Moralidade e Legalidade
Quando
li este texto pensei que, através dele, poderia trabalhar múltiplos conceitos filosóficos, com os alunos, tais
como: acção humana, intenção , motivo, culpa,
liberdade, responsabilidade, pessoa, normas morais e normas jurídicas, cuidado, autonomia e
heteronomia, convivencialidade, instituições,
verdade, mentira, amor, amizade, ética, moral...
Tojó 17 anos depois do homicídio macabro dos pais, quer ser analista
financeiro
12 Agosto 2016
12 Agosto 201644
António Jorge
tinha 25 anos quando foi condenado à pena máxima por ter assassinado os pais.
Há 17 anos preso, o autor do crime macabro é um recluso
"irritantemente" bem comportado. E procura emprego.
Reportagem publicada originalmente a 12
de agosto de 2016, data em que assinalaram os 17 anos do Crime de Ílhavo, e
republicada a 2 de março de 2017.
O jardim está
agora cuidado e o amarelo veio dar cor ao cimento das paredes da casa, ainda em
construção naquele ano de 1999. Foi ali, em Vale de Ílhavo, que há 17 anos um
médico e a mulher foram brutalmente assassinados pelo próprio filho. António
Jorge, mais conhecido por Tojó, já cumpriu mais de metade de uma pena de 25
anos de cadeia. Diz que quer ser analista financeiro mal seja libertado, mas o
tribunal insiste que ainda não interiorizou o crime e não o deixa sair em
liberdade condicional.
Foi naquela
mesma casa que a GNR de Ílhavo encontrou os corpos do médico Jorge Machado e da
mulher Maria Fernanda. O casal tinha sido esfaqueado até à morte num cenário
que intrigou a polícia. Por um lado, não havia qualquer sinal de arrombamento
na casa ainda em construção. Por outro, tinham desaparecido pequenos bens e o
carro do casal não estava na garagem.
O filho de
Jorge e Maria Fernanda acabou detido dias depois como o principal suspeito do
crime. Não seria o único. As autoridades acreditavam haver mais suspeitos e até
conseguiram levar a tribunal, em 2001, a mulher e um amigo de Tojó. Todos eles
se sentaram no banco dos réus acusados de duplo homicídio. Contra eles estava a
convicção da PJ e vestígios de ADN na vivenda em cimento. Mas só Tojó acabou
condenado, em abril de 2001, a 25 anos de prisão. Foi o único que confessou.
Tojó tinha 23
anos quando os guardas prisionais o levaram para a cela onde hoje permanece.
Desde então tem mantido um comportamento exemplar, sem qualquer repreensão ou
sanção. Ao Observador, um guarda prisional de Coimbra diz mesmo que o recluso
tem um “irritante excelente comportamento”, que em nada se coaduna “com o
macabro crime que cometeu”.
Aos 40 anos,
e com 17 anos de pena cumprida, Tojó já trabalhou como faxineiro na biblioteca
e na sala de música. Ainda frequentou um curso tecnológico de Contabilidade e
Gestão e um curso superior de Contabilidade e Auditoria, que não acabou.
Inscreveu-se depois na Universidade Aberta, esteve matriculado em Marketing e
Negócios Internacionais e até fez um curso de inglês. Hoje tem uma aula por dia
de Desporto e outra de Música e dedica-se de forma “autodidata” ao estudo e à análise de Mercados
Financeiros através do teletexto, da rádio e dos jornais. Até anda à procura de
emprego.
À medida que
a pena de prisão foi avançando, as visitas e telefonemas de amigos foram escasseando.
E o contacto com o exterior tornou-se cada vez menor. Só uma tia e uma prima
continuam a visitá-lo. Receberam-no em casa quando saiu em precária e estão
prontas a acolhê-lo caso seja libertado. Só não sabem quando. Segundo o último
acórdão do Tribunal de Execução de Penas (TEP) de Coimbra, de 11 de março de
2016, Tojó, “mesmo a mostrar arrependimento, precisa de interiorizar crítica da
conduta praticada que lhe permita manter-se afastado do cometimento de novos
factos ilícitos”. E, apesar de ter apoio psicológico desde 2002, “continua a
necessitar de apoio psicológico e psiquiátrico revelando ainda alguma
fragilidade emocional. O recluso deverá aprofundar a interiorização do desvalor
imanente às condutas que praticou”, lê-se na sentença do TEP. Passados 17 anos,
Tojó ainda não tem consciência do crime que cometeu.
