quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Ensaio Filosófico - Exemplo




Fernando Pessoa-Heterónimo, óleo sobre tela, 1978. 
Pintura de António Costa Pinheiro - FCG, Centro de Arte Moderna, Lisboa




 Que sentido para o conceito de 

Identidade Pessoal?




Ensaio Filosófico - 2015


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Abstrato/ Resumo

Este Ensaio filosófico tem como objetivo responder às indagações filosóficas:

“Em que consiste a identidade pessoal ao longo do tempo?” e “Que critério é necessário e suficiente para garantir a sobrevivência do eu ao longo do tempo?”. Interrogações estas que remontam à génese da filosofia ocidental e que, uma vez respondidas confortam o problema de caráter central relacionado com o conceito de Identidade Pessoal.


O trabalho apresenta uma análise da teoria reducionista que se baseia na desvalorização da identidade pessoal e que constitui o cerne do ensaio filosófico. Por outro lado, tenta demonstrar tanto a insuficiência dos critérios físicos como dos psicológicos na tentativa de definição de Identidade Pessoal. Aborda também o sentido do conceito de identidade pessoal, analisa o problema da persistência e por ultimo tenta uma abordagem centrada na exploração de outras questões relativas à persistência da identidade pessoal que embora não necessariamente contidas nesta são pertinentes no contexto geral do ensaio filosófico.

Contrapondo às limitações da noção de identidade pessoal, a teoria de Derek Parfit apresenta-se como sendo uma visão mais flexível, mais funcional e, provavelmente, uma alternativa melhor ao conceito de identidade pessoal, estando portanto, na base da tese defendida ao longo de ensaio filosófico.

O trabalho apresenta conclusões que propõem a reflexão sobre as nossas convicções, sobre o seu significado, e, quem sabe, a consciência de contradições inerentes a estas.



Abstract

This philosophical essay has as it’s objective answering to the question: “In what consists Personal Identity over time?”. A question that dates back to the genesis of western philosophy, and that once conveniently answered, solves the problem of “What are we?”.


This work presents an analysis of the reductionist theory in which the devaluing of personal identity is based and that is at the heart of this essay; demonstrates the insufficiency of both physical and psychological criterions of personal identity; analysis the problem of persistency e and explores other questions relative to the persistence of personal identity which are not necessarily contained in it but which are pertinent in the general context of this philosophical essay.


Contrasting the limitations of the notion of personal identity, Derek Parfit’s




Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?

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theory presents itself as a more flexible vision, more functional and generally a better alternative to the concept of personal identity, being this position of ours, thus, at the basis of the thesis defended throughout this philosophical essay.

The article presents final thoughts that propose a reflexion about tour deep convictions, about their meaning, and, who knows, the recognizing of contradictions inherent in these.



Antes de mais…




Consideremos uma situação em que alguém é condenado pelo assassinato de outrem e as evidências são esmagadoras. No entanto, será que são suficientes para provarem que aquele detido é quem premiu o gatilho? Como poderá a Filosofia ajudar-nos a solucionar este caso?

Em Filosofia, há um conceito- o de Identidade Pessoal, que atribui a cada pessoa uma identidade numérica única e que as diferencia entre si. Portanto, bastaria apenas descobrir qual o critério, ou critérios, necessário (/os) e suficiente (/es) para que duas pessoas apresentem a mesma identidade pessoal e, logicamente, sejam uma só, para resolver o problema acima.

Infelizmente, a experiência demonstrou inúmeras vezes que a verdade é mais ilusória do que se poderia previamente ter suposto, pois todos os critérios de Identidade Pessoal descobertos até ao momento são alvo de controvérsia. O nosso ensaio filosófico é um desafio e uma tentativa de fazer a defesa de uma das muitas respostas possíveis.

Por outro lado, esta pergunta é apenas uma das muitas que surgem em virtude de sermos pessoas e de, portanto, ao longo das nossas vidas, nos irmos transformando a diversos níveis (fisiológico, emocional, cognitivo, social, económico, e outras p que demonstra que o sentido do conceito de identidade pessoal não se restringe apenas a esta primeira, estendendo-se, na verdade, a inúmeras indagações, que remontam à génese da filosofia ocidental e que podem ser respondidas uma vez refletido o problema de caráter central acima enunciado. Estas questões incluem, por exemplo: “Quem sou eu?”; “O que me torna uma pessoa?”; “O que sou eu?”; “O que realmente contribui para a minha identidade?”; “Sou responsável por crimes que aparentemente cometi no passado?” e muitas outras.




Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?

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Que tese defendemos nós?



A questão por nós abordada é aquela da persistência do eu: “Qual o critério necessário e suficiente para garantir a sobrevivência do eu ao longo do tempo?”, o que é nada mais nada menos do que perguntar, no âmbito da situação anterior: “ Como posso saber que o criminoso ainda pode ser condenado? Como posso saber que ele ainda existe?

De facto, num âmbito mais geral, podemos formular esta questão do seguinte modo: “Em que consiste a identidade pessoal ao longo do tempo?”.

A nossa tese é de que devido às limitações da noção de identidade pessoal, é necessário procurar uma nova visão, mais flexível, mais funcional e que melhor explique a continuação ou não da existência das pessoas através do tempo. À vista disso, a resposta que consideramos como sendo a melhor alternativa ao conceito de identidade pessoal é a que Derek Parfit apresenta no seu livro Reasons and Persons e nos artigos
Personal Identity e The Unimportance of Identity[1]

Mas, antes de explicarmos porque defendemos a posição de Parfit através de uma sequência argumentativa que parte de várias situações fictícias, mas ainda assim interessantes, não pela sua factualidade, mas sim por nos permitirem refletir sobre as nossas convicções, sobre o seu significado, e, quem sabe, tomarmos consciência de contradições inerentes a estas, apresentaremos a definição de Identidade Pessoal e o problema da persistência.

