a Dabiq, a
revista do EI, publicou A Ressuscitação da Escravatura Antes da Hora,
um artigo que questionava se os yazidis (membros de uma seita
antiga curdófona que foi buscar alguns elementos ao islão e que foi atacada por
forças do EI no Norte do Iraque) são muçulmanos seculares, e portanto marcados
para a morte, ou meros pagãos e por isso prontos para serem escravizados. Um
grupo de estudo de académicos do EI reuniu-se, sob ordens do governo, para
resolver a questão. Se são pagãos, escreveu o autor anónimo do artigo, “as
mulheres e crianças yazidi, [devem ser] divididas de acordo
com a sharia entre os que combatem pelo Estado Islâmico que
participaram nas operações de Sinjar [no Norte do Iraque]... Escravizar as
famílias dos kuffar [infiéis] e tomar as suas mulheres como
concubinas é um dos aspectos determinados pela sharia e, se
alguém o negar ou gracejar, estará a negar ou gracejar dos versículos do Corão
e das palavras do profeta... e por isso a ser apóstata do islão”.
Uma
mulher com o Corão aberto. O EI vai ao início do islão buscar a sua inspiração MOHAMMED SALEM/REUTERS
II. Território
Calcula-se que dezenas de milhares de muçulmanos estrangeiros terão emigrado para o Estado Islâmico. Houve recrutamentos a partir de França, Reino Unido, Bélgica, Alemanha, Holanda, Austrália, Indonésia, Estados Unidos e outros locais importantes. Muitos foram para lutar e muitos tencionam morrer.
Calcula-se que dezenas de milhares de muçulmanos estrangeiros terão emigrado para o Estado Islâmico. Houve recrutamentos a partir de França, Reino Unido, Bélgica, Alemanha, Holanda, Austrália, Indonésia, Estados Unidos e outros locais importantes. Muitos foram para lutar e muitos tencionam morrer.
Peter R. Neumann, professor no King’s
College em Londres, disse-me que as comunicações onlinetêm sido
essenciais para espalhar a propaganda e garantir que os recém-chegados sabem em
que acreditar. O recrutamento feito pela Internet também tem alargado a
demografia da comunidade de jihadistas, permitindo que muçulmanas conservadoras
— fisicamente isoladas nas suas casas — cheguem a recrutas, se radicalizem e
arranjem transporte para a Síria. Apelando a ambos os géneros, o EI espera
construir uma sociedade completa.
Em Novembro, fui à Austrália para me
encontrar com Musa Cerantonio, um homem de 30 anos que Neumann e outros
investigadores identificaram como uma das mais importantes “autoridades
espirituais emergentes” na condução de estrangeiros ao Estado Islâmico. Durante
três anos era tele-envagelista na Iqraa TV do Cairo, mas saiu depois de a
estação ter objectado aos seus apelos frequentes à criação de um califado.
Agora prega no Facebook e no Twitter.
Cerantonio — um homem grande e amigável
com uma atitude livresca — diz que empalidece perante os vídeos das
decapitações. Odeia ver a violência, ainda que os apoiantes do Estado Islâmico
sejam obrigados a apoiá-la. (E, o que é controverso entre jihadistas, repudia
os bombardeamentos suicidas, na medida em que Deus proíbe o suicídio; difere do
EI também em mais alguns pontos.) Tem o tipo de barba que usam alguns fãs mais
crescidos do Senhor dos Anéis e a sua obsessão com o
apocaliptismo islâmico soa familiar. Parece estar a viver um drama que visto de
fora, sob a perspectiva de um estrangeiro, se assemelha a um romance de
fantasia medieval, só que com sangue a sério.
Em Junho passado, Cerantonio e a mulher
tentaram emigrar — não disse para onde (“é ilegal ir para a Síria”, afirmou
cautelosamente) — mas foram apanhados no caminho, nas Filipinas, e deportados
para a Austrália, que criminalizou as tentativas de aderir ou viajar para o
Estado Islâmico e por isso lhe confiscou o passaporte. Está preso em Melbourne,
onde é conhecido das autoridades locais. Se for apanhado a facilitar a
movimentação de indivíduos para o EI, será preso. Mas para já continua em
liberdade — um ideólogo que tecnicamente não está filiado mas que ainda assim,
para os outros jihadistas, fala com autoridade sobre a doutrina do Estado
Islâmico.
Encontrámo-nos para almoçar em
Footscray, um subúrbio densamente povoado e multicultural de Melbourne, onde
está a sede do Lonely Planet, a editora de guias de viagens. Cerantonio cresceu
ali numa família meio irlandesa, meio italiana, da Calábria. Numa rua normal encontramos
restaurantes africanos, lojas vietnamitas e jovens árabes a andar de uniforme
salafista: barba comprida, camisa longa e calças pelo meio da canela.
Cerantonio explica a alegria que sentiu
quando Bahgdadi foi declarado califa, a 29 de Junho — e a súbita atracção
magnética que a Mesopotâmia começou a exercer sobre ele e os seus amigos.
“Estava num hotel [nas Filipinas] e vi a declaração pela televisão”, conta. “E
fiquei simplesmente pasmado, do tipo: ‘O que é que estou a fazer fechado neste
maldito quarto?’”
O último califado foi o Império Otomano,
que conheceu o seu apogeu no século XVI e que depois entrou num longo declínio,
até o fundador da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk, acabar com ele
de vez, em 1924. Mas Cerantonio, como muitos apoiantes do Estado Islâmico, não
reconhece legitimidade a esse califado, porque não instaurou totalmente e lei
islâmica, que exige apedrejamentos e escravatura e amputações, e porque os
califas não descendiam directamente da tribo do profeta, a Quraysh.
Baghdadi falou detalhadamente da
importância do califado no seu sermão em Mossul. Disse que para reavivar a
instituição do califado — que há mil anos que não existia, excepto de nome —
era uma obrigação. Ele e os seus fiéis foram “céleres a declarar o califado e a
colocar um imã” na sua chefia, diz. “Isto é um dever dos muçulmanos — um dever
que durante séculos se perdeu... Os muçulmanos pecam ao perdê-lo e devem sempre
procurar restabelecê-lo.” Como Bin Laden antes dele, Baghdadi fala com
floreados, com referências frequentes às escrituras e com controlo sobre a
retórica clássica. Ao contrário de Bin Laden, e desses falsos califas do
Império Otomano, ele é Quraysh.
