Que Filosofia para o séc.XXI?
A matemática acaba onde começa a filosofia
Quem precisa de filósofos que pensem se à nossa volta
se multiplicam "pensadores"e "opinantes", que oferecem a
sua sabedoria a um ritmo vertiginoso? Como serão os líderes e decisores do
amanhã que estão a crescer com o telemóvel debaixo da almofada? Das grandes
empresas, como a Google, às universidades, como Harvard, há notícias
animadoras: a filosofia está de volta, bem como as humanidades em geral depois
de anos em que tudo o que contava era tecnologia e matemática. Temos mesmo de
voltar a aprender a pensar na era da técnica.
Na década de
80 do século passado, a poderosa AT&T sofria uma enorme crise de identidade que poderia ter dado cabo da
sua reputação e levado o seu fundador, Alexander Graham Bell, o inventor do
telégrafo falante, vulgo, telefone, a dar muitas voltas na tumba. Como seria de
esperar, e perante as dúvidas sobre o seu futuro, a empresa voltar-se-ia para
os consultores de gestão – espécime em franca expansão à época – na tentativa
de obter a resposta que poderia ditar o seu futuro: entrar ou não entrar no
mercado emergente dos telefones celulares.
Utilizando
os habituais modelos preditivos matemáticos, os consultores chegariam à
conclusão que os telefones móveis serviriam apenas um nicho de mercado e não um
em que valesse a pena investir tempo e recursos. Assim, e tal como tinha
acontecido com a Digital Equipment Corporation nos anos 60 que, erradamente,
tinha também previsto que nunca existiria uma forte procura por computadores
pessoais, a AT&T faria um enorme erro de cálculo no que respeita a uma das
mais importantes inovações tecnológicas e comerciais dos nossos tempos.
Ao confiar
exclusivamente na gloriosa exatidão das ciências matemáticas – indispensáveis,
sem dúvida, para a construção de um telefone – a gigantesca empresa de
telecomunicações esquecer-se-ia do mais fundamental: o que significaria
realmente ter um telefone móvel e por que motivo alguém daria dinheiro para o
adquirir.
Esta
história é contada por Ryan Seltzer, ex-consultor de gestão, que deixou o
negócio da consultoria num banco em Boston (antes trabalhara na Casa Branca) -
para fundar uma empresa de filosofia – a Strategy of Mind – que ajuda agora
muitas outras congéneres a responder e a resolver alguns dos mais complexos
desafios de gestão, nomeadamente aqueles que começam com a mais básica das
questões: o "como".
Serve esta
introdução para falar da importância da filosofia – ou, mais especificamente,
da sua aparente inutilidade – nos tempos que correm, muito graças à crescente obsessão pelas
ciências exatas – nomeadamente as que cabem no famoso acrónimo STEM – para
ciências, tecnologias, engenharias e matemáticas ou "aquilo que está a
dar", mas não só.
Sim, é certo
que a relevância social das denominadas ciências humanas – sim, pasme-se,
também são ciências – deambula perdida nas ruas da amargura, que o seu lugar institucional
é mais do que desvalorizado e a sua função pedagógica crescentemente posta em
causa. Sobre esta crise que paira sobre todas as áreas do saber que não prestam
vassalagem à exatidão, escreve Manuel J. do Carmo Ferreira, Professor
Catedrático de Filosofia da Universidade de Lisboa (aposentado),na revista Gaudium
Sciendi, da Universidade Católica Portuguesa: "irrelevância como
saber, ineficácia como intervenção, desfasamento em relação aos avanços em
outras áreas do conhecimento, são os traços maiores de uma prolongada
crise de legitimação das Humanidades, a que se vem juntar a insegurança dos que
as cultivam quanto à natureza e títulos de afirmação do seu campo
disciplinar".