Primeiramente, há que distinguir entres os sentidos quotidiano e filosófico da palavra. No quotidiano, a Identidade Pessoal refere-se às caraterísticas sob as quais o indivíduo sente uma forma de posse, ou seja, que sente que contribuem para a sua identidade qualitativa

Em Filosofia, Identidade Pessoal é a identidade numérica única de uma pessoa sendo que, por isso, não é possível analisar a questão da persistência sem primeiramente nos referirmos aos chamados critérios de Identidade Pessoal.

Existem diversos critérios que podem ser incluídos nas seguintes categorias: critérios físicos e critérios psicológicos.

Assim, a identidade pessoal é um conceito fundamental em questões como a persistência da pessoa depois da morte e a responsabilidade jurídica por atos ilícitos cometidos no passado, pois lida com questões filosóficas que surgem sobre nós próprios em virtude de sermos pessoas [2]


1                     - Parfit, Reasons and Persons, capítulo 3
-  Parfit, Personal Identity
-  Parfit, The Unimportance of Personal Identity
2 - Stanford Encyclopedia of Philosophy, Personal Identity, 2015



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No sentido de melhor compreendermos este conceito, é de toda a pertinência analisar a questão da persistência.

A questão da persistência, da qual trata este ensaio consiste em tentar determinar o que é necessário, essencial e suficiente para que alguém no passado seja alguém no presente, ou seja, para que ambos partilhem da mesma identidade numérica.

Citemos um exemplo: se eu olhar para uma foto que tirei a mim próprio há um ano, estarei realmente a olhar para mim próprio ou trata-se de outra pessoa?

Certamente, a pessoa na fotografia é qualitativamente diferente de mim, mas ainda assim a minha intuição diz-me que sou eu. Será possível fundamentar racionalmente esta conceção?

Para tal, alguns supõem tornar-se necessário definir o que é uma pessoa. Mas, por outro lado, esta conceção supõe um critério universal de persistência, o que não é claro. Por exemplo, uma “pessoa imaterial” poderia ter condições de persistência diferentes das de alguém material, no caso de considerarmos um critério físico.

É ainda necessário distinguir a questão da persistência de uma outra perspetiva aparentemente semelhante mas fundamentalmente diferente e que radica na seguinte questão: “O que é necessário para que alguém continue a ser fundamentalmente a mesma pessoa de um momento para outro?”.

A ideia fundamental subjacente à questão levantada é que sofrendo de perda de memória, ou de alguma deficiência grave, por exemplo, um indivíduo deixaria de ser a pessoa que era anteriormente.

O que torna esta questão fundamentalmente diferente da questão da persistência de que alguém pode sobreviver não sendo a mesma pessoa, já que o indivíduo que mudou de personalidade é agora uma pessoa diferente. Não se trata de deixar de ser uma pessoa, trata-se de deixar de ser o tipo de pessoa que se era anteriormente devido a mudanças ocorridas. Trata-se de mudar de identidade qualitativa e não de identidade numérica.

Compreendemos assim que esta questão nada tem a ver com a questão da persistência. O problema da persistência aponta a algo mais fundamental, ou seja, à persistência de um “eu”, sujeito da experiência subjectiva, que se pode verter na questão: “O que é que é necessário e suficiente para que o sujeito da experiência subjetiva persista de um momento para outro?”.

Formalmente, podemos apresentar a seguinte formulação geral:

1.      Se uma pessoa x existe num momento e uma pessoa y existe noutro, sob que hipotéticas circunstancias é que x é y?

Compreendemos que, a questão da persistência é mais extensa do que a referida anteriormente na medida em que, existem outras questões relativas à persistência da



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identidade pessoal que não estão contidas nesta. Como, por exemplo, se podemos sobreviver num estado vegetativo ou se já fomos embriões.

De facto, de acordo com critérios psicológicos de identidade pessoal estas entidades

(embriões, pessoas em estado vegetativo…) não são, efetivamente, pessoas.

Por fim, é também importante inferir, que é totalmente possível, pela definição de identidade pessoal 3, que dois seres humanos sejam semelhantes em todos os sentidos e não sejam idênticos, basta apenas que existam ao mesmo tempo.

Daí que este problema seja levantado quando se aborda o tema da clonagem, que discutiremos adiante, e que nos leva a considerar, entre outras situações, que duas pessoas partilham da mesma identidade numérica em virtude de partilharem a mesma identidade qualitativa, mesmo que em simultâneo.

Clarifiquemos sinteticamente que a teoria reducionista na qual se baseia a desvalorização da identidade pessoal que está no cerne deste ensaio.



A Teoria de Derek Parfit



Derek Parfit[4] foi um dos primeiros teóricos contemporâneos a explorar a relação entre identidade e ética explicitamente nos artigos: "Personal Identity" e especialmente

"Later Selves and Moral Principles". Em “Reasons and Persons”, Derek Parfit defende uma visão reducionista da identidade pessoal. De acordo com um reducionista, as pessoas não são nada para além da existência de certos estados mentais e/ou físicos e suas várias relações.

