Banalização do Mal
“Eu estou depressivo(…)
sem telefone(…) dinheiro para o aluguer(…) dinheiro para o sustento de
criança(…) dinheiro para dívidas(…) dinheiro!(…). Eu estou sendo
perseguido pela viva memória de matanças, cadáveres, cólera e dor(…) pela
criança faminta ou ferida(…) pelos homens loucos com o dedo no gatilho, muitas
vezes policial, assassinos”
Trecho
da carta de suicídio de Kevin Carter
Este trecho é de uma
carta de suicídio do fotógrafo sul-africano Kevin Carter(1960-1994), ganhador do premio Pulitzer, em
1994. Ele fotografou uma criança faminta, sem forças, rastejando para um campo
de alimentação há um quilômetro dali. Ao lado um urubu observa e
espera a morte da criança para poder devorá-la, como se
já soubesse a priori a morte chegar. Carter observou durante vinte
minutos achando que o urubu fosse embora, como não foi, espantou-o, e
saiu rapidamente dali. Nesta atitude está todo o peso de seu sofrimento. Ele se
culpou por não tê-la salvo e refletiu sobre si mesmo naquela cena: “um homem
ajustando suas lentes para tirar o melhor enquadramento de
sofrimento dela, talvez também seja um predador, outro urubu na cena”.
Por
que Carter não a salvou? O que ele pensava? Qual era sua
preocupação? Com um pouco de reflexão podemos entender por que razão
ele não a salvou. Todos nós, filhos da modernidade, somos espectadores de
uma experiência empobrecedora, que melhor se conceitua como guerra, fome,
miséria, repressão e barbárie. No mundo moderno o mal se tornou comum, é
parte da cena cotidiana. O mal se banalizou. Tornamo-nos insensíveis a
desgraça alheia. Carter, como fotógrafo, acostumou-se a captar o cinéreo,
o claustro e o frívolo em suas fotografias. Acostumou-se a
experimentar o mal. Mas, pagou um preço alto pela banalização do mal.
Quando refletiu sobre a cena, sentiu náusea, culpa, remorso.
Suicidou-se. Foi o preço que ele pagou por sua falta de piedade.
Digo piedade, pois é por meio desse conceito que podemos
compreender a morte de Carter.
Segundo
Rousseau o que diferencia o homem do animal é o fato de ele ser um “agente
livre”. Do ponto de vista moral, ao contrário dos animais, que
seguem as regras da natureza, o homem é dotado de vontade e tem
consciência de sua liberdade. Ele pode fazer escolhas, não se limitando as
regras prescritas pela natureza. O homem é um ser moral, dotado de
vontade e de livre arbítrio. Carter teve que fazer uma escolha moral,
salvar ou não salvar aquela criança? Ele não a salvou, deixou-a aos
urubus. Mas por quê? O que ele temia? Não sabia que ela iria
morrer? Será que faltou piedade a Carter?
A principal
característica que diferencia o homem do animal,
segundo Rousseau, e que foi responsável por torná-lo
bom e sociável, é a piedade, entendida como uma “repugnância
inata de ver sofrer seu semelhante”. Parece-me que Carter não
experimentou esse sentimento. Sua piedade falhou? Mas
por que ela falhou? Por que ele não sentiu piedade naquele momento?
A falta de piedade no
momento da cena tem uma explicação filosófica. Segundo Theodor Adorno, um
grande pensador do século XX, a principal característica da sociedade de massas
não é somente a perda da individualidade, mas a perda da sensibilidade, ou
seja, a insensibilidade do homem moderno. Somos herdeiros da apatia
burguesa. O homem moderno vai ficando apático aos acontecimentos até se tornar
completamente insensível. Ele é convidado a nada mais que compartilhar da
experiência brutal e uniforme da modernidade.
A grande
consequência do progresso técnico e científico é a barbárie. A técnica, em vez
de criar um mundo de receptividade, fruição do prazer, e felicidade para
os indivíduos, fez justamente o contrário, só gerou a opressão, a miséria
e o sofrimento. Nos acostumamos a esse estado de coisas. É a completa
reificação do homem. Todos os dias nos deparamos com mendigos, violência
nas ruas, favelas, injustiças sociais, pobreza, fome, até nos tornarmos
insensíveis ao sofrimento alheio. Essa é uma característica da sociedade de
massas.
Outro fator
que asseveramos para a perda de piedade do homem contemporâneo é o amor
próprio. Na avaliação de Rousseau, é por causa do amor-próprio, gerado
pela reflexão, que o homem é capaz de pensar primeiro em si e, vendo sofrer seu
semelhante, dizer, “Morre, se queres; estou em segurança”. Em seu
amor próprio o homem em nossa atualidade perdeu este sentimento natural de
piedade, na medida em que o mal tornou-se uma característica da
experiência moderna. Dessa forma, Carter, como um típico homem moderno,
perdeu esse sentimento se acostumando à barbárie de nossa época.
Para Rousseau, o homem só se tornou homem, ou seja, se tornou humano pela
piedade. A piedade é um sentimento natural presente em todos os homens.
Dessa virtude natural é que resultam as virtudes sociais como a
generosidade, a clemência, a bondade, a benquerença. É a piedade que nos leva
“sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de
natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que
ninguém é tentado a desobedecer a sua doce voz; é ela que impede todo
selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo
sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar
a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça
raciocinada, ‘faça a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os
homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais
útil, talvez, do que a precedente: faze o teu bem com o menor mal possível a
outrem” ¹
1 Rousseau, Jean Jacques - "Discurso sobre a
origem da desigualdade entre os homens".
Por Michel Aires de Souza
Lola
Sem comentários:
Enviar um comentário