Ciência e objetividade
Introdução
Houve um
tempo em que as teorias eram eternas. Ou, pelo menos, assim pareciam. A física
de Aristóteles e a cosmologia de Ptolomeu, por exemplo, ambas formuladas na
Antiguidade, foram aceites sem muitas modificações até ao séc. XVII. Mas, nesse
século, devido à revolução científica levada a cabo por Bacon, Galileu e
Descartes e, em particular, por Newton, tudo mudou. A cosmologia de Ptolomeu
foi rapidamente substituída pela de Copérnico; e a física de Aristóteles pela
de Galileu e de Kepler, e estas, por sua vez, pela de Newton. A partir daí
surgiram um grande número de teorias, com mais ou menos sucesso, em campos até
então entregues ao ocultismo, à especulação ou à autoridade religiosa, que
levaram à formação de novas ciências. A Química emergiu com Lavoisier
(1743–1794); a Geologia com James Hutton (1726–1797); e a Biologia com Lamark
(1744–1829), para referir apenas algumas das ciências mais importantes. Daí
para cá surgiram mais ciências, enquanto outras se ramificaram num grande
número de áreas de investigação especializada (genética, bioquímica, física das
partículas, etc.). Ao mesmo tempo, teorias consideradas conquistas permanentes
do espírito humano revelaram-se falsas e foram substituídas por outras teorias,
que acabaram também por ser substituídas. Na Biologia, a teoria da evolução de
Lamark foi substituída pela de Darwin e esta, por sua vez, deu origem à teoria
neodarwinista — resultado da sua junção com a teoria dos genes de Mendel
(1822–1884) — ainda atualmente aceite; na Física, a teoria da gravidade de
Newton, vista durante séculos como a explicação definitiva do movimento dos
corpos, foi substituída pela teoria da relatividade de Einstein, que o seu
autor considerava apenas uma solução provisória. E algo semelhante aconteceu
nas outras ciências.
Tudo isto
torna evidente um facto importante: a ciência evolui e essa evolução parece ser
um dos seus aspetos mais distintivos. Isto levanta dois problemas
filosoficamente interessantes:
1.
Como é que a ciência evolui?
2.
Dá-se essa evolução de acordo com
critérios objetivos?
O propósito
deste texto é conhecer a resposta a estas duas questões dada por dois
importantes filósofos da ciência do século XX, Karl Popper e Thomas Kuhn.
Karl Popper
O progresso e a objetividade da ciência
A explicação
de Popper do progresso da ciência está intimamente associada com a sua
concepção do método científico. Recordemos os seus traços principais.
Para Popper,
a ciência começa com problemas, para cuja solução são formuladas hipóteses ou
conjeturas. Estas hipóteses são depois submetidas a testes severos com o
objetivo de provar que são falsas. Algumas são imediatamente eliminadas, porque
não passam os testes a que são submetidas. Outras passam estes testes e podemos
dizer que são corroboradas por eles. Isto não significa que estas teorias sejam
verdadeiras; apenas que os testes a que foram submetidas até àquele momento
foram incapazes de mostrar que são falsas. Mais tarde ou mais cedo, porém,
todas as teorias serão afastadas porque os testes revelaram que são falsas.
Quando isto acontece, um novo problema surge para o qual são propostas novas
hipóteses, que vão também ser submetidas a testes, num processo que continua
indefinidamente.
Popper resume
algumas vezes o seu método com o esquema seguinte:
P1 ➝ TT ➝ EE ➝ P2
P1 representa
o problema inicial; TT, as teorias propostas para resolver esse problema; EE, o
processo de teste e eliminação das teorias; e P2, o novo problema que resulta
da eliminação de todas as teorias — falsas — propostas para resolver P1. Quanto
maior a diferença entre o problema inicial (P1) e o problema final (P2) maior o
progresso realizado.
Assim, o
método que o cientista usa ao fazer ciência é ao mesmo tempo o instrumento de
progressão da ciência e a explicação para a substituição de umas teorias por
outras, que temos observado ao longo da história da ciência. A ciência
progride, e o conhecimento científico cresce, pelo derrube das teorias
científicas vigentes através de testes exigentes e a sua substituição por
teorias melhores, capazes de resolver os problemas que as outras teorias
resolviam e também os que elas se revelaram incapazes de superar. A ciência é,
assim, ao mesmo tempo revolucionária e conservadora. Revolucionária, porque as
novas teorias derrubam as anteriores; e conservadora, uma vez que incorpora
aquilo em que estas tiveram sucesso.