Um crime como Ílhavo nunca viu
Foi por volta
das quatro da tarde daquele 12 de agosto de 1999 que a GNR bateu à porta do
número 60 da Rua Prior Valete, na pacata localidade de Vale de Ílhavo. Uma
chamada para o posto levava a crer que ali tinha acontecido um crime.
Aparentemente estava tudo calmo, não havia sinal de arrombamento, as portas e
as janelas da casa ainda em cimento estavam trancadas. Até que os olhos dos
militares bateram num rasto de sangue no jardim.
O rasto
conduziu-os ao interior da casa onde, no primeiro andar, jazia o primeiro corpo
— o de Maria Fernanda dos Santos. Já perto da cozinha, no segundo andar, estava
o corpo do marido, o médico Jorge dos Santos, ainda de roupão. O casal tinha
sido brutalmente assassinado. Tanto o corpo de Jorge, de 49 anos, como o de
Maria Fernanda, de 48, mostravam sinais de grande violência.
Recorte do
jornal “Expresso” de 21 de agosto de 1999, onde se vê a moradia, ainda em
construção, dos pais de Tojó
A mulher,
doméstica, tinha sido vítima de vários golpes de faca pelo corpo todo. O
cadáver tinha sido, depois, regado com álcool. Também o corpo do médico, que
prestava serviço do Centro de Saúde de Ílhavo, apresentava marcas de golpes. Um
mais profundo no pescoço. Havia fósforos espalhados no chão, acendalhas e uma
lata de spray. No andar de cima, o fogão da cozinha estava ligado. Quem os matou tinha
tentado pegar fogo à casa, na tentativa de camuflar as provas. Mas não
conseguiu que os corpos ardessem.
Da casa quase
nada desapareceu. Havia alguns sinais de luta. Pouco mais. A única coisa que
parecia faltar era o carro do casal, um Toyota Carina bordeaux. O cenário era suspeito e a polícia não descartou logo a hipótese de se
ter tratado de um assalto que correu mal. Houve mais um dado que, naquele dia,
a Polícia Judiciária, entretanto chamada ao local, registou: no dia anterior ao
crime registara-se o último eclipse solar do milénio.
O único suspeito possível
A forma como
tudo teria acontecido, pelo menos à primeira análise do local do crime, levava
a PJ a acreditar que tinha sido alguém de casa a praticar o macabro crime.
Depressa o único filho do casal, Tojó,
de 23 anos, se tornou no principal suspeito. Possíveis
razões? Sem grandes possibilidades financeiras e a viver em casa dos sogros, o
jovem teria matado os pais para ficar com o chorudo seguro de vida em nome do
pai, Jorge dos Santos. Tudo parecia bater certo, mas Tojó tinha um álibi: não
se encontrava em Ílhavo na noite do crime. A polícia faz o primeiro
interrogatório no dia 16, quatro dias depois dos assassinatos.
De férias
desde 7 de agosto, Tojó e a mulher, Sara Machado, tinham partido de carro para
Coimbra com destino a um passeio pelo litoral. Passaram por várias localidades
— Figueira da Foz, Praia da Vieira, S. Pedro de Moel, Nazaré e Peniche. As
noites eram dormidas em pensões e, por vezes, no carro, um Renault 19 que
estava em nome do pai de Sara. Não havia dinheiro para tudo.
Segundo os
depoimentos de Tojó e de Sara às autoridades, em S. Pedro de Moel, onde tinham
chegado dois dias antes do crime, Tojó magoou-se durante uma ida à praia.
Justificava assim a presença de ferimentos nas mãos. A história era simples. O
mar estava bravo e os nadadores salvadores tinham hasteado a bandeira vermelha. A força da corrente arrastou-o
para umas rochas, onde se cortou nas mãos. Apesar dos ferimentos, não quis ser
assistido. Só no dia seguinte, já na Nazaré,
decidiu dirigir-se ao posto de socorro da praia e mais, tarde, ao hospital.
A história
contada pelos dois continuava. A 14 de agosto, dois dias após o crime, o casal
apercebeu-se de que algo não estava bem num telefonema para casa. Segundo Sara,
os pais dela informaram-nos que os pais de Tojó não estariam bem de saúde e que
deviam regressar a Ílhavo o mais depressa possível. Foi o sogro de Tojó quem
acabou por dar-lhes a notícia da morte. Tojó ter-se-á mostrado surpreendido. “Porque é que fizeram isto aos meus pais,
que não faziam mal a ninguém?”,
interrogou-se junta da sogra. Uma história que a polícia teve dificuldades em
acreditar.
