Jorge Amaral/Global Imagens |
Gosta de Jorge Palma?
"Tive a lucidez de perceber que precisava de ajuda".
Começou a tocar piano aos 4
anos e continua a ser este o instrumento em que toda a música se traduz na
cabeça dele, mesmo se já não se sente à vontade com Liszt ou Rachmaninov como
aos 30 e tal anos. Está com uma energia surpreendente, a fazer concertos
sucessivos.
Diz
que vem aí um disco com o concerto Juntos que anda a fazer com Sérgio Godinho,
e que depois se atirará a um outro, com as canções que de novo lhe começaram a
nascer, coisas que está a ouvir e que regista de imediato no gravador do
telemóvel. Nasceu a 4 de junho de 1950, em Lisboa, e já correu a Europa de
guitarra na mão, a tocar na rua e no metro. Largos meses antes de chegar aos 65
anos, decidiu pedir ajuda e entregar-se a sério a um tratamento para o
alcoolismo. Nada parecido com as desintoxicações anteriores, desta vez a
decisão envolve a cabeça e o coração. Repete a ideia central: tanta coisa boa
na minha vida a que posso agarrar-me, não é possível aceitar o desespero e a
desistência. Bebe uma pepsi, vai buscar uma grande chávena com café que acaba
por deixar quase intacta, seguem-se mais duas pepsis. E muitos cigarros. Tem o
curso superior de Piano, ouvido treinado para descobrir sinais de música
contemporânea nos discos dos Beatles - cortesia do velho George Martin. Pôs uma
orquestra inteira a acompanhar Amália. Podia escrever-se uma história da música
portuguesa das últimas décadas com os nomes dos músicos com quem trabalhou,
como orquestrador ou integrado em bandas. E, claro, os que com ele tocaram e
tocam em palco e com ele gravaram discos inesquecíveis como o Bairro do Amor.
Resumindo, apenas com os nomes das bandas: Black Boys, Sindikato (que tocou no
primeiro festival de Vilar de Mouros), Palma"s Gang, Rio Grande, Cabeças no
Ar. De Amália aos Xutos, quem não terá trabalhado com ele?
Nas últimas semanas, fez imensos concertos. Está com uma
enorme resistência física. O que se passa?
Têm
sido muitos, têm. Desde a primavera do ano passado foi crescendo o número de
concertos e tem sido ótimo. E aguento. Eu gosto de estar em palco. De ensaiar
não gosto muito mas tem de ser. No trabalho com o Sérgio Godinho, temos
ensaiado bastante, mas depois dá gosto o resultado. E estou perfeitamente à
vontade em relação à bebida, podem beber à minha volta.
Fez um tratamento? Está nos Alcoólicos Anónimos?
Eu
não estive nos Alcoólicos Anónimos. Aliás, nunca fui a nenhuma reunião, apesar
de elas estarem a acontecer nas semanas em que eu estive em tratamento no
Hospital Júlio de Matos. Não fui, porque tinha mais que fazer. Tinha de
escrever, tinha de ler livros tipo em diagonal, captar a essência e escrever
depois textos meus.
Sempre em torno do tema do álcool?
Sempre
à volta do álcool. Com as consequências do beber excessivo, os malefícios. Este
plano começou a ser testado no Minnesota e implica quatro semanas com uma
equipa técnica - que, neste caso, é excelente. Não há telemóveis, não podemos
levar livros à nossa escolha. É mesmo concentração. E, pelos vistos, resulta.
Levantamo-nos às sete da manhã e até às dez da noite não podemos voltar para a
cama. Há sempre qualquer coisa para fazer. Reuniões, ouvir histórias, contar
histórias. Pôr a mesa, limpar a mesa, varrer o chão, responder a questionários,
composição de textos.
Guardou esses textos?
Tenho
uma pasta organizada. Levei aquilo a sério. É para fazer, é para fazer, fui lá
fazer o melhor.
O
que aconteceu para fazer essa mudança?
Fiz
duas ou três desintoxicações, mas não passaram da desintoxicação do corpo, e
isso processa-se em quatro dias. Processar a cabeça é outra coisa. As outras
desintoxicações acabei por não ter consciência delas. Pronto, limpei. Está aí?