Esta
capacidade de escolher entre teorias melhores e piores pressupõe um critério de
progresso, isto é, um critério para determinar se uma teoria constitui, ou não,
um avanço relativamente às outras. Popper aceita a teoria da verdade como
correspondência, segundo a qual uma teoria é verdadeira se está de acordo com
os factos e falsa se não está. Contudo, ele não pode usar a verdade como
critério de progresso e afirmar, como os indutivistas, que a ciência progride
por acumulação de teorias verdadeiras, porque as teorias científicas são sempre
hipotéticas e conjeturais. Ele tem, portanto, de recorrer a outro critério.
Qual é esse critério? A verosimilhança ou a proximidade à verdade. O facto de
uma teoria ter sucesso onde todas as outras falharam, de ser capaz de explicar
o que as outras explicam e aquilo que as outras não explicam, significa que
essa teoria é uma melhor aproximação à verdade, uma teoria mais verosímil, que
todas as outras. A verdade, embora não seja alcançável, funciona como uma ideia
reguladora, uma luz no fundo do túnel, para a qual a ciência deve tender. O
método é o processo que os cientistas usam para esse fim. E como na sua base
está a atitude crítica, fundada em regras lógicas, a ciência é racional e
objetiva. A escolha entre teorias não se faz com base em aspetos subjetivos,
como as preferências individuais dos cientistas, mas em critérios objetivos,
uma vez que os testes a que as teorias são submetidas são feitos de acordo com
procedimentos metodológicos precisos, que permitem determinar quais as que se
aproximam mais da verdade.
Thomas Kuhn
Vida e obra
Thomas S.
Kuhn nasceu em 18 de julho de 1922, em Cincinnati, Ohio, nos Estados Unidos.
Como no liceu revelou-se um excelente aluno a Matemática, em 1940, entrou para
a Universidade de Harvard como estudante de Física. Depois da entrada dos
Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, Kuhn resolveu fazer o curso o mais
rapidamente possível e, em apenas três anos, em 1943, licenciou-se summa cum
laude, isto é, com a mais alta honra. Kuhn passou o resto dos anos de guerra a
fazer investigação relacionada com radares em Harvard e na Europa. Em 1946, fez
o mestrado e, pouco depois, em 1949, o doutoramento em Física, com uma tese
sobre a aplicação da mecânica quântica à física do estado sólido. Antes, ainda
em 1947, foi convidado pelo presidente da Universidade de Harvard para lecionar
um curso sobre ciência centrado no estudo de alguns casos históricos. Isto
levou-o a interessar-se por história da ciência e, depois, por filosofia da
ciência. Durante este período, ele concentrou-se no estudo da teoria da matéria
no século XVIII e nos momentos iniciais da história da termodinâmica. Kuhn
interessou-se em seguida pela história da astronomia e, como consequência
disso, em 1957, publicou o seu primeiro livro, A Revolução Copernicana: A
Astronomia Planetária no Desenvolvimento do Pensamento Ocidental. Em 1956, Kuhn
trocou a Universidade de Harvard pela de Berkeley, para lecionar história da
ciência. Aí, o contacto com filósofos da ciência, como Stanley Cavell (1926-) e
Paul Feyerabend (1924–1994), permitiu-lhe desenvolver os seus interesses em
filosofia da ciência. Na sequência disso, Kuhn publicou, em 1962, A Estrutura
das Revoluções Científicas, o seu livro mais importante e controverso,
considerado uma das principais obras da segunda metade do século XX. É nesta
obra que Kuhn expõe a sua teoria da ciência e que surge o conceito de paradigma
e de mudança de paradigma, que depois se tornou usual da política ao futebol.
Muito do trabalho subsequente de Kuhn centrou-se em história da ciência e
filosofia da ciência, em particular, procurando articular e desenvolver as
ideias que apresentou em A Estrutura das Revoluções Científicas. Em 1964, Kuhn
trocou a Universidade de Berkeley pela de Princeton, ao mesmo tempo que A
Estrutura das Revoluções Científicas, inicialmente aceite sobretudo pelos
cientistas sociais, começou a interessar os filósofos. Em 1977, Kuhn publicou o
livro A Tensão Essencial, constituído por ensaios em história e filosofia da
ciência, em que realça a importância da tradição na ciência. No ano seguinte,
publicou Black-Body Theory and the Quantum Discontinuity, sobre os primórdios
da mecânica quântica e, em 1979, trocou uma vez mais de universidade, aceitando
um convite do MIT. Nos anos subsequentes Kuhn continuou a trabalhar em
problemas levantados por A Estrutura das Revoluções Científicas. Kuhn morreu a
17 de junho de 1996, após dois anos de doença devido a cancro dos pulmões.
