Fernando Pessoa-Heterónimo, óleo sobre tela, 1978.
Pintura de António Costa Pinheiro - FCG, Centro de Arte Moderna, Lisboa
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Que sentido para o conceito de
Identidade Pessoal?
Ensaio Filosófico - 2015
Abstrato/ Resumo
Este Ensaio filosófico tem como objetivo responder às indagações
filosóficas:
“Em que consiste a
identidade pessoal ao longo do tempo?” e “Que critério é necessário e
suficiente para garantir a sobrevivência do eu ao longo do tempo?”. Interrogações estas que remontam
à génese da filosofia ocidental e que, uma vez respondidas confortam o problema
de caráter central relacionado com o conceito de Identidade Pessoal.
O trabalho
apresenta uma análise da teoria reducionista que se baseia na desvalorização da
identidade pessoal e que constitui o cerne do ensaio filosófico. Por outro
lado, tenta demonstrar tanto a insuficiência dos critérios físicos como dos
psicológicos na tentativa de definição de Identidade Pessoal. Aborda também o
sentido do conceito de identidade pessoal, analisa o problema da persistência e
por ultimo tenta uma abordagem centrada na exploração de outras questões
relativas à persistência da identidade pessoal que embora não necessariamente
contidas nesta são pertinentes no contexto geral do ensaio filosófico.
Contrapondo às
limitações da noção de identidade pessoal, a teoria de Derek Parfit
apresenta-se como sendo uma visão mais flexível, mais funcional e,
provavelmente, uma alternativa melhor ao conceito de identidade pessoal,
estando portanto, na base da tese defendida ao longo de ensaio filosófico.
O trabalho
apresenta conclusões que propõem a reflexão sobre as nossas convicções, sobre o
seu significado, e, quem sabe, a consciência de contradições inerentes a estas.
Abstract
This
philosophical essay has as it’s objective answering to the question: “In
what consists Personal Identity over time?”. A question that dates
back to the genesis of western philosophy, and that once conveniently
answered, solves the problem of “What are we?”.
This work
presents an analysis of the reductionist theory in which the devaluing of
personal identity is based and that is at the heart of this essay; demonstrates
the insufficiency of both physical and psychological criterions of personal
identity; analysis the problem of persistency e and explores other questions
relative to the persistence of personal identity which are not necessarily
contained in it but which are pertinent in the general context of this
philosophical essay.
Contrasting the limitations of the notion of personal identity, Derek
Parfit’s
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
theory presents
itself as a more flexible vision, more functional and generally a better
alternative to the concept of personal identity, being this position of ours,
thus, at the basis of the thesis defended throughout this philosophical essay.
The article
presents final thoughts that propose a reflexion about tour deep convictions,
about their meaning, and, who knows, the recognizing of contradictions inherent
in these.
Antes de mais…
Consideremos
uma situação em que alguém é condenado pelo assassinato de outrem e as
evidências são esmagadoras. No entanto, será que são suficientes para provarem
que aquele detido é quem premiu o gatilho? Como poderá a Filosofia ajudar-nos a
solucionar este caso?
Em
Filosofia, há um conceito- o de Identidade Pessoal, que atribui a cada pessoa
uma identidade numérica única e que as diferencia entre si. Portanto, bastaria
apenas descobrir qual o critério, ou critérios, necessário (/os) e suficiente
(/es) para que duas pessoas apresentem a mesma identidade pessoal e,
logicamente, sejam uma só, para resolver o problema acima.
Infelizmente,
a experiência demonstrou inúmeras vezes que a verdade é mais ilusória do que se
poderia previamente ter suposto, pois todos os critérios de Identidade Pessoal
descobertos até ao momento são alvo de controvérsia. O nosso ensaio filosófico
é um desafio e uma tentativa de fazer a defesa de uma das muitas respostas
possíveis.
Por outro
lado, esta pergunta é apenas uma das muitas que surgem em virtude de sermos
pessoas e de, portanto, ao longo das nossas vidas, nos irmos transformando a
diversos níveis (fisiológico, emocional, cognitivo, social, económico, e outras
p que demonstra que o sentido do conceito de identidade pessoal não se
restringe apenas a esta primeira, estendendo-se, na verdade, a inúmeras
indagações, que remontam à génese da filosofia ocidental e que podem ser
respondidas uma vez refletido o problema de caráter central acima enunciado.
Estas questões incluem, por exemplo: “Quem sou eu?”; “O que me torna uma
pessoa?”; “O que sou eu?”; “O que realmente contribui para a minha
identidade?”; “Sou responsável por crimes que aparentemente cometi no passado?”
e muitas outras.
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
Que tese defendemos nós?
A questão
por nós abordada é aquela da persistência do eu: “Qual o critério necessário e
suficiente para garantir a sobrevivência do eu ao longo do tempo?”, o que é
nada mais nada menos do que perguntar, no âmbito da situação anterior: “ Como
posso saber que o criminoso ainda pode ser condenado? Como posso saber
que ele ainda existe?
De facto,
num âmbito mais geral, podemos formular esta questão do seguinte modo: “Em
que consiste a identidade pessoal ao longo do tempo?”.
A nossa
tese é de que devido às limitações da noção de identidade pessoal, é necessário
procurar uma nova visão, mais flexível, mais funcional e que melhor explique a
continuação ou não da existência das pessoas através do tempo. À vista disso, a
resposta que consideramos como sendo a melhor alternativa ao conceito de
identidade pessoal é a que Derek Parfit apresenta no seu livro Reasons and
Persons e nos artigos
Personal Identity e The
Unimportance of Identity[1]
Mas, antes
de explicarmos porque defendemos a posição de Parfit através de uma sequência
argumentativa que parte de várias situações fictícias, mas ainda assim
interessantes, não pela sua factualidade, mas sim por nos permitirem refletir
sobre as nossas convicções, sobre o seu significado, e, quem sabe, tomarmos
consciência de contradições inerentes a estas, apresentaremos a definição de
Identidade Pessoal e o problema da persistência.