Musa Cerantonio no canal islâmico Peace TV. O líder islamista diz
empalidecer com os vídeos das decapitações DR
O califado, diz-me Cerantonio, não é
apenas uma entidade política, mas também um veículo de salvação. A propaganda
do EI noticia regularmente as declarações de baya’a (fidelidade)
vindas de grupos jihadistas de todo o mundo muçulmano. Cerantonio cita um
ditado do profeta: morrer sem prestar fidelidade é morrer jahil (ignorante)
e por isso morrer “da morte da descrença”. Os muçulmanos (e também, neste caso,
os cristãos) imaginam negociações entre Deus e as almas dos que morrem sem
conhecer a verdadeira religião — não são obviamente salvas nem definitivamente
condenadas. Da mesma forma, diz Cerantonio, um muçulmano que reconhece um Deus
omnipotente e que reza, mas que morre sem jurar fidelidade a um califa legítimo
e descurando as obrigações desse juramento, não tem uma vida totalmente
islâmica. Refiro que isto significa que a grande maioria dos muçulmanos ao
longo da história, e todos os que morreram entre 1924 e 2014, tiveram uma morte
de descrença. Cerantonio assentiu com firmeza. “Vou ao ponto de dizer que o
islão foi restabelecido” pelo califado.
Pergunto-lhe sobre o seu próprio baya’a e
ele rapidamente me corrige: “Eu não disse que iria jurar fidelidade.” Segundo a
lei australiana, recorda-me ele, é ilegal prestar baya’a ao
Estado Islâmico. “Mas concordo que Baghdadi preenche os critérios”, continua.
“Eu vou pestanejar para si, e você depreende o que quiser.”
Ser califa implica cumprir uma série de
condições impostas pela lei islâmica — ser adulto de ascendência quraysh;
ter legitimidade moral e integridade física e mental; e ter amr, ou
autoridade. Este último critério, diz Cerantonio, é o mais difícil de cumprir e
requer que o califa tenha território no qual possa exercer a lei islâmica. O EI
de Baghdadi conseguiu isso muito antes de 29 de Junho, diz Cerantonio, e assim
que o fez, um convertido ocidental que faz parte da hierarquia — descreve-o
como “uma espécie de líder” — começou a murmurar sobre a obrigação religiosa de
declarar um califado. Ele e outros falaram discretamente para os que estavam no
poder, dizendo-lhes que adiar isso por mais tempo seria pecaminoso.
Cerantonio diz que apareceu uma facção
preparada para combater o grupo de Baghdadi caso este adiasse ainda mais.
Prepararam uma carta para vários membros poderosos do ISIS dando conta do seu
desagrado pelo falhanço de nomear um califa, mas foram apaziguados por Adnani,
o porta-voz, que partilhou com eles um segredo: que o califado já tinha sido
declarado, muito antes do anúncio público. Eles tinham o seu califa legítimo e nessa
altura só havia uma opção: “Se ele é legítimo, é preciso dar-lhe o baya’a”,
afirma Cerantonio.
Depois do sermão de Julho de Baghdadi,
uma série de jihadistas começaram a chegar diariamente à Síria com uma
motivação renovada. Jürgen Todenhöfer, um autor alemão e antigo político que
visitou o Estado Islâmico em Dezembro, deu conta da chegada de cem combatentes
num centro de recrutamento na fronteira turca em apenas dois dias. O seu
relato, entre outros, sugere uma afluência constante de estrangeiros, prontos
para desistir de tudo na sua terra por um vislumbre do paraíso no pior sítio do
mundo.
Fonte:
www.understandingwar.org PÚBLICO
Em Londres, uma semana antes do meu
almoço com Cerantonio, encontrei-me com três antigos membros de um grupo
islamista chamado Al Muhajiroun (Os Emigrantes): Anjem
Choudary, Abu Baraa e Abdul Muhid. Todos manifestaram o seu desejo de emigrar
para o Estado Islâmico, tal como já tinham feito muitos dos seus colegas, mas
as autoridades confiscaram os seus passaportes. Como Cerantonio, encaram o
califado como o único governo legítimo da Terra, embora nenhum tenha confessado
ter já jurado obediência. A principal razão pela qual quiseram encontrar-se
comigo foi para me explicar aquilo que o EI defende e como as suas políticas reflectem
a lei de Deus.
Choudary, de 48 anos, é o antigo líder
do grupo. Aparece frequentemente nas notícias por cabo, porque é uma das poucas
pessoas que os produtores podem agendar para uma entrevista e que defenderá o
EI a vociferar até que o microfone seja cortado. No Reino Unido, tem fama de
ser um opinativo desagradável, mas ele e os seus discípulos acreditam
sinceramente no Estado Islâmico e, em assuntos de doutrina, falam com a mesma
voz. Choudary e os outros destacam-se nos feeds dos residentes
do EI no Twitter, e Abu Baraa mantém um canal no YouTube para responder a
perguntas sobre a sharia.
Desde Setembro que as autoridades têm
investigado os três homens suspeitos de apoiar o terrorismo. Por causa desta
investigação, tiveram de se encontrar comigo em separado: a comunicação entre
eles violaria os termos da sua liberdade condicional. Mas falar com eles foi
como falar com uma única pessoa, com máscaras diferentes. Choudary foi ter a
uma loja de doces no subúrbio de Ilford, no Leste de Londres. Estava bem
vestido, com uma túnica azul que lhe chegava praticamente aos tornozelos, e
bebericava um Red Bull enquanto falava.
Antes do califado, “talvez 85% da sharia estava
ausente das nossas vidas”, diz-me. “Estas leis estavam suspensas até termos o khilafa”
— um califado — “e agora temos um.” Sem um califado, por exemplo, vigilantes
individuais não são obrigados a amputar as mãos dos ladrões que apanham em
flagrante. Mas criando-o, esta lei, tal como um gigantesco corpo de outra
jurisprudência, despertará subitamente. Em teoria, todos os muçulmanos são
obrigados a emigrar para o país onde o califa está a aplicar estas leis. Um dos
estudantes premiados de Choudary, um convertido do hinduísmo chamado Abu
Rumaysah, fugiu da polícia e levou a sua família, de cinco pessoas, de Londres
para a Síria, em Novembro. No dia em que me encontrei com Choudary, Abu Rumaysah
tinha posto no Twitter uma fotografia de si próprio com uma kalashnikov num
braço e o seu filho recém-nascido no outro. Hashtag: #GenerationKhilafah.
O califa é obrigado a implementar a sharia.
Qualquer desvio levará aqueles que lhe juraram fidelidade a informá-lo em
privado do seu erro e, em casos extremos, caso ele persista, a excomungá-lo e
substituí-lo. (“Fui contagiado com esta grande questão, contagiado com esta
responsabilidade e é uma responsabilidade pesada”, disse Baghdadi no seu
sermão.) Em troca, o califa exige obediência — e aqueles que insistem em apoiar
governos não muçulmanos, depois de serem avisados e educados sobre o seu
pecado, são considerados apóstatas.