Mas se a
prosa sobre a crise das humanidades daria pano para muitas mangas, centremo-nos
apenas na Filosofia, cujo lugar na sociedade contemporânea sofre de uma enorme
ambiguidade: se, por um lado, existe um desinvestimento claro no seu ensino e
aplicação – quem quer trocar um filho proficiente em tecnologia por um
que se perca nessa coisa que não serve para nada chamada filosofia? –
por outro, e em particular no mundo dos negócios, a filosofia parece estar a
transformar-se num mantra repetido por muitos no sentido de
que pode ajudar ao tão almejado sucesso, aquela palavrinha que todos usamos sem
nunca pensarmos no seu verdadeiro significado.
Apesar de,
na maioria das vezes, não aparecer em estado "puro", mas antes
transvestida em modas que acabam por ser efémeras, um tonzinho
filosófico fica sempre bem, principalmente na poderosa indústria da liderança,
que à falta de novas ideias, vai embarcando na onda do coaching,
seguida pela vaga do mindfulness – que vai de vento em popa, a
propósito – e de outras que tais, "perfeitas" para se lidar com a
também chamada era da complexidade e nela triunfar, é claro.
Ora, se é
complexo, é filosófico e mesmo que se atropelem definições, conceitos e
práticas, se juntem alhos com bugalhos, retirados de receitas milenares
chinesas, com pozinhos pós-modernos de inteligência emocional, temperados ainda
- e porque as especiarias, seja qual for a sua origem, aguçam o espírito - com
umas técnicas de relaxação indianas – a filosofia parece estar, em
muitos casos, a ser usada como uma espécie de cozinha de fusão. E que
vende, a propósito.
Mas e por
outro lado, esta antiga senhora faz lembrar também aquelas tias velhas e chatas
que somos obrigados a convidar para as grandes celebrações: tem um lugar à
mesa, mas ninguém lhe dá a devida atenção ou, pior ainda, colocamo-la no lugar
mais afastado do centro, para que não sejamos contagiados com o cheiro a bafio
que dela emana.
Existe ainda
uma terceira opção: a tia é velha e chata, mas também é rica e, enquanto
herdeiros, podemos sempre descobrir um camafeu, feio, mas valioso, guardado num
velho baú que, devidamente vestido com novas roupagens, poderá valer uma boa
maquia num qualquer novo mercado zen, devidamente comercializado por um bom leadership
coach e ser tema de workshops moderníssimos que tão bem ficam nos
nossos currículos.
Tudo isto é
mais plausível de acontecer do que manifestarmos a convicção de que o
mundo não precisa apenas de tecnologias, algoritmos, folhas de excel,
estatísticas e afins, mas também de pessoas que saibam pensar de forma crítica,
que façam as perguntas certas, que questionem o que não parece passível de
ser questionado e que arrisquem em novas teorias e formas de compreender esta
época que, tal como todas as outras, não deixa de ter "food for
thought", muito antes pelo contrário.
Basta
pensarmos em três ou quatro questões bem "modernas" e podemos logo
começar pela que dá o mote a este texto. Têm as humanidades um lugar
legítimo num mundo em que a ciência e a tecnologia parecem reinar? Será
que a inteligência artificial irá comprometer a nossa moralidade? E se a
neurociência vier a colocar em causa o nosso livre arbítrio? Deverão as
evidências das alterações climáticas alterar a forma como vivemos?
Habituar-nos-emos a viver em clima de medo face ao fundamentalismo crescente?
Será possível que o extremismo de direita, em franco crescimento na Europa,
possa dar origem a um novo holocausto? Deixaremos de raciocinar num mundo em
que existem apps que dizem o que devemos comer, o que devemos
vestir, quantas horas devemos dormir e por aí adiante?
Convencermo-nos
desta aparente lógica da batata não é, de todo, fácil. Para que serve a
epistemologia, a ética ou a filosofia moral, a filosofia política ou a
ontologia, senão como palavrões que nem merece a pena googlar? E
qual a importância de termos tempo para pensar e questionar, quando vivemos, em continuum,
rodeados de tecnologias que nos satisfazem os desejos mais imediatos, nos dão o
poder do conhecimento total, que nunca nos deixam sozinhos com os nossos botões
e que não nos permitem ter tempos de ociosidade, a pré-condição que iria dar
origem aos primeiros pensamentos filosóficos? E, mais ainda: se a
filosofia, enquanto disciplina ou prática, deveria responder às inúmeras novas
e complexas questões que se colocam à sociedade contemporânea, não foi o seu
lugar usurpado pelos incontáveis "opinantes",
"comentadores" e "cronistas", em conjunto com os milhares
de milhões de pessoas que passam a vida a dissecar a nossa realidade e a emitir
juízos sobre ela? Serve a filosofia para alguma coisa no século XXI?