Primeiramente,
há que distinguir entres os sentidos quotidiano e filosófico da palavra. No
quotidiano, a Identidade Pessoal refere-se às caraterísticas sob as quais o
indivíduo sente uma forma de posse, ou seja, que sente que contribuem para a
sua identidade qualitativa
Em
Filosofia, Identidade Pessoal é a identidade numérica única de uma pessoa sendo
que, por isso, não é possível analisar a questão da persistência sem
primeiramente nos referirmos aos chamados critérios de Identidade Pessoal.
Existem
diversos critérios que podem ser incluídos nas seguintes categorias: critérios
físicos e critérios psicológicos.
Assim, a identidade
pessoal é um conceito fundamental em questões como a persistência da pessoa
depois da morte e a responsabilidade jurídica por atos ilícitos cometidos no
passado, pois lida com questões filosóficas que surgem sobre nós próprios em
virtude de sermos pessoas [2]
1
- Parfit, Reasons
and Persons, capítulo 3
- Parfit, Personal
Identity
- Parfit, The Unimportance of Personal
Identity
2 - Stanford Encyclopedia of Philosophy,
Personal Identity, 2015
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
No sentido
de melhor compreendermos este conceito, é de toda a pertinência analisar a
questão da persistência.
A questão
da persistência, da qual trata este ensaio consiste em tentar determinar o que
é necessário, essencial e suficiente para que alguém no passado seja alguém no
presente, ou seja, para que ambos partilhem da mesma identidade numérica.
Citemos um
exemplo: se eu olhar para uma foto que tirei a mim próprio há um ano, estarei
realmente a olhar para mim próprio ou trata-se de outra pessoa?
Certamente,
a pessoa na fotografia é qualitativamente diferente de mim, mas ainda assim a
minha intuição diz-me que sou eu. Será possível fundamentar racionalmente esta
conceção?
Para tal,
alguns supõem tornar-se necessário definir o que é uma pessoa. Mas, por outro
lado, esta conceção supõe um critério universal de persistência, o que não é
claro. Por exemplo, uma “pessoa imaterial” poderia ter condições de
persistência diferentes das de alguém material, no caso de considerarmos um
critério físico.
É ainda
necessário distinguir a questão da persistência de uma outra perspetiva
aparentemente semelhante mas fundamentalmente diferente e que radica na
seguinte questão: “O que é necessário para que alguém continue a ser
fundamentalmente a mesma pessoa de um momento para outro?”.
A ideia
fundamental subjacente à questão levantada é que sofrendo de perda de memória,
ou de alguma deficiência grave, por exemplo, um indivíduo deixaria de ser a
pessoa que era anteriormente.
O que torna
esta questão fundamentalmente diferente da questão da persistência de que
alguém pode sobreviver não sendo a mesma pessoa, já que o indivíduo que
mudou de personalidade é agora uma pessoa diferente. Não se trata
de deixar de ser uma pessoa, trata-se de deixar de ser o tipo de pessoa que se
era anteriormente devido a mudanças ocorridas. Trata-se de mudar de identidade
qualitativa e não de identidade numérica.
Compreendemos
assim que esta questão nada tem a ver com a questão da persistência. O problema
da persistência aponta a algo mais fundamental, ou seja, à persistência de um
“eu”, sujeito da experiência subjectiva, que se pode verter na questão: “O
que é que é necessário e suficiente para que o sujeito da experiência subjetiva
persista de um momento para outro?”.
Formalmente, podemos apresentar a seguinte formulação geral:
1.
Se uma pessoa x existe num momento e uma pessoa y existe noutro, sob
que hipotéticas circunstancias é que x é y?
Compreendemos que, a questão da persistência é
mais extensa do que a referida anteriormente na medida em que, existem outras
questões relativas à persistência da
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
identidade pessoal que
não estão contidas nesta. Como, por exemplo, se podemos sobreviver num estado
vegetativo ou se já fomos embriões.
De facto, de acordo com critérios psicológicos de
identidade pessoal estas entidades
(embriões, pessoas em estado vegetativo…)
não são, efetivamente, pessoas.
Por fim, é
também importante inferir, que é totalmente possível, pela definição de
identidade pessoal 3, que dois seres humanos sejam semelhantes em todos os
sentidos e não sejam idênticos, basta apenas que existam ao mesmo tempo.
Daí que
este problema seja levantado quando se aborda o tema da clonagem, que
discutiremos adiante, e que nos leva a considerar, entre outras situações, que
duas pessoas partilham da mesma identidade numérica em virtude de partilharem a
mesma identidade qualitativa, mesmo que em simultâneo.
Clarifiquemos
sinteticamente que a teoria reducionista na qual se baseia a desvalorização da
identidade pessoal que está no cerne deste ensaio.
A Teoria de Derek Parfit
Derek
Parfit[4] foi um dos
primeiros teóricos contemporâneos a explorar a relação entre identidade e ética
explicitamente nos artigos: "Personal Identity" e especialmente
"Later Selves
and Moral Principles". Em “Reasons and Persons”, Derek Parfit defende uma
visão reducionista da identidade pessoal. De acordo com um reducionista, as
pessoas não são nada para além da existência de certos estados mentais e/ou
físicos e suas várias relações.