A filosofia da ciência de Kuhn
Para Popper,
a ciência é objetiva em última instância porque o seu método — o método das
tentativas e erros — se baseia num conjunto de regras lógicas que são o modelo
e a garantia da racionalidade. O cumprimento dessas regras pelos cientistas na
sua prática de investigação permite a escolha das melhores teorias, das teorias
corroboradas, que resistiram aos testes quando todas as outras falharam, e que,
por isso, estão mais próximas da verdade. A tarefa da filosofia da ciência,
deste ponto de vista, é isolar e descrever estas regras tal como surgem no
método e tornar claro para a comunidade científica os princípios que subjazem
ao seu próprio trabalho. Apesar de criticar com veemência o critério de
demarcação e a concepção do método dos indutivistas, neste ponto Popper
segue-os de perto. A história da ciência é vista por ele, como pelos
indutivistas, como uma disciplina auxiliar cujo papel é o de fornecer exemplos
de práticas científicas bem sucedidas, que ilustrem o método em ação.
Kuhn não pode
estar mais em desacordo com esta visão não histórica da ciência e da filosofia
da ciência, que reduz esta última à análise da estrutura lógica da ciência. Do
seu ponto de vista, a história da ciência tem um papel central na filosofia da
ciência. Podemos mesmo dizer que o seu trabalho filosófico é uma tentativa de
desenvolver uma filosofia da ciência com base na história da ciência. A função
da história da ciência, pensa ele, não é apenas fornecer alguns exemplos de
investigações científicas bem sucedidas para ilustrar uma certa concepção da
ciência. É, ao contrário, o estudo de casos significativos da história da
ciência que nos permite saber o que a ciência é. A história é, assim, o ponto
de partida do filósofo da ciência na sua tentativa de compreender a ciência tal
como ela é praticada pelos cientistas.
Ciência normal
Que revela a
história da ciência sobre a ciência? Antes de mais, que tanto a concepção
indutivista como a falsificacionista da ciência estão erradas. A atividade
científica não se processa do modo como uns e outros afirmam, mas antes de
acordo com o seguinte esquema:
Ciência
normal ➝ crise e ciência extraordinária ➝ revolução científica ➝ nova ciência
normal
Este desenvolvimento
por fases, no entanto, só se verifica quando uma ciência atinge um certo nível
de maturidade. Antes disso não existe propriamente uma ciência, mas uma área de
investigação em que diferentes escolas e subescolas competem entre que si e
discordam em aspetos fundamentais: que problemas investigar, que metodologias
aplicar, qual a natureza dos fenómenos a explicar, etc. Kuhn chama a este
estádio ciência pré-paradigmática, que se carateriza por uma total discordância
e um constante debate. Nele não existe um corpo de crenças garantidas e
partilhadas pelos investigadores e há quase tantas teorias quanto
investigadores, cada um procurando construir o seu campo de investigação desde
a base. Kuhn dá como exemplo de uma ciência pré-paradigmática a óptica antes de
Newton. Desde a Antiguidade que existia um grande número de teorias acerca da
natureza da luz, mas não existia consenso nem nenhuma teoria que fosse
geralmente aceite antes de Newton ter proposto a sua teoria das partículas.
Uma área de
investigação torna-se uma ciência madura quando existe consenso entre os
investigadores que nela trabalham relativamente aos problemas a investigar, as
leis a aplicar, e os métodos e os instrumentos a usar nesse campo de
investigação. Isto acontece quando há uma realização científica que uma
comunidade científica particular reconhece como exemplar e fundando a sua
investigação futura. Isto é, quando existe aquilo a que Kuhn chama paradigma,
um conjunto de problemas, soluções — teorias e leis — práticas metodológicas e
princípios metafísicos, que são aceites pela generalidade dos praticantes
daquele campo. Uma ciência madura é dominada apenas por um paradigma, que
estabelece o que é ou não legítimo investigar dentro de uma ciência e coordena
e dirige a investigação nessa ciência. São exemplos de paradigmas a física de
Aristóteles, a mecânica de Newton, o eletromagnetismo de Maxwell e a seleção
natural de Darwin. Aquilo que, segundo Kuhn, distingue ciências de não-ciências
não é, como pensam os indutivistas, o facto de as teorias científicas poderem
ser verificadas, ou, como pensa Popper, o facto de poderem ser falsificadas,
mas o de existir ou não num determinado campo de investigação um paradigma
aceite pela generalidade dos seus praticantes. Diferentes áreas de investigação
atingiram a maturidade, isto é, tornaram-se ciências, em diferentes ocasiões. A
Matemática e a Astronomia na Antiguidade, a Óptica no século XVII, a Química no
século XVIII e a Biologia no século XIX, por exemplo. Por outro lado, muitas
das ciências humanas atuais, porque não têm um paradigma dominante, não
constituem ciências.