Em muitas
nações ditas desenvolvidas a ideia vigente é que não se deve apostar ou
investir nesta que já foi considerada como "o saber mais abrangente".
Mas também existem alguns ventos contrários que pretendem desencalhar este
velho "amor pelo saber". E que estão a empurrar, ainda que
lentamente, o universo académico, por um lado, e o da liderança, empresarial
mas não só, por outro.
Para quê
usar a cabeça se temos computadores?
Em 2014, e
já no rescaldo da crise financeira de 2008, o presidente da Irlanda, Michael
Higgins, lançou a "Iniciativa de
Ética" com o objetivo de desenvolver, a nível nacional, um
debate sobre os principais valores que deveriam reger a sociedade irlandesa na
altura. A ideia, várias vezes repetida em discursos presidenciais, era a de que
se o povo realmente prezava a democracia, deveria evoluir para uma cidadania de
pensamento independente e ativo, sendo que recuperar a importância do ensino da
filosofia nas escolas constituiria um dos mais preciosos meios para atingir
esse fim. Para Higgins e numa interpretação mais ou menos livre das suas
ideias, a filosofia seria o mais importante antídoto contra o
pensamento de grupo, encarneirado, e o melhor ingrediente para colocar um
fim no enjoativo consenso que há muito estava a limitar o livre pensamento.
Um ano
antes, e logo ali ao lado, o Reino Unido iniciaria um estudo comparado, em 48
escolas do 1º ciclo, com a duração de um ano, no qual 1500 crianças entre os 6
e os 10 anos receberiam aulas de filosofia e outras 1500 não. O estudo,
conduzido pela Education
Endowment Foundation (EEF), uma organização sem fins lucrativos
que visa estreitar o fosso entre os rendimentos familiares (baixos) e o
aproveitamento escolar, pretendia testar a eficácia das premissas filosóficas
através de um "ensaio clínico aleatório", exatamente como os que são
feitos com os fármacos com potencial de comercialização. Assim, 22 escolas
funcionaram como grupo de controlo, enquanto as restantes 26 passaram a ter uma
aula de filosofia por semana com a duração de quarenta minutos, no que é
denominado como P4C (Philosophy for
Children) No total, mais de 3 mil miúdos estiveram envolvidos na experiência e
os resultados foram bem além do esperado.
O programa,
da responsabilidade da Society for the Advancement of
Philosofical Enquiry and Refletion (SAPERE), não tem como
objetivo concentrar-se no estudo de textos de Platão ou Kant mas, através da
leitura de histórias, poemas ou pequenas notícias da imprensa, ou ainda através
da visualização de pequenos filmes, estimular as discussões sobre matérias
"potencialmente"filosóficas. O objetivo é ajudar as crianças a
raciocinar, a formular e a fazer questões, envolvê-las em debates construtivos
e apoiá-las no desenvolvimento de argumentos.
O
"material" pode ser tão díspar quanto a leitura de uma história sobre
um miúdo que queria manter uma baleia de estimação na sua banheira ou simplesmente lançar-se uma
pergunta, em particular no grupo dos mais velhos (entre os 8 e os 10 anos) que
tenha o tal potencial filosófico: "por que motivo os tenistas homens
recebem maiores patrocínios do que as suas congéneres femininas?", "é
legítimo privar alguém da sua liberdade?" ou "se pudesses, mandarias
acabar com o livre pensamento?", entre outras inúmeras possibilidades, não
esquecendo as mais "óbvias" como "O que é ser humano?",
"se tivesses outro nome, serias uma pessoa diferente?", "qual a
diferença entre dizer uma mentira ou manter um segredo?", "temos de
estar tristes às vezes para podermos estar felizes noutras?", entre uma
panóplia alargada de outras tantas.