Parfit
acredita que a identidade pessoal pode ser reduzida a um conjunto de critérios
que são necessários para se supor que as pessoas existem. Ou seja os fatos
sobre pessoas e identidade pessoal consistem em fatos mais particulares sobre
cérebros, corpos e uma série de eventos físicos e mentais inter-relacionados.
Os argumentos de
Parfit a favor do reducionismo são impressionantes e importantes mas os nossos
propósitos centram-se na forma como o autor defende a surpreendente conclusão
de que a relação de identidade não é de facto o que importa na sobrevivência.
Assim em Reasons
and Persons Parfit afirma: "na visão reducionista, a existência de
cada pessoa depende apenas da existência de um cérebro e um corpo, a realização
de determinados atos, o pensamento de certos pensamentos, a ocorrência de
certas
3 - Identidade
Pessoal: O conceito de identidade pessoal refere-se à identidade numérica única
de uma pessoa através do tempo.
4 - Derek Parfit
(nascido a 11 de Dezembro de 1942) é um filósofo britânico que se especializa
em identidade pessoal, racionalidade, ética, e as relações entre estas. Parfit
trabalhou na Universidade de Oxford durante toda a sua carreira académica, e
como Emeritus Senior Research Fellow em All Souls College, Oxford. É também um
professor visitante de Filosofia nas universidades de Nova York, Harvard, e
Rutgers, e foi galardoado em 2014 com o Prémio Rolf Schock.
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
experiências, e
assim por diante."[5] Assim como não são capazes de pensar que um clube social tem qualquer
estatuto ontológico para além da existência de seus membros e suas relações com
o outro, também as reivindicações reducionistas afirmam que o que possibilita a
existência das pessoas são os vários eventos físicos e psicológicos que a
caracterizam. Assim, Parfit acredita que "o fato da identidade de uma
pessoa ao longo do tempo apenas consiste na realização de fatos mais
particulares." [6]
Desta
forma, Parfit acredita que os fatos sobre a identidade pessoal consistem apenas
em fatos mais específicos sobre a continuidade psicológica e / ou conexão, e
assim que a identidade pessoal pode ser reduzida a essa continuidade e / ou a
uma conectividade.
Para
começar, ele sugere, por vezes, que o critério de identidade pessoal mais
plausível é o critério psicológico. Este critério sustenta que, para X ser
idêntico a Y, eles devem ser exclusivamente psicologicamente contínuos.
Continuidade psicológica é, potencialmente, uma ramificação, um-muitos, ou seja,
ela pode conseguir ramificar-se entre mim-agora e mais de uma pessoa no futuro.
Mas a identidade é uma relação de equivalência - é reflexiva e simétrica - por
isso detém uma relação só possível de um-um.
Além disso,
uma vez que a identidade pessoal consiste apenas nesta continuidade psicológica
quando se tem em conta critérios como uma “não-ramificação”, ou “um-um”, a
identidade pessoal é, como Parfit diz, “A identidade pessoal não é o que
importa. O que importa fundamentalmente é a Relação R, com
qualquer causa.” [7].
Parfit está
consciente de que a sua visão da identidade pessoal é, contrária à normal visão
do senso comum, e que, se a sua visão estiver correta, muitos de nós temos
falsas crenças sobre a identidade pessoal. Para além disso, como muitos dos
nossos pontos de vista sobre questões relacionadas com a moralidade são
baseadas no nosso conhecimento sobre a identidade pessoal, é possível que a
visão reducionista de Parfit abale as nossas crenças morais. No entanto,
considera que, se essas mudanças acontecessem, elas representariam uma melhoria
em relação às nossas crenças anteriores e noções morais.
5 - Parfit, Reasons and Persons, pp. 211
6 - Idem, p. 210.
7 - Parfit, Idem, p. 217.
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
From Above
Sendo
apanágio da Filosofia o desacordo crítico, Mark Johnston, professor de
Filosofia em Princeton, rejeita a noção constitutiva de identidade pessoal de
Parfit em: Human Concerns Without Superlative Selves e propõem uma tese
que defende a preservação do significado de personalidade (como facto de nível
superior) através de um argumento a que o próprio chama de "Argument from
Above".
Johnston
refere que Parfit cometeu a falácia da composição pois: "mesmo que os
fatos de nível inferior [que no seu conjunto formam a identidade] não tenham
importância em si mesmos, o facto de nível superior pode importar. Se isso
acontecer, os fatos de nível inferior terão, por sua vez, um significado
derivado. Assim, eles vão ter significado, não em si mesmo, mas sim porque são
eles que constituem o fato de nível mais alto.” [8]. O que importa
fundamentalmente é a Relação R, com qualquer causa. Esta relação é o que
importa mesmo quando, como no caso em que uma pessoa mantém a relação R com
duas outras pessoas, a Relação R não provê a identidade pessoal" Parfit
defende-se dizendo que não é a personalidade em si própria que tem significado,
mas sim os factos em que a pessoalidade consiste e que lhe concedem o seu
significado.
Para
ilustrar esta diferença com o Johnston, Parfit faz uso de um exemplo de um
paciente com danos cerebrais que se torna irreversível a nível do inconsciente,
assumindo através dele que a sua opinião é a mais plausível.
No exemplo,
o paciente está, certamente, ainda vivo, sendo esse fato separado do fato de
que o seu coração ainda esteja a bater e que outros órgãos ainda estejam a
funcionar. No entanto o facto de o paciente estar vivo não é um facto
independente ou obtido separadamente dos outros fatos.
O paciente
estar vivo, embora irreversivelmente inconsciente, consiste e deriva
simplesmente dos outros fatos ( é ao constatarmos que os órgãos internos estão
ainda em funcionamento que concluímos que o paciente ainda está vivo).