Sara voltaria
a ser chamada, já perto da noite, para um segundo interrogatório. Acabaria por
ceder à pressão da PJ, contando uma versão muito diferente da história que
tinha relatado durante a manhã. Segundo ela, estavam os dois a almoçar num
parque de merendas em S. Pedro de Moel, quando começaram a discutir sobre os
gastos da viagem. Tojó era o único que trabalhava, porque ela estava a tirar o
curso de Marketing, em Aveiro. Apesar do dinheiro contado, ela insistia que
dormissem em pensões ou hotéis e que comessem em restaurantes todos os dias. A
conversa azedou e, chateado, Tojó abandonou-a no parque com o carro, sem dizer
para onde ia.
"Apercebi-me que a polícia estava
convencida do meu envolvimento e do da Sara e, naturalmente, foram fazendo
pressão sobre mim dizendo que a Sara ia ser detida. Que tudo
tinha acabado."
Tojó em entrevista ao "Hora
Extra", da SIC
Sara ficou
ali, em São Pedro de Moel, à espera que o marido regressasse. Ele voltaria só
ao final da tarde do dia seguinte, a 12 de agosto, com as mãos feridas. Quando
Sara lhe perguntou o que tinha andado a fazer, ele respondeu-lhe que tinha
andado pela praia e que se magoara nas rochas.
Tojó percebeu
que era já um suspeito à medida que as horas iam passando e os interrogatórios
se iam desenrolando. “Apercebi-me que a polícia estava convencida do meu
envolvimento e do da Sara e, naturalmente, foram fazendo pressão sobre mim
dizendo que a Sara ia ser detida. Que tudo tinha acabado”, contou, anos mais
tarde, numa entrevista ao programa “Hora Extra”, da SIC. Sem outra saída, Tojó acabou
por confessar ser o autor do crime, quatro dias depois da morte dos pais.
130 quilómetros para cometer um crime
Quando
percebeu que não tinha hipóteses, Tojó contou como (quase) tudo tinha
acontecido à PJ. Discutiu, sim, com Sara, mas depois enfiou-se num autocarro em
direção à Marinha Grande. Aqui terá comprado uma muda de roupa, uma mochila e
uma faca de cozinha. A meio da tarde, apanhou um comboio para Quintãs, perto de
Ílhavo, fazendo o resto do percurso até casa dos pais a pé.
Surpreendida,
a mãe abriu-lhe a porta da casa de família. Juntos subiram ao segundo andar,
onde se encontrava o pai. A este, Tojó disse que era ele, e só ele, o culpado
de toda a sua desgraça. A situação descontrolou-se e o jovem acabou por pegar
na faca que trazia na mochila preta. Lutou com o pai, que tentou tirar-lhe a
faca, e os dois acabaram por cair no chão. No meio da luta, esfaqueou-o. A mãe,
perplexa, tentou fugir para o telefone em busca de ajuda. Tojó correu atrás
dela até ao exterior. Enquanto o pai se esvaía em sangue, atacou a mãe com
dezenas de facadas. Depois arrastou o corpo dela para dentro da moradia.
Tudo tinha
corrido mais ou menos como planeado, mas Tojó começou a entrar em pânico. Ali,
sozinho naquela casa, deu por si sem saber o que fazer. Tentou limpar o sangue
que estava espalhado um pouco por todo o lado, mas não conseguiu. Queria apagar
as provas, mas não sabia como. Pensou então que o melhor seria pegar fogo à
moradia e destruir tudo de uma vez por todas. Agarrou em tudo o que era
inflamável, abriu o gás, e esperou que o fogo começasse. Como nada disso
aconteceu, acabou a simular um assalto.
Pegou na
aparelhagem dos pais, em algum ouro e meteu-se dentro do Toyota Carina rumo à
praia de Mira. Consigo levou também o telefone de casa, que arrancou da tomada
por estar todo ensanguentado. Em Mira, tentou livrar-se das provas do crime.
Mudou de roupa e enfiou tudo dentro da mochila que tinha comprado, juntamente
com as chaves do carro. Depois,
deitou-a num contentor de lixo e abandonou o Toyota junto a uma mata, a poucos
quilómetros da praia, com a aparelhagem lá dentro.