Parfit acredita que a identidade pessoal pode ser reduzida a um conjunto de critérios que são necessários para se supor que as pessoas existem. Ou seja os fatos sobre pessoas e identidade pessoal consistem em fatos mais particulares sobre cérebros, corpos e uma série de eventos físicos e mentais inter-relacionados.

Os argumentos de Parfit a favor do reducionismo são impressionantes e importantes mas os nossos propósitos centram-se na forma como o autor defende a surpreendente conclusão de que a relação de identidade não é de facto o que importa na sobrevivência.

Assim em Reasons and Persons Parfit afirma: "na visão reducionista, a existência de cada pessoa depende apenas da existência de um cérebro e um corpo, a realização de determinados atos, o pensamento de certos pensamentos, a ocorrência de certas


3 - Identidade Pessoal: O conceito de identidade pessoal refere-se à identidade numérica única de uma pessoa através do tempo.

4 - Derek Parfit (nascido a 11 de Dezembro de 1942) é um filósofo britânico que se especializa em identidade pessoal, racionalidade, ética, e as relações entre estas. Parfit trabalhou na Universidade de Oxford durante toda a sua carreira académica, e como Emeritus Senior Research Fellow em All Souls College, Oxford. É também um professor visitante de Filosofia nas universidades de Nova York, Harvard, e Rutgers, e foi galardoado em 2014 com o Prémio Rolf Schock.



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experiências, e assim por diante."[5] Assim como não são capazes de pensar que um clube social tem qualquer estatuto ontológico para além da existência de seus membros e suas relações com o outro, também as reivindicações reducionistas afirmam que o que possibilita a existência das pessoas são os vários eventos físicos e psicológicos que a caracterizam. Assim, Parfit acredita que "o fato da identidade de uma pessoa ao longo do tempo apenas consiste na realização de fatos mais particulares." [6]

Desta forma, Parfit acredita que os fatos sobre a identidade pessoal consistem apenas em fatos mais específicos sobre a continuidade psicológica e / ou conexão, e assim que a identidade pessoal pode ser reduzida a essa continuidade e / ou a uma conectividade.

Para começar, ele sugere, por vezes, que o critério de identidade pessoal mais plausível é o critério psicológico. Este critério sustenta que, para X ser idêntico a Y, eles devem ser exclusivamente psicologicamente contínuos. Continuidade psicológica é, potencialmente, uma ramificação, um-muitos, ou seja, ela pode conseguir ramificar-se entre mim-agora e mais de uma pessoa no futuro. Mas a identidade é uma relação de equivalência - é reflexiva e simétrica - por isso detém uma relação só possível de um-um.

Além disso, uma vez que a identidade pessoal consiste apenas nesta continuidade psicológica quando se tem em conta critérios como uma “não-ramificação”, ou “um-um”, a identidade pessoal é, como Parfit diz, “A identidade pessoal não é o que importa. O que importa fundamentalmente é a Relação R, com

qualquer causa.” [7].
Parfit está consciente de que a sua visão da identidade pessoal é, contrária à normal visão do senso comum, e que, se a sua visão estiver correta, muitos de nós temos falsas crenças sobre a identidade pessoal. Para além disso, como muitos dos nossos pontos de vista sobre questões relacionadas com a moralidade são baseadas no nosso conhecimento sobre a identidade pessoal, é possível que a visão reducionista de Parfit abale as nossas crenças morais. No entanto, considera que, se essas mudanças acontecessem, elas representariam uma melhoria em relação às nossas crenças anteriores e noções morais.






5 - Parfit, Reasons and Persons, pp. 211

6 - Idem, p. 210.

7 - Parfit, Idem, p. 217.



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From Above


Sendo apanágio da Filosofia o desacordo crítico, Mark Johnston, professor de Filosofia em Princeton, rejeita a noção constitutiva de identidade pessoal de Parfit em: Human Concerns Without Superlative Selves e propõem uma tese que defende a preservação do significado de personalidade (como facto de nível superior) através de um argumento a que o próprio chama de "Argument from Above".

Johnston refere que Parfit cometeu a falácia da composição pois: "mesmo que os fatos de nível inferior [que no seu conjunto formam a identidade] não tenham importância em si mesmos, o facto de nível superior pode importar. Se isso acontecer, os fatos de nível inferior terão, por sua vez, um significado derivado. Assim, eles vão ter significado, não em si mesmo, mas sim porque são eles que constituem o fato de nível mais alto.” [8]. O que importa fundamentalmente é a Relação R, com qualquer causa. Esta relação é o que importa mesmo quando, como no caso em que uma pessoa mantém a relação R com duas outras pessoas, a Relação R não provê a identidade pessoal" Parfit defende-se dizendo que não é a personalidade em si própria que tem significado, mas sim os factos em que a pessoalidade consiste e que lhe concedem o seu significado.

Para ilustrar esta diferença com o Johnston, Parfit faz uso de um exemplo de um paciente com danos cerebrais que se torna irreversível a nível do inconsciente, assumindo através dele que a sua opinião é a mais plausível.

No exemplo, o paciente está, certamente, ainda vivo, sendo esse fato separado do fato de que o seu coração ainda esteja a bater e que outros órgãos ainda estejam a funcionar. No entanto o facto de o paciente estar vivo não é um facto independente ou obtido separadamente dos outros fatos.

O paciente estar vivo, embora irreversivelmente inconsciente, consiste e deriva simplesmente dos outros fatos ( é ao constatarmos que os órgãos internos estão ainda em funcionamento que concluímos que o paciente ainda está vivo).

