Ciência e senso comum
1. Será a ciência apenas “senso comum organizado”?
Ninguém
duvida seriamente de que muitas das ciências particulares existentes se
desenvolveram a partir das necessidades práticas da vida quotidiana: a
geometria a partir de problemas de medição dos campos, a mecânica a partir de
problemas suscitados pelas artes arquitectónicas e militares, a biologia a
partir de problemas da saúde humana e da criação de animais, a química a partir
de problemas suscitados pelas indústrias de tintas e de metais, a economia a
partir de problemas de gestão doméstica e de organização política, e assim por
diante. É certo que existiram outros estímulos para o desenvolvimento das
ciências para além daqueles que surgiram dos problemas das artes práticas. No
entanto, estes últimos tiveram, e ainda continuam a ter, um papel importante na
história da investigação científica. Nestas circunstâncias, os comentadores da
natureza da ciência que ficaram impressionados pela continuidade histórica
entre as convicções do senso comum e as conclusões científicas, têm proposto
por vezes que se diferencie ambas através da fórmula que nos diz que as
ciências são simplesmente senso comum “organizado” ou “classificado”.
Não há dúvida de que as ciências são
corpos organizados de conhecimento, e de que em todas elas uma classificação
dos seus materiais em tipos ou géneros importantes (como a classificação dos
seres vivos em espécies na biologia) é uma tarefa indispensável. Mesmo assim é claro
que a fórmula proposta não exprime adequadamente as diferenças características
entre a ciência e o senso comum. Os apontamentos de um conferencista sobre as
suas viagens em África podem estar muito bem organizados para o objectivo de
comunicar informação de uma maneira interessante e eficiente, sem que isso
converta essa informação naquilo a que historicamente se tem chamado ciência.
Um catálogo de um bibliotecário apresenta uma boa classificação de livros, mas
ninguém que respeite um pouco o sentido histórico da palavra dirá que o
catálogo é uma ciência. A dificuldade óbvia é a de que a fórmula proposta não
especifica que tipo de classificação é característica das ciências.
2. Explicações científicas
Vamos então
virar-nos para esta questão. Uma característica notável de muita da informação
que adquirimos ao longo da experiência comum é a de que, embora essa informação
possa ser suficientemente precisa dentro de certos limites, ela raramente é
acompanhada por qualquer explicação que nos diga por que se deram os factos
alegados. Deste modo, as sociedades que descobriram os usos da roda
habitualmente não sabiam nada sobre forças de fricção, nem sobre as razões que
fazem com que os bens colocados em veículos com rodas sejam transportados com
mais facilidade do que os bens arrastados pelo chão. Muitas pessoas aprenderam
que era aconselhável adubar os seus campos agrícolas, mas poucas se preocuparam
com as razões para agir assim. As propriedades medicinais de plantas como a
dedaleira foram reconhecidas há séculos, embora habitualmente não se tenha
oferecido qualquer explicação das suas virtudes benéficas. Para além disso,
quando o “senso comum” tenta dar explicações para os seus factos — como quando
se explica o valor da dedaleira como estimulante cardíaco através da semelhança
entre a forma da flor e a do coração humano — as explicações carecem
frequentemente de testes sobre a sua relevância para os factos.
É o desejo de explicações que sejam ao
mesmo tempo sistemáticas e controláveis através de dados factuais que gera a
ciência, e é a organização e classificação do conhecimento segundo princípios
explicativos que é o objectivo próprio das ciências. Mais especificamente, as
ciências procuram descobrir e formular em termos gerais as condições sob as
quais ocorrem acontecimentos de vários géneros, sendo as proposições sobre
essas condições determinantes as explicações desses acontecimentos. Podem
descobrir-se relações regulares que abrangem vastos domínios de factos, de tal
forma que com a ajuda de um pequeno número de princípios explicativos pode
mostrar-se que um número indefinidamente grande de proposições sobre esses
factos constituem um corpo de conhecimento logicamente unificado. Esta
unificação assume por vezes a forma de um sistema dedutivo, como acontece na
geometria demonstrativa e na ciência da mecânica. Deste modo, através de poucos
princípios, como os que foram formulados por Newton, consegue-se mostrar que
proposições sobre o movimento da Lua, o comportamento das marés, os percursos
de projécteis e a subida de líquidos em tubos estreitos estão intimamente
relacionadas, e que todas essas proposições podem ser rigorosamente deduzidas a
partir desses princípios em conjunção com várias informações sobre factos.