Está. Vamos embora para outra. Desta vez, a convivência com os meus
companheiros deu para perceber até que ponto as pessoas podem perder tudo.
Nunca mais bebeu?
Não.
Fui aos Açores, agora, com o Zeca Medeiros, e nessa noite foi à Lagardère e
arrependi-me. Dei-me mal, não gostei, fiquei chateado comigo próprio e não vale
a pena, por aquele momento de euforia.
E sente falta do álcool?
Não.
Não.
Foi mesmo um clique na cabeça.
É
um clique. Tal como é um clique voltar a beber, parar também é um clique. E eu
sei como é que esse clique se dá. É muito fácil, é beber dois copos ou três
e... cling!
Foi para lá para lá porque estava em risco de vida?
Fui
porque precisava de ajuda e era óbvio e tive ainda a lucidez suficiente para
perceber que precisava de ajuda a sério.
Continua a ser acompanhado?
Eu
não tenho tido tempo de ir lá conversar com o meu psiquiatra mas é um tipo
porreiro e, muitas vezes, falamos por mensagens e ao telefone. E o que ele quer
e está a perceber é que eu estou bem. Mas faz bem conversar, de vez em quando,
fazer o ponto da situação, falar das coisas que toda a gente tem: altos e
baixos, ansiedades. Há momentos em que eu estou perfeitamente bem-disposto, há
momentos em que nem tanto mas isso faz parte da vida. Portanto, é aceitá-la.
Vendo as vidas daquelas pessoas que encontrei, tenho uma sorte do tamanho sei
lá de quê.
Isso é que fez a mudança, ver os outros e comparar?
Foi
muito importante ver as pessoas, as vidas delas, aonde se deixaram chegar e ver
que eu, por uma questão de sorte, não estava tão depauperado, tão fragilizado e
tão à mercê de um destino muito sombrio. Senti muito fortemente que tenho é de
me agarrar e é muito bom aquilo que eu tenho para me agarrar. Desde a música
até bons amigos, etc.
Li numa entrevista que começou a beber aos 12, 13 anos,
para se armar em homem, e que isso era habitual nessa altura.
Era.
Era fumar e beber.
E bebia o quê?
Vinho.
Sobretudo a partir do momento em que fui para o colégio interno nas Mouriscas
[Colégio Infante de Sagres]. Bebia-se muito vinho e cerveja.
Porque é que foi para o colégio interno?
Porque
já estava a fazer estragos à minha volta. Fui convidado a sair do Camões.
Estava em vias de chumbar pela segunda vez o 4.º ano do liceu e os meus pais
acharam por bem - e muito bem fizeram - pôr-me lá com um diretor, que era uma
pessoa fantástica, o Santana Maia. Fui para o colégio em 1964. Em 1967, quando
estava em vias de concluir o 7.º ano, fui para o Algarve nas férias da Páscoa,
decidi que já chegava e fiz férias. Retomei os estudos em Lisboa, no Colégio
Académico. O meu pai convenceu-me, e muito bem, também. Fui para a Faculdade de
Ciências para ser engenheiro. No final do 2.º ano, com cadeiras em atraso do
1.º, deixei de ir às aulas, pura e simplesmente. Estava a ter uma vida muito
interessante com colegas músicos, a fazer bandas, a aprender com o Ary dos
Santos, aquelas noitadas todas em que eu... Esse tempo foi muito profícuo.
Conheci o Sttau Monteiro, a Natália Correia. Noites muito engraçadas. E aprendi
bastante com o Ary.
Nessa altura, não lhe passou pela cabeça estudar música?
Só foi muito mais tarde.
Na
altura, percebi que conseguia ganhar dinheiro a fazer música, a fazer
orquestrações. Apesar de não ter ainda - como acabou por acontecer mais tarde -
feito os estudos de música, piano e essas coisas todas, sabia o suficiente para
escrever para violinos, cordas, sopros. Tinha trabalho. O pouco dinheiro que tinha
marchava. Foi muito despreocupadamente que vivi esses tempos. Nunca senti medo
do futuro. Sentia-me rodeado por pessoas que eu considerava meus amigos e
alguns eram, outros nem tanto, mas senti-me sempre protegido e confiante. E
comecei a experimentar drogas.