Podemos,
apesar disso, dizer que um paradigma é constituído por
·
Um feito científico exemplar, que sirva
como modelo para a investigação futura a realizar;
·
Problemas, métodos, instrumentos e
técnicas sugeridos por este feito científico;
·
Crenças metafísicas acerca dos tipos de
objetos e de fenómenos que constituem o mundo.
Por exemplo,
o paradigma newtoniano inclui as leis do movimento de Newton, mas também
métodos para aplicar estas leis ao movimento dos planetas, dos pêndulos, das
bolas de bilhar, etc., assim como vários tipos de telescópios e de técnicas
para o seu uso e para a correção dos dados obtidos por seu intermédio, em
conjunto com pressupostos metafísicos, como o de que o mundo é um mecanismo em
que várias forças operam de acordo com as leis do movimento de Newton.
Quando uma
área de investigação adota um paradigma, ela entra num estádio a que Kuhn chama
ciência normal e é nisto que consiste a maior parte da atividade científica. A
ciência normal não visa descobrir novos tipos de fenómenos ou novas teorias,
mas apenas aumentar o sucesso do paradigma aceite, articulando-o de modo a
melhorar a sua correspondência com a natureza. Por isso, a investigação feita
na ciência normal tem em vista a resolução de puzzles ou enigmas. Os puzzles
são problemas sugeridos aos cientistas pelo paradigma aceite. Para resolver
estes puzzles, os cientistas usam as regras do paradigma, esperando, desse
modo, que as soluções dos problemas novos sejam semelhantes às dos problemas
previamente examinados na sua disciplina. Eram puzzles para o paradigma
newtoniano, por exemplo, conceber técnicas matemáticas para aplicar as leis de
Newton ao movimento dos fluidos ou a melhoria da exatidão das observações
astronómicas. Ao fazerem ciência normal, os cientistas assumem que o paradigma
fornece os meios necessários para a solução dos puzzles que coloca. Uma solução
de um puzzle que viole uma regra do paradigma, por exemplo, uma lei da
natureza, não é, em princípio, aceitável. Por outro lado, o fracasso na solução
de um puzzle é visto como um fracasso do cientista e não como uma deficiência
do paradigma.
Contudo, mais
tarde ou mais cedo surgem puzzles que, apesar dos seus esforços, os cientistas
são incapazes de resolver de acordo com o conjunto de regras e técnicas
sugeridas pelo paradigma aceite. Kuhn chama anomalias a estes problemas. Estas
anomalias podem pôr em questão as leis, os instrumentos e as regras aceites por
uma comunidade científica, sugerindo que têm de ser modificados ou mesmo
abandonados. Kuhn dá como exemplos de anomalias os cometas para a cosmologia
aristotélica, que via o mundo para além da Lua como não estando sujeito à
mudança, e a necessidade de reforma do calendário, ocorrida no tempo de
Copérnico, para a astronomia ptolomaica.
Nem todas as
anomalias são igualmente graves. Qualquer paradigma encontra dificuldades e
existe sempre alguma discrepância entre as previsões1 das
teorias e os dados experimentais, sem que isso ponha em causa o paradigma
vigente e a atividade científica de acordo com a ciência normal. Por isso,
algumas anomalias podem, pelo menos inicialmente, ser negligenciadas. Foi o
caso da previsão da lei da gravidade de Newton do movimento de Mercúrio, que
diferia dos dados observacionais, sem que isso levasse alguém a pôr em causa a
teoria de Newton. Outras podem encontrar uma solução de acordo com as
expetativas. Por exemplo, a lei da gravidade de Newton também fazia previsões
para o movimento da Lua que diferiam dos dados experimentais. Contudo, ao fim
de algum tempo de investigação foi possível obter, a partir da teoria, um valor
de acordo com as experiências e a anomalia deixou de existir.
Mas mesmo que
as anomalias sejam graves, elas não falsificam o paradigma, como Popper
pensaria. Lembremos que, de acordo com Popper, o progresso da ciência faz-se
por um processo em que conjeturas arrojadas são submetidas a testes com o objetivo
de as refutar. Deste ponto de vista, uma previsão da teoria que não esteja de
acordo com a realidade refuta a teoria e leva à sua substituição por outra mais
próxima da verdade. Para Kuhn, no entanto, as anomalias não correspondem a
estas instâncias popperianas de falsificação das teorias. Ele duvida mesmo de
que seja possível refutar uma teoria. Assim como também pensa que nenhuma
anomalia, por mais grave que seja, leva ao abandono de uma teoria a não ser que
exista uma outra para a substituir. Para Kuhn, uma teoria científica é
considerada inválida apenas se existe uma alternativa disponível para ocupar o
seu lugar. Assim, os cientistas, quando fazem juízos acerca das teorias apenas
as comparam, não as refutam. Segundo Kuhn, o estudo histórico do desenvolvimento
científico não revelou nada que se aproxime do método das tentativas e erro
proposto por Popper. Por outras palavras, a história da ciência mostra que a
descrição de Popper do progresso da ciência é falsa, uma vez que não
corresponde à forma como os cientistas trabalham.
