Eutanásia e ciência
Morte assistida: o lugar do
sofrimento e da dignidade em vidas prolongadas pela ciência
Será preciso “descristianizar a morte”
para que a eutanásia seja um dia descriminalizada?
Pode o “corpo-carne” ser
considerado vida?
O que é o direito “à morte livre”?
Pode um doente terminal
ser livre na sua decisão de pôr termo à vida?
O PÚBLICO ouviu três filósofos e
uma especialista em bioética.
Maria Filomena Molder: “O desenvolvimento científico
chegou a tal ponto que interessa menos o que o doente está a sentir, os
afectos, do que a obstinação terapêutica”
Um ser
humano normal absolutamente exaurido pela dor física, pelo sofrimento psíquico,
pelo isolamento social num hospital ou num ‘hospício’, acamado, não raro
inconsciente a maior parte do tempo, incontinente, de pele engelhada e manchada
de chagas incicatrizáveis.”
Quando o filósofo e escritor Miguel Real
fez 60 anos e foi avô pela primeira vez decidiu escrever o livro onde aparece
esta descrição, Manifesto em Defesa de uma morte livre (Edições
Parsifal, 2015). Entende o que lá escreveu, e a pesquisa que fez para o
escrever, como “uma preparação para a última fase" da sua vida: "Eu
preferia morrer de ataque cardíaco, a dormir…” Mas, se o seu fim for mais
parecido com o que descreve, sentiu a necessidade de vir dizer que quer a
eutanásia para si, e de explicar porquê.
A discussão foi relançada pelo manifesto Direito a
morrer com dignidade, divulgado recentemente e assinado por mais de
100 personalidades. Ali se diz que “a morte assistida” – não se usa o
termo eutanásia – “é o acto de, em resposta a um pedido do próprio – informado,
consciente e reiterado – antecipar ou abreviar a morte de doentes em grande
sofrimento e sem esperança de cura”.
Miguel Real, que é também um dos seus
signatários, diz que a tecnologia e a medicina fizeram com que a vida tenha
sido artificialmente prolongada “muito além do seu ciclo natural”. O contexto
actual é então do que chama de aumento dos “profundamente idosos”, não mais a
terceira, mas a quarta idade, pessoas a partir dos 80 anos, “muito debéis,
fragilizadas”.
Perguntas e respostas sobre a morte assistida
Quando se fala de “direito à vida”
defende que “viver artificialmente após a derrocada natural do corpo não é já
viver de forma natural. A vida em estado de agonia não pode ser considerada
natural.” Miguel Real fala de se estar, nestes casos, apenas a prolongar “o
corpo-carne. Já não é vida, é menos do que a vida. É a ciência a ter der salvar
um corpo humano a todo custo, mas há limites, há corpos humanos que já não
podem ser salvos”.
Há uma legislação que não foi discutida
e essa ninguém põe em causa. Não houve debate, é aceite universalmente
José Gil, filósofo e ensaísta
Miguel Real diz que “é preciso
descristianizar a morte”. Conta que foi educado como cristão, e julga legítimo
os que entendem esta fase final de sofrimento “como uma expiação do mal. Têm
esse direito. Os que não são cristãos não têm de seguir o seu caminho” e “ficar
um a dois anos a sofrer ou, a não sofrer sedado, mas bêbado de substâncias
sintéticas que lhe tiram a dor e a consciência”.
Mas o filósofo diz que “o debate ainda
não está maduro”, deve prolongar-se por um ano ou dois. A haver referendo, não
tem dúvida de que “ganharia o rotundo não": "Há uma mentalidade
enraizada na população, sejam ou não praticantes, que tem 1500 anos; a
mentalidade de morrer livremente tem 30 anos na Europa. Há uma desproporção
temporal. Reprovaria não só em Portugal, na maior parte da Europa”.
O também investigador do Centro de
Literaturas e Culturas Europeias e Lusófonas da Universidade de Lisboa diz que
“vale a pena lutar contra a corrente” e não deixa de referir que “a política,
quando é ética” pode “apontar os caminhos civilizacionais à população”.
Acredita que a descriminalização da
eutanásia será inevitável e normal dentro de duas ou três gerações, como o
culminar de “uma revolução relativamente silenciosa que tende a superar os
desajustamentos entre a prática social e a prática moral. É uma realidade que
se vai impor à sociedade”.
“Começar a casa pelo telhado”
Ana Sofia Carvalho, directora do
Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, diz que o debate em
torno da questão da eutanásia “não tem a ver com religião, tem a ver com
valores que estão inscritos na nossa matriz cultural, e na de toda a Europa,
que é judaico-cristã”.
A investigadora afirma que “um dos
perigos do debate, é a “rotulagem: ‘católico’, ‘não católico’. Em Portugal há
muitas pessoas não católicas que não concordam com a eutanásia.”
Viver artificialmente após a derrocada
natural do corpo não é viver de forma natural
Miguel Real, filósofo e escritor
Na sua opinião, pensar em eutanásia é
“começar a casa pelo telhado”, notando que, “quem trabalha na área da
humanização dos cuidados de saúde, sabe que há tanto a fazer, antes de chegar a
isso. Há desumanização todos os dias.”
A também membro do Conselho Nacional de
Ética para as Ciências da Vida pega num exemplo concreto, “o deixar morrer
[quando não há esperança] é uma obrigação do profissional de saúde” e, no
entanto, “a quantidade de pessoas que recebem quimioterapia na última semana de
vida ou que acabam a sua vida numa unidade de cuidados intensivos… Quando seria
possível morrerem em paz, com mais dignidade. Há tanto a fazer.”