Que drogas, nessa altura?
É
um processo que começa pela erva, haxe e depois vai-se experimentando outras
coisas. Eu experimentei tudo. LSD também, a certa altura. Muito haxe. Depois
vêm as cocas e a heroína. Houve uma altura em que disse: "Por este caminho
não vou lá!"
E deixou tudo?
Deixei
o grupo, que é o fundamental. Fui para Espanha, com uma guitarra, e também
percebi que podia viver porreiramente a tocar na rua. Comecei em Espanha e
depois França, Paris. E sempre despreocupadamente. Houve uma altura em que via
o pessoal todo à minha volta muito mal. Eu próprio olhava para o espelho e
estava verde. Isso foi com 26 anos. Aos 27 já nunca mais tive nenhum desejo,
pelo contrário, de drogas desse género. Não quer dizer que não dê uma passa,
eventualmente, se me passarem um charro, mas não tenho apetência para isso. No
fundo, reduzi tudo ao álcool, substituí tudo pelo álcool, em termos de
alienação.
O que é que o álcool dá?
Falando
em álcool, até nem é uma ideia agradável. Agora, um bom vinho é um bom vinho,
uma cerveja fresquinha, são coisas boas. Champanhe, conhaque. Dão uma certa
euforia. Mas quando se passa do beber social para um beber excessivo,
compulsivo, aí está o caldo entornado. E aí o beber social já não pode ser
abordado da mesma maneira. É impossível. Porque há aqui um mecanismo. Como é
que é? Um marcador somático adquirido.
É como se chama tecnicamente?
O
meu médico disse-me que é um marcador somático que é adquirido. Portanto, há um
valor que, no meu caso, que tenho uma doença chamada alcoolismo, quando se bebe
dois copos ou três de repente o organismo dispara e não fica contente enquanto
não se atinge esse valor máximo. É tão simples quanto isso.
Vemos agora os miúdos a beber shots e shots. É
assustador.
É.
Estão em grupo de risco. No meu caso, de facto, tenho tantas coisas boas a que
me agarrar. Se tivesse a vida das pessoas que conheci no tratamento, em que já
se perdeu a família, pais e filhos que não se falam, em que não há trabalho,
não há nada a que eles se agarrem, aí compreendo que é muito fácil cair de
novo. No meu caso, não há desculpa.
Lembra-se de si sem tocar piano? Porque começou a tocar
aos 4 anos.
Comecei
a tocar naturalmente. Tinha piano em casa, a minha mãe tocava. E eu tocava o
que ouvia na rádio e nos discos que a minha mãe punha. Imitava. Tenho um bom
ouvido, tenho uma memória musical razoável. A música é o meu meio, faz parte da
minha existência. Deixar de tocar é uma coisa que não me passa pela cabeça. Não
faria sentido.
O seu pai cantava?
Não
viviam juntos. O meu pai cantava muito bem, era muito musical. Tinha uma voz
excelente, de tenor. Ensinou-me os boleros e os tangos, ainda hoje sei. Mas era
autodidata. Onde ele estivesse era a festa e acabava sempre por cantar.
Brilhava. Era um aventureiro, meteu-se em negócios diferentes. Um verdadeiro
chevalier de la fortune.
Mas quando era preciso punha o filho na ordem?
Sim.
Arranjou sempre espaço e atenção para me dispensar quando sentia que era
necessário.
E a sua mãe?
A
minha mãe foi o meu pilar. Morreu atropelada aos 85 anos, em 2002. O meu pai
morreu antes, de cancro no pâncreas. Estava eu na Tailândia quando soube que
aquilo era terminal.
Foi a sua mãe que lhe passou o gosto pelo piano?
E
encorajou-me sempre. Estive na Fundação Musical dos Amigos das Crianças até aos
7, 8 anos e, aí, comecei a ter aulas com a Fernanda Chichorro, uma grande
professora.
E a guitarra?
A
guitarra, durante muito tempo, era o meu instrumento diário porque andava na
estrada. Não dá jeito levar um piano. Mas quando encontrava um piano, mesmo em
França ou na Alemanha, em qualquer sítio, sentava-me a tocar. O piano é
completo, do ponto de vista visual. Estou a tocar uma nota na guitarra e
visualizo essa nota no piano. Depois é uma questão de prática, tocar melhor ou
pior.