Parfit
explica esta conclusão através do "Argument from Below" . Podemos
arbitrar o valor do coração e dos outros órgãos que ainda estão a trabalhar sem
ter que atribuir-lhes um significado derivado, como a perspectiva de Johnston
ditaria.
Parfit
acredita que seu argumento é mais plausível neste exemplo através dos seguintes
pontos cruciais: se o fato X ( superior) consiste inteiramente em fatos mais
particulares, então X não é um fato independente ou obtido separadamente. E X é
também, em relativamente a esses outros fatos, apenas um fato conceptual. Pois
é um fato que resulta da aplicação dos nossos conceitos. A questão, então, é a
seguinte: por que razão um fato meramente conceptual deve importar, quando os
fatos de nível inferior não importam?
A afirmação
de que se X consiste inteiramente em fatos mais particulares que, X é,
portanto, apenas um fato conceitual não é sustentada por nenhum argumento,
podendo ser até contestada. Se consideramos o caso de uma estátua inteiramente
constituída por mármore, seguindo a lógica do exemplo apresentado por Parfit,
todos os fatos sobre a estátua consistiriam inteiramente em fatos sobre a massa
do mármore. No entanto, nem todos os fatos sobre a estátua são apenas fatos
conceptuais, e não é
8 - Mark Johnston, Human Concerns Without
Superlative Selves.
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
racional afirmar
que todos os fatos da estátua consistem em fatos da massa do mármore.
Assim,
parece-nos que nem todos os factos que consistem inteiramente em fatos
inferiores , são fatos conceituais, e talvez esta seja a verdadeira origem do
desacordo entre Johnston e Parfit: são os fatos sobre a identidade pessoal
semelhantes aos fatos sobre o ser "vivo" ou ainda como os fatos sobre
estátuas? Se existem diferentes tipos de factos completamente constituídas
(alguns conceptuais, outros não), então para que a teoria de Parfit esteja
correta a "identidade" é meramente conceptual.
Paradoxo do Navio de Teseu
Como vimos
anteriormente, segundo Parfit, materialista e reducionista constitutivo, a
identidade é um facto, distinto de factos sobre corpos, fenómenos e estados
psicológicos mas não independente destes, ou seja, apenas um facto sobre a
nossa linguagem [9]. Não sendo, portanto, uma nova informação sobre a realidade, pois o
contrário implicaria a existência de algo como egos cartesianos, algo a que
este se opõe, já que não existe qualquer evidência da existência destes. [10]
Deste modo,
é possível fazer uma leitura interessante do paradoxo do navio de Teseu baseada
no artigo The unimportance of Personal Identity de Derek Parfit, em que
este contempla um problema semelhante, quase que uma reformulação deste
paradoxo, mudando apenas o navio de Teseu por cérebros humanos. Quando Parfit
apresenta a sua versão deste paradoxo o seu objetivo é demonstrar que as
teorias que baseiam a identidade numérica única de um objeto nos seus
constituintes físicos são contraditórias. Reflitamos a realidade da sua
argumentação.
Portanto, começaremos por apresentar uma formulação deste paradoxo: [11] [12]
" (1) Versão Simples:
Seja A = O navio em que Teseu começou a
sua viagem.
Seja B = O navio em que Teseu terminou
sua viagem.
A questão
não é apenas se "A=B?"; suponha que Teseu havia deixado uma peça
original do barco A no barco B. Uma peça de A é o suficiente para fazer A
idêntico a B? Se não, seria idêntico a B supondo que ele havia deixado duas
peças e assim
9 - Parfit, The Unimportance of
Identity, p.23
10 - “O pensamento
é distinto da matéria," dizes tu [Descartes]. Mas que provas tens tu? É
pois a matéria é divisível e concreta, e o pensamento não? [...] Fracos,
intemperados pensadores! A gravidade não é madeira, nem areia, nem metal, nem
pedra; movimento, vegetação, vida também não são coisas, e ainda assim vida,
vegetação, movimento, e gravitação, são atribuídos à matéria.” O
Dicionário Filosófico de Voltaire, Voltaire (1764)
11 - Cohen, Identity,
Persistence, and the Ship of Theseus, 2004
12 - S. Marc Cohen, Professor Emeritus do
departamento de Filosofia da Universidade de Washington
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
sucessivamente.
Urge então a questão: “Onde devemos desenhar a linha que permite a identidade
do barco?”
Pois, caso
contrário a identidade seria uma relação de grau, algo que abordaremos no
recorrer da nossa reflexão.
“(2) Versão
Complexa: Igual a versão simples, mas com uma adição - seguindo Teseu havia um
outro barco, o Carniceiro, que recebe as partes que Teseu atira ao mar e
utiliza-as para se reconstruir. O Carniceiro ao chegar ao porto é um navio que
é composto precisamente das peças que compunham o navio em que Teseu começou a
viagem. Este aporta na doca ao lado do navio que Teseu aportou.
A versão
complexa dá origem a dezenas de perguntas e análises sobre a identidade de
ambos navios que buscam de uma resposta que forneça o conjunto de condições
necessárias e suficientes para identificar a identidade do navio de Teseu e do
navio Carniceiro."
Paremos um pouco nos argumentos de Parfit.
Segundo o autor, os
critérios físicos são incoerentes pois se substituirmos as peças do navio uma a
uma temos que o navio é o mesmo, enquanto que se as substituirmos todas em
simultâneo obtemos um barco que não é mais o mesmo [13]. Isto não é razoável porque as duas operações são equivalentes já que
o resultado final e as operações ocorridas são exatamente as mesmas., embora
mude a sua sequência (Caso
1: retirar,
colocar, retirar, colocar…; Caso 2: retirar todas as peças, colocar todas as
novas).
Como se
nota, Parfit demonstra que os critérios físicos de identidade pessoal não são
coerentes e, portanto, desconsidera-os.