Parfit explica esta conclusão através do "Argument from Below" . Podemos arbitrar o valor do coração e dos outros órgãos que ainda estão a trabalhar sem ter que atribuir-lhes um significado derivado, como a perspectiva de Johnston ditaria.

Parfit acredita que seu argumento é mais plausível neste exemplo através dos seguintes pontos cruciais: se o fato X ( superior) consiste inteiramente em fatos mais particulares, então X não é um fato independente ou obtido separadamente. E X é também, em relativamente a esses outros fatos, apenas um fato conceptual. Pois é um fato que resulta da aplicação dos nossos conceitos. A questão, então, é a seguinte: por que razão um fato meramente conceptual deve importar, quando os fatos de nível inferior não importam?

A afirmação de que se X consiste inteiramente em fatos mais particulares que, X é, portanto, apenas um fato conceitual não é sustentada por nenhum argumento, podendo ser até contestada. Se consideramos o caso de uma estátua inteiramente constituída por mármore, seguindo a lógica do exemplo apresentado por Parfit, todos os fatos sobre a estátua consistiriam inteiramente em fatos sobre a massa do mármore. No entanto, nem todos os fatos sobre a estátua são apenas fatos conceptuais, e não é


8 - Mark Johnston, Human Concerns Without Superlative Selves.



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racional afirmar que todos os fatos da estátua consistem em fatos da massa do mármore.

Assim, parece-nos que nem todos os factos que consistem inteiramente em fatos inferiores , são fatos conceituais, e talvez esta seja a verdadeira origem do desacordo entre Johnston e Parfit: são os fatos sobre a identidade pessoal semelhantes aos fatos sobre o ser "vivo" ou ainda como os fatos sobre estátuas? Se existem diferentes tipos de factos completamente constituídas (alguns conceptuais, outros não), então para que a teoria de Parfit esteja correta a "identidade" é meramente conceptual.


Paradoxo do Navio de Teseu



Como vimos anteriormente, segundo Parfit, materialista e reducionista constitutivo, a identidade é um facto, distinto de factos sobre corpos, fenómenos e estados psicológicos mas não independente destes, ou seja, apenas um facto sobre a nossa linguagem [9]. Não sendo, portanto, uma nova informação sobre a realidade, pois o contrário implicaria a existência de algo como egos cartesianos, algo a que este se opõe, já que não existe qualquer evidência da existência destes. [10]

Deste modo, é possível fazer uma leitura interessante do paradoxo do navio de Teseu baseada no artigo The unimportance of Personal Identity de Derek Parfit, em que este contempla um problema semelhante, quase que uma reformulação deste paradoxo, mudando apenas o navio de Teseu por cérebros humanos. Quando Parfit apresenta a sua versão deste paradoxo o seu objetivo é demonstrar que as teorias que baseiam a identidade numérica única de um objeto nos seus constituintes físicos são contraditórias. Reflitamos a realidade da sua argumentação.

Portanto, começaremos por apresentar uma formulação deste paradoxo: [11] [12]

" (1) Versão Simples:

Seja A = O navio em que Teseu começou a sua viagem.


Seja B = O navio em que Teseu terminou sua viagem.

A questão não é apenas se "A=B?"; suponha que Teseu havia deixado uma peça original do barco A no barco B. Uma peça de A é o suficiente para fazer A idêntico a B? Se não, seria idêntico a B supondo que ele havia deixado duas peças e assim
9 - Parfit, The Unimportance of Identity, p.23

10 - “O pensamento é distinto da matéria," dizes tu [Descartes]. Mas que provas tens tu? É pois a matéria é divisível e concreta, e o pensamento não? [...] Fracos, intemperados pensadores! A gravidade não é madeira, nem areia, nem metal, nem pedra; movimento, vegetação, vida também não são coisas, e ainda assim vida, vegetação, movimento, e gravitação, são atribuídos à matéria.” O Dicionário Filosófico de Voltaire, Voltaire (1764)
11 - Cohen, Identity, Persistence, and the Ship of Theseus, 2004

12 - S. Marc Cohen, Professor Emeritus do departamento de Filosofia da Universidade de Washington



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sucessivamente. Urge então a questão: “Onde devemos desenhar a linha que permite a identidade do barco?”

Pois, caso contrário a identidade seria uma relação de grau, algo que abordaremos no recorrer da nossa reflexão.

“(2) Versão Complexa: Igual a versão simples, mas com uma adição - seguindo Teseu havia um outro barco, o Carniceiro, que recebe as partes que Teseu atira ao mar e utiliza-as para se reconstruir. O Carniceiro ao chegar ao porto é um navio que é composto precisamente das peças que compunham o navio em que Teseu começou a viagem. Este aporta na doca ao lado do navio que Teseu aportou.

A versão complexa dá origem a dezenas de perguntas e análises sobre a identidade de ambos navios que buscam de uma resposta que forneça o conjunto de condições necessárias e suficientes para identificar a identidade do navio de Teseu e do navio Carniceiro."

Paremos um pouco nos argumentos de Parfit.

Segundo o autor, os critérios físicos são incoerentes pois se substituirmos as peças do navio uma a uma temos que o navio é o mesmo, enquanto que se as substituirmos todas em simultâneo obtemos um barco que não é mais o mesmo [13]. Isto não é razoável porque as duas operações são equivalentes já que o resultado final e as operações ocorridas são exatamente as mesmas., embora mude a sua sequência (Caso

1: retirar, colocar, retirar, colocar…; Caso 2: retirar todas as peças, colocar todas as novas).