Quem não sabe piano não faz essa transposição?
Não,
e não precisará. A mim dá-me jeito, porque o piano é uma orquestra. Tem uma
extensão, uma versatilidade muito grande.
A passagem da chamada música clássica para o rock foi
uma coisa natural na época?
Sim.
Aos 13, 14 anos. O Elvis, o Neil Sedaka, o Jerry Lee Lewis, que tocava piano e
batia com o pé no teclado. Mas os Beatles bateram-me de maneira diferente.
O que é que eles tinham de diferente?
Inovaram.
Desde muito cedo, as letras começaram a ser profundas, sem ser o I Love You...
e a sonoridade deles era... O George Martin foi o músico, o maestro, o
orquestrador que esteve sempre ao lado deles. Beneficiaram muito da capacidade
desse senhor, do conhecimento musical e do bom gosto. Coisas que já existiam na
música contemporânea, como pôr fitas a rodar ao contrário. Ele foi buscar
algumas coisas a esse meio e deu aos Beatles novas sonoridades. No Sgt.
Pepper"s e mesmo antes disso. E havia os Stones, por outro lado.
Com os Stones era outra brutalidade?
É
animal [diz em inglês]. Os Stones... e depois vão aparecendo esses todos, os
Led Zeppelin, etc.
O que é que o Paul Simon trouxe de novo? As letras?
Escrevia
sobre o quotidiano, sobre a rua, tinha letras que nos faziam identificar com
ele.
O Jorge também faz isso, escrever sobre o dia-a-dia.
Um
dos grandes mestres tem sido o Paul Simon, sem dúvida, e o Dylan.
Começou a cantar na rua e no metro em Espanha e em
França. Na Dinamarca também?
Também.
Vivi lá um ano e até fui à rádio, onde toquei uma canção do Sérgio Godinho. Foi
na Dinamarca que compus o meu primeiro álbum, A Viagem na Palma da Mão, porque
lá em casa havia um piano de cauda.
Uma casa com piano de cauda? Como foi isso?
A
casa pertencia a um encenador que eu tinha conhecido cá no verão anterior, ele
tinha tentado montar cá o Godspell e acabou por não conseguir. Mas eu ia
participar. Ofereceu-me a casa para quando fosse à Dinamarca. E portanto foi lá
que fiquei quando saí para não ir à tropa. Consegui licença militar por uma
semana, 15 dias antes da minha data de entrada na tropa, e até viajei com
bilhetes mais baratos, por causa da Mocidade Portuguesa. Foi um alívio, quando
me vi lá. Ele tinha um palacete com quartos alugados a
estudantes-trabalhadores, todos eles. Fez-me muito bem, esse convívio.
Voltou depois do 25 de Abril?
Só
voltei em agosto, porque ainda tentei ficar em Londres mas foi uma grande
confusão. Estava teso, não me queriam deixar ficar em Inglaterra. Perceberam
que eu não ia voltar para a Dinamarca, que não tencionava ficar em Londres só
uma semana. Na minha bagagem até frigideiras tinha. Aquilo ficou a rolar no
tapete, não sei quantas malas. "Ah! Você vem passar uma semana,
claro." E eu, "sabem, eu sou muito esquisito, só gosto de fazer
fritos na minha frigideira..." E tive de usar um argumento que não é
daqueles de que eu mais gosto... Tinha dois amigos a viver em Inglaterra que se
responsabilizavam por mim mas isso não chegava. Então, disse-lhes: "Sou
primo do primeiro-ministro português." E era.
Primo de quem?
Do
Adelino da Palma Carlos. Primeiro disseram: "Até podia ser primo da
rainha..." Mas depois funcionou. Deram-me um visto para 15 dias. Fiquei na
Inglaterra mas percebi que não dava para continuar. Fui para casa de uma tia
minha, francesa, que era chanceler no Consulado de Portugal no Havre. Ainda fui
a Espanha ter com o João Maló, um músico que ainda hoje está aí a tocar e muito
bem. Ele tinha-me falado num trabalho mas aquilo não deu. Então, aluguei um
Mini, em Málaga, e entrei em Portugal pelo Algarve, num belo domingo de agosto,
sem gasolina para chegar a Lisboa. Um GNR emprestou-me gasolina. E eu disse:
"Alto aí! Isto mudou mesmo!"