Os
resultados? Não só bons, como inesperados. O mais surpreendente foi o
facto de todos os miúdos que participaram nesta iniciação filosófica terem
melhorado o seu aproveitamento escolar na matemática e na leitura, tendo em
conta que o objetivo inicial nada tinha a ver com melhorias na literacia ou na
aritmética. Em média, estes progressos corresponderam ao equivalente a dois
meses extra de ensino e foram as crianças provenientes dos agregados mais
pobres as que um passo maior deram na sua performance: as suas competências de
leitura "avançaram" quatro meses, as de matemática três e as de
escrita dois.
Também e no
geral, todas as crianças participantes demonstraram uma maior confiança para
falar em público, melhoraram as suas competências de saber escutar os outros
(pares e professores), demonstraram uma paciência muito mais significativa face
aos colegas e apresentaram uma melhoria generalizada na sua autoestima. Novas
formas de pensamento e raciocínio lógico, em conjunto com uma melhoria
significativa nas suas formas de expressão, ordenação de ideias e capacidade de
argumentação foram também claramente atingidas.
Adicionalmente,
estes efeitos benéficos da filosofia duraram dois anos, com o grupo
intervencionado a continuar a ter melhores resultados muito tempo depois de as
aulas terem terminado, daí que a avaliação finaltenha
sido apenas publicada em Junho de 2015. O programa foi entretanto adotado por
inúmeras escolas em todo Reino Unido, sendo que existem atualmente mais de 3
mil professores formados em P4C e 60 mil crianças a usufruírem deste tipo de
experiência. A metodologia utilizada pela SAPERE foi desenvolvida há 35 anos
pelo professor norte-americano Matthew Lippman,
em New Jersey, e é utilizada, em formatos similares, em mais de 60 países.
No fundo, e
no que aos mais novos diz respeito e a não ser que haja um cataclismo que
desligue a internet, filosofar será cada vez mais difícil. Os alertas multiplicam-se e não é
preciso ser-se tecnofóbico para perceber que não é fácil pensar, imaginar ou
questionar quando temos o mundo inteiro literalmente na mão e ao nosso dispor ininterruptamente.
Quem imagina um adolescente a trocar likes, tweets, instagrams e
similares por uma meia hora de silêncio ou de interiorização? Ou o ciberespaço
por um espaço físico para pensar? Ou até um chatpor uma conversa
numa mesa de café, expressando, por exemplo, a tristeza que sente sem se
limitar a utilizar uma mera "carinha" triste?
Salvo
honrosas exceções, a verdade é que cada menos se troca a cuidadosa e morosa
gestão do reflexo que se quer partilhar com o mundo, por momentos de
autorreflexão. Sabido também é que esta inexistência de espaço e de tempo para
se pensar não afeta, como sabemos, só as novas gerações. Em passo mais
do que acelerado, tudo o que acontece no mundo é vertiginosamente comentado,
opinado, e, é claro, partilhado por cerca de 3,5 mil milhões de pessoas –
ou 40% da população mundial que tem acesso à internet. E, destes, um ou dois
mil milhões consideram-se, certamente, como filósofos. Se opinam e comentam,
logo existem. E assim, para que raio servem os filósofos?
Obsoleta e
inútil, a quem interessa a filosofia?
Apesar de,
em muitos casos, a filosofia parecer ter sido arrumada numa gaveta poucas vezes
aberta, em 2010, oThe New York Times resolveu tirá-la do
armário académico onde vivia encafuada e partilhou-a com o resto do mundo:
apesar de classificada como uma mera coluna de opinião, o espaço The Stone – definido
como um fórum para filósofos contemporâneos e outros pensadores, tem vindo a
atrair milhões de leitores interessados em questões tão contemporâneas como
intemporais.
Tópicos
universais como os mistérios da consciência ou da moralidade, são misturados
com questões da atualidade tão díspares quanto a ética na utilização de drones,
o controle de armas, as desigualdades de género, a crise dos refugiados, ou
seja, com as questões sociais, culturais ou políticas do nosso tempo, naquilo
que parece ser uma receita de sucesso que, afinal, até "dá likes" e
partilhas.