No entanto,
estes não são os únicos critérios de Identidade Pessoal, pois há também os
psicológicos, embora à partida se desconsidere os critérios que envolvem a
existência de Egos Cartesianos, já que no seu trabalho Parfit argumenta por uma
definição reducionista de pessoa, ou seja, para ele, uma pessoa é um sujeito de
experiência subjetiva não independente de um corpo, cérebro, e uma série de
eventos físicos e psicológicos, mas, ainda assim, distinta destes.
Portanto,
resta-nos agora procurar demonstrar a insuficiência dos critérios psicológicos
de identidade pessoal.
Identidade pessoal: Um conceito recorrente?
13 - Parfit, The Unimportance of
Identity, p.25
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
Paradoxo da memória
de Locke
A
interrogação filosófica sobre a identidade pessoal foi formulada, pela primeira
vez, por John Locke, ns sua obra Ensaio sobre o Entendimento Humano.
O problema
apresentado por Locke consiste na determinação de um critério que permita uma
constante re-identificação de uma pessoa ao longo do tempo. Por exemplo, o que
é que nos permite ter a certeza que uma determinada pessoa é ainda que existiu
no passado? Ou seja, o que permite a existência de um fio de continuidade
existente entre as nossas experiências atuais e as nossas vivências passadas?
Na
linguagem quotidiana a continuidade da identidade pessoal ao longo do tempo é
indiscutivelmente uma crença confortavelmente aceite. Quando se diz «eu fui ao
Algarve no ano passado», tal afirmação subentende continuidade e reconhecimento
entre aquele que tomou a decisão e aquele que visitou o local. Contrariamente,
do ponto de vista lógico, são duas pessoas distintas, uma vez que, segundo o
princípio da indiscernibilidade dos idênticos (ou «lei de Leibniz»), invocado
por Quine, diz que se x e y são o mesmo objeto,
tudo o que for verdadeiro em x será também verdadeiro em y, assim
duas coisas só são as mesmas se e somente se apresentam as mesmas
propriedades nas mesmas circunstâncias.
Torna-se
evidente que o conceito de identidade assume duas variantes específicas: por um
lado, expressa a noção de equivalência lógica e, nesse caso, nenhuma pessoa é
igual ao longo do tempo. Mas, por outro, tem ainda o poder de referência a um
sujeito que se reconhece como tal ao longo do tempo.
Ou como nos
diz Platão: "reconhecemos que cada ser vivo possui uma existência
individual e própria e por isso se diz que é o mesmo indivíduo desde a infância
até que envelhece; claro que esse indivíduo não conserva nunca as mesmas
características, mas entretanto reconhecemos que é ele mesmo”
Platão, Banquete p. 207 [14]
Que critério(s) para determinar a
identidade como pessoas?
Desde muito
cedo vários filósofos defendem à memória como critério suficiente
na determinação da nossa identidade como pessoas.
Esta
hipótese é invocada por John Locke quando procura determinar o que entende por
pessoa. Diz-nos o autor: "Para sabermos no que consiste a identidade
pessoal, temos que ter em consideração o que é a pessoa; a qual,
penso, é um ser pensante e inteligente, que tem razão e reflexão, e que
pode aperceber-se de si mesmo como si mesmo, como a mesma coisa pensante em
diferentes tempos e espaços. [...] A identidade pessoal consiste: não na
identidade da substância, mas [...], na identidade da consciência, pelo
que, se o mesmo Sócrates acordado e a dormir não possuir a mesma consciência,
Sócrates acordado e a dormir não é a mesma pessoa.”15
Assim,
segundo Locke, o critério e a faculdade que possibilita a continuidade da
identidade pessoal de uma pessoa é a memória.
14 - Platão, O Banquete p. 207
15 - Locke, An Essay concerning Human
Understanding, Livro II, Capítulo I
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
Quando
estabelecemos a memória como critério fundamental da identidade pessoal não
estamos, no entanto, a referir-nos à nossa capacidade de preservar o
conhecimento de certos factos na nossa mente. O que está em causa não é tanto a
memória como registo de dados, em que, por exemplo, me recordo que Vasco da
Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia, mas antes a recordação de
acontecimentos que foram experienciados por mim, na primeira pessoa. É este
tipo de memória que vai permitir a articulação de estados mentais diferentes
como sendo pertencentes a uma só e mesma pessoa. É este tipo de memória que
permite a cada indivíduo saber que foi ele, e não outro, que realizou um
conjunto de acções. Se, como vimos, o problema da identidade pessoal designa,
em termos epistemológicos, o poder de re-identificação de uma pessoa ao longo
do tempo, tal poder parece subentender, no mínimo, a presença da memória como
capacidade de recordação de si em momentos temporais distintos.
A esta
hipótese da memória como critério necessário e suficiente levanta tantos ou
mais problemas do que aqueles que procura solucionar.
Se o critério
fosse correto, tal significaria que nos confrontaríamos com o absurdo de
existir múltiplas pessoas no mesmo indivíduo, visto ser impossível a um ser
humano preservar as mesmas recordações em todos os momentos da sua vida.
Surgindo
assim um paradoxo, se alguém se recordasse da sua adolescência, mas não da sua
infância, seria ele a mesma pessoa que foi na adolescência mas não a mesma
pessoa que foi na sua infânica? E se o adolescente ainda se lembrasse, por sua
vez, da sua infância, seria o adulto a mesma pessoa que foi na infância ou não?
E poderia ele ser sequer a mesma pessoa que foi em adolescente, visto que este
ainda tinha frescas as memórias da infância, período do qual em adulto não se
lembrava?