Como se nota, Parfit demonstra que os critérios físicos de identidade pessoal não são coerentes e, portanto, desconsidera-os.

No entanto, estes não são os únicos critérios de Identidade Pessoal, pois há também os psicológicos, embora à partida se desconsidere os critérios que envolvem a existência de Egos Cartesianos, já que no seu trabalho Parfit argumenta por uma definição reducionista de pessoa, ou seja, para ele, uma pessoa é um sujeito de experiência subjetiva não independente de um corpo, cérebro, e uma série de eventos físicos e psicológicos, mas, ainda assim, distinta destes.

Portanto, resta-nos agora procurar demonstrar a insuficiência dos critérios psicológicos de identidade pessoal.

Identidade pessoal: Um conceito recorrente?




13 - Parfit, The Unimportance of Identity, p.25



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Paradoxo da memória de Locke


A interrogação filosófica sobre a identidade pessoal foi formulada, pela primeira vez, por John Locke, ns sua obra Ensaio sobre o Entendimento Humano.

O problema apresentado por Locke consiste na determinação de um critério que permita uma constante re-identificação de uma pessoa ao longo do tempo. Por exemplo, o que é que nos permite ter a certeza que uma determinada pessoa é ainda que existiu no passado? Ou seja, o que permite a existência de um fio de continuidade existente entre as nossas experiências atuais e as nossas vivências passadas?

Na linguagem quotidiana a continuidade da identidade pessoal ao longo do tempo é indiscutivelmente uma crença confortavelmente aceite. Quando se diz «eu fui ao Algarve no ano passado», tal afirmação subentende continuidade e reconhecimento entre aquele que tomou a decisão e aquele que visitou o local. Contrariamente, do ponto de vista lógico, são duas pessoas distintas, uma vez que, segundo o princípio da indiscernibilidade dos idênticos (ou «lei de Leibniz»), invocado por Quine, diz que se x e y são o mesmo objeto, tudo o que for verdadeiro em x será também verdadeiro em y, assim duas coisas só são as mesmas se e somente se apresentam as mesmas propriedades nas mesmas circunstâncias.

Torna-se evidente que o conceito de identidade assume duas variantes específicas: por um lado, expressa a noção de equivalência lógica e, nesse caso, nenhuma pessoa é igual ao longo do tempo. Mas, por outro, tem ainda o poder de referência a um sujeito que se reconhece como tal ao longo do tempo.

Ou como nos diz Platão: "reconhecemos que cada ser vivo possui uma existência individual e própria e por isso se diz que é o mesmo indivíduo desde a infância até que envelhece; claro que esse indivíduo não conserva nunca as mesmas características, mas entretanto reconhecemos que é ele mesmo”
Platão, Banquete p. 207 [14]

Que critério(s) para determinar a identidade como pessoas?


Desde muito cedo vários filósofos defendem à memória como critério suficiente na determinação da nossa identidade como pessoas.

Esta hipótese é invocada por John Locke quando procura determinar o que entende por pessoa. Diz-nos o autor: "Para sabermos no que consiste a identidade pessoal, temos que ter em consideração o que é a pessoa; a qual, penso, é um ser pensante e inteligente, que tem razão e reflexão, e que pode aperceber-se de si mesmo como si mesmo, como a mesma coisa pensante em diferentes tempos e espaços. [...] A identidade pessoal consiste: não na identidade da substância, mas [...], na identidade da consciência, pelo que, se o mesmo Sócrates acordado e a dormir não possuir a mesma consciência, Sócrates acordado e a dormir não é a mesma pessoa.”15

Assim, segundo Locke, o critério e a faculdade que possibilita a continuidade da identidade pessoal de uma pessoa é a memória.

14 - Platão, O Banquete p. 207

15 - Locke, An Essay concerning Human Understanding, Livro II, Capítulo I



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Quando estabelecemos a memória como critério fundamental da identidade pessoal não estamos, no entanto, a referir-nos à nossa capacidade de preservar o conhecimento de certos factos na nossa mente. O que está em causa não é tanto a memória como registo de dados, em que, por exemplo, me recordo que Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia, mas antes a recordação de acontecimentos que foram experienciados por mim, na primeira pessoa. É este tipo de memória que vai permitir a articulação de estados mentais diferentes como sendo pertencentes a uma só e mesma pessoa. É este tipo de memória que permite a cada indivíduo saber que foi ele, e não outro, que realizou um conjunto de acções. Se, como vimos, o problema da identidade pessoal designa, em termos epistemológicos, o poder de re-identificação de uma pessoa ao longo do tempo, tal poder parece subentender, no mínimo, a presença da memória como capacidade de recordação de si em momentos temporais distintos.

A esta hipótese da memória como critério necessário e suficiente levanta tantos ou mais problemas do que aqueles que procura solucionar.

Se o critério fosse correto, tal significaria que nos confrontaríamos com o absurdo de existir múltiplas pessoas no mesmo indivíduo, visto ser impossível a um ser humano preservar as mesmas recordações em todos os momentos da sua vida.

Surgindo assim um paradoxo, se alguém se recordasse da sua adolescência, mas não da sua infância, seria ele a mesma pessoa que foi na adolescência mas não a mesma pessoa que foi na sua infânica? E se o adolescente ainda se lembrasse, por sua vez, da sua infância, seria o adulto a mesma pessoa que foi na infância ou não? E poderia ele ser sequer a mesma pessoa que foi em adolescente, visto que este ainda tinha frescas as memórias da infância, período do qual em adulto não se lembrava?