Choudary afirma que a sharia tem
sido mal compreendida por ser aplicada apenas parcialmente por regimes como a
Arábia Saudita, apesar de decapitar assassinos e cortar as mãos a ladrões. “O
problema”, explica, “é que quando lugares como a Arábia Saudita apenas aplicam
o código penal, e não providenciam a justiça económica e social da sharia —
o pacote completo —, estão apenas a gerar ódio contra a sharia.” O
pacote completo, diz, incluiria habitação gratuita, alimentação e roupas para
todos, sendo que qualquer pessoa que quiser enriquecer através do trabalho
pode, evidentemente, fazê-lo.
Abdul Muhdi, de 32 anos, segue a mesma
linha. Chega ao restaurante local onde marcámos encontro vestido como um mujahedin (combatente)
puro: barba desalinhada, boné afegão, uma carteira pendurada na roupa presa ao
que parece ser um coldre. Quando nos sentamos, mostra-se desejoso de falar
sobre o apoio social. O Estado Islâmico pode ter castigos de estilo medieval
para crimes morais (chicotadas por embriaguez ou fornicação, apedrejamento para
adultério), mas o seu programa de assistência social é, no mínimo em alguns
aspectos, progressista. A assistência social é gratuita, declara. (“Não é
também gratuita no Reino Unido?”, pergunto-lhe. “Na realidade não”, responde.
“Alguns aspectos não estão cobertos, como a visão.”) Esta assistência social
não é uma política escolhida pelo EI, adianta. É uma política obrigatória
inerente à lei de Deus.
III. O Apocalipse
Todos os muçulmanos reconhecem que Deus é o único que sabe o futuro. Mas também concordam que nos ofereceu um vislumbre, no Corão e nas palavras do profeta. O Estado Islâmico difere de praticamente todas as outras correntes actuais do movimento jihadista ao acreditar que o futuro está traçado nas escrituras divinas e é a sua personagem central. É aqui que o EI se distingue claramente dos seus antecessores, e é mais claro quanto à natureza religiosa da sua missão.
Todos os muçulmanos reconhecem que Deus é o único que sabe o futuro. Mas também concordam que nos ofereceu um vislumbre, no Corão e nas palavras do profeta. O Estado Islâmico difere de praticamente todas as outras correntes actuais do movimento jihadista ao acreditar que o futuro está traçado nas escrituras divinas e é a sua personagem central. É aqui que o EI se distingue claramente dos seus antecessores, e é mais claro quanto à natureza religiosa da sua missão.
Em traços gerais, a Al-Qaeda comporta-se
como um movimento político clandestino, tendo sempre em vista objectivos
globais — a expulsão dos não muçulmanos da península Arábica, a abolição do
Estado de Israel, o fim ao apoio às ditaduras nas terras muçulmanas. O EI tem a
sua quota-parte de preocupações mundanas (incluindo, nas terras onde governa,
recolher o lixo e manter a água a correr), mas o Fim dos Tempos é o leitmotiv da
sua propaganda. Bin Laden raramente mencionou o apocalipse e quando o fez deu a
entender que quando chegasse esse momento de castigo divino ele estaria morto
há muito tempo. “Bin Laden e Zawahiri são de famílias sunitas da elite que
olhavam com sobranceria para este tipo de especulação e achavam que era uma
coisa do povo”, diz Will McCants do Brookings Institution e que está a escrever
um livro sobre o pensamento apocalíptico do EI.
Durante os últimos anos da ocupação
americana do Iraque, os fundadores do EI viam, pelo contrário, sinais do fim
dos tempos por toda a parte. Anteciparam que, no prazo de um ano, chegaria o
Mahdi, uma figura messiânica que levaria os muçulmanos à vitória antes do fim
do mundo. McCants diz que uma responsável islamista importante foi ter com Bin
Laden em 2008 para o avisar de que o grupo estava a ser liderado por homens que
“falavam a toda a hora do Mahdi e que tomavam decisões estratégicas” baseadas
na data em que eles pensavam que o Mahdi iria chegar. “A Al-Qaeda teve de
escrever-lhes a dizer: ‘Parem com isso’.”
Para alguns verdadeiros crentes — o tipo
de crentes que anseia por batalhas épicas do bem contra o mal —, as visões de
banhos de sangue do apocalipse preenchem necessidades psicológicas profundas.
De todos os apoiantes do EI que conheci, Cerantonio, o australiano, era aquele
que mostrava mais interesse no apocalipse e de como seriam os dias que restavam
ao EI — e ao mundo. Uma parte dessa previsão é nova para ele e ainda não tem o
estatuto de doutrina. Mas outra parte baseia-se em fontes sunitas mainstream e
aparecem em toda a propaganda do EI. Esta inclui a crença de que haverá apenas
12 califas legítimos e que Baghdadi é o oitavo; que os exércitos de Roma se
juntarão para combater contra os exércitos do islão no Norte da Síria; e que o
último confronto do islão com um anti-Messias será em Jerusalém depois de uma
nova conquista islâmica.
O EI atribuiu uma grande importância à
cidade síria de Dabiq, perto de Alepo. Deu o seu nome à sua revista de
propaganda e celebrou intensamente quando (a grande custo) conquistou os
planaltos sem valor estratégico de Dabiq. O profeta terá dito que será aqui que
os exércitos de Roma irão acampar. Os exércitos do islão encontrar-se-ão com
eles, e Dabiq será a Waterloo de Roma, ou a sua Antietam [a batalha mais
sangrenta da guerra civil americana].
“Dabiq é basicamente uma zona de cultivo
agrícola”, twittou recentemente um apoiante do EI. “Conseguimos imaginar
grandes batalhas ali.” A propaganda do EI fala com ansiedade deste
acontecimento e dá a entender que ele chegará em breve. A revista cita Zarqawi:
“A fagulha foi acesa aqui no Iraque e a sua chama continuará a
intensificar-se... até incendiar os exércitos dos cruzados em Dabiq.” Um vídeo
recente mostra imagens de filmes de guerra de Hollywood passados na época
medieval — talvez porque muitas das profecias referem que os exércitos estarão
montados a cavalo e a carregar armas antigas.
Agora que tomou Dabiq, o EI espera a chegada do exército inimigo ali, cuja derrota vai iniciar a contagem decrescente para o apocalipse. Os media ocidentais deixam escapar frequentemente as referências a Dabiq feitas nos vídeos do EI e focam-se em vez disso nas cenas vívidas das decapitações. “Aqui estamos nós a enterrar o primeiro cruzado americano em Dabiq, esperando ansiosamente que chegue o resto dos vossos exércitos”, dizia um carrasco de máscara num vídeo publicado em Novembro, onde se mostrava a cabeça decapitada de Peter (Abdul Rahman) Kassig, o assistente humanitário que estava sequestrado há mais de um ano. Durante os confrontos no Iraque em Dezembro, depois de mujahedin terem dito (talvez incorrectamente) que viram soldados americanos em combate, as contas de Twitter do EI irromperam em regozijo, como anfitriões que esperam com excesso de entusiasmo os convidados para uma festa.