E foi tão
grande o êxito deste "espaço para pensadores" que a coluna semanal
deu origem ao livro, publicado
em janeiro deste ano, The Stone
Reader: Modern Philosophy in 133 Arguments , o qual, de acordo
com os seus editores, coloca uma significativa parte do total do discurso da
filosofia moderna ao dispor dos leitores. O livro é dividido em quatro grandes
secções – Filosofia, Ciência, Religião e Moralidade, e Sociedade e a sua
introdução começa da seguinte forma: "O que é um filósofo? E, mais
importante do que isso, quem é que realmente se importa com isso?".
Num tom
bem-humorado, Peter Capatano, editor do NYTimes e responsável pela edição dos
ensaios publicados na The Stone, explica que a primeira pergunta - o que é um
filósofo? – foi, exatamente, o tema do ensaio de lançamento da dita coluna em
2010. E qual não foi o seu espanto, e dos ensaístas que para ela iriam
contribuir na altura, quando se aperceberam que o artigo tinha sido o mais lido
de todos na edição online do jornal nesse dia.
Nesta mesma
introdução, Capatano não se esquece de sublinhar a ideia de que a filosofia é
considerada como supérflua e obsoleta por um conjunto substancial de pessoas,
numa espécie de movimento "anti-intelectuais" que vigora nos quatro
cantos do mundo, e muito em particular nos Estados Unidos. Mas rejeita
liminarmente a ideia – dando como exemplo o sucesso da coluna em causa – de que
a filosofia seja inútil, não tendo medo de responder à segunda questão
formulada: "há muita gente que se importa, sem dúvida", escreve. E é
esta "muita gente" que poderá ajudar a ressuscitar o valor que a
disciplina teve ao longo de grande parte da história da Humanidade.
De Harvard
aos "cursos que obrigam a pensar" para CEOs
Essa
ressurreição está também a ganhar raízes nos templos do saber da atualidade.
Vejamos o exemplo da mais americana das universidades, onde os alunos chegam
com planos de carreira bem definidos, na sua maior parte assentes em
racionalidades inabaláveis, mas onde uma cadeira denominada Teoria Política e Ética Chinesa
Clássica reúne o maior número de alunos inscritos, só
suplantada pelas de "Princípios de Economia" e "Introdução às
Ciências Computacionais" (aqui tinha mesmo de ser, mas mesmo assim não é
nada mau ocupar o 3ª lugar do pódio).
Sim, estamos
a falar de Harvard e de como um professor, Michael Puett, foi obrigado a mudar
de anfiteatro – para o maior do famoso campus universitário – para poder
albergar todos os alunos que, em particular desde 2007 (o 2º ano em que cadeira foi
ministrada), procuram resolutamente a sua aula. A disciplina – que tem como
base a relevância dos textos clássicos chineses para a atualidade – deu origem
ao livro The Path: What
Chinese Philosophers Can Teach Us About the Good Life, lançado no
passado mês de Abril e já comprado por editoras em 25 países, incluindo a
própria China, onde vai ser publicado ainda este ano.
O segredo de
Puett parece residir na introdução de ingredientes frescos numa receita antiga. O professor pede aos alunos que
leiam os textos originais de Confúcio, como o famoso Analectos, também
conhecido como Diálogos de Confúcio ou o Mencius, da autoria do filósofo chinês
com o mesmo nome (julga-se) ou ainda o Dao de Jing, comummente traduzido
como" O Livro do Caminho e da Virtude" (uma das mais conhecidas e
importantes obras da literatura chinesa), confrontando-os depois com questões
similares – mas "modernas" – que seguramente devem ter dado cabo da
cabeça dos eruditos chineses há vários séculos.
Mas não só.