Recorte do
jornal “Público” de 18 de agosto de 1999
Seguiu para
junto de Sara. À polícia, admitiu não saber como teve força para matar os pais.
Apesar do “amor de filho”, disse sentir “uma profunda aversão por todos os
traumas” que os pais lhe tinham infligido desde a infância. As discussões eram
frequentes lá em casa, e ele era geralmente apontado como o culpado. Disse que
era habitual o pai sofrer de depressões e descreveu-o como “um carrasco”. A PJ
apreendeu na casa o diário da mãe de Tojó. Também nessas páginas era explícito
que a relação entre ela e o marido não corria bem. Aliás, os dois chegaram a
separar-se judicialmente, embora continuassem a viver na mesma casa.
Depois de
confessar o crime, Tojó conduziu a polícia ao local onde abandonou o carro dos
pais e a arma do crime. O mandato de detenção foi emitido nesse mesmo dia.
A PJ não se
conformou com estas explicações. Na conclusão do relatório intercalar, assinado
a 16 de agosto, lê-se ser ainda necessário fazer uma “melhor averiguação” do
caso, admitindo-se a possibilidade de virem a ser identificados outros
suspeitos. Isto porque, para além das razões económicas, os investigadores desconfiavam
de “eventuais ritos satânicos”. A sustentar esta teoria estava o “facto de os
crimes terem sido perpetuados numa altura de eclipse solar”.
Sara, a “deusa” que se remeteu ao silêncio
Tojó foi
detido a 16 de agosto de 1999. Nessa altura, na prisão, visitam-no os amigos
mais chegados, como Hélder e Nuno, e também alguns familiares. O avô paterno,
Armando Machado dos Santos, também chegou a ir vê-lo, sempre com esperança de
ouvir da boca do neto que tudo não passava de um engano — que não tinha sido
ele.
A faltar
ficou apenas Sara. A Sara “que era fogo”, “deusa”, segundo as cartas que Tojó escreveu
na prisão e que constam no processo guardado no Tribunal de Aveiro. Dez dias
depois de estar preso, a mulher ainda o visitou uma vez, com o pai e com a mãe.
Queria dizer-lhe que pretendia seguir a sua vida sozinha. Tojó não acreditou
que era o fim do casamento, firmado a 21 de maio de 1994.
Excertos das cartas que Tojó escreveu na prisão. Apreendidas pela polícia, estão hoje guardadas no Tribunal de Aveiro juntamente com o processo
António Jorge
conheceu Sara quando ainda estudavam no secundário. Ela, um ano mais velha do
que ele, estudava na Escola José Estevão, em Aveiro. Ele na Escola Secundária
de Ílhavo. Os dois não podiam ser mais diferentes: ela, extrovertida e com uma
personalidade vincada, contrastava com Tojó, calado e sem gosto por
protagonismos. Ainda assim, eram inseparáveis.
Começaram a
namorar em 1993, no ano em que fundaram a banda de death metal Agonizing Terror com os amigos Marco e David. Tojó era o vocalista e
guitarrista, Sara a baterista. Mas a paixão era tal que, um ano depois de se
terem conhecido, decidiram fugir para Lisboa por temerem que os pais não
aceitassem o namoro. Por outro lado, ansiavam também, em segredo, por uma independência
que, dadas as circunstâncias, demorava — e demoraria — a chegar. Ainda viveram
um mês na capital, e só depois acordaram com os pais dela regressar.
O casal
passou então a morar em casa dos pais de Tojó que, na altura, habitavam num
apartamento na Rua João de Deus, em Ílhavo. As despesas ficaram inicialmente a
cargo dos pais de ambos até que, depois de um curso de informática de 11 meses,
Tojó, então, com 18 anos, foi trabalhar para a Vista Alegre. Sara, por sua vez,
entrou no curso de Marketing no Instituto Português de Administração e
Marketing (IPAM), em Aveiro. Os desentendimentos com o pai eram frequentes e o
casal acabou por ir viver para casa dos pais de Sara, em Bonsucesso, Aveiro.
Apesar do ordenado de 25 mil escudos que recebia da empresa de alumínios Cunha
& Guimarães, onde então trabalhava, Tojó tinha ainda uma mesada de 90 mil
escudos do pai.