A narrativa profética que prevê a
batalha de Dabiq refere-se ao inimigo como Roma. Quem é “Roma”, agora que o
Papa não tem exército, é um assunto em debate. Cerantonio sustenta que Roma
significa o Império Romano do Oriente, que tinha a sua capital naquela que
agora é Istambul. Devemos pensar em Roma como a República da Turquia — a mesma
república que acabou com o último califado, há 90 anos. Outras fontes do EI
sugerem que Roma pode significar qualquer exército de infiéis e que os
americanos encaixam perfeitamente nessa designação.
Depois desta batalha de Dabiq, diz
Cerantonio, o califado irá expandir-se e tomar Istambul. Há quem acredite que
depois cobrirá a Terra inteira, mas Cerantonio sugere que esta vaga possa nunca
passar para além do Bósforo. Um anti-Messias, conhecido na literatura
pós-apocalíptica como Dajjal, virá da região de Khorasan, no Leste do Irão, e
matará muitos combatentes do califado, até ficarem apenas cinco mil,
encurralados em Jerusalém. E no momento em que Dajjal estiver prestes a acabar
com eles, Jesus — o segundo profeta mais venerado no islão — voltará à Terra,
expulsará Dajjal e conduzirá os muçulmanos à vitória.
“Só Deus sabe” se os exércitos do EI
serão avisados, diz Cerantonio. Mas ele tem esperança que sim. “O profeta disse
que um dos sinais da chegada iminente do Final dos Tempos é que as pessoas
deixam de falar do Final dos Tempos durante um tempo”, diz. “Se for agora às
mesquitas, verá que os pregadores estão calados sobre este assunto.” Sob este
prisma, os reveses do EI não têm qualquer significado, uma vez que de qualquer forma
Deus tinha contemplado a sua quase destruição. O Estado islâmico tem os seus
melhores e piores dias pela frente.
IV. O combate
O purismo ideológico do Estado Islâmico tem uma virtude: permite-nos prever algumas das suas acções. Osama bin Laden raramente foi previsível. Terminou a sua primeira entrevista televisiva de forma encriptada. Peter Arnett, da CNN, perguntou-lhe: “Quais são os seus planos para o futuro?” e Bin Laden respondeu: “Irá vê-los e ouvir falar deles nos media, se Deus quiser.” Pelo contrário, o EI fala abertamente dos seus planos — não de todos, mas o suficiente para que, se ouvirmos com atenção, se possa deduzir como projecta governar e expandir-se.
O purismo ideológico do Estado Islâmico tem uma virtude: permite-nos prever algumas das suas acções. Osama bin Laden raramente foi previsível. Terminou a sua primeira entrevista televisiva de forma encriptada. Peter Arnett, da CNN, perguntou-lhe: “Quais são os seus planos para o futuro?” e Bin Laden respondeu: “Irá vê-los e ouvir falar deles nos media, se Deus quiser.” Pelo contrário, o EI fala abertamente dos seus planos — não de todos, mas o suficiente para que, se ouvirmos com atenção, se possa deduzir como projecta governar e expandir-se.
Em Londres, Choudary e os seus
discípulos fizeram descrições detalhadas de como o EI deve conduzir a sua
política externa, agora que é um califado. Já assumiu aquilo a que a lei
islâmica chama “jihad ofensiva”, a expansão forçada para países governados por
não muçulmanos. “Estamos só a defender-nos”, afirma Choudary; sem um califado,
a jihad ofensiva é apenas um conceito inaplicável. Mas fazer a
guerra para expandir o califado é um dever fundamental do califa.
Choudary refere que as leis da guerra
segundo as quais o EI se rege são de misericórdia e não de brutalidade. Diz que
o Estado tem a obrigação de aterrorizar os seus inimigos — uma ordem sagrada
para lhes pregar sustos de morte com decapitações e crucificações e escravatura
de mulheres e crianças — porque fazê-lo acelera a vitória e evita o conflito
prolongado.
O seu colega Abu Baraa explica que a lei
islâmica apenas permite tratados de paz temporários, não mais duradouros do que
uma década. Da mesma forma, aceitar uma fronteira é um anátema, tal como disse
o profeta e é ecoado pelos vídeos de propaganda. Se o califa consente um tratado
de paz prolongado ou uma fronteira permanente, estará a errar. Os tratados de
paz temporários são renováveis, mas poderão não ser aplicados a todos os
inimigos de uma só vez: o califa tem de lançar ajihad pelo menos
uma vez por ano. Não pode descansar, ou estará a pecar.
Uma das comparações com o Estado
Islâmico são os khmer vermelhos, que mataram cerca de um terço
da população do Cambodja. Mas o Khmer Vermelho ocupou o assento do Cambodja na
ONU. “Isso não é permitido”, comenta Abu Baraa. “Enviar um embaixador para a
ONU é reconhecer uma outra autoridade que não Deus.” Este tipo de diplomacia é shirk,
ou politeísmo, argumenta, e seria justificação para declarar o califa herege e
substituí-lo. Mesmo o apoio ao califado por via democrática, através de eleições,
por exemplo, seria shirk.
É difícil dizer quão prejudicado o EI
será pelo seu radicalismo. O sistema internacional moderno, nascido em 1648 do
tratado de paz de Vestefália, assenta na vontade de cada Estado em reconhecer
fronteiras, por muito que estejam relutantes. Para o EI, esse reconhecimento é
ideologicamente suicida. Outros grupos islâmicos, como a Irmandade Muçulmana e
o Hamas, sucumbiram aos princípios da democracia e à possibilidade de um
convite para a comunidade das nações, completado com um assento na ONU. A
negociação e a cedência também funcionaram, algumas vezes, com ostaliban.
(Sob o regime taliban, o Afeganistão trocou embaixadores com a
Arábia Saudita, Paquistão e os Emirados Árabes Unidos, um gesto que invalidou a
autoridade dos taliban aos olhos do Estado Islâmico.) Para o
ISIS, estas não são opções, mas actos de apostasia.
Os Estados Unidos e os seus aliados
reagiram ao Estado Islâmico com atraso e aparente estupefacção. As ambições e a
estratégia eram evidentes nos primeiros discursos e nas pistas deixadas nas
redes sociais já desde 2011, quando era apenas um dos muitos grupos terroristas
na Síria e no Iraque e ainda não tinha cometido atrocidades em massa. Adnani, o
porta-voz, disse então aos seguidores do grupo que a ambição era “restaurar o
califado islâmico” e evocou o apocalipse, afirmando: “Só restam alguns dias.”