De seguida, Puett sugere aos seus alunos que ponham em prática, nas suas
próprias vidas, os ensinamentos apreendidos, sendo que os que predominam são,
na verdade, ideias simples que não perdem, de todo, atualidade. De acordo com
as palavras do próprio Puett, e numa entrevista que
deu, em 2013, à revista The Atlantic, o professor afirma que, face há 20 anos –
quando começou a dar aulas – os alunos da atualidade sentem-se
"esmagados" por um caminho específico que têm de percorrer no sentido
de objetivos de carreira muito concretos, sendo que estes, na maioria das
vezes, resultam de imposições externas (seja da pressão dos pais, por
exemplo, ou mesmo da sociedade que predetermina que cursos é que "estão a
dar").
O que Puett
observa é que, cada vez mais, os estudantes orientam todo o seu percurso
escolar, e até as suas atividades extracurriculares, de acordo com planos e
objetivos de carreira predefinidos e "demasiado" programados. Assim,
são muitos os estudantes que juram que ao perceberem que o coração e a mente,
maioritariamente separados na visão do mundo ocidental, estão profundamente relacionados
entre si e que não podem ser encarados isoladamente – uma das principais
"lições" que Puett tenta transmitir nas suas aulas – contribuiu mesmo
para mudar as suas vidas, existindo até alguns que – sim, parece loucura, mas é
verdade – que trocaram as tais ciências exatas e o que está a dar por cursos em
áreas das obsoletas humanidades. Será está a prova da famosa citação que é
atribuída a Confúcio e que reza "escolhe um trabalho de que
gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida"?
Harvard não
é a única universidade que está a descobrir as delícias da filosofia aplicada a
outras áreas do conhecimento. Outras famosas universidades estão a ir pelo
mesmo caminho e o mesmo acontece, em particular, com as escolas de negócios. E
é aqui que entra, mais uma vez, o fator negócio, mas um que pelo menos ajuda a
desenvolver neurónios e a transformar a gestão em mais do que uma obsessão
pelos resultados que figuram nos seus relatórios trimestrais. Retomando a
história que deu início a este texto, o fundador da empresa de
filosofia Strategy of Mind, Ryan Seltzer, assegura que são cada vez mais as
empresas que estão a (re)conhecer a prosperidade de outras suas congéneres que
estão a apostar em doses similares de "matemática e filosofia".
Claro que o ex-consultor poderia estar apenas a vender os seus serviços, mas
abundam os exemplos de várias organizações que comprovam a sua teoria (e o seu
modelo de negócio).
Damon
Horowitz é um dos casos mais clássicos quando se fala destas estranhas decisões
em que executivos bem-sucedidos e, muitas vezes, provenientes exatamente de
empresas de tecnologia, decidem experimentar os caminhos incertos da filosofia.
E a verdade é que o reconhecido empreendedor resolveu abandonar o seu
principescamente pago lugar no mundo tecnológico para tirar um doutoramento em
filosofia (a sua formação académica anterior incluía uma um mestrado tirado no
MIT Media Lab e estudos em ciências da computação em Stanford, onde agora dá
aulas de… filosofia).
O atual
diretor de engenharia e filósofo in-house (este cargo não é
inventado, existe mesmo) da Google proferiu uma interessante talk em
Stanford, em 2011, intitulada "Por que motivo deve trocar o seu
emprego na área da tecnologia e matricular-se num doutoramento em
Humanidades", a qual explora o valor das humanidades – no geral, e da
filosofia no particular – num mundo que está continuamente a ser inundado por
novas tecnologias. O seu caso está longe de ser único e, em particular, nas
grandes empresas em que a tecnologia e a inovação constituem os principais
ativos.
O que pode
ser facilmente explicado por Fareed Zakaria, um colunista do The Washington
Post e autor de In Defense of a
Liberal Education. Como escreve, "uma educação alargada ajuda a
estimular o pensamento crítico e a criatividade e a exposição a uma
variabilidade de áreas produz não só boas sinergias, como uma útil
"fertilização cruzada"". Afirmando que tanto a ciência como a
tecnologia constituem componentes cruciais no mundo empresarial, o jornalista
confere, contudo, exatamente o mesmo valor ao Inglês e à Filosofia, e recorda
que num dos inesquecíveis discursos de Steve Jobs, o fundador da empresa da
maçã explicava que
"está no ADN da Apple o facto de a tecnologia nunca ser suficiente – mas,
ao invés, ser o seu casamento com as artes liberais e com as humanidades que
produz os resultados que fazem cantar os nossos corações".