Devido a esta dificuldade podemos presumir que a memória pode ser uma evidência da identidade pessoal, no entanto não é a memória o critério para a sua existência. Deste modo, o uso da memória é uma condição necessária mas não suficiente na determinação da unidade enquanto pessoa.

Uma vez demonstrada a insuficiência tanto dos critérios físicos quanto dos psicológicos, coloca-se agora a questão de qual a utilidade do conceito de identidade pessoal.

Será que pode haver sobrevivência sem identidade pessoal?

Neste âmbito, consideremos os seguintes casos que Parfit nos apresenta. [16]



16 - Parfit, Personal Identity, capítulo IV, pp. 17-21



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A. Fusão



Imagine-se um cientista muito pouco ortodoxo que decide combinar duas pessoas A e B numa só, C, ou seja, juntar num só ser humano as características tanto físicas quanto psicológicas de A e as de B, eliminando as contradições, de modo criar um indivíduo que é em todos os sentidos semelhante a A e a B, e que possui uma relação R com ambos, sendo que tanto A como B têm os seus corpos destruídas no processo. Quem sobreviveu? Qual a identidade de C? É C idêntico a A, a B, nem a A nem a B, ou a ambos? Qual a utilidade do conceito de identidade pessoal neste caso?

Inicialmente, poderá parecer obvio que um tratamento de tal ordem equivaleria à morte, mas Parfit apresenta-nos dois argumentos por analogia que contraria a nossa tese que temos dificuldade em contra argumentar:

1)      Embora um tratamento deste género cause mudanças profundas num dado indivíduo estas não são por si só razão suficiente para este equivaler à morte, apenas alguém muito satisfeito com a sua personalidade e físico atuais pensaria assim, afinal muitos de nós aceitamos tratamentos com efeitos similares.

2)      O “controlo intencional” de um indivíduo nestas circunstâncias seria análogo aquele que ele teria num casal.

Deste modo, somos novamente confrontados com uma situação em que o conceito de identidade pessoal não tem nenhum significado prático, pois independentemente da resposta que nós estabelecermos como correta não estaremos a concluir sobre o que acontece na realidade. Tal deve-se a que a identidade pessoal ser meramente um facto conceptual, ou seja, sobre a nossa linguagem (tal como dizermos que 469 arvores numa colina são uma mata).

Assim, torna-se necessário decorrer sobre o que importa na identidade pessoal, sendo que a proposta de Parfit é de que a sobrevivência é o que realmente importa.

Portanto, este considera que são sinónimas as seguintes interrogações: “Haverá alguma pessoa futura com a qual sou numericamente idêntico?” e “Sobreviverei?”.

De facto, uma das razões da popularidade dos critérios psicológicos de Identidade Pessoal é facto de que estes permitem que, em situações normais, a Identidade Pessoal esteja associada à sobrevivência.

No entanto, como já observamos anteriormente os critérios psicológicos são insuficientes em casos de fusão e no caso do paradoxo da memória de John Locke, pelo que Parfit considera que estes são úteis não como critérios de Identidade Pessoal mas sim como critérios de sobrevivência.

Portanto, Parfit denomina esta relação de continuidade psicológica que garante a sobrevivência do sujeito “relação R”.



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Contudo, ao contrário da Identidade Pessoal, a relação R não é transitiva nem unívoca, pelo que o número de pessoas com as quais temos continuidade psicológica não é relevante, porque embora fazer tal reivindicação, apenas no caso de nos considerarmos algo como Egos Cartesianos, o que se nega em detrimento de uma visão sob a qual nós não somos seres humanos, no sentido de seres vivos, mas sim algo distinto embora não independente destes, é que poderíamos fundamentar tal convicção.

Assim, defendemos que embora inconscientemente e de forma irrefletida muitos de nós, de alguma modo, ainda mantemos a crença de que somos algo como almas, mesmo no contexto deste exercício de filosofia analítica.

Feita esta reflexão, as propriedades da relação R, embora pouco intuitivas, não aparentam serem contraditórias.

Para alem disso, esta visão leva a algumas consequências interessantes, como, por exemplo, ser possível sobreviver através dos filhos ou dos netos na medida em que através da educação e da convivência se estabelece uma relação R, embora provavelmente de baixo grau.

Por outro lado, quando se considera a sobrevivência uma relação de grau e não uma questão dicotómica, ou seja, quando considerarmos que nem todas as questões sobre identidade pessoal têm uma resposta significante (sendo que as restantes seriam meras convenções linguísticas assindéticas) torna-se mais difícil considerar mais racional agir em interesse próprio do que de acordo com princípios morais e pensar sobre o envelhecimento e a morte torna-se num exercício menos depressivo, sendo estas algumas das vantagens da separação de Identidade Pessoal e sobrevivência.

Para reforçar ainda mais este ponto, Parfit apresenta-nos o caso de uma situação que pode por em causa a continuidade psicológica e que é a possibilidade de ser se psicologicamente contínuo com duas pessoas passadas ou futuras ao mesmo tempo. Se a parte superior do cérebro de uma pessoa (responsável por funções mentais) fosse transplantada, o destinatário, embora com importantes diferenças psicológicas, seria psicologicamente contínuo com essa pessoa.



B. Fissão



A visão de continuidade psicológica implica que a pessoa que teve parte do cérebro transplantado e o destinatário seriam a mesma pessoa.