Baghdadi já se tinha apresentado como “comandante dos fiéis”, um título
normalmente reservado aos califas, em 2011. Em Abril de 2013, Adnani declarou
que o movimento estava “pronto para redesenhar o mundo segundo a metodologia
profética do califado”. Em Agosto de 2013, afirmou: “O nosso objectivo é criar
um estado islâmico que não reconheça fronteiras, segundo a metodologia
profética.” Nessa altura, o grupo tinha já tomado Raqqa, uma capital provincial
da Síria de cerca de 500 mil pessoas, e estava a atrair números significativos
de combatentes estrangeiros que tinham ouvido a sua mensagem.
Se tivéssemos identificado mais cedo as
intenções do EI e percebido que o vazio no Iraque e na Síria lhe daria amplo
espaço para as concretizar, teríamos no mínimo forçado o Iraque a fortalecer a
sua fronteira com a Síria e feito acordos preventivamente com os seus líderes
sunitas. Isso teria no mínimo evitado o efeito da propaganda electrizante
criado pela declaração de um califado logo a seguir à conquista da segunda
cidade iraquiana. Mas, há pouco mais de um ano, Obama declarou à revista New
Yorker que considerava o ISIS o parceiro mais fraco da Al-Qaeda. “Não
basta uma equipa juvenil vestir o equipamento dos Lakers para se tornar um Kobe
Bryant”, disse o Presidente.
Forças
curdas combatem o ISIS em Sinjar, em Janeiro deste ano NIKLAS MELTIO/CORBIS
A nossa incapacidade de perceber a
diferença entre o EI e a Al-Qaeda, e as diferenças essenciais entre os dois,
levou a decisões perigosas. No Outono passado, para dar só um exemplo, o
Governo americano aprovou um plano desesperado para salvar a vida a Peter Kassig.
O plano facilitava — e até exigia — a interacção entre algumas das figuras
fundadoras do EI e da Al-Qaeda, e dificilmente poderia ter sido mais debilmente
improvisado.
Nele sugeria-se a aproximação de Abu
Muhammad al-Maqdisi, mentor de Zarqawi e um nobre da Al-Qaeda, a Turki
al-Binali, o principal ideólogo do EI e antigo aluno de Maqdisi, apesar de
estarem afastados devido às críticas de Maqdisi ao Estado Islâmico. Maqdisi já
tinha apelado ao EI por clemência para Alan Henning, o britânico que entrou na
Síria para prestar ajuda a crianças. Em Dezembro, o The Guardian noticiou
que o Governo americano, através de um intermediário, pedira a Maqdisi que
intercedesse por Kassig junto do EI.
Maqdisi vivia então livremente na
Jordânia, mas tinha ficado proibido de comunicar com terroristas no estrangeiro
e estava a ser vigiado de perto. Depois de a Jordânia ter dado autorização aos
EUA para apresentar Maqdisi a Binali, Maqdisi comprou um telefone com dinheiro
americano e foi autorizado a comunicar com o seu antigo aluno durante alguns
dias, até o Governo jordano acabar com as conversas e as usar como pretexto
para o prender. Uns dias depois, a cabeça decapitada de Kassig aparecia num
vídeo da Dabiq.
Maqdisi é frequentemente gozado no
Twitter pelos fãs do EI, e a Al-Qaeda é também mal vista por se recusar a
reconhecer o califado. Cole Bunzel, um académico que estuda a ideologia do
Estado Islâmico, leu a opinião de Maqdisi sobre a situação de Henning e achou
que ela iria acelerar a sua morte, tal como a de outros reféns. “Se eu
estivesse preso pelo Estado Islâmico e Maqdisi dissesse que eu não deveria ser
morto, diria adeus à vida”, diz-me Bunzel.
A morte de Kassig foi trágica, mas o
êxito do plano teria sido uma tragédia ainda maior. Uma reconciliação entre
Maqdisi e Binali teria começado a sarar a principal discórdia entre as duas
maiores organizações jihadistas do mundo. É possível que o governo apenas
quisesse atrair Binali para obter informação secreta ou para ser assassinado.
(Várias tentativas para que o FBI comentasse falharam.) Ainda assim, a decisão
de juntar os dois maiores antagonistas dos Estados Unidos revela uma
surpreendente falta de senso.
Envergonhados pela nossa indiferença
inicial, estamos agora a conhecer o Estado Islâmico através dos combates no
Curdistão e no Iraque, com ataques aéreos regulares. Essa estratégia não
desalojou o Estado Islâmico de nenhum dos seus territórios principais, apesar
de ter evitado ataques directos a Bagdad e Erbil massacrando xiitas e curdos.
Alguns observadores pediram uma resposta
mais forte, incluindo algumas das vozes previsíveis da direita intervencionista
(Max Boot, Frederick Kagan), que apelaram ao envio de dezenas de milhares de
soldados americanos. Não se deve afastar demasiado depressa este cenário: uma
organização genocida está à porta de casa das suas vítimas e diariamente comete
atrocidades no território que já controla.
Uma das formas de quebrar o feitiço do
EI nos seus seguidores seria superá-lo militarmente e ocupar as partes da Síria
e do Iraque que estão agora sob domínio do califado. A Al-Qaeda não pode ser
erradicada porque consegue sobreviver, como uma barata, ficando na
clandestinidade. O Estado Islâmico não. Se perder o poder nos seus territórios
na Síria e no Iraque, deixará de ser um califado. Os califados não podem
existir como movimentos clandestinos, porque necessitam da autoridade
territorial: acabe-se com o território que comandam e todos os votos de
obediência deixam de estar em vigor. Claro que alguns freelancers poderão
continuar a apelar ao combate contra o Ocidente e a decapitar inimigos. Mas o
valor propagandístico do califado desapareceria e com ele o alegado dever
religioso de imigrar para o servir. Se os EUA invadissem, a obsessão do EI pela
batalha de Dabiq faz depreender que seria necessário enviar vastos recursos
para lá, como se fosse uma batalha convencional. Se o Estado investisse
fortemente em Dabiq e depois a perdesse, poderia nunca mais recuperar.
Mas os riscos de uma escalada são
enormes. O maior defensor de uma invasão americana é o próprio Estado Islâmico.
Os vídeos provocatórios, nos quais um carrasco de máscara negra se dirige ao
Presidente Obama pelo nome, destinam-se claramente a arrastar os Estados Unidos
para a guerra. Uma invasão seria uma enorme vitória da propaganda para os
jihadistas em todo o mundo: independentemente de terem dado a baya’a ao
califa, todos acreditam que os EUA querem lançar uma cruzada moderna e matar os
muçulmanos. Mais uma invasão e ocupação confirmariam essas suspeitas e
aumentariam o recrutamento. Se acrescentarmos a incompetência dos esforços
anteriores enquanto ocupantes, temos razões para estar relutantes. O
crescimento do ISIS, afinal, só se verificou porque a ocupação anterior abriu
espaço para Zarqawi e os seus fiéis. Quem sabe quais seriam as consequências de
outro trabalho mal feito?