”A ânsia de comunicar com a mulher, por
quem nutre uma paixão desenfreada, à qual devotou os últimos anos de vida e
parece ter hipotecado o futuro, conduz a um frenesi de cartas
e telefonemas."
Autos do processo de António Jorge dos
Santos
Mas, para
Sara, parecia não ser suficiente. Pelo menos é esse o desabafo que Tojó fez nas
cartas que escreveu na prisão. Nelas, disse também que nunca pensou que a
mulher o abandonasse depois de tudo o que passaram juntos. Acreditando sempre
que tudo não passava de uma estratégia de defesa, escreveu-lhe dezenas de
cartas, fez inúmeros telefonemas que nunca chegaram a ter resposta. Do outro
lado ergueu-se um muro de silêncio que nunca conseguiu passar.
As cartas que
Tojó escreveu na prisão para os amigos e para Sara acabaram, a certa altura,
nas mãos da PJ. Os investigadores estavam convictos de que Tojó não tinha
assassinado o pai e a mãe sozinho e que não era possível praticar um crime
assim sem ajuda de alguém. Então foram dadas ordens à cadeia de Coimbra para
reter todas as cartas e escutar os telefonemas que o detido fazia a partir da
cadeia. Outras cartas foram apreendidas nas casas dos amigos do casal.
Estes dados
constam hoje no processo e ajudam a reconstruir o estado de espírito de Tojó
que, a pouco e pouco, foi sendo abandonado por todos. “Preciso muito de ver a
Sara, dar-lhe explicações, pedir-lhe desculpas…”, escreveu numa das missivas.
Ao amigo Hélder Teixeira, em abril de 2000, disse-lhe: “Desde o início que
tentei arranjar uma história que pusesse a Sara de lado, só que ela nunca
telefonou…”
Excertos das
cartas de Tojó da prisão
Desesperado
por entrar em contacto com a mulher, Tojó acabou por cometer um erro fatal — foi dando a entender que, tal e
qual como a PJ desconfiava, não tinha matado os pais sozinhos e que Sara
estaria de algum modo envolvida.
A pressão
feita pela polícia, aliada ao desaparecimento de Sara, levou o jovem a pedir ao
juiz de instrução para ser ouvido novamente. Tinham passado oito meses do crime
e de reclusão. A 7 de abril de 2000 o único detido no processo abriu o jogo e
contou como a mulher o tinha levado a cometer um crime que, só por ele, se
calhar nunca teria cometido.
A nova confissão de Tojó
Foi naquele
verão de 1999 que Sara e Tojó decidiram que Jorge e Maria Fernanda dos Santos
tinham de morrer. A sugestão partiu da própria Sara, que esperava assim atingir
a tão esperada independência financeira e sair de casa dos pais, com quem as
coisas não andavam bem. À PJ, Tojó contou que a mulher tinha reprovado o ano e
que tinha receio de contar aos pais.
“Há um dia em
que a Sara fala comigo e vem com uma conversa incrível e absurda que me deixou
sem saber o que dizer ou pensar”, relatou Tojó durante a entrevista ao “Hora
Extra”, da SIC. “Disse-me que já andava com aquilo na cabeça há muito tempo.
Achava que era a única solução, que era aquilo que se devia fazer e que não
sabia como eu iria reagir.”
Tojó ficou
surpreendido quando a mulher lhe disse que tinha de matar os pais, mas à Sara “nada se negava”. À Sara
que “era tudo”, que era “oxigénio”.
Excertos das
cartas de Tojó da prisão
“Eu recusei
muitas vezes, eu apresentei alternativas, mas não foi possível. E há um momento em
que eu acabo por ceder e esse, para mim, foi o momento-chave”, contou. “Eu tive que lhe dar essa prova. Mais não podia fazer — ela
estava a pedir, a exigir, a implorar. E eu tinha — tinha — que lhe dar essa
prova, mesmo que implicasse matar os meus pais.”
Para os que
conheciam o casal, não existiam dúvidas de que era Sara que “mandava lá em
casa” e que Tojó tinha “uma visível adoração” por ela, como referiu o amigo
Nuno Lima — que acabaria por ser julgado juntamente com o casal. Os amigos da
altura, com quem o Observador conseguiu falar, reforçaram a ideia transmitida
por Nuno, nesse já longínquo ano de 2000. “Ele fazia tudo o que ela queria”, considerou um, preferindo não
ser identificado. “Ela era uma venenosa.”