Foi o seu 25 de Abril?
Aqueles
gajos que andavam a bater-me há dois anos emprestam--me dinheiro!? "Você
não paga nada. Faça o favor! Encha aí o depósito."
Como fez para ganhar dinheiro? Recomeçou a trabalhar?
Vivi
em várias casas alugadas, fui várias vezes despejado. Mas assim que cheguei
tive logo trabalho a fazer arranjos. É nessa altura que faço arranjos para a
Amália, a Tonicha, o Paco Bandeira e muitos outros nomes que, alguns,
desapareceram.
Como era a Amália?
Eu
achei-a muito simpática, muito aberta, muito terra a terra. Gostei dela. Muito
porreira. Acho que eu é que estava naquela de... "trabalhar com uma
fadista e tal". Tive um bocadinho de arrogância. Era aquela coisa da
idade, também, a idade do armário. Mas não a tratei mal, tratei-a bem,
obviamente.
Como era ouvir a Amália sem ser em gravação, diretamente
da voz dela, ali ao lado?
A
voz dela era mesmo boa. Senti que ela era uma pessoa a sério, com caráter,
simples. Gostei muito dela. Tanto que, depois, ela era para ter tido uma série
de programas de televisão e apontou o meu nome para diretor musical. Mas não
chegou a acontecer.
Era um tempo em que as coisas aconteciam de uma maneira
diferente do que depois foi e do que era antes?
Era
uma total independência na maneira de viver e de pensar. Uma irreverência. Um
gajo teso mas a aceitar só aquilo que queria, nas condições que queria. Por
exemplo: "Com a Amália? Então vamos ter uma grande orquestra." E
então só cordas eram vinte e tal! Para mim, foi uma ótima escola, para fazer
experiências. Tinha tido orquestras razoáveis, que eu gravava por naipes: agora
a corda e depois sopros, agora as madeiras... Mas a orquestra maior que tive em
estúdio foi com a Amália.
O ambiente do mundo da música era diferente do de hoje?
Não
se compara com a vida que temos atualmente. Musicalmente, há aí muita gente boa
que, para arranjar um lugar, é muito mais complicado do que na altura em que eu
fui conquistando o meu. Havia menos pessoas, havia menos de tudo. As editoras,
agora, estão moribundas , é outra coisa. Toda a gente se conhecia e bastava eu
estar bem cotado no meio musical, que incluía os centros de poder, e tinha as
portas abertas, de facto. O Mário Martins, da Valentim de Carvalho, apostou em
mim - "o estúdio está livre neste mês todo. Vai para lá".
E as coisas funcionavam sem preocupações?
Era
mesmo o carpe diem. Continuo a ser hedonista. Tenho responsabilidades que não
tinha mas continuo a não me afligir muito com o futuro. Já dei por mim a dizer:
"Envelhecer tem o seu encanto. A gente tem outras armas." Não me
posso queixar muito. Tenho dois filhos e quero ver se eles se orientam bem na
vida.
Um deles, o Vicente, é músico e tem tocado consigo e com
o Gabriel Gomes.
Toca
comigo e tem os seus trabalhos, que não são nada comerciais e é teimoso que se
farta, o que eu acho bem. O mais novo vai agora para a faculdade.
Andou pelo país, no Canto Livre?
Bastante.
Não havia semana em que eu não cantasse n"A Voz do Operário, por exemplo.
O pessoal dava-se por inteiro à causa da liberdade. Ajudar, no nosso caso, era
cantar. Às vezes nas piores condições e quando algum de nós começava a refilar
ficava logo malvisto. "Então mas vocês não estão aqui pelo povo?" Foi
um bocado complicado explicar que a gente tinha de ganhar algum e que pelo
menos tinham de pagar-nos as despesas. Com o Zeca, tinham de ser as pessoas que
trabalhavam com ele a chamar a atenção. O Zeca estava a marimbar-se.
Como ganhavam dinheiro, então?