Crise e ciência extraordinária
Quando numa
dada ciência surge uma anomalia grave, essa ciência entra em crise e passa da
ciência normal para aquilo a que Kuhn chama ciência extraordinária. Uma
anomalia é considerada grave se:
·
Põe em causa componentes fundamentais do
paradigma vigente;
·
Persistentemente resiste a uma solução
por intermédio dos recursos que esse paradigma põe à disposição dos cientistas.
Outro fator
importante para o despoletar da crise é o acumular de anomalias dentro de um
paradigma.
A transição
para a ciência extraordinária ocorre à medida que os cientistas dão cada vez
mais atenção à anomalia. As primeiras tentativas de a resolver seguem de perto
o paradigma aceite, mas à medida que o problema continua a resistir a uma
solução, as tentativas de resolvê-lo afastam-se cada vez mais das
soluções-padrão sugeridas pelo paradigma, e as regras da ciência normal
tornam-se progressivamente mais difusas e frouxas. Os cientistas começam a
entrar em discussões filosóficas e metafísicas e tentam defender as suas
soluções para a anomalia com argumentos filosóficos. Embora ainda exista um
paradigma, poucos são os cientistas que estão de acordo acerca da sua natureza
e mesmo as soluções dos problemas anteriormente resolvidos aplicando os
instrumentos disponibilizados pelo paradigma são postas em questão. O consenso
até aí existente relativamente às características fundamentais da atividade
científica começa a ser substituído por cada vez mais e maiores divergências e
os cientistas começam a expressar abertamente a sua insatisfação com o
paradigma vigente. Finalmente, alguns cientistas, em particular os mais jovens
ou os mais recentes naquele campo da ciência e, portanto, menos presos à
tradição do que os seus colegas, começam a sugerir alternativas ao paradigma
vigente.
Revolução científica
Segundo Kuhn,
as divergências entre os cientistas causadas pela crise podem terminar de três
maneiras diferentes:
1.
A anomalia é resolvida no contexto do
antigo paradigma, os cientistas voltam a fazer ciência normal e a confiança no
paradigma é restaurada;
2.
A anomalia resiste a uma solução, os
cientistas chegam a acordo em que nenhuma solução pode ser encontrada no estado
atual da sua ciência e decidem deixar o problema para futuros cientistas resolverem;
3.
A anomalia é resolvida por uma nova
teoria que é cada vez mais aceite até se formar um consenso entre os membros da
comunidade científica em torno desta teoria.
Esta terceira
possibilidade é aquilo a que Kuhn chama revolução científica e, no essencial,
consiste na substituição de um paradigma por um outro paradigma. Uma
característica importante das revoluções científicas, segundo Kuhn, é que elas
não são cumulativas. Para os indutivistas, quando uma teoria é substituída por
outra, a velha teoria é incorporada na nova, que é mais abrangente. Para Kuhn,
ao contrário, uma revolução científica é a reconstrução de uma ciência a partir
de bases novas, em que tanto algumas das generalizações mais elementares
daquele campo como muitos dos seus métodos e aplicações mudam radicalmente. O
novo paradigma é, por isso, muito diferente e incompatível com o antigo. Por
exemplo, o paradigma aristotélico via o mundo como estando dividido em duas
regiões distintas, uma supra-lunar, imutável e composta de esferas em que os
planetas eram arrastados em movimentos circulares, e outra, sub-lunar, sujeita
a toda a espécie de movimento e alterações, ao passo que os paradigmas que o
substituíram — o galilaico, o cartesiano e o newtoniano — eliminaram esta
distinção e viam o mundo como sendo constituído pelo mesmo tipo de substâncias.
Do mesmo modo, ao rejeitarem o antigo paradigma, os cientistas rejeitam também
as previsões que fazia que não estão de acordo com as previsões do novo
paradigma. Contudo, um novo paradigma só é adotado se pode solucionar as
anomalias que o velho foi incapaz de solucionar. Assim, ao adotar um novo
paradigma, os cientistas são capazes de dar conta de um grande número de
fenómenos ou de dar conta com maior precisão de fenómenos já conhecidos.