Convencido
Tojó, o casal começou a pensar, em conjunto, numa forma de levar a ideia avante
— e sair impune. Chegaram então à conclusão que o melhor seria simular um
assalto, já que a casa tinha sido roubada há pouco tempo, numa altura em que
Jorge e Maria Fernanda se encontravam de férias em Espanha. O casal apontou a
data do crime para uma altura em que não estariam em Ílhavo.
Nesta nova
versão dos factos, tinha sido Sara quem preparara tudo. Foi ela quem comprou a
roupa, um lenço para esconder o cabelo, um chapéu, duas facas e uma lanterna
num hipermercado em Coimbra. Aliás, a PJ viria a encontrar o registo dessa
compra num cartão multibanco de Sara. Foi também ela que escreveu uma carta que
Tojó usou para distrair os pais, pormenor que nunca tinha sido relatado nos
depoimentos anteriores. Terá sido esta carta que Tojó deu a ler aos pais antes
de os matar, na tentativa de os manter distraídos. Mais tarde, contou o
arguido, foi
Sara quem se livrou das provas do crime.
“Eu recusei muitas vezes, eu apresentei
alternativas, mas não foi possível. E há um momento em que eu acabo por ceder e
esse, para mim, foi o momento-chave.”
Tojó em entrevista ao "Hora
Extra", da SIC
O novo
depoimento de Tojó levou a PJ a concluir que havia “dois co-autores do crime de
homicídio”. Nesse dia, foi emitido o mandado de detenção de Sara que, após um
longo interrogatório, foi sujeita a prisão domiciliária. A medida de coação,
porém, acabou por cair por falta de provas e Sara aguardou o julgamento em
liberdade. Foi ainda detido Nuno Lima, por suspeitas de também ter colaborado
com o crime. Ela ficou em prisão domiciliária, ele ficou preso preventivamente.
De cinco suspeitos a três arguidos em tribunal
O novo
depoimento de Tojó viria de encontro às suspeitas da PJ de que seria impossível
que tivesse cometido aquele crime sozinho. Meses antes da sua nova confissão, a
25 de novembro de 1999, o próprio Ministério Público mandara prosseguir a
investigação para determinar se “os factos” tinham sido “praticados apenas pelo
detido” ou se havia “a qualquer título outros comparticipantes”, lê-se nos
autos guardados no Tribunal de Aveiro e que o Observador consultou.
O facto de
Tojó integrar uma banda de metal e de se vestir de preto levou a PJ a
acreditar, desde o início, estar perante um crime satânico, cometido em grupo,
em nome de Satanás, e marcado precisamente para o dia do último eclipse solar
do milénio — a 11 de agosto de 1999. A história do crime satânico foi, na
altura, bem aproveitada pelos jornais nacionais que encheram páginas com
títulos como “Rituais Satânicos em Vale de Ílhavo” ou “Uma obra do diabo”.
Recorte do
jornal “Expresso” de 21 de agosto de 1999
José Miguel
Rodrigues, então um jovem jornalista da área da música, trabalhava para o
jornal Blitz quando o “Crime de Ílhavo” fez manchete nos jornais nacionais. Na altura,
chegou mesmo a escrever alguns artigos sobre o assunto. Num deles fez
questão de dizer que “o crime tem sido bastante coberto pelos media nacionais devido à
ligação com um género musical olhado com desconfiança pela opinião pública”.
Conhecedor do
género musical, José chegou a ser bombardeado por telefonemas de jornalistas
“de todo o lado”, que lhe perguntavam sobre o death metal, os Agonizing Terror e sobre um
outro crime que, seis anos antes, tinha acontecido na Noruega e que envolveu
membros de duas bandas de metal. Em 1993, Varg Vikernes, líder (e único membro)
dos Burzum, matou à facada Øystein Aarseth, dos Mayhem. Vikernes foi condenado
a 21 anos de prisão, acabando por ser libertado 15 anos depois.
A história
chegou a Portugal e, de acordo com José Rodrigues, teve “alguma expressão nos
media”. “Havia uma ideia geral de que isso se tinha passado. Não sei se isso
facilitou a associação [entre o metal e o crime de Tojó], por mais descabida
que seja. Foi uma coisa que eu tentei esclarecer na altura, mas houve muita
coisa tirada do contexto e mal interpretada”, disse ao Observador. “Mas, se as
pessoas não estão dentro do assunto, também lhes custa a perceber.”