Explicar, estabelecer alguma relação de
dependência entre proposições que superficialmente não estão relacionadas,
apresentar sistematicamente conexões entre fragmentos de informação
aparentemente heterogéneos, são características próprias da investigação
científica.
3. A indeterminação do senso comum
Muitas
crenças quotidianas sobreviveram a séculos de experiência, o que contrasta com
o período de vida relativamente curto a que estão frequentemente destinadas as
conclusões avançadas em vários ramos da ciência moderna. Uma das razões deste
facto merece atenção. Consideremos um exemplo de uma crença do senso comum,
como a de que a água solidifica quando é suficientemente arrefecida.
Se pudermos considerar este exemplo como
típico, podemos dizer que a linguagem em que o senso comum está formulado e é
transmitido pode exibir dois tipos importantes de indeterminação. Em primeiro
lugar, os termos da linguagem comum podem ser bastante vagos, no sentido em que
a classe das coisas designadas por um termo não está clara e rigorosamente
demarcada da classe das coisas que ele não designa. Em segundo lugar, os termos
da linguagem comum podem carecer de um grau de especificidade relevante. Por
esse motivo, as relações de dependência entre acontecimentos não estão
formuladas de uma maneira determinada com precisão nas proposições que contêm
esses termos.
Devido a estas características da
linguagem comum, o controlo experimental das crenças do senso comum é
frequentemente difícil, já que não pode traçar-se facilmente a distinção entre
os dados da observação que as confirmam e os que as refutam. Deste modo, a
crença de que “em geral” a água solidifica quando é suficientemente arrefecida
pode corresponder às necessidades das pessoas cujo interesse pelo fenómeno do
arrefecimento está circunscrito ao seu interesse em atingir os objectivos
habituais da sua vida quotidiana, apesar de a linguagem utilizada na
codificação desta crença ser vaga e carecer de especificidade. Essas pessoas
podem por isso não ver qualquer razão para modificar a sua crença, mesmo que
reconheçam que a água do oceano não congela, embora a sua temperatura seja
sensivelmente a mesma do que a água de um poço quando começa a solidificar, ou
que alguns líquidos têm de ser arrefecidos a um grau maior do que outros para
mudarem para o estado sólido. Se forem pressionadas para justificar a sua
crença perante estes factos, essas pessoas podem talvez excluir arbitrariamente
os oceanos da classe de coisas a que dão o nome de água, ou, como alternativa,
podem exprimir uma confiança renovada na sua crença, defendendo que seja qual
for o grau de arrefecimento que possa ser necessário, os líquidos classificados
como água acabam por solidificar quando são arrefecidos.
4. A refutabilidade e instabilidade da ciência
Na sua
procura de explicações sistemáticas, as ciências devem reduzir a indeterminação
indicada da linguagem comum ao remodelá-la. A química física, por exemplo, não
se satisfaz com a generalização, formulada de uma maneira vaga, segundo a qual
a água solidifica quando é suficientemente arrefecida, já que o objectivo desta
disciplina é o de explicar, entre outras coisas, por que a água e o leite que
bebemos congelam a certas temperaturas, embora a essas temperaturas não
aconteça o mesmo com a água do oceano. Para atingir este objectivo, a química
física deve então introduzir distinções claras entre vários tipos de água e
entre várias quantidades de arrefecimento. Várias técnicas reduzem a vagueza e
aumentam a especificidade das expressões linguísticas. Para muitos propósitos,
contar e medir são as técnicas mais eficientes, e talvez sejam também as mais
conhecidas. Os poetas podem cantar a infinidade de estrelas que permanecem no
céu visível, mas o astrónomo quer especificar o seu número exacto. O artesão
que trabalha com metais pode ficar satisfeito por saber que o ferro é mais duro
do que o chumbo, mas o físico que quer explicar este facto tem de ter uma
medida precisa da diferença em dureza. Uma consequência óbvia, mas importante,
da precisão assim introduzida é a de que as proposições se tornam susceptíveis
de ser testadas pela experiência de uma maneira mais crítica e cuidada. As
crenças pré-científicas são frequentemente insusceptíveis de ser sujeitas a
testes experimentais definidos, simplesmente porque essas crenças são
compatíveis de uma maneira vaga com uma classe indeterminada de factos que não
são analisados. As proposições científicas, como têm de estar de acordo com
dados da observação bem especificados, enfrentam riscos maiores de ser
refutadas por esses dados.
