Pelo direito à tristeza
“É mais importante notar que a depressão
se tornou uma doença tão relevante (pelo número de doentes e pela gravidade do
sofrimento) porque ela é um pecado contra o espírito do tempo."
No
texto O direito à tristeza, o psicanalista Contardo Calligaris
analisa a obrigação contemporânea de ser feliz constantemente e lastima que
pais transfiram para seus filhos esta ilusória tarefa:
“Será
que vamos conseguir transformar também a tristeza infantil num pecado?"
As crianças têm dois deveres. Um,
salutar, é o dever de crescer e parar de ser crianças. O outro, mais
complicado, é o de ser felizes, ou melhor, de encenar a felicidade para os
adultos.
Esses dois deveres são um pouco
contraditórios, pois, crescendo e saindo da infância, a gente descobre, por exemplo,
que os picolés não são de graça. Portanto, torna-se mais difícil saltitar
sorrindo pelos parques à espera de que a máquina fotográfica do papai
imortalize o momento. Em suma, se obedeço ao dever de crescer, desobedeço ao
dever de ser feliz.
A descoberta dessa contradição pode
levar uma criança a desistir de crescer. E pode fazer a tristeza (às vezes o
desespero) de outra criança, incomodada pela tarefa de ser, para a família
inteira, a representante da felicidade que os adultos perderam (por serem adultos,
porque a vida é dura, porque doem as costas, porque o casamento é tenso, porque
não sabemos direito o que desejamos).
A ideia da infância como um tempo
específico, bem distinto da vida adulta, sem as atrapalhações dos desejos
sexuais, sem os apertos da necessidade de ganhar a vida, é recente. Tem pouco
mais de 200 anos. Idealizar a infância como tempo feliz é uma peça central do
sentimento e da ideologia da modernidade.
É crucial lembrar-se disso na hora em
que somos convidados a espreitar índices e sinais de depressão nas nossas
crianças.
O convite é irresistível, pois a criança
deprimida contraria nossa vontade de vê-la feliz. Um menino ou uma menina
tristes nos privam de um espetáculo ao qual achamos que temos direito: o
espetáculo da felicidade à qual aspiramos, da qual somos frustrados e que sobra
para as crianças como uma tarefa. "Meu filho, minha filha, seja feliz por
mim."
É só escutar os adultos falando de suas
crianças tristes para constatar que a vida da criança é sistematicamente
desconhecida por aqueles que parecem se preocupar com a felicidade do rebento.
"Como pode, com tudo que fazemos e fizemos por ela?" ou "Como
pode, ele que não tem preocupação nenhuma, ele que é criança?". A criança
triste é uma espécie de desertor; abandonou seu lugar na peça da vida dos
adultos, tirou sua fantasia de palhaço.
Conselho aos adultos (pais, terapeutas
etc.): quando uma criança parece estar deprimida, o mais urgente não é
reconhecer os "sinais" de uma doença e inventar jeitos de lhe
devolver uma caricatura de sorriso. O mais urgente, para seu bem, é reconhecer
que uma criança tem o DIREITO de estar triste, porque ela não é apenas um
boneco cuja euforia deve nos consolar das perdas e danos de nossa existência;
ela tem vida própria.
Mais uma observação para evitar a
precipitação. Aparentemente, nas últimas décadas, a depressão se tornou uma
doença muito comum. Será que somos mais tristes que nossos pais e antepassados
próximos? Acredito que não. As más línguas dizem que a depressão foi promovida
como doença pelas indústrias farmacêuticas, quando encontraram um remédio que
podiam comercializar para "curá-la". Mas isso seria o de menos. É
mais importante notar que a depressão se tornou uma doença tão relevante (pelo
número de doentes e pela gravidade do sofrimento) porque ela é um pecado contra
o espírito do tempo. Quem se deprime não pega peixes e ainda menos sobe no
bonde andando.
Será que vamos conseguir transformar
também a tristeza infantil num pecado?
Claro que sim. Aliás, amanhã, quando seu
filho voltar da escola, além de verificar se ele não está com frieiras, veja
também se ele não pegou uma deprê. E, se for o caso, dê um castigo, pois,
afinal, como é que ele ousa fazer cara feia quando acabamos de lhe comprar um
gameboy? Ora! E, se o castigo não bastar, pílulas e terapia nele. Qualquer
coisa para evitar de admitir que a infância não é nenhum paraíso.
Fronteiras do Pensamento
por Contardo Calligaris/
Folha
de S.Paulo
18.02.2015
Lola
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