Para o
jornalista, “há sempre uma tentativa um bocado descabida de associar atos de
pessoas à música que elas ouvem, aos livros que leem, aos filmes que veem”. “Acho que acaba por ser uma coisa mais
profunda do que isso. É um bocado descabido achar que uma banda tem poder para
influenciar isso.”
Mesmo que
fosse “descabido”, a associação acabou por ser feita e por danificar ainda mais
a reputação de um género musical que, na altura, era encarado com alguma
desconfiança. “Como sabemos, nos anos 80 o metal não tinha propriamente uma boa
fama. Era um público completamente diferente do que conhecemos hoje em dia, se
calhar mais fechado e arruaceiro. Lembro-me de falar com o meu pai e de ele
mostrar preocupação e de me perguntar se tinha alguma coisa a ver. As pessoas
também acabam por ser um bocado permeáveis”, disse.
"Há sempre uma tentativa um bocado
descabida de associar atos de pessoas à música que elas ouvem, aos livros que
lêem, aos filmes que vêem. Acho que acaba por ser uma coisa mais profunda do
que isso. É um bocado descabido achar que uma banda tem poder para
influenciar isso."
José M. Rodrigues, jornalista e editor da
revista "LOUD!"
O facto é que
“o metal sempre teve essa associação com o macabro, que é um interesse como
outro qualquer”. “Todas as pessoas têm essa atração, umas mais profundas do que
outras. O metal sempre explorou isso, e isso impressiona algumas pessoas”,
explicou o jornalista. “Ficam na dúvida e pensam ‘mas estes tipos são malucos
ou não?’. Mas acaba por ser o mesmo que acusares um realizador de filmes de
terror de ser um tarado. Ele
está a explorar um imaginário com o qual a maior parte das pessoas não se sente
confortável, mas com o qual sentem sempre alguma atração.”
António
Freitas, apresentador do programa “Alta Tensão” da Antena 3, também se recorda
bem da história. Para além de ter sido entrevistado durante o telejornal da
SIC, onde se debateram as possíveis ligações do heavy metal ao “Crime de
Ílhavo”, chegou mesmo a testemunhar em tribunal. Sobre o caso de Tojó, admitiu
ao Observador que lhe pareceu logo na altura “que ele obviamente teria outros
motivos e outros desencontros, digamos assim, com os seus familiares”. “Os
media aproveitaram a história do último eclipse solar do milénio, e que isso
serviria eventualmente de motivo para se fazer um ritual. Em termos pessoais,
acho completamente patético.”
Mas, a
verdade, é que a tese desenvolvida pela PJ, que chamou tanto a atenção dos
jornais, acabou vertida no despacho de acusação. A 2 de dezembro de 1999,
quatro meses após o crime, a investigação contava já com cinco arguidos:
António Jorge Machado (Tojó), que tinha confessado a autoria do duplo
homicídio, a mulher dele, Sara Machado e três outros amigos, Nuno Lima e Helder
Teixeira e, mais tarde, Marco António. O que tinham em comum: o gosto pelo
metal e o facto de se vestirem de negro. Mas só Tojó se encontrava em prisão
preventiva, porque tinha confessado o crime. Em relação aos outros não havia
prova suficiente para uma medida de coação idêntica.
Tojó era
vocalista e guitarrista da banda Agonizing Terror, a mulher Sara tocava bateria.
Marco chegou também a fazer parte da banda, abandonando-a devido a desavenças
com o casal. Já Helder e Nuno faziam parte de um outro grupo, também de música
pesada, os Summum Malum. A PJ acreditava que todos eles tinham, em grupo,
assassinado os pais de Tojó. Só em agosto de 2000, quando o Ministério Público
proferiu a acusação, as suspeitas contra Helder e Marco António foram
arquivadas. O processo seguiu com três arguidos: Tojó, na altura com 25 anos,
Sara, de 26 anos, e Nuno, de 21, todos eles foram julgados. Segundo o despacho de acusação,
os arguidos “professam o culto” de “satanás” e da “morte”. Todos eles usavam “roupas negras, cinturões e pulseiras cravejados de
metais e cruzes invertidas no peito”. E teria sido Sara a comprar e a preparar
o material para o dia do crime.
