Refugiados
Em primeiro lugar, não gostamos de ser chamados “refugiados”. Chamamo-nos
uns aos outros “recém-chegados” ou “imigrantes”. Os nossos jornais são jornais
para “americanos de língua alemã”; e, tanto quanto sei, não há e nunca houve
qualquer clube fundado pelos perseguidos por Hitler cujo nome indicasse que os
seus membros são refugiados. Um refugiado costuma ser uma pessoa obrigada a
procurar refúgio devido a algum acto cometido ou por tomar alguma opinião
política. Bom, é verdade que tivemos que procurar refúgio; mas não cometemos
nenhum acto e a maioria de nós nunca sonhou em ter qualquer opinião política
radical. O sentido do termo “refugiado” mudou connosco. Agora“refugiados” são
aqueles de nós que chegaram à infelicidade de chegar a um novo país sem meios e
tiveram que ser ajudados por comités de refugiados. Antes desta guerra começar
eramos ainda mais sensíveis quanto ao sermos chamados refugiados. Demos o nosso
melhor para provar aos outros que eramos apenas imigrantes comuns. Afirmávamos
que tínhamos partido pela nossa própria vontade para países da nossa escolha e
negávamos que a nossa situação tivesse algo a ver com “supostos problemas
judaicos”. Sim,erámos“imigrantes”ou“recém-chegados”que tínhamos deixado o nosso
país porque, num belo dia, não nos convinha mais ficar, ou puramente por razões
económicas. Queríamos reconstruir as nossas vidas, isso era tudo. De modo a
reconstruir a vida tem que se ser forte e optimista. Portanto, erámos bastante
optimistas. Com efeito, o nosso optimismo é admirável, mesmo que sejamos nós a
dizê-lo. A história da nossa luta finalmente tornou-se conhecida. Perdemos a
nossa casa o que significa a familiaridade da vida quotidiana. Perdemos a nossa
ocupação o que significa a confiança de que tínhamos algum uso neste mundo.
Perdemos a nossa língua o que significa a naturalidade das reacções, a
simplicidade dos gestos, a expressão impassível dos sentimentos. Deixámos os
nossos familiares nos guetos polacos e os nossos melhores amigos foram mortos
em campos de concentração e tal significa a ruptura das nossas vidas privadas.
Não obstante, logo que fomos salvos – e a maioria de nós teve que ser salvo
várias vezes – começámos a nossas novas vidas e tentávamos seguir tão próximo
quanto possível todos os bons conselhos que os nossos salvadores nos
transmitiram. Foi-nos dito; e esquecemos mais rápido do que alguém poderia
imaginar. De um modo amigável foi-nos lembrado que o novo país tornar-se-ia uma
nova casa; e depois de quatro semanas em França ou seis semanas na América,
fingiríamos ser franceses ou americanos. Os mais optimistas entre nós teriam
mesmo acrescentado que toda a sua vida anterior teria sido passada numa espécie
de exílio inconsciente e apenas o seu novo país lhes ensinaria agora com o que
se parece uma casa. É verdade que por vezes levantámos objecções quando nos
disseram para esquecer o nosso trabalho anterior; e logo que o nosso estatuto
social está em jogo é-nos extremamente difícil desembaraçarmo-nos dos nossos
ideais. Com a língua, contudo, não encontramos dificuldades: depois de um único
ano os optimistas estavam convencidos que falavam inglês tão bem quanto a sua
língua materna; e depois de dois anos juravam solenemente que falavam inglês
melhor do que qualquer outra língua – o seu alemão é uma língua que dificilmente
lembram.
Hannah Arendt, Nós os refugiados, pp. 7 e 8
Tradução Ricardo Santos,
Universidade da Beira Interior, Covilhã
Para ler o artigo na totalidade
Sabia que ...
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