Outro aspeto
importante das revoluções científicas é que paradigmas rivais também veem como
legítimas e significativas questões diferentes. Questões acerca da massa dos
planetas eram irrelevantes para os físicos aristotélicos e fundamentais para os
newtonianos. O problema da velocidade da Terra relativamente ao éter, que era
muito importante para a física pré-einsteiniana foi eliminado pela física de
Einstein.
A influência
dos paradigmas é tal que a forma como os cientistas veem o mundo é determinada
pelo paradigma com o qual trabalham. Kuhn afirma que é como se os proponentes
de paradigmas rivais vivessem em mundos diferentes. Ele dá como exemplo que só
foram registadas e discutidas mudanças no céu depois da teoria heliocêntrica de
Copérnico ter sido proposta. Antes disso, como o paradigma aristotélico
afirmava não existir mudança no mundo supra-lunar, nenhuma mudança foi
observada pelos astrónomos ocidentais.
A incomensurabilidade dos paradigmas
Como é que se
dá a passagem de um paradigma para outro? Isto é, como é que os praticantes de
uma ciência abandonam um paradigma e adotam outro? O processo de adoção de um
novo paradigma é um dos aspetos mais controversos da teoria da ciência de Kuhn
e em que a sua descrição da ciência mais se afasta das posições defendidas por Karl
Popper e pelos filósofos indutivistas. Recordemos que para Popper existem
critérios racionais que permitem escolher, entre todas as teorias propostas
para resolver um problema, aquela que é objetivamente a melhor, a que é a mais
verosímil. A perspetiva de Kuhn é completamente diferente. Para Kuhn, a mudança
de paradigma por parte de um cientista é um acontecimento súbito. O cientista
que abandona uma teoria a favor de uma nova teoria não passa gradualmente de
uma para a outra. Em vez disso, quando abandona uma adota imediatamente a
outra, numa espécie de conversão que tem muitas semelhanças com a conversão
religiosa. A razão de ser disto, segundo Kuhn, está no facto de que os
paradigmas são incomensuráveis. A palavra incomensurabilidade significa «sem medida
comum» e tem origem na matemática, em que era usada pelos gregos antigos para
expressar a ideia de que não existe uma medida comum entre o cateto e a
hipotenusa de um triângulo retângulo isósceles. A sugestão de Kuhn ao dizer que
os paradigmas são incomensuráveis é, obviamente, que não se pode determinar com
rigor qual dos paradigmas em competição é melhor porque não existe uma medida
comum, exterior e independente aos paradigmas, que permita compará-los de forma
completamente objetiva. Há três ordens de razões para que os paradigmas sejam
incomensuráveis:
1.
Os cientistas que apoiam paradigmas
rivais discordam quanto aos problemas que um paradigma deve resolver, porque os
seus padrões ou as suas definições de ciência não são os mesmos;
2.
Os proponentes de paradigmas rivais usam
termos, conceitos e experiências em novos contextos e com significados e
interpretações diferentes;
3.
Os cientistas que apoiam paradigmas
rivais fazem investigação em mundos diferentes.
Este último
aspeto, que os cientistas trabalham em mundos diferentes, é o mais importante.
É óbvio que o mundo não muda quando um cientista muda de paradigma. O que muda
é a forma como esse cientista observa e compreende o mundo.2 Kuhn
utiliza os resultados obtidos em certas experiências da psicologia da percepção
para tornar claro o que quer dizer. Do mesmo modo que os sujeitos destas
experiências, para terem a percepção de objetos diferentes — como quando uma
mesma imagem pode ser vista alternadamente, por exemplo, como um pato ou um
coelho — mudam para paradigmas perceptivos diferentes, cientistas a trabalhar
em tradições de ciência normal diferentes e, portanto, com paradigmas
diferentes, percepcionam o mundo de forma diferente. Mas, ao contrário dos
sujeitos destas experiências, que podem guiar-se na sua interpretação pelas
linhas do desenho, os cientistas não têm nenhum padrão externo e independente,
acima e para além da sua própria forma de perceber e compreender o mundo, pelo
qual possam avaliar objetivamente a sua compreensão da realidade.3
Não pensemos,
no entanto, que tudo o que Kuhn está a dizer é que os cientistas, ao mudarem de
paradigma, mudam unicamente a forma como interpretam as suas observações do
mundo, que se mantêm idênticas e imutáveis. Onde antes viam o Sol a girar em torno
da Terra passaram a ver a Terra a girar em torno do Sol, mudando assim de uma
interpretação falsa para uma interpretação verdadeira da realidade, enquanto a
observação em si se mantém a mesma. Esta forma de compreender o que acontece
aquando de uma mudança de paradigma pressupõe que existem observações
objetivas, puras e independentes do sujeito e das suas crenças, sobre a
realidade, e que algumas vezes interpretamo-las corretamente, outras não. Kuhn
nega que tais observações objetivas existam. As observações nunca são objetivas
porque são sempre influenciadas pelo paradigma adotado pelo cientista, ao ponto
de com a mudança de paradigma as próprias observações mudarem também. Um
cientista ptolomaico e um cientista copernicano veem coisas diferentes quando
olham para o céu. Em termos práticos, é como se vivessem efetivamente em mundos
diferentes. A esta ausência de observações puras junta-se a inexistência de uma
linguagem neutra e imparcial, que o cientista possa usar para descrever as suas
observações. Mesmo que existissem observações estáveis e objetivas, a ausência
de uma linguagem neutra para descrever essas observações torna impossível uma
avaliação e uma escolha objetiva dos paradigmas.