No mesmo
livro, Zakaria defende ainda que a inovação não é, de todo, uma mera questão
técnica, "mas antes a forma de compreender como funcionam as pessoas e a
sociedade, o que precisam e o que desejam", algo que, na verdade, esteve
também sempre presente na Apple, cujo enorme sucesso em muito se deveu, entre
várias outras coisas, à brilhante antecipação dos desejos dos seus clientes.
Mark
Zuckerberg é outro exemplo de como a tecnologia precisa, indiscutivelmente, do
saber produzido pelas ciências não exatas. O fundador do Facebook foi,
também, um estudante clássico das artes liberais e simultaneamente um
apaixonado pelos computadores. A antiguidade grega sempre foi um dos seus
principais interesses e a psicologia a área que escolheu para se licenciar. E
não é preciso ser-se muito inteligentes para perceber o quão ligadas estão as
inovações do Facebook ao campo da psicologia. E é o próprio Zuckerberg
que afirma que
o Facebook "tem tanto de tecnologia como tem de psicologia e
sociologia".
Zakaria cita
também um outro estudo sobre
o futuro do trabalho, desenvolvido por dois académicos de Oxford e que concluiu
que para os trabalhadores evitarem a "computorização" dos seus
empregos, terão de adquirir, cada vez mais, competências sociais e
criativas". Para o autor, o que este exemplo significa verdadeiramente é
que, e sem retirar valor às ciências exatas e ao inevitável trabalho com as
máquinas (que é, sem dúvida, o futuro do trabalho), as mais valiosas
competências serão aquelas "unicamente humanas" ou as que os
computadores nunca conseguirão imitar (pelo menos assim se espera).
Mas e de
volta à filosofia e ao valor do "tempo para pensar", um artigo
publicado na revista The Economist ajuda a melhorar a perspetiva no que a esta
necessidade no mundo dos negócios diz respeito. Intitulado Philosopher
kings: Business leaders would benefit from studying great writers,
defende a criação de "retiros para pensar" em substituição das
inúmeras modas a que os CEOs vão aderindo, sempre com o objetivo de melhorar as
suas capacidades de gestão e liderança (desde as "provas" em
ambientes hostis, aos passeios em plena natureza e já contando com os cursos de mindfulness,
que o artigo refere como "bons para relaxar, mas maus porque esvaziam a
mente").
No mesmo
artigo fica expressa a ideia de que é surpreendente o número de CEOs
bem-sucedidos que estudaram filosofia, de que é exemplo Reid Hoffman, um dos
fundadores do LinkedIn, que optou também por tirar uma pós-graduação em filosofia em Oxford ou o
já falado Horowitz, mas também de como Bill Gates, enquanto geria a Microsoft,
tinha por hábito isolar-se uma semana no campo para "meditar sobre um
assunto importante" ou de como Jack Welch, enquanto CEO da General
Electric, reservava religiosamente uma hora do seu dia para pensar, sem recurso
a qualquer tipo de distração.
Adicionalmente,
Peter Thiel, um reconhecido investidor de Silicon Valley apostou recentemente
também em conferências para as quais são convidados pensadores de renome numa
tentativa de "melhorar o mundo" e David Brendel, filósofo e
psiquiatra, é um dos "gurus" mais procurados por estes executivos de
topo para prestar aconselhamento sobre liderança, para além de escrever
assiduamente na Harvard Business Review sobre como a filosofia
pode ajudar a se ser não só um melhor gestor, como um melhor líder.
Curioso – ou não – é também o facto de Brendel ser igualmente um dos
co-fundadores da Strategy of Mind acima mencionada.
Como afirma
também o filósofo in-house da Google, "os líderes
do pensamento da nossa indústria não são aqueles que subiram, passo a passo,
mas de forma monótona, a escada da carreira, mas os que correram riscos e
desenvolverem perspetivas únicas".
Ou seja, aqueles que se deram ao
trabalho de pensar, questionar e criar.
Helena Oliveira
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