"Os media aproveitaram a história do
último eclipse solar do milénio, e que isso serviria eventualmente de motivo
para se fazer um ritual. Em termos pessoais, acho completamente patético."
António Freitas, apresentador do programa "Alta
Tensão"
A
participação de Nuno não era bem clara. Mas, segundo os vestígios recolhidos no
local e analisados pelo Instituto de Medicina Legal, havia vestígios de sangue
seu no carro estacionado no local do crime — o carro dos pais de Tojó, que foi
mais tarde recuperado. Nuno alegou sempre que se encontrava no Porto naquele
dia e que os vestígios de sangue podiam justificar-se com a troca de
correspondência entre todos, onde muitas vezes usavam o próprio sangue como
assinatura.
A juntar às
suspeitas de que Tojó não estaria sozinho, há o depoimento de uma vizinha que
garante ter visto duas pessoas dentro do carro do casal, na manhã a seguir à
sua morte. Esta testemunha chegou a queixar-se de ameaças por telefone durante
a investigação e após ter prestado depoimento.
Roupas negras, pulseiras com metais e Satanás. Um crime satânico?
Antes desta
acusação, a PJ ouviu vários amigos do casal na tentativa de justificar a tese
de que os gostos musicais e a forma de vestir dos suspeitos teriam conduzido ao
macabro crime. A polícia começou pelos elementos dos Agonizing Terror, David e
Marco António, que tinham abandonado a banda um mês antes do crime, para
integrarem os Metal Band, um grupo que descrevera ser de “música variada,
destinada a bailes”, e para ganharem algum dinheiro.
Agonizing Terror:
último álbum saiu em 2015
Quando os Agonizing
Terror acabaram, no verão de 1999, a discografia da banda resumia-se a duas demo tapes. Apesar do projeto de lançamento de um mini CD, o
prémio ganho no Concurso de Música Moderna Portuguesa do Hard Club, em 1998,
seriam precisos 17 anos até este ser atirado cá para fora.
Em 2015, a Firecum
Records, uma editora de Aveiro, lançou Disharmony in
Existence, uma compilação composta pelas antigas demos, Disharmony in God’s Creation e Ways of Existence, e por dois temas inéditos retirados do
tal mini CD, que ia servir para apresentar a banda a potenciais editoras.
De acordo com a informação divulgada
pela Firecum, o álbum foi lançado com a aprovação dos
antigos membros.
David esclareceu que as letras das
músicas da banda eram todas da autoria de Sara. Recusou que aquele estilo de música ou a forma de se vestirem estivesse
relacionada com “práticas satânicas”. Aliás, disse o amigo que era através da
música que Tojó conseguia “alguma independência e individualidade”, uma vez que
Sara “exercia uma ascendência notória” sobre ele. E que ele fazia tudo o que
ela queria.
Marco António explicou que depois de
sair da banda tinha estado com Tojó e Sara um par de vezes. Quando a polícia lhe perguntou pela roupa, pela música, e pelos “filmes
de terror”, Marco defendeu-se que não vestia apenas preto, mas também “azul e
cinzento”. Já “Sara, Tojó, Nuno e Helder só vestiam negro”, logo “eram
satânicos”. Assumiu ainda ser ateu e pouco apologista de “tais ideologias”, daí
ter-se afastado do casal. Mais. Alegou estar “farto de metal”. E por isso
decidiu tocar música de baile.
Já Nuno Lima, também constituído
arguido, disse às autoridades não perceber como Tojó foi capaz de cometer tal
crime. Definindo-o como uma pessoa “terra a
terra”, sem grandes convicções espirituais, Nuno Lima argumentou ser muito mais
admissível que o crime se tenha prendido com razões de ordem material do que
consumado no seio de uma qualquer “prática sobrenatural”, de índole “satânica”.
Embora lhe fosse difícil admitir que Sara tivesse participado no crime, como
Tojó acabou por afirmar, oito meses após o crime, Nuno pensava ser muito
provável que “o plano tenha sido arquitetado por ambos”, dada relação de
cumplicidade que mantinham.
A forma como
estes arguidos se vestiam era, em 1999, determinante para adensar suspeitas.
Mas essa não era uma realidade apenas portuguesa. Pouco mais de um mês após o
crime, a Interpol de Ankara enviara às autoridades portuguesas um pedido de
informação. A polícia turca perguntava se em Portugal tinham sido registados
crimes idênticos a um ocorrido em Istambul, a 13 