Ganhei
sempre dinheiro a fazer arranjos, porque mesmo quando comecei a gravar discos
não vendia nada. Eram edições pequenas. Eu comecei por gravar um single, em
inglês, para a Arnaldo Trindade, e fui pago em eletrodomésticos. Um
frigorífico, uma máquina de lavar roupa e tal.
Fez sempre a vida de acordar tarde, trabalhar à noite,
muito noturno?
Muito
noturno, sim, e tinha uma pedalada enorme. Fazia a vida como me apetecia. Uma
vez o Pedro Osório foi a correr atrás de mim, queria bater-me. Estava uma
orquestra à espera e eu cheguei duas horas atrasado. O Pedro já estava verde. E
eu: "Também não valia a pena terem esperado que eu não tenho os arranjos
feitos, tenho de fazer as cópias." Nessa tarde fui bater à porta dele com
uma rosa. Ele não estava, ofereci a rosa à mulher dele. Tenho muita lata. E
expediente. Sempre tive bastante genica e expediente. Uma das hipóteses era
sempre pegar na guitarra e ir para qualquer lado. A guitarra é um passaporte e
um meio de comunicação, é um ganha-pão.
E a voz?
A
voz foi-se fazendo, está melhor do que nunca. Uma das alturas em que estava
verdadeiramente boa e forte foi quando tocava sete ou oito horas na rua e no
metro de Paris. Ganhava resistência, estava sempre a treinar. Na rua, com motos
a passar, é preciso projeção de voz que se vai adquirindo. Estive em Paris, há
umas semanas. Alguns amigos ainda lá estão a tocar na rua e acabei a tocar com
eles todos os dias.
Na rua, agora? Qual é a sensação de fazer isso sem
precisar?
Naqueles
momentos estava a pensar nas palavras, na música. Estava a dar-me com os
músicos que estavam comigo, um contrabaixo, um clarinete, um banjo, foram
mudando. A cantar Paul Simon e Dylan, essas coisas.
As pessoas davam dinheiro?
Eu
não quis nenhum, mas davam muito menos do que na altura em que lá andei, a
coisa está muito pior. Quando lá andei, fazia o dinheiro que queria. Dava para
pagar um hotel porreiro, com casa de banho privativa. A cantar na rua e no
metro, dentro das carruagens do metro que é mais rápido, mais eficaz, tipo
comando: entra-se, toca-se duas músicas ou três, o pessoal não pode fugir...
Alguém passava o chapéu por mim ou eu acabava a música e "quelque chose
pour la musique", e passava à próxima carruagem. Com um amigo com quem
estive agora, o Peter, chegávamos a fazer 800 francos num dia. Era muito
dinheiro. Tax free.
Creio que tocava também Leo Ferré, Jacques Brel, a
música francesa...
...sobretudo
o Ferré e o Brel, um pouco do Brassens. Mas o Brel para mim é o máximo. Genial,
o homem. Aprendi, estudei. Porque é um estudo, estudar as letras, é uma
experiência fundamental. Eu sabia à vontade cem músicas com as letras, porque
não gostava de repetir músicas no mesmo dia, portanto tinha um repertório
enorme, para poder estar sempre a variar.
Fazer uma letra como a do Frágil ou a do Dá-me Lume,
muito diretas, pode parecer fácil. É mesmo?
Não
é evidente. E também não sei como é que se faz, porque a ideia é constatar
qualquer coisa e arranjar a fórmula mais eficaz, que é a simplicidade. Eu não
tenho uma receita para isso.
Como é que começa?
Eu
agora comecei outra vez a escrever, que era uma coisa que não fazia há uns
tempos. Estava aqui, ia para a cama, voltava, pegava na guitarra. Estão a sair
umas coisas engraçadas, o que me dá gozo.
Compõe com guitarra ou com piano?
Neste
grupo de canções, que estou a tentar que tomem forma, a guitarra chega. Mas se
quiser enriquecer ou complicar com harmonias mais complexas, aí vou para o
piano. E às vezes também saem coisas ao piano. Mas se eu consigo cantar à
guitarra é uma boa canção. Depois pode levar com uma orquestra inteira, com o
arranjo que for, mas, se ela resulta à guitarra, há de ser uma boa canção.
Compõe ao mesmo tempo que escreve a letra?