Mas agora suponhamos que ambos os hemisférios do cérebro são transplantados, cada um numa cabeça vazia diferente. Os dois destinatários chamá-los-emos de A e B, sendo cada um psicologicamente contínuo com a pessoa de quem o cérebro foi transplantado, segue-se que essa pessoa é A e também que é B. Mas isso não pode ser: se a pessoa e A e a pessoa e B são só um, A e B não podem ser dois. No entanto, a verdade é que elas o são. É uma contradição no mínimo aceitável.




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A "visão de múltiplas ocupações" responde a este problema afirmando que se houver cisão no futuro de um indivíduo, então há dois desse indivíduo, por assim dizer, mesmo agora. O que nós pensamos como sendo apenas um individuo é na verdade duas pessoas, que agora são exatamente iguais , estão localizados no mesmo lugar e possuem exatamente as mesmas propriedades de um para um, realizando as mesmas coisas e tendo os mesmos pensamentos. A cirurgia meramente os separa. Uma vez separados

“percorrem” futuros diferentes, mas não deixam de ser a continuação psicológica do indivíduo “original”.

Há no entanto, outra resposta possível para este problema que abandona a reivindicação intuitiva de que a continuidade psicológica por si só é suficiente para a persistência do eu. Esta afirma que um ser passado ou futuro só pode ser eu se for psicologicamente contínuo comigo e mais nenhum outro o que implicaria que nem A nem B fossem o indivíduo original. Esta considera que ambos passam a existir quando o cérebro é dividido. Se ambos os hemisférios cerebrais são transplantadas, a pessoa deixará de existir. Fissão é a morte.[17]
Esta proposta, a "visão não-ramificação” defendida por Shoemaker, afirma que a pessoa sobrevive se apenas uma metade é preservada, mas irá morrer se ambas as metades o são. Afirmação que vem contrariar o senso comum: se a sobrevivência depende do funcionamento do cérebro (porque é isso que subjaz à continuidade psicológica), então quanto maior a quantidade desse órgão preservada, maior deveria ser a sua possibilidade de sobreviver.

No entanto, na “visão não-ramificação” é preferível a morte do que a existência continuada. Isto levou, Parfit a afirmar que isso é precisamente o que devíamos preferir. Nós não temos nenhuma razão para querer continuar a existir, pelo menos não para o nosso próprio bem.

O que temos razão para querer é que haja alguém no futuro que é psicologicamente contínuo connosco. Isto sugere de um modo mais geral que os fatos sobre quem é quem não têm nenhuma importância prática. Tudo o que importa é quem é psicologicamente contínuo e com quem.




17 - Shoemaker, Personal Identity: A Materialist's Account, pp. 310-311



Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?

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Para não concluir…



Abordadas e reflectidas argumentações acerca do tema em análise, cumpre-nos afirmar que, pelas razões apresentadas, construímos uma posição, que envolvidos que estamos ainda pelas ideias de Parfit de que a Identidade Pessoal é um conceito irrelevante, porque essencialmente linguístico sendo a atenção dirigida para a questão da sobrevivência ao longo do tempo, conceito para o qual consideramos que o essencial é o estabelecer uma relação R (conectividade). Há como que um limiar difuso entre o eu e o próximo pois há uma continuidade parcial de fenómenos psicológicos entre ambos.

Devemos conceder, claramente, que esta concepção reducionista de pessoa tem implicações profundas na forma como vivemos já que concordar com ela implica perder a crença no eu separado, já que ser uma pessoa depende essencialmente de uma relação R e não de um critério superior, pelo que o limite entre um indivíduo e outro torna-se mais ténue, mais imperceptível. Como diz Parfit:

Ainda há uma diferença entre a minha vida e a vida de outras pessoas [desde que mudei de perspectiva]. Mas a diferença é menor. O outro está mais próximo. Estou menos preocupado com o resto da minha vida, e mais preocupado com as vidas dos outros. ([6] Tradução livre de excerto de Fearn, Nicholas, 2005)[18]

Compreendemos que Parfit vê esta mudança como algo de positivo, pois cria no indivíduo uma noção de conectividade interpessoal e de pertença a algo maior, o que por sua vez, segundo este, leva à acção sensível ao outro.

Além disso levará também, segundo este, a um menor egoísmo do que a visão de que somos algo como Egos Cartesianos.

Porém, esta perspetiva tem outras implicações menos intuitivas e que podem colocar em causa a sua veracidade, se considerarmos que demonstram uma teoria absurda. E porquê?

Primeiro porque, a morte torna-se um não-problema para todos aqueles que não vivem em isolamento absoluto. Isto deve-se ao facto de se se estabelecer uma relação R entre A e B, e de que mesmo que A morra, este sobrevive em maior ou menor grau em B, o que nos leva à conclusão pouco intuitiva de que seria preferível salvarmos 200 pessoas psicologicamente continuas com A, do que salvarmos A.

Segundo, retomando a situação fictícia com que iniciamos este ensaio: Imagine-mos que o detido é condenado à morte e que este possui relações R com outros indivíduos. Devemos executar também essas pessoas contínuas com este ou é esse nível de sobrevivência aceitável? Onde desenhamos a linha?




18 - Fearn, The latest answers to the oldest questions : a philosophical adventure with the world's greatest thinkers, p.17.




Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?

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Terceiro, considerando também a questão de quantas pessoas existem. Segundo Parfit, esta questão é totalmente irrelevante pois a resposta não traz consigo qualquer significado prático, se duas pessoas possuem uma relação R qual a diferença entre dizermos que são duas pessoas ou que são uma só? Uma resposta binária não pode traduzir um suposto espectro de intensidades de uma relação R.

