Qual o valor da Filosofia?
"Devemos procurar o valor da
filosofia, de facto, em grande medida na sua própria incerteza. O homem sem
rudimentos de filosofia passa pela vida preso a preconceitos derivados do senso
comum, a crenças costumeiras da sua época ou da sua nação, e a convicções que
cresceram na sua mente sem a cooperação ou o consentimento da sua razão
deliberativa. Para tal homem o mundo tende a tornar-se definitivo, finito,
óbvio; os objectos comuns não levantam questões, e as possibilidades incomuns
são rejeitadas com desdém. Pelo contrário, mal começamos a filosofar,
descobrimos, como vimos nos nossos capítulos de abertura, que mesmo as coisas
mais quotidianas levam a problemas aos quais só se podem dar respostas muito
incompletas.
A filosofia, apesar de não poder dizer-nos com certeza qual é a
resposta verdadeira às dúvidas que levanta, é capaz de sugerir muitas
possibilidades que alargam os nossos pensamentos e os libertam da tirania do
costume. Assim, apesar de diminuir a nossa sensação de certeza quanto ao que as
coisas são, aumenta em muito o nosso conhecimento quanto ao que podem ser;
remove o dogmatismo algo arrogante de quem nunca viajou pela região da dúvida
libertadora, e mantém vivo o nosso sentido de admiração ao mostrar coisas
comuns a uma luz incomum. À parte a sua utilidade ao mostrar possibilidades
insuspeitas, a filosofia tem valor — talvez o seu principal valor — por via da
grandeza dos objectos que contempla, e da libertação de objectivos limitados e
pessoais que resulta desta contemplação. A vida do homem instintivo está
fechada no círculo dos seus interesses privados: a família e os amigos podem
ser incluídos, mas o mundo exterior não é tido em consideração excepto na
medida em que possa ajudar ou prejudicar o que pertence ao círculo dos desejos
instintivos. Em tal vida há algo de febril e limitado, em comparação com a qual
a vida filosófica é calma e livre. O mundo privado dos interesses instintivos é
pequeno, localizando-se no seio de um mundo grande e poderoso que, mais cedo ou
mais tarde, terá de deixar o nosso mundo privado em ruínas. A menos que
possamos alargar de tal modo os nossos interesses que incluam todo o mundo
exterior, somos como uma guarnição numa fortaleza sitiada, sabendo que o
inimigo impede a fuga e que a rendição última é inevitável. Em tal vida não há
paz, mas antes um conflito constante entre a insistência do desejo e a
impotência da vontade. Temos de escapar desta prisão e deste conflito, de um
modo ou de outro, para a nossa vida ser grandiosa e livre. Uma maneira de
escapar é pela contemplação filosófica. A contemplação filosófica, na sua
perspectiva mais ampla, não divide o universo em dois campos hostis — amigos e
inimigos, vantajoso e hostil, bom e mau — vê o todo imparcialmente. A
contemplação filosófica, quando não tem misturas, não tem como objectivo provar
que o resto do universo é favorável ao homem. Toda a aquisição de conhecimento
é um alargamento do Eu, mas este alargamento alcança-se melhor quando não é
directamente procurado. Obtém-se quando só o desejo de conhecer é operativo,
por um estudo que não deseja previamente que os seus objectos tenham este ou
aquele carácter, antes adaptando o Eu aos caracteres que encontra nos seus
objectos. Este alargamento do Eu não se obtém quando, aceitando o Eu tal como
é, tentamos mostrar que o mundo é tão similar a este Eu que o seu conhecimento
é possível sem admitir o que parece alienígena. O desejo de provar isto é uma
forma de auto-afirmação e, como toda a auto-afirmação, é um obstáculo ao
desejado crescimento do Eu, crescimento de que o Eu sabe ser capaz. A
auto-afirmação, tanto na especulação filosófica como noutras áreas, vê o mundo
como um meio para os seus próprios fins; assim, dá menos importância ao mundo
do que ao Eu, e o Eu estabelece limites à grandeza dos seus bens. Na
contemplação, pelo contrário, começamos pelo não-Eu e, através da sua grandeza,
os limites do Eu alargam-se; através do infinito do universo, a mente que o
contempla consegue partilhar o infinito. Por esta razão, a grandeza de alma não