O facto de os
paradigmas serem incomensuráveis tem importantes consequências para o debate
entre os proponentes de paradigmas diferentes e para a escolha entre paradigmas
rivais. Se os cientistas não concordam acerca de quais os problemas que devem
ser resolvidos e quais as soluções aceitáveis — o que acontece facilmente pois,
como vimos, têm diferentes concepções de ciência e diferentes padrões de
escolha, usam os conceitos de forma diferente e vivem em mundos diferentes —, o
facto de os paradigmas serem incomensuráveis torna impossível uma comparação
exaustiva do tipo proposto pelos indutivistas e por Popper, com o objetivo, por
exemplo, de saber qual o paradigma que resolve mais problemas. Por outras
palavras, Kuhn recusa que a escolha entre paradigmas possa ser feita por
processos estritamente racionais, como os adotados no método indutivo e no
método falsificacionista. E embora ele realce o papel da argumentação (para,
por exemplo, saber se a nova teoria pode resolver os problemas que levaram a
antiga teoria à crise, se é mais precisa que a antiga ou se prediz fenómenos
que a antiga teoria foi incapaz de prever) e afirme que os cientistas podem ser
persuadidos por seu intermédio, também afirma que os cientistas escolhem os
paradigmas com base em fatores não-lógicos (estéticos e psicológicos), como a
elegância, a adequação ou a simplicidade, que diferentes cientistas valorizam
de forma diferente. Assim, um cientista pode ser atraído pela teoria
heliocêntrica de Copérnico por causa da sua simplicidade, outro porque permite
a reforma do calendário, e um terceiro porque é mais elegante que o paradigma
ptolomaico. É devido à importância destes fatores não-lógicos que Kuhn compara
a mudança de paradigma por parte de um cientista a uma conversão.
Estas teses
de Kuhn, e em particular a tese da incomensurabilidade, isto é, a tese de que
não é possível comparar os paradigmas em competição com base em padrões lógicos
precisos e em experiências que possam determinar com rigor qual deles é
verdadeiro ou se aproxima mais da verdade — isto é, qual deles é uma melhor
descrição e explicação da realidade —, significam que a ciência não é nem
racional nem objetiva.
Esta
conclusão de Kuhn está em direta oposição à concepção tradicional da ciência. A
crença comum quer aos filósofos indutivistas quer a Popper quer a muitos
cientistas das ciências naturais que se reveem na teoria da ciência de Popper é
a de que o conhecimento científico é racional e objetivo e de que a ciência tem
sido imensamente bem sucedida na sua busca por explicações cada vez mais
corretas e abrangentes da realidade. A teoria da ciência de Kuhn põe tudo isto
em questão. Segundo ele, há um elemento humano, pessoal e subjetivo, na seleção
entre paradigmas rivais e a ciência evolui — isto é, muda de paradigma — mas
não existem razões para afirmar que o novo paradigma constitua um progresso
relativamente ao anterior. De certa forma, é o irracionalismo de que David Hume
era acusado, como vimos na unidade sobre o conhecimento, e que Popper julgava
ter superado, que Kuhn faz reviver com a sua teoria da ciência fundada na
história. Não é de admirar, por isso, que os seus críticos rapidamente o tenham
acusado de irracionalismo, de relativismo e de ceticismo.
Como se faz,
então, de acordo com Kuhn, o progresso da ciência? Em rigor, só na ciência
normal, que tem por base sempre um paradigma e é cumulativa, existe progresso.