Assim, compreendemos que Parfit, na sua resposta ao problema da identidade pessoal, faz uso de uma lógica não-aristotélica, uma lógica multivalorada, pois considera que existam valores intermédios entre Verdadeiro (1) e Falso (2).

Mesmo que consideremos que Parfit não viola o princípio do terceiro escolhido por apostar no contexto de uma lógica que o amplia, constatamos que a sua teoria não é consentânea com uma aplicabilidade prática.

A título de exemplo, apresentamos mais duas situações:

1)      Imagine-se que A tem de tomar uma decisão que o favorecerá amanhã, mas prejudicará ou o favorecerá trinta anos mais tarde , ou mesmo o prejudicará amanhã. Se a relação R for o único critério a ser considerado, parece totalmente plausível, já a relação R entre mim e a pessoa que serei amanhã é muito mais forte do que a relação R entre mim e a pessoa que serei daqui a trinta anos, já que a solução que proporciona ganhos a curto termo é a mais acertado. Será, neste caso, a irresponsabilidade justificada?

2)      Suponha-mos que o interesse prático do conceito de identidade pessoal se deve a preocupações sobre a própria sobrevivência e retomemos a situação em que A tem de escolher entre a sua sobrevivência e a de 200 pessoas psicologicamente contínuas consigo mesmo. Logicamente, a relação R leva-nos a priorizar uma situação que levanta preocupações sobre a nossa própria sobrevivência. Devemos manter os antigos padrões de preocupação anteriormente justificados pela Identidade Pessoal, encontrando uma nova justificação para estes, ou devemos ajustarmo-nos a esta nova perspetiva e devemos assumir que estas preocupações só são justificadas quando coincidem com a relação R?


Mesmo que a teoria de Parfit não seja totalmente verdadeira nem facilmente praticável esta levanta questões que são totalmente justificadas: “Pode um agnóstico razoavelmente acreditar ser indivisível como se uma fosse uma alma, ou é essa conclusão meramente o resultado de crenças muitas vezes subconscientes e não justificadas?” Como tantas outras teorias na Filosofia, talvez a teoria de Parfit se nos apresente valiosa por aquilo que questiona, critica e desconstrói no nosso mundo ocidental, tão profundamente influenciado pelo Cristianismo. 

Como disse Nietzsche na sua “Parábola do Homem Louco”:

“Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘em baixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou




Que sentido para o conceito de Identidade Pessoal?


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ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? “

“Eu venho cedo demais, disse então, não é ainda o meu tempo. Esse acontecimento enorme

[morte de Deus] está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram-no!”

Assim, Parfit faz-nos refletir sobre um dos certamente muitos aspetos das nossas vidas em que tantos de nós ainda que “extinto o Sol”, ou seja, já deixado Deus de ser para estes uma proposição “viva”, orbitam em redor de onde este outrora se encontrara, já que valoram tendo Deus como referência, mesmo “extinto agora o seu calor”, para não sentirem “na pele o sopro do vácuo”, ou seja, para não terem de repensar a sua posição, muitas vezes adquirida através da socialização e pertencente ao senso comum.

Em jeito de conclusão assumimos que a teoria de Parfit tem implicações muito mais profundas do que aquelas abordadas neste ensaio, pelo que este não teve a ousadia filosófica de ser mais que uma meditada, mas breve, reflexão problematizadora desta temática tão sedutora que é a da Identidade Pessoal ao longo do tempo.

Daí o sentido da nossa envolvência reflexiva!


Bibliografia

Cohen, Marc, (2004) Identity, Persistence, and the Ship of Theseus, Philosophy 320. Retirado de https://faculty.washington.edu

Fearn, Nicholas, (2005) The latest answers to the oldest questions: a philosophical adventure with the world's greatest thinkers, Grove Press

Johnston, Mark, (1997) Human Concerns Without Superlative Selves, in Dancy, J., Reading Parfit, Blackwell

Locke, John, (1689) An Essay concerning Human Understanding, capítulo II, XXVII, editado por Pennsylvania State University





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Nietzsche, Friedrich, (1882) A Gaia Ciência, aforismo 125, Cambridge, Cambridge University Press, sétima edição (2008)

Platão, (380 a.C.) O Banquete, Pará de Minas, Virtual Books Online M&M Editores Ltda.

Parfit, Derek, (1984) Reasons and Persons, Parte 3: Personal Identity, Oxford, Clarendon Press.

Parfit, Derek, (1995) The Unimportance of Identity, Oxford, Oxford University Press

Zalta, Edward, (2002) Personal Identity, Stanford Encyclopedia of Philosophy, retirado de http://plato.stanford.edu/

Parfit, Derek, (1976) Personal Identity, In: Glover, J., The Philosophy of Mind, Oxford, Oxford University Press,

Shoemaker, Sydney, (1984) Personal Identity: A Materialist's Account,

Voltaire, François, Dicionário Filosófico de Voltaire, Domínio Público, retirado de http://www.dominiopublico.gov.br/



Nota: 
As passagens em inglês nas edições consultadas foram alvo de tradução livre dos autores.








Ensaio Filosófico Apresentado à Sociedade

 Portuguesa de Filosofia e ... 

... que não ganhou!


Elaborado por:

 Pedro Justo e Gonçalo Rocha

alunos do 11°Ano.



 Muito Orgulhosa do vosso trabalho!


Obrigado!


                                               Lola


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