Tendo em conta tudo o que sabemos sobre
o Estado Islâmico, a melhor das opções militares será continuar a sangria lenta
e a guerra por procuração. Nem os curdos nem os xiitas jamais se subjugarão nem
controlarão o centro sunita da Síria e do Iraque — são odiados ali e também não
têm qualquer desejo de uma aventura dessas. Mas podem impedir o Estado Islâmico
de cumprir o seu desígnio de expansão. E por cada mês que falha em expandir-se
fica menos parecido com o estado conquistador do profeta Maomé. Será mais um
estado do Médio Oriente que não consegue trazer prosperidade ao seu povo.
Cristãos egípcios perto de Trípoli, conduzidos pelos islamistas: o vídeo foi divulgado a 15 de Fevereiro REUTERSTV
num vídeo difundido em Setembro
de 2014 AFP
O custo humanitário da existência do EI
é elevado. Mas a sua ameaça para os EUA é menor do que pode sugerir o seu
permanente confronto com a Al-Qaeda. O ponto central da Al-Qaeda é raro entre
os grupos jihadistas por se focar no “inimigo distante” (o Ocidente); a maior
parte das preocupações da maioria dos jihadistas está mais perto de casa. Isso
é especialmente verdade no caso do Estado Islâmico, precisamente por causa da
sua ideologia. Vê inimigos a toda a volta e, apesar de a sua liderança não
querer bem aos EUA, a aplicação da sharia no califado e a
expansão para os territórios contíguos são prioritários. Baghdadi afirmou-o
directamente: em Novembro, declarou aos seus agentes sauditas que “lidassem com
osrafidah [xiitas] primeiro... com os al-sulh depois
[apoiantes sunitas da monarquia saudita]... antes dos cruzados e das suas
bases”.
Os combatentes estrangeiros (e as suas
mulheres e crianças) têm viajado para o califado com bilhetes só de ida: querem
viver sob o domínio da sharia e muitos desejam o martírio.
Recorde-se que a doutrina exige que os crentes vivam no califado se lhes for
possível. Um dos vídeos menos sangrentos do ISIS mostra um grupo de jihadistas
a queimar os seus passaportes franceses, britânicos e australianos. Isto seria
um gesto excêntrico para alguém que pretendesse regressar para se fazer
explodir no Louvre ou tornar refém mais uma loja de chocolates em Sydney.
Alguns “lobos solitários” que apoiam o
EI atacaram alvos ocidentais e mais ataques surgirão. Mas a maioria são
amadores frustrados, incapazes de emigrar para o califado por terem os
passaportes confiscados ou outros problemas. Ainda que o EI felicite estes
ataques, e fá-lo na sua propaganda, ainda não planeou nem financiou nenhum. (O
ataque ao Charlie Hebdo em Paris, em Janeiro, foi sobretudo
uma operação da Al-Qaeda.) Durante a sua visita a Mossul, em Dezembro, Jürgen
Todenhöfer entrevistou um jihadista alemão e perguntou-lhe se algum dos seus
camaradas tinha regressado à Europa para lançar ataques. O jihadista falou dos
retornados não como soldados mas como desistentes. “O facto é que os que
regressam do Estado Islâmico devem arrepender-se do seu regresso”, afirmou.
“Espero que reavaliem a sua religião.”
Se for adequadamente contido, o EI fará
a sua própria implosão. Nenhum país é seu aliado e a sua ideologia garante que
assim continuará. A terra que controla, apesar de poder expandir-se, é
praticamente desabitada e pobre. À medida que estagnar ou que for encolhendo, o
argumento de que pratica a vontade de Deus e é o agente do apocalipse perderá
força e poucos crentes chegarão. E quanto mais notícias de pobreza saírem para
fora, mais os movimentos islamistas radicais nos outros sítios ficarão
desacreditados. Ninguém tentou tanto aplicar a sharia de forma
tão estrita através da violência, e é isto que acontece.
Mesmo assim, é pouco provável que a
morte do Estado Islâmico seja rápida e as coisas podem ainda correr muito mal:
se o EI obtiver a obediência da Al-Qaeda — aumentando de uma assentada a sua
base —, poderá tornar-se a pior força a que já assistimos. O fosso entre o EI e
a Al-Qaeda tem crescido nos últimos meses; a edição de Dezembro da Dabiq trazia
um relato extenso de um desertor da Al-Qaeda que descrevia o seu grupo como
corrupto e ineficaz e Zawahiri como um líder distante e desadequado. Mas
devemos estar atentos a qualquer aproximação.
Sem uma catástrofe como esta, ou a
ameaça de o EI tomar Erbil, uma grande invasão terrestre certamente pioraria a
situação.
V. Dissuasão
Seria fácil, quase uma desculpa, dizer que o problema do Estado Islâmico é “um problema com o islão”. A religião permite muitas interpretações e os apoiantes do EI estão moralmente agarrados à que escolheram. E, contudo, denunciar pura e simplesmente o EI como anti-islâmico pode ser contraproducente, sobretudo se quem ouve a mensagem conhece os textos sagrados e vê neles justificadas muitas das práticas do califado.
Seria fácil, quase uma desculpa, dizer que o problema do Estado Islâmico é “um problema com o islão”. A religião permite muitas interpretações e os apoiantes do EI estão moralmente agarrados à que escolheram. E, contudo, denunciar pura e simplesmente o EI como anti-islâmico pode ser contraproducente, sobretudo se quem ouve a mensagem conhece os textos sagrados e vê neles justificadas muitas das práticas do califado.
Os muçulmanos podem dizer que, agora, a
escravatura não é legítima e que a crucificação é reprovável na actual
conjuntura histórica. Isto é, de facto, o que muitos dizem. Mas não podem
condenar liminarmente a escravatura ou a crucificação sem contradizer o Corão e
o exemplo do profeta. “O único terreno seguro para os que se opõem [ao EI] é
clamarem que alguns textos e ensinamentos do islão perderam a validade”, diz
Bernard Haykel. E isso seria abjuração.
A ideologia proposta pelo Estado
Islâmico exerce uma forte influência junto de uma certa camada da população.
Perante ela, as hipocrisias e inconsistências da vida pura e simplesmente
desaparecem. Musa Cerantonio e os salafistas que conheci em Londres são
assertivos: nenhuma das questões que lhes coloquei os deixou a gaguejar. Foram
muito eloquentes no seu sermão e, se aceitarmos as suas premissas, convincentes
até. Dizer que são anti-islâmicos parece-me que é estar a desafiá-los para uma
discussão em que saem a ganhar. Se eles fossem somente uns maníacos
fala-barato, podia vaticinar que o seu movimento implodia à medida que os seus
psicopatas se fazem detonar e, um a um, caem redondos no chão.