Devido a
esta dificuldade podemos presumir que a memória pode ser uma evidência da
identidade pessoal, no entanto não é a memória o critério para a sua
existência. Deste modo, o uso da memória é uma condição necessária mas não
suficiente na determinação da unidade enquanto pessoa.
Uma vez demonstrada
a insuficiência tanto dos critérios físicos quanto dos psicológicos, coloca-se
agora a questão de qual a utilidade do conceito de identidade pessoal.
Será que pode haver sobrevivência sem identidade pessoal?
Neste âmbito, consideremos os seguintes casos que Parfit nos
apresenta. [16]
16 - Parfit, Personal Identity,
capítulo IV, pp. 17-21
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
A. Fusão
Imagine-se
um cientista muito pouco ortodoxo que decide combinar duas pessoas A e B numa
só, C, ou seja, juntar num só ser humano as características tanto físicas
quanto psicológicas de A e as de B, eliminando as contradições, de modo criar
um indivíduo que é em todos os sentidos semelhante a A e a B, e que possui uma
relação R com ambos, sendo que tanto A como B têm os seus corpos destruídas no
processo. Quem sobreviveu? Qual a identidade de C? É C idêntico a A, a B, nem a
A nem a B, ou a ambos? Qual a utilidade do conceito de identidade pessoal neste
caso?
Inicialmente,
poderá parecer obvio que um tratamento de tal ordem equivaleria à morte, mas
Parfit apresenta-nos dois argumentos por analogia que contraria a nossa tese
que temos dificuldade em contra argumentar:
1)
Embora um tratamento deste género cause mudanças profundas num dado
indivíduo estas não são por si só razão suficiente para este equivaler à morte,
apenas alguém muito satisfeito com a sua personalidade e físico atuais pensaria
assim, afinal muitos de nós aceitamos tratamentos com efeitos similares.
2)
O “controlo intencional” de um indivíduo nestas circunstâncias seria
análogo aquele que ele teria num casal.
Deste modo,
somos novamente confrontados com uma situação em que o conceito de identidade
pessoal não tem nenhum significado prático, pois independentemente da resposta
que nós estabelecermos como correta não estaremos a concluir sobre o que
acontece na realidade. Tal deve-se a que a identidade pessoal ser meramente um
facto conceptual, ou seja, sobre a nossa linguagem (tal como dizermos que 469
arvores numa colina são uma mata).
Assim,
torna-se necessário decorrer sobre o que importa na identidade pessoal, sendo
que a proposta de Parfit é de que a sobrevivência é o que realmente importa.
Portanto, este
considera que são sinónimas as seguintes interrogações: “Haverá alguma pessoa
futura com a qual sou numericamente idêntico?” e “Sobreviverei?”.
De facto,
uma das razões da popularidade dos critérios psicológicos de Identidade Pessoal
é facto de que estes permitem que, em situações normais, a Identidade Pessoal
esteja associada à sobrevivência.
No entanto,
como já observamos anteriormente os critérios psicológicos são insuficientes em
casos de fusão e no caso do paradoxo da memória de John Locke, pelo que Parfit
considera que estes são úteis não como critérios de Identidade Pessoal mas sim
como critérios de sobrevivência.
Portanto,
Parfit denomina esta relação de continuidade psicológica que garante a
sobrevivência do sujeito “relação R”.
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
Contudo, ao contrário da Identidade Pessoal, a relação R não é
transitiva nem unívoca, pelo que o número de pessoas com as quais temos
continuidade psicológica não é relevante, porque embora fazer tal reivindicação,
apenas no caso de nos considerarmos algo como Egos Cartesianos, o que se nega
em detrimento de uma visão sob a qual nós não somos seres humanos, no sentido
de seres vivos, mas sim algo distinto embora não independente destes, é que
poderíamos fundamentar tal convicção.
Assim, defendemos que embora inconscientemente e
de forma irrefletida muitos de nós, de alguma modo, ainda mantemos a crença de
que somos algo como almas, mesmo no contexto deste exercício de filosofia
analítica.
Feita esta reflexão, as propriedades da relação
R, embora pouco intuitivas, não aparentam serem contraditórias.
Para alem disso, esta visão leva a algumas
consequências interessantes, como, por exemplo, ser possível sobreviver através
dos filhos ou dos netos na medida em que através da educação e da convivência
se estabelece uma relação R, embora provavelmente de baixo grau.
Por outro lado, quando se considera a
sobrevivência uma relação de grau e não uma questão dicotómica, ou seja, quando
considerarmos que nem todas as questões sobre identidade pessoal têm uma
resposta significante (sendo que as restantes seriam meras convenções
linguísticas assindéticas) torna-se mais difícil considerar mais racional agir
em interesse próprio do que de acordo com princípios morais e pensar sobre o
envelhecimento e a morte torna-se num exercício menos depressivo, sendo estas
algumas das vantagens da separação de Identidade Pessoal e sobrevivência.
Para reforçar ainda mais este ponto, Parfit
apresenta-nos o caso de uma situação que pode por em causa a continuidade
psicológica e que é a possibilidade de ser se psicologicamente contínuo com
duas pessoas passadas ou futuras ao mesmo tempo. Se a parte superior do cérebro
de uma pessoa (responsável por funções mentais) fosse transplantada, o
destinatário, embora com importantes diferenças psicológicas, seria
psicologicamente contínuo com essa pessoa.
B. Fissão
A visão de continuidade psicológica implica que a
pessoa que teve parte do cérebro transplantado e o destinatário seriam a mesma
pessoa.