Às
vezes as coisas vão coincidindo. Outras vezes é escrita automática, mesmo.
Muitas vezes é o texto que vai correndo e depois vou apanhando... Para não me
esquecer destas quatro ou cinco, uso o dictafone. Às vezes, estou na cama a
ouvir uma coisa porreira, arranjo um esquema qualquer para no dia seguinte não
me esquecer mas esqueço-me. Basta o ritmo não ser exatamente o mesmo para já
não ser a mesma coisa. Posso visualizar, na pauta, o que eu estou a ouvir e com
compassos - quaternário ou ternário ou não sei quê -, com as pausas e tudo. Mas
no dia seguinte vou reproduzir aquilo e está chocho. Tem de ser no momento.
Agora tenho um smartphone, fica lá aquele bocadinho para depois desenvolver.
Neste momento, está tudo muito em embrião.
Em dois dias ou três compôs quatro ou cinco músicas?
Isso
funciona quase de avalancha: quando uma começa a tomar forma vai abrindo
janelas para outras. Este tema em que estou a abrir três ou quatro frentes,
posso separá-las e depois desenvolver uma dessas frentes, só.
Quando diz "estou a ouvir", está a ouvir onde?
Na
cabeça. Está na cabeça.
Pode estar num sítio qualquer ou precisa de estar
sossegado, sozinho?
Pode
haver confusão, posso estar num café cheio de barulho, que posso concentrar-me
e ouvir.
Quando ouve é uma guitarra ou é uma voz? Ou é uma
melodia tocada ao piano?
Não
é, necessariamente, um instrumento. Será uma frase, um texto. Um pequeno texto,
duas palavras ou três e uma música que já estou a identificar. Estou a acasalar
esse bocadinho de letra e esse bocadinho de música, que eu posso ir buscar uma
referência a uma canção qualquer das que eu conheço. É uma coisa desse género,
com esse espírito. Mas ouço. Se eu quiser estou a ouvir o Ave Maria ou um
excerto de Beethoven ou de Mozart. E estou a ver também na pauta. Como faço
orquestração, estou a ouvir um naipe, estou a ouvir vários instrumentos. Em
escrita vertical ou em contraponto, estou a ouvi-los.
O cérebro humano é extraordinário, não é?
Basta
uma pessoa ser musical e ter desenvolvido essa musicalidade. Como é que o
Beethoven podia ter escrito o que escreveu depois de estar completamente surdo?
Tinha escrito muito, tinha ouvido muito.
Há música má?
Então
não há? Nem sei se nem sequer é música. E há compositores para os quais não
tenho pachorra. Por exemplo, as sinfonias do Bruckner. Gosto mais do Brahms. E
porquê? De onde é que cada um vem e o que é que cada um está a tentar fazer? O
Wagner, de um modo geral, é avassalador, é um génio.
Costuma ir à ópera?
Ia
com a minha mãe, desde os 6 anos, ao São Carlos, ao Coliseu. Vi concertos e
óperas. Vi o Arthur Rubinstein tinha para aí 8 anos e marcou-me. Era uma pessoa
simpática, parecia que estava a fazer aquilo alegremente. Não era carrancudo. E
dava cada balda! É isso que é giro. Quem é que não dá uma pequena balda? O
importante é sentir e saber transmitir o espírito da peça. A nota ao lado é o
menos.
Quando teve Carta Branca no CCB, tocou o que lhe
apeteceu, incluindo clássica.
Toquei
um debussyzinho, um fácil. Já toquei Debussy e algumas peças que dão muito trabalho.
Desaprendi, estupidamente, muita coisa que estudei para exame - Scriabin,
Rachmaninov, Liszt -, tinha aquilo na ponta dos dedos e agora, para voltar a
tocá-los, tenho de trabalhar bastante.
Está a falar do tempo em que fez o curso da Escola
Superior de Música?
Sim.
Fui aluno da Olga Prats em piano, do Jorge Peixinho em composição, da Maria de
Lurdes Martins. O Miguel Henriques aceitou--me quando a Olga deixou as aulas e
um dia disse-me: "Ó menino, ou fazes este ano ou então outro que te
ature!" Tive quatro meses para estudar no duro três prelúdios e fugas de
Bach, um concerto de Mozart, etc. Marrei e consegui. E tive um 17 a piano, 17
de média das outras todas, acústica, formação musical, etc.