Um
combatente da Al-Qaeda que tem marcada na arma a sua fidelidade à organização MEDYAN DAIRIEH/ZUMA PRESS/CORBIS
Mas estes homens falavam com uma
precisão académica que só me fazia lembrar que estava perante licenciados de
peso. Até gostei de estar na companhia deles, e isso deixou-me com tanto medo
como tudo o resto.
Os não muçulmanos não podem dar lições
aos muçulmanos sobre como devem praticar a religião. Mas, entre os muçulmanos,
este não é um debate de agora. “Temos de ter padrões”, disse-me Anjem Choudary.
“Qualquer um pode dizer-se muçulmano mas se acredita na homossexualidade ou em
beber álcool, então não é muçulmano. Também não existem vegetarianos não
praticantes.”
Há, contudo, uma outra variante do islão
que oferece uma alternativa de linha dura ao EI — igualmente intransigente, mas
com resultados opostos. É uma alternativa que já provou ter o seu encanto para
os muitos muçulmanos amaldiçoados, ou abençoados, na ânsia psicológica de
assistirem a qualquer mudança de vírgula na implementação dos textos sagrados
tal como o eram nos primeiros tempos do islamismo.
Os que apoiam o EI sabem bem como deve
reagir aos muçulmanos que ignoram partes do Corão: com o takfir [excomunhão]
e ridicularizando-os. Mas sabem também que outros muçulmanos lêem tão
assiduamente o Corão como eles próprios e representam uma séria ameaça à sua
ideologia.
Baghdadi é salafista. O termo salafi foi
deturpado e isso deve-se, em parte, aos patifes que têm entrado na guerra com a
bandeira salafista hasteada. Mas a maioria dos salafistas não é jihadista e
adere a seitas que rejeitam o Estado Islâmico. Como refere Haykel, estão
comprometidos em expandir o Dar al-islam, a terra do islão, ainda que,
eventualmente, tenham de pôr em prática coisas monstruosas como a escravatura e
a amputação — mas no futuro. As suas prioridades são a purificação pessoal e o
cumprimento dos ditames religiosos. E acreditam que qualquer coisa que os
desvie desse caminho — que dê origem a guerras e a distúrbios que desfaçam
vidas ou impeçam a prossecução dos estudos — é proibido.
Eles vivem no meio de nós. No último
Outono, fui a Filadélfia visitar a mesquista de Breton Pocuis, um imã que dá
pelo nome de Abdullah, de 28 anos. A sua mesquita fica na fronteira entre um
bairro onde reina o crime, o Northern Liberties, e uma área gentrificada a que
poderíamos chamar Dar al-Hipster, na qual até a sua barba passa despercebida.
Pocius, um polaco de Chicago educado no
catolicismo, converteu-se há 15 anos. Tal como Cerantonio, também ele fala como
uma alma veterana, mostrando a sua familiaridade profunda com os textos antigos
e o seu compromisso com os ensinamentos, na crença de que é neles que reside a
salvação ao fogo dos infernos. Quando nos encontramos num café das redondezas,
ele traz consigo um trabalho académico em árabe sobre o Corão e um livro de
auto-ajuda para aprender japonês. Estava a preparar o seu sermão sobre as
responsabilidades e obrigações da paternidade para os cerca de 150 fiéis da sua
assembleia das sextas-feiras. Diz Pocius que o seu principal objectivo é
encorajar os fiéis da mesquita a que conduzam as suas vidas de uma forma halal [aquilo
que é permitido ou legal à luz da lei islâmica]. Mas o crescimento do EI têm-no
forçado a equacionar determinadas questões políticas que à partida estariam
longe da cabeça de qualquer salafista. “A maior parte das coisas que eles dizem
sobre como devemos orar ou nos vestir é tal e qual o que transmito à minha masjid [mesquita].
Mas quando abordam questões sobre convulsões sociais, parecem o Che Guevara.”
Quando Baghdadi apareceu, Pocius adoptou
o slogan “Não é o meu khalifa”. “Nos tempos do profeta, muito
sangue foi derramado”, diz-me, “e ele sabia que o caos seria o pior que poderia
acontecer a todos, sobretudo dentro da umma [comunidade].” Por
isso, diz Pocius, a atitude correcta de um salafista não é semear a discórdia
aderindo a facções e declarando os outros muçulmanos apóstatas. Pelo contrário,
Pocius e a maioria dos salafistas acham que os muçulmanos se deveriam afastar
da política. Estes salafistas reservados, como são conhecidos, concordam com o
que diz o Estado Islâmico de que a única lei é a de Deus e rejeitam o voto e a
criação de partidos políticos. Mas interpretam o ódio que o Corão tem ao caos e
à discórdia como um pedido para que sigam o líder, seja ele qual for, incluindo
os que são verdadeiros pecadores. “Diz o profeta que, enquanto o líder não
ceder claramente ao kufr [descrença], lhe devemos toda a
obediência”, explica-me Pocius, dizendo que os clássicos “livros de credo”
alertam todos para o perigo da revolta social. Os salafistas reservados estão
completamente proibidos de separar um muçulmano de outro, nomeadamente pela
excomunhão em massa. Viver sem baya’a, diz Pocius, faz de uma
pessoa um ignorante, ou incivilizado. Mas a baya’a não
significa lealdade imediata e cega a um califado, e muito menos a Abu Bakr
al-Baghdadi. De uma forma mais alargada, pode querer dizer, isso sim, lealdade
a um contrato social religioso e compromisso com a comunidade muçulmana, seja
ela liderada por um califa ou não.
Estes salafistas preconizam que os
muçulmanos devem conduzir as suas energias para o aperfeiçoamento da vida
privada, incluindo a oração, os rituais e a higiene. E, assim como os judeus
ultraortodoxos debatem se no Sabath e à boa maneira kosher faz
sentido rasgar papel higiénico em pedaços [uma das regras na preparação do
descanso semanal do judaísmo] — e será que a moda da “roupa rasgada” também
conta? —, eles passam uma enorme quantidade de tempo a avaliar se têm as calças
demasiado compridas ou se as suas barbas estão bem aparadas num lado mas
desgrenhadas no outro. Com toda esta exigente devoção, Deus, assim o crêem, irá
retribuir-lhes em força e em número, e talvez um califado possa emergir. Só
então, os muçulmanos terão a sua vingança, e sim, chegarão a uma vitória
gloriosa em Dabiq. Mas Pocius cita alguns teólogos modernos salafistas que
asseguram que um califado não vem se não da vontade indómita de Deus.
