terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Banalização do Mal



Banalização do Mal


“Eu estou depressivo(…) sem telefone(…) dinheiro para o aluguer(…) dinheiro para o sustento de criança(…) dinheiro para dívidas(…) dinheiro!(…).  Eu estou sendo perseguido pela viva memória de matanças, cadáveres, cólera e dor(…) pela criança faminta ou ferida(…) pelos homens loucos com o dedo no gatilho, muitas vezes policial, assassinos”                                
Trecho da carta de suicídio de Kevin Carter
    Este  trecho é de uma carta de suicídio do fotógrafo  sul-africano Kevin Carter(1960-1994),  ganhador do premio Pulitzer, em 1994. Ele fotografou uma criança faminta, sem forças, rastejando para um campo de alimentação há um quilômetro dali.  Ao lado um urubu  observa e espera  a morte da criança  para poder devorá-la,  como  se  já soubesse a priori a morte chegar. Carter observou durante vinte minutos achando que o urubu fosse embora, como não foi, espantou-o,  e saiu rapidamente dali. Nesta atitude está todo o peso de seu sofrimento. Ele se culpou por não tê-la salvo e refletiu sobre si mesmo naquela cena: “um homem ajustando suas lentes para tirar o melhor enquadramento de sofrimento dela, talvez também seja um predador, outro urubu na cena”.


           Por que Carter não a salvou? O que ele pensava?  Qual era sua preocupação?  Com um pouco de reflexão podemos entender por que razão ele não a salvou.  Todos nós, filhos da modernidade, somos espectadores de uma experiência empobrecedora,  que melhor se conceitua como guerra, fome, miséria, repressão e barbárie.  No mundo moderno o mal se tornou comum, é parte da cena cotidiana.  O mal se banalizou. Tornamo-nos insensíveis a desgraça alheia.  Carter, como fotógrafo, acostumou-se a captar o cinéreo, o claustro e o frívolo em suas fotografias.   Acostumou-se a experimentar o mal. Mas,  pagou um preço alto pela banalização do mal. Quando refletiu sobre a cena,  sentiu náusea,  culpa,  remorso. Suicidou-se.  Foi o preço que ele pagou por sua falta de piedade. Digo piedade, pois é por meio desse conceito que podemos compreender a morte de Carter. 
        Segundo Rousseau o que diferencia o homem do animal é o fato de ele ser um “agente livre”.  Do ponto de vista moral, ao contrário dos  animais, que seguem as regras da natureza, o homem é dotado de vontade  e tem consciência de sua liberdade. Ele pode fazer escolhas, não se limitando as regras prescritas pela natureza.  O homem é um ser moral, dotado de vontade e de livre arbítrio.  Carter teve que fazer uma escolha moral, salvar ou não salvar aquela criança?  Ele não a salvou, deixou-a aos urubus.  Mas por quê?  O que ele temia? Não sabia que ela iria morrer?  Será que faltou piedade a Carter? 
    A principal  característica  que   diferencia o homem do animal, segundo Rousseau,  e que foi responsável  por  torná-lo  bom e sociável,  é a piedade, entendida como uma “repugnância inata de ver sofrer seu semelhante”.    Parece-me que Carter não experimentou esse sentimento.    Sua piedade falhou?  Mas por que ela falhou? Por que ele não sentiu piedade naquele momento?
    A falta de piedade no momento da cena tem uma explicação filosófica. Segundo Theodor Adorno, um grande pensador do século XX, a principal característica da sociedade de massas não é somente a perda da individualidade, mas a perda da sensibilidade, ou seja, a insensibilidade do homem moderno. Somos herdeiros da apatia burguesa. O homem moderno vai ficando apático aos acontecimentos até se tornar completamente insensível. Ele é convidado a nada mais que compartilhar da experiência brutal e uniforme da modernidade.
         A grande consequência do progresso técnico e científico é a barbárie. A técnica, em vez de criar um mundo de receptividade, fruição do prazer,  e felicidade para os indivíduos, fez justamente o contrário,  só gerou a opressão, a miséria e o sofrimento. Nos acostumamos a esse estado de coisas. É a completa reificação do homem.  Todos os dias nos deparamos com mendigos, violência nas ruas, favelas, injustiças sociais, pobreza, fome, até nos tornarmos insensíveis ao sofrimento alheio. Essa é uma característica da sociedade de massas.
        Outro fator que asseveramos para a perda de piedade do homem contemporâneo é o amor próprio. Na avaliação de  Rousseau, é por causa do amor-próprio, gerado pela reflexão, que o homem é capaz de pensar primeiro em si e, vendo sofrer seu semelhante, dizer,  “Morre, se queres; estou em segurança”.  Em seu amor próprio o homem em nossa atualidade perdeu este sentimento natural de piedade,  na medida em que o mal tornou-se uma característica da experiência moderna. Dessa forma,  Carter, como um típico homem moderno, perdeu esse sentimento se acostumando à barbárie de nossa época.  


            Para Rousseau,  o homem só se tornou homem, ou seja, se tornou humano pela piedade.  A piedade é um sentimento natural presente em todos os homens. Dessa virtude natural é que resultam as virtudes sociais como  a generosidade, a clemência, a bondade, a benquerença. É a piedade que nos leva “sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer a sua doce voz; é ela que impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou  a um velho enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que,  em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, ‘faça a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: faze o teu bem com o menor mal possível a outrem” ¹
1 Rousseau, Jean Jacques - "Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens".
PUBLICADO EM 01/08/2009
Por Michel Aires de Souza



                                               Lola

Sem comentários:

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...