Como é a relação entre o músico e o público?
Acabo
sempre por sentir o público, mas pode não ser imediatamente. A primeira coisa
em que estou empenhado é naquilo que estou a fazer, naquilo que vou fazer.
Depois depende da comunicação, da química. O público pode puxar e isso é ótimo,
quando acontece, porque apetece dar mais.
Tem medo do palco, antes de entrar?
Tenho
um nervoso miudinho. Apetece-me ir já. Mas não pode ser ainda porque não está
na hora ou atrasou um bocadinho. Estou desejoso de começar. A partir daí,
esqueço, estou a fazer o melhor que consigo. Acaba sempre por me dar gozo mas
há dias que nem apetece ir tocar. "Logo hoje! Ficava tão bem a ver um
filme." Mas depois a coisa vira completamente.
E como é a ligação aos que estão consigo no palco? Tocou
com tanta gente, em tantos grupos diferentes.
É
bom ouvir o que os outros estão fazer e fazer parte desse jogo, tentar
completar, equilibrar. Estamos a jogar e às vezes vamos reforçar o que o outro
está a fazer, neste momento o solista, ou fazer um contraponto. Já me disseram:
"Eh pá, não ligaste nenhuma ao público." Há sempre momentos em que
estamos no piloto automático e há uma osmose muito grande. E há o momento em
que está ganho, ganhei o público. A rua é uma grande escola, porque temos de
estar sempre a agarrar a pessoa que passa.
A seduzir?
A
seduzir. Há mil truques instintivos e uns que se aprendem. Uma simples mudança
de colocação da voz, uma inflexão que chama o olhar e que nós apreendemos. É
preciso saber agarrar um público itinerante.
Nos últimos tempos tem tocado com o Sérgio Godinho, e há
uma cumplicidade óbvia.
É
tocar com um igual de quem sou fã há muitos anos, desde que ouvi as primeiras
coisas dele. Estamos em pé de igualdade e isso é porreiro. É muito bom, ao fim
de 40 anos, estar a partilhar o palco com um gajo que eu ouvi estava ele no
Canadá, estava eu na Dinamarca.
Quando está a pensar em lançar um novo álbum?
Neste
ano, pelo andar da carruagem, vou gravar alguma coisa. Para já, vou
trabalhando, vendo o que sai. Seguindo este ritmo que agora apanhei, daqui a
pouco tempo tenho um leque de músicas porreiro. Vamos lançar um disco ao vivo,
eu e o Sérgio. Este concerto há de dar disco. Está a ser gravado mas vamos
apontar sobretudo para os dois concertos no Theatro Circo de Braga, a 24 e 25
de setembro.
Está atento aos novos músicos? Como percebe que é bom?
Sente-se.
Ouve-se um bocadinho e vê-se logo se é seca ou se não é.
Quais foram as últimas boas surpresas?
Estou
a descobrir muita gente, gente que já anda aí há uns tempos e estou a gostar de
algumas coisas. Há uns que ninguém conhece, três músicos excelentes, duas
miúdas e um miúdo - a Caixa de Pandora. Tocam muito bem, aquilo é muita fruta!
Tenho aí um disco que tenho ouvido e vale a pena. Estão na base dos virtuosos.
Gostou de cantar com a Aldina Duarte?
Gostei,
é uma pessoa extraordinária que sabe o que quer. Embora a gente a veja coberta
de fragilidade, não é nada frágil. E é muito importante, ao longo deste tempo
todo, o cruzamento com os músicos. Em Portugal, acho que tenho tocado com os
melhores. E em gravações tenho pessoal que vem do jazz, de várias áreas. E nos
tempos de fel das carruagens, dos metros, das esplanadas, também encontrei
pessoas de todo o mundo, a mostrar-me como é que se toca isto e aquilo. E essa
aprendizagem é muito boa.
Da música e da vida?
Da
música e da vida.
In DN de 28 de Agosto de 2015
Ana Sousa Dias
Gosta mesmo de ouvir a voz melodiosa e boémia Jorge Palma?
Então ouça comigo...
Tirado Daqui
Lola
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