Ao selecionarem puzzles que podem ser resolvidos usando técnicas e instrumentos
próximos dos que já existem, os cientistas aumentam gradualmente o conhecimento
disponível na sua disciplina. O progresso existe, portanto, no interior dos
paradigmas. Mas, as revoluções científicas, apesar das enormes alterações a que
dão origem quando, devido a uma crise, um paradigma é substituído por outro,
não constituem propriamente um progresso. Como não existem critérios objetivos de
comparação entre paradigmas, Kuhn recusa que possamos dizer que o novo
paradigma que emerge de uma revolução científica é verdadeiro ou, como
pretendia Popper — para quem as revoluções trazem consigo teorias que são
melhores aproximações à verdade —, uma melhor descrição ou uma melhor
explicação da realidade. Por esse motivo, as mudanças de paradigma que resultam
das revoluções científicas constituem mais uma evolução ou de uma mudança do
que um progresso na verdadeira acepção da palavra.
Comparação entre as teorias de Popper e Kuhn
Embora Popper
e Kuhn usem nas suas teorias uma linguagem diferente, ambos afirmam que elas
têm muitos pontos em comum. Por exemplo, ambos dão grande importância às
revoluções científicas e à substituição das teorias por outras. Onde existe
maiores divergências entre as filosofias da ciência de Popper e Kuhn é nas
questões tratadas neste capítulo, relativas ao progresso e à objetividade da
ciência.
Para Popper,
a prática científica, que corresponde à aplicação do método falsificacionista,
garante ao mesmo tempo o progresso e a objetividade da ciência. A substituição
de uma teoria refutada por outra constitui um progresso porque esta é
objetivamente — devido ao uso de padrões lógicos — uma melhor aproximação à
verdade do que a outra. Mas, para Kuhn, não há padrões independentes e
objetivos que permitam comparar os paradigmas rivais e determinar qual é, de
acordo com esses padrões, o melhor. Por esse motivo, as teorias científicas não
são objetivas e, em rigor, não podemos falar de progresso da ciência.
QUADRO
COMPARATIVO DAS TEORIAS DE POPPER E KUHN
|
||
Há
progresso em ciência?
|
É a ciência
é objetiva?
|
|
Popper
|
Sim. As
teorias que substituem as teorias refutadas estão mais próximas da verdade e
constituem um progresso relativamente a essas teorias.
|
Sim.
Existem padrões racionais, estabelecidos no método científico, que permitem
comparar as teorias e determinar qual é mais verosímil.
|
Kuhn
|
Não. Há
mudanças de paradigmas, mas nada nos permite afirmar que o novo paradigma
constitui um progresso relativamente ao antigo paradigma.
|
Não. Não há
padrões objetivos que permitam determinar qual dos paradigmas em competição é
verdadeiro ou se aproxima mais da verdade.
|
Álvaro Nunes
alvaronunes@gmail.com
alvaronunes@gmail.com
Bibliografia
Kuhn, Thomas
S., A Estrutura das Revoluções Científicas, Lisboa: Editora Guerra
& Paz, 2009.
Popper, Karl, Busca
Inacabada, Lisboa: Esfera do Caos, 2008.
Popper, Karl, Conjecturas
e Refutações, Coimbra: Edições Almedina, 2003.
Ruse,
Michael, O Mistério de Todos os Mistérios, Vila Nova de Famalicão:
Quasi Edições, 2002, Cap. 1.
Notas
1.
Uma previsão é um fenómeno que se pode
inferir logicamente de uma teoria. Por exemplo, as leis de Galileu predizem que
a aceleração de um corpo em queda é constante. As previsões são muito
importantes para os indutivistas e para Popper, pois é por intermédio delas que
as teorias são testadas. ↩
2.
Às vezes as pessoas dizem que até ao
tempo de Copérnico o Sol girava em torno da Terra, e que a partir dessa altura
passou a ser a Terra a girar em torno do Sol. A única forma de isto não ser um
disparate óbvio é interpretar esta afirmação como significando que as pessoas
viviam em mundos diferentes, no sentido de Kuhn, devido a adotarem paradigmas
diferentes acerca do sistema solar, antes e depois de Copérnico. ↩
3.
Popper tem uma posição em parte similar.
Não há observação que não esteja carregada de teoria e é por isso que não há
observações nem problemas puros. Uns e outros pressupõem sempre uma teoria — um
paradigma, na linguagem de Kuhn — que determina o que observamos e o eventual
problema que possa daí resultar. Contudo, para Popper, ao contrário de para Kuhn,
o facto de umas teorias serem mais verosímeis do que outras permite compará-las
e determinar qual delas corresponde mais à realidade. ↩
Álvaro Nunes
Em prol do sucesso dos alunos de Filosofia
OBRIGADO!
OBRIGADO!
Lola
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