A maior determinação da linguagem
científica ajuda a esclarecer o facto de muitas crenças do senso comum terem
uma estabilidade, que se prolonga frequentemente por muitos séculos, que poucas
teorias científicas possuem. É mais difícil construir uma teoria que, depois de
confrontos repetidos com os resultados de observações experimentais rigorosas,
permanece inabalada, quando os critérios para o acordo que se deve obter entre
esses dados experimentais e as previsões derivadas da teoria são exigentes do
que quando esses critérios são vagos e não se exige que os dados experimentais
admissíveis sejam estabelecidos por procedimentos cuidadosamente controlados.
Na verdade, as ciências mais avançadas especificam quase sempre o grau com que
as previsões derivadas de uma teoria se podem desviar dos resultados das
experiências sem invalidar a teoria. Os limites desses desvios permissíveis
geralmente são bastante reduzidos, de tal modo que certas discrepâncias entre a
teoria e a experiência que seriam vistas pelo senso comum como insignificantes
são frequentemente consideradas fatais para a adequação da teoria.
Por outro lado, embora a maior
determinação das proposições científicas as exponha a riscos de se descobrir
que estão erradas maiores do que aqueles que enfrentam as crenças do senso
comum (enunciadas com menos precisão), as primeiras têm uma vantagem importante
sobre as segundas. Elas têm uma capacidade maior para ser incorporadas em
sistemas de explicação amplos e claramente articulados. Quando esses sistemas
são adequadamente confirmados por dados experimentais, revelam muitas vezes
relações de dependência surpreendentes entre muitos tipos de factos
experimentalmente identificáveis, mas diferentes.
5. Conclusões
Nas
diferenças entre a ciência moderna e o senso comum já mencionadas, está
implícita a diferença importante que deriva de uma estratégia deliberada da
ciência que a leva a expor as suas propostas cognitivas ao confronto repetido
com dados observacionais criticamente comprovativos, procurados sob condições
cuidadosamente controladas. Isto não significa, no entanto, que as crenças do
senso comum sejam invariavelmente erradas, ou que não tenham quaisquer
fundamentos em factos empiricamente verificáveis. Significa que, por uma
questão de princípio estabelecido, as crenças do senso comum não são sujeitas a
testes sistemáticos realizados à luz de dados obtidos para determinar se essas
crenças são fidedignas e qual é o alcance da sua validade. Significa também que
os dados admitidos como relevantes na ciência devem ser obtidos através de
procedimentos instituídos com o objectivo de eliminar fontes de erro
conhecidas. Deste modo, a procura de explicações na ciência não conseguiste
simplesmente em tentar obter “primeiros princípios” que sejam plausíveis à
primeira vista e que possam vagamente dar conta dos “factos” da experiência
habitual. Pelo contrário, essa procura consiste em tentar obter hipóteses
explicativas que sejam genuinamente testáveis, porque se exige que elas tenham
consequências lógicas suficientemente precisas para não serem compatíveis com
quase todos os estados de coisas concebíveis. As hipóteses procuradas devem
assim estar sujeitas à possibilidade de rejeição, que dependerá dos resultados
dos procedimentos críticos, inerentes à pesquisa científica, destinados a
determinar quais são os verdadeiros factos do mundo.
Ernest Nagel
Retirado de The Structure of Science
(Nova Iorque,
Harcourt, Brace & World, 1961).
in CRITICA
Tradução de Pedro Galvão
Lola
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