é fomentada pelas filosofias que assimilam o universo ao Homem. O conhecimento
é uma forma de união do Eu com o não-Eu; como toda a união, é prejudicada pela
dominação, e consequentemente por qualquer tentativa para forçar o universo a
conformar-se ao que encontramos em nós. Há uma tendência filosófica muito comum
favorável à perspectiva que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas,
que a verdade é feita pelo homem, que o espaço e o tempo e o mundo dos
universais são propriedades da mente e que, se há algo que não seja criado pela
mente, é incognoscível e sem importância para nós. Esta perspectiva, se as
nossas discussões prévias foram correctas, não é verdadeira; mas além de não
ser verdadeira, tem o efeito de roubar à contemplação filosófica tudo o que lhe
dá valor, dado que agrilhoa a contemplação ao Eu. Aquilo a que chama
conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas um conjunto de preconceitos,
hábitos e desejos que constituem um véu impenetrável entre nós e o mundo que
está para além. O homem que tem prazer em tal teoria do conhecimento é como o
homem que nunca deixa o círculo doméstico por ter medo que a sua palavra possa
não ser lei. A verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra a
sua satisfação em todo o alargamento do não-Eu, em tudo o que aumenta os
objectos contemplados, e desse modo o sujeito que contempla. Na contemplação,
tudo o que é pessoal ou privado, tudo o que depende do hábito, do interesse
próprio, ou do desejo, distorce o objecto e assim compromete a união que o
intelecto procura. Erguendo desse modo uma barreira entre sujeito e objecto,
essas coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O
intelecto livre irá ver como Deus poderia ver, sem um aqui e agora, sem
esperanças e receios, sem as peias das crenças costumeiras e dos preconceitos
tradicionais, calmamente, desapaixonadamente, no desejo único e exclusivo de
conhecimento — conhecimento tão impessoal, tão puramente contemplativo, quanto
é possível ao homem alcançar. Logo, também o intelecto livre irá valorizar mais
o conhecimento abstracto e universal, no qual os acidentes da história privada
não entram, do que o conhecimento dos sentidos, dependente, como tal
conhecimento tem de estar, de um ponto de vista exclusivo e pessoal e de um
corpo cujos órgãos dos sentidos distorcem tanto quanto revelam. A mente que se
acostumou à liberdade e imparcialidade da contemplação filosófica irá preservar
qualquer coisa dessa liberdade e imparcialidade no mundo da acção e da emoção.
Irá ver os seus propósitos e objectivos como partes do todo, com a ausência de
obstinação que resulta de os ver como fragmentos infinitesimais num mundo no
qual nada do resto é afectado por qualquer dos feitos de um homem. A
imparcialidade que, em contemplação, é o desejo sem misturas pela verdade, é a
mesmíssima qualidade mental que, em acção, é a justiça, e na emoção é aquele amor
universal que pode ser dado a todos, e não apenas aos que se julga serem úteis
ou admiráveis. Assim, a contemplação alarga não apenas os objectos dos nossos
pensamentos, mas também os objectos das nossas acções e afecções: faz-nos
cidadãos do universo, e não apenas de uma cidade murada em guerra com tudo o
resto. A verdadeira liberdade do homem, e a sua libertação da servidão de
esperanças e receios limitados, consiste nesta cidadania do universo. Assim,
para recapitular a nossa discussão do valor da filosofia: a filosofia é de
estudar não por causa de quaisquer respostas definitivas às suas questões, dado
que nenhumas respostas definitivas podem, em regra, ser conhecidas como
verdadeiras, mas antes por causa das próprias questões; porque estas questões alargam
a nossa concepção do que é possível, enriquecem a nossa imaginação intelectual
e diminuem a confiança dogmática que fecham a mente contra a especulação; mas
acima de tudo porque, através da grandeza do universo que a filosofia
contempla, a mente também se torna grandiosa, e torna-se capaz dessa união com
o universo que constitui o seu bem maior.
Bertrand Russell, Princípios da Filosofia
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