Outro exemplo: “Reanimar um doente
oncológico em fase terminal que entra em paragem cardio-respiratória é má
prática médica”. Será que isso se faz em Portugal? “Não há dados, mas a prática
internacional diz que se faz demasiado”. A investigadora fala “da coragem moral
para saber parar quando não há nada a fazer, deixar a pessoa morrer com
dignidade. Na ética médica estas ainda são questões muito recentes. Ainda não
houve tempo para se sedimentarem nos profissionais de saúde”.
O manifesto fala do consentimento
informado como um direito “salvaguardado”. A investigadora da Universidade
Católica de Lisboa diz que “afirmar que existe consentimento informado é,
muitas vezes, algo absolutamente utópico. Não é porque são legisladas que as
coisas existem na realidade”.
Quanto à questão da liberdade, a
especialista em bioética diz que não sabe “se é o termo mais correcto”: “Um
doente terminal, com tanta vulnerabilidade e fragilidade, nunca é livre, está condicionadíssimo.
Eticamente levantam-se objecções”. A docente defende que “a
vulnerabilidade não exclui a liberdade, mas condiciona a capacidade de decidir
livremente, a possibilidade de coacção aumenta”.
O manifesto parte do pressuposto “que os
doentes têm acesso aos cuidados paliativos, quando isso não acontece. E, nota,
“não está cientificamente comprovado que, se todos tivessem acesso àqueles
cuidados, se quereriam morrer [recorrendo à eutanásia]”. “Não faltam exemplos
de pessoas que dizem que queriam x e x e que depois, em final de vida,
não quiseram. A morte é um futuro, uma circunstância muito aberta.”
Há a ideia de que somos eternos. Muitas
vezes, a morte já não é ‘assistida’, passou para uma esfera oculta,
institucional
Maria Filomena Molder, professora de
Filosofia
“A promessa da tortura”
Maria Filomena Molder, professora de
Filosofia da Universidade Nova de Lisboa, diz que “a incerteza [do momento] da
morte deve ser protegida”. Parece contraditório? “Não é”. “O desenvolvimento
científico chegou a tal ponto que interessa menos o que o doente está a sentir,
os afectos, do que a obstinação terapêutica” e essa sim “quer diminuir essa
incerteza da morte. Impõe-se como medida puramente tecnológica”.
“A incerteza da morte é o nosso espaço
de liberdade”. Ser defensor da eutanásia não é contrariar essa incerteza,
explica a docente que também é signatária do manifesto, é aceitar que “a
incerteza foi abandonada.” Nessa altura, continuar a viver “é a condenação, é a
promessa da tortura.”
“Há a ideia de que nós somos eternos.
Muitas vezes a morte já não é ‘assistida’, a morte passou para uma esfera
oculta e institucional [hospitais e lares de idosos]”.
“Despenalizar a morte assistida”, não é,
como o suicídio, “uma morte abandonada”. A intervenção do médico tem de
acontecer porque “a medicina não se faz sem dois, médico e doente. Não é a
decisão de uma pessoa abandonada, mas acompanhada. Exige preparação e reflexão,
enquanto podemos reflectir”.
Um doente terminal, com tanta
vulnerabilidade e fragilidade, nunca é livre, está muito condicionado
Ana Carvalho, investigadora em bioética
A docente diz que uma coisa são os
princípios religiosos outra “a dogmática religiosa. Há uma obsessão em relação
ao ‘direito à vida’, que não sabemos o que é. O que é isso do direito à vida”.
E cita a filósofa Hannah Arendt quando dizia que “a morte não é a coisa mais
terrível, o mais terrível é ser obrigado a viver indignamente”.
Maria Filomena Molder defende que “não
pode ser a dogmática religiosa que decide. Há pessoas sem confissão religiosa”,
sustentando que a descriminalização da morte assistida será consequência “da
evolução das sociedades ocidentais e da separação do poder político do
religioso.”
A lei actual nunca foi debatida
A legislação portuguesa actual prevê que
o crime de “homicídio a pedido da vítima” é punível com pena de prisão até 3
anos, o “homicídio por compaixão” com prisão de 1 a 5 anos e “o incitamento ou
ajuda ao suicídio punível” com prisão até 3 anos.
“Há uma legislação que não foi discutida
e essa ninguém põe em causa. Não houve debate, é universalmente aceite”, nota
José Gil, professor de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa.
“Porque é que não se pode debater ao
contrário”, uma lei que descriminaliza a morte assistida? “A legislação que
existe é uma herança, mas as coisas mudam.”
O filósofo diz que o reclamar “da morte
assistida tem a ver com o reconhecimento do que a dor e o sofrimento podem
causar à vida: arrancar o indivíduo a si próprio, enlouquecê-lo, humilhá-lo,
esmagá-lo, o que se chama uma morte indigna. Há qualquer coisa na vida de
puramente biológico que se recusa, que a biologia nos pode reduzir a um
objecto”. O direito à eutanásia é permitir que “o homem se possa apropriar da
sua vida até ao fim”, uma expressão “do direito à vida”.
“Isto não são elucubrações
filosóficas, isto tem a ver com a nossa vida.
Morre-se só.”
In Publico
CATARINA GOMES
14/02/2016 - 07:39
Lola
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