Mas agora
suponhamos que ambos os hemisférios do cérebro são transplantados, cada um numa
cabeça vazia diferente. Os dois destinatários chamá-los-emos de A e B, sendo
cada um psicologicamente contínuo com a pessoa de quem o cérebro foi
transplantado, segue-se que essa pessoa é A e também que é B. Mas isso não pode
ser: se a pessoa e A e a pessoa e B são só um, A e B não podem ser dois. No
entanto, a verdade é que elas o são. É uma contradição no mínimo aceitável.
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
A
"visão de múltiplas ocupações" responde a este problema afirmando que
se houver cisão no futuro de um indivíduo, então há dois desse indivíduo, por
assim dizer, mesmo agora. O que nós pensamos como sendo apenas um individuo é
na verdade duas pessoas, que agora são exatamente iguais , estão localizados no
mesmo lugar e possuem exatamente as mesmas propriedades de um para um,
realizando as mesmas coisas e tendo os mesmos pensamentos. A cirurgia meramente
os separa. Uma vez separados
“percorrem” futuros
diferentes, mas não deixam de ser a continuação psicológica do indivíduo
“original”.
Há no
entanto, outra resposta possível para este problema que abandona a
reivindicação intuitiva de que a continuidade psicológica por si só é
suficiente para a persistência do eu. Esta afirma que um ser passado ou futuro
só pode ser eu se for psicologicamente contínuo comigo e mais nenhum outro o
que implicaria que nem A nem B fossem o indivíduo original. Esta considera que
ambos passam a existir quando o cérebro é dividido. Se ambos os hemisférios
cerebrais são transplantadas, a pessoa deixará de existir. Fissão é a morte.[17]
Esta
proposta, a "visão não-ramificação” defendida por Shoemaker, afirma que a
pessoa sobrevive se apenas uma metade é preservada, mas irá morrer se ambas as
metades o são. Afirmação que vem contrariar o senso comum: se a sobrevivência
depende do funcionamento do cérebro (porque é isso que subjaz à continuidade
psicológica), então quanto maior a quantidade desse órgão preservada, maior
deveria ser a sua possibilidade de sobreviver.
No entanto,
na “visão não-ramificação” é preferível a morte do que a existência continuada.
Isto levou, Parfit a afirmar que isso é precisamente o que devíamos preferir.
Nós não temos nenhuma razão para querer continuar a existir, pelo menos não
para o nosso próprio bem.
O que temos
razão para querer é que haja alguém no futuro que é psicologicamente contínuo
connosco. Isto sugere de um modo mais geral que os fatos sobre quem é quem não
têm nenhuma importância prática. Tudo o que importa é quem é psicologicamente
contínuo e com quem.
17 - Shoemaker, Personal Identity: A
Materialist's Account, pp. 310-311
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
Para não concluir…
Abordadas e
reflectidas argumentações acerca do tema em análise, cumpre-nos afirmar que,
pelas razões apresentadas, construímos uma posição, que envolvidos que estamos
ainda pelas ideias de Parfit de que a Identidade Pessoal é um conceito
irrelevante, porque essencialmente linguístico sendo a atenção dirigida para a
questão da sobrevivência ao longo do tempo, conceito para o qual consideramos
que o essencial é o estabelecer uma relação R (conectividade). Há como que um
limiar difuso entre o eu e o próximo pois há uma continuidade parcial de fenómenos
psicológicos entre ambos.
Devemos
conceder, claramente, que esta concepção reducionista de pessoa tem implicações
profundas na forma como vivemos já que concordar com ela implica perder a
crença no eu separado, já que ser uma pessoa depende essencialmente de uma
relação R e não de um critério superior, pelo que o limite entre um indivíduo e
outro torna-se mais ténue, mais imperceptível. Como diz Parfit:
Ainda há uma diferença entre a minha vida
e a vida de outras pessoas [desde que mudei de perspectiva]. Mas a diferença é
menor. O outro está mais próximo. Estou menos preocupado com o resto da minha
vida, e mais preocupado com as vidas dos outros. ([6] Tradução livre de excerto de Fearn,
Nicholas, 2005)[18]
Compreendemos
que Parfit vê esta mudança como algo de positivo, pois cria no indivíduo uma
noção de conectividade interpessoal e de pertença a algo maior, o que por sua
vez, segundo este, leva à acção sensível ao outro.
Além disso
levará também, segundo este, a um menor egoísmo do que a visão de que somos
algo como Egos Cartesianos.
Porém, esta
perspetiva tem outras implicações menos intuitivas e que podem colocar em causa
a sua veracidade, se considerarmos que demonstram uma teoria absurda. E porquê?
Primeiro
porque, a morte torna-se um não-problema para todos aqueles que não vivem em
isolamento absoluto. Isto deve-se ao facto de se se estabelecer uma relação R
entre A e B, e de que mesmo que A morra, este sobrevive em maior ou menor grau
em B, o que nos leva à conclusão pouco intuitiva de que seria preferível
salvarmos 200 pessoas psicologicamente continuas com A, do que salvarmos A.
Segundo,
retomando a situação fictícia com que iniciamos este ensaio: Imagine-mos que o
detido é condenado à morte e que este possui relações R com outros indivíduos.
Devemos executar também essas pessoas contínuas com este ou é esse nível de
sobrevivência aceitável? Onde desenhamos a linha?
18 - Fearn, The
latest answers to the oldest questions : a philosophical adventure with the
world's greatest thinkers, p.17.
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
Terceiro,
considerando também a questão de quantas pessoas existem. Segundo Parfit, esta
questão é totalmente irrelevante pois a resposta não traz consigo qualquer
significado prático, se duas pessoas possuem uma relação R qual a diferença
entre dizermos que são duas pessoas ou que são uma só? Uma resposta binária não
pode traduzir um suposto espectro de intensidades de uma relação R.
Assim,
compreendemos que Parfit, na sua resposta ao problema da identidade pessoal,
faz uso de uma lógica não-aristotélica, uma lógica multivalorada, pois
considera que existam valores intermédios entre Verdadeiro (1) e Falso (2).
Mesmo que
consideremos que Parfit não viola o princípio do terceiro escolhido por apostar
no contexto de uma lógica que o amplia, constatamos que a sua teoria não é
consentânea com uma aplicabilidade prática.
A título de exemplo, apresentamos mais duas situações:
1)
Imagine-se que A tem de tomar uma decisão que o favorecerá amanhã, mas
prejudicará ou o favorecerá trinta anos mais tarde , ou mesmo o prejudicará
amanhã. Se a relação R for o único critério a ser considerado, parece
totalmente plausível, já a relação R entre mim e a pessoa que serei amanhã é
muito mais forte do que a relação R entre mim e a pessoa que serei daqui a
trinta anos, já que a solução que proporciona ganhos a curto termo é a mais
acertado. Será, neste caso, a irresponsabilidade justificada?
2)
Suponha-mos que o interesse prático do conceito de identidade pessoal
se deve a preocupações sobre a própria sobrevivência e retomemos a situação em
que A tem de escolher entre a sua sobrevivência e a de 200 pessoas
psicologicamente contínuas consigo mesmo. Logicamente, a relação R leva-nos a
priorizar uma situação que levanta preocupações sobre a nossa própria
sobrevivência. Devemos manter os antigos padrões de preocupação anteriormente justificados
pela Identidade Pessoal, encontrando uma nova justificação para estes, ou
devemos ajustarmo-nos a esta nova perspetiva e devemos assumir que estas
preocupações só são justificadas quando coincidem com a relação R?
Mesmo que a
teoria de Parfit não seja totalmente verdadeira nem facilmente praticável esta
levanta questões que são totalmente justificadas: “Pode um agnóstico
razoavelmente acreditar ser indivisível como se uma fosse uma alma, ou é essa
conclusão meramente o resultado de crenças muitas vezes subconscientes e não
justificadas?” Como tantas outras teorias na Filosofia, talvez a teoria de
Parfit se nos apresente valiosa por aquilo que questiona, critica e desconstrói
no nosso mundo ocidental, tão profundamente influenciado pelo Cristianismo.
Como disse Nietzsche na sua “Parábola do Homem Louco”:
“Que fizemos nós ao desatar a terra do
seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de
todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente,
em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘em baixo’? Não vagamos como
que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se
tornou
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender
lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? “
“Eu venho cedo demais, disse então, não é ainda o
meu tempo. Esse acontecimento enorme
[morte de Deus] está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos
ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão precisam de tempo, a luz das
estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo
para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais
longínqua constelação – e no entanto eles cometeram-no!”
Assim,
Parfit faz-nos refletir sobre um dos certamente muitos aspetos das nossas vidas
em que tantos de nós ainda que “extinto o Sol”, ou seja, já deixado Deus de ser
para estes uma proposição “viva”, orbitam em redor de onde este outrora se
encontrara, já que valoram tendo Deus como referência, mesmo “extinto agora o
seu calor”, para não sentirem “na pele o sopro do vácuo”, ou seja, para não
terem de repensar a sua posição, muitas vezes adquirida através da socialização
e pertencente ao senso comum.
Em jeito de
conclusão assumimos que a teoria de Parfit tem implicações muito mais profundas
do que aquelas abordadas neste ensaio, pelo que este não teve a ousadia
filosófica de ser mais que uma meditada, mas breve, reflexão problematizadora
desta temática tão sedutora que é a da Identidade Pessoal ao longo do tempo.
Daí o sentido da nossa envolvência reflexiva!
Bibliografia
Cohen, Marc, (2004)
Identity, Persistence, and the Ship of Theseus, Philosophy 320.
Retirado de https://faculty.washington.edu
Fearn,
Nicholas, (2005) The latest answers to the oldest questions: a philosophical
adventure with the world's greatest thinkers, Grove Press
Johnston, Mark,
(1997) Human Concerns Without Superlative Selves, in Dancy, J., Reading
Parfit, Blackwell
Locke,
John, (1689) An Essay concerning Human
Understanding, capítulo II, XXVII, editado por Pennsylvania State
University
Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?
Nietzsche,
Friedrich, (1882) A Gaia Ciência, aforismo 125, Cambridge, Cambridge
University Press, sétima edição (2008)
Platão, (380 a.C.) O Banquete,
Pará de Minas, Virtual Books Online M&M Editores Ltda.
Parfit,
Derek, (1984) Reasons and Persons, Parte 3: Personal Identity, Oxford,
Clarendon Press.
Parfit, Derek, (1995) The Unimportance
of Identity, Oxford, Oxford University Press
Zalta,
Edward, (2002) Personal Identity, Stanford Encyclopedia of Philosophy,
retirado de http://plato.stanford.edu/
Parfit,
Derek, (1976) Personal Identity, In: Glover, J., The Philosophy of
Mind, Oxford, Oxford University Press,
Shoemaker, Sydney, (1984) Personal
Identity: A Materialist's Account,
Voltaire,
François, Dicionário Filosófico de
Voltaire, Domínio Público, retirado de http://www.dominiopublico.gov.br/
Nota:
As
passagens em inglês nas edições consultadas foram alvo de tradução livre dos
autores.
Ensaio Filosófico Apresentado à Sociedade
Portuguesa de Filosofia e ...
... que não ganhou!
Portuguesa de Filosofia e ...
... que não ganhou!
Elaborado por:
Pedro Justo e Gonçalo Rocha
alunos do 11°Ano.
Muito Orgulhosa do vosso trabalho!
Obrigado!
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