E isso é algo com que o Estado Islâmico
irá com toda a certeza concordar, acrescentando que Deus já nomeou Baghdadi. A
réplica de Pocius pretende apelar à humildade. E cita Abdullah Ibn Abbas, um
dos companheiros do profeta, que se sentou com dissidentes e lhes perguntou
como poderiam ter o descaramento, sendo eles uma minoria, de afirmar que a
maioria estava errada. A dissidência propriamente dita, assim como o
derramamento de sangue e a divisão da umma, é proibida. De certa
maneira, até a constituição do califado de Baghdadi contradiz todas as
expectativas, diz. “É a Alá que cabe estabelecer o khilafa e
envolveria consenso dos eruditos de Meca e Medina. Não foi isso que aconteceu.
O EI apareceu vindo do nada.”
Mas esta é uma conversa que o EI não
aceita, e os seus seguidores são sarcásticos nos tweetts sobre
os salafistas reservados. Gozam chamando-lhes “salafistas da menstruação” por
causa dos seus obscuros julgamentos sobre quando as mulheres estão limpas ou
não, bem como sobre outros aspectos menos prioritários da vida. “Do que
precisamos agora é de uma fatwa [decreto] que nos indique como
éharam [proibido] andar de bicicleta em Júpiter”, twittou um deles
de forma muito seca. “É nisto que os eruditos se deviam focar. Pressionar mais
do que andarem a frisar a Umma.” Já Anjem Chouldary diz que não há
maior pecado do que a usurpação da lei de Deus e que as posições extremistas em
prol do monoteísmo não devem ser vistas como fraqueza.
Baghdadi
liderando as orações num vídeo de propaganda
video divulgado a 5 de Julho
de 2014 AL-FURQAN MEDIA
Os Estados Unidos não apoiam de modo
nenhum Pocius, ainda que este se apresente como alternativa de peso ao
jihadismo. Tendem inclusive a desacreditá-lo. E ele é amargo e diz que a
América o trata “menos do que a um cidadão”. (Alega que o governo infiltrou
espiões na sua mesquita e assediou a mãe no trabalho colocando-lhes questões
sobre ele ser um potencial terrorista.)
Contudo, o seu salafismo apresenta-se
como antídoto ao jihadismo ao estilo de Baghdadi. Nem todos os que chegam à fé
ansiosos por lutar podem escapar do jihadismo, mas para aqueles cuja principal
motivação é encontrar uma versão ultraconservadora e inflexível do islão, esses
têm aqui a alternativa. Não é o islão moderado, alguns vê-lo-ão mesmo como
extremado. É, contudo, a versão do islão que até para as mentes mais literais
não é hipócrita nem foi expurgada de forma blasfémica dos seus inconvenientes.
A hipocrisia não é pecado que as mentes mais jovens da teologia tolerem.
O melhor seria que as autoridades
ocidentais parassem de lançar mais achas para a fogueira do debate teológico
islâmico. O próprio Barack Obama, ao afirmar que o EI não é “islâmico”, entrou
nas profundas correntezas do takfiri e derrapou — logo ele,
que ironicamente é um não muçulmano filho de um muçulmano que até poderia ser
considerado apóstata e agora pratica o takfir contra os
muçulmanos. Os não muçulmanos que agem conforme os requisitos do takfir gracejam
com os jihadistas (“Como porcos cobertos de porcaria que dão lições de higiene
a outros”, twittou um deles).
Imagino que a maioria dos muçulmanos
aprecie os sentimentos de Obama: o Presidente mostrou estar do lado deles e
contra Baghdadi e os chauvinistas não muçulmanos que os tentam implicar nos crimes.
Mas a maioria dos muçulmanos não é sujeita a juntar-se à jihad. E
os que aderem vêem confirmadas as suas suspeitas de que os Estados Unidos
mentem sobre a religião para alcançar os seus objectivos.
E o EI lá vai cantando e rindo,
trauteando energicamente — até com criatividade — dentro dos limites apertados
da sua teologia. Mas fora desses limites não poderia ser mais árido ou
silencioso: uma visão da vida enquanto obediência, ordem e destino. Muse
Cerantonio e Anjem Choudary tanto podem estar a discutir mortes em massa e
tortura diária como as virtudes do café do Vietname e de bolos demasiado
açucarados. E fazem-no com aparente deleite. Parece-me, contudo, que abraçar os
seus pontos de vista seria ver todos os sabores que existem neste mundo
tornarem-se insípidos por comparação às atrocidades grotescas do que pode aí
vir no futuro.
Até posso apreciar a companhia de um e
de outro, enquanto exercício intelectual que me faz sentir tão culpado quanto
me dá prazer... mas até um certo ponto. Na recensão que George Orwell fez ao Mein
Kampf, em Março de 1940, o escritor confessou: “Nunca consegui sentir
antipatia por Hitler”; apesar dos seus objectivos abomináveis e cobardes, havia
qualquer coisa de pobre coitado naquele homem. “Se matava um rato que fosse,
fazia-o como se de um dragão se tratasse.” Os apoiantes do EI têm umaallure muito
semelhante. Acreditam estar pessoalmente envolvidos numa luta que transcende as
suas vidas e que o simples facto de serem arrastados para o drama, estando no
lado do bem, é um privilégio e um prazer — sobretudo se for igualmente um
fardo.
O fascismo, continuava Orwell, é
“psicologicamente muito mais sólido do que qualquer ideia hedonista da vida...
Enquanto o socialismo, e até mesmo o capitalismo de uma forma mais relutante,
tem dito às pessoas ‘dou-te a oportunidade de passares um bom bocado’, Hitler
disse às pessoas “dou-vos luta, perigo e morte, e em resultado teve uma nação
prostrada a seus pés... Não devemos subestimar o encanto que possa ter ao nível
das emoções. Nem, no caso do EI, o seu encanto religioso ou intelectual”. Que o
EI sustente como dogma o cumprimento iminente da profecia, isso ao menos
transmite-nos o valor do nosso opositor. Está disposto a louvar a sua quase
autodestruição mas mantém-se confiante, mesmo quando cercado, de que irá
receber a graça divina se se mantiver fiel ao modelo profético. As ferramentas
ideológicas podem convencer alguns dos possíveis convertidos de que a sua
mensagem de grupo é falsa, e as ferramentas militares podem impor limites aos
seus horrores. Mas para uma organização tão impenetrável à persuasão como é o
EI, poucas medidas importarão, e a guerra pode bem vir a ser longa, ainda que
não termine com o fim dos tempos.
Exclusivo PÚBLICO/The Atlantic
Membros yazidi fogem dos confrontos com os islamistas em Sinjar, rumo à
fronteira com a Síria, em Agosto passado RODI SAID/REUTERS
Tirado DAQUI
Que pode a Filosofia fazer pela paz
entre os povos?
E o que pensam os filósofos acerca da
guerra e da paz?
http://www.centrodefilosofia.com/uploads/pdfs/philosophica/30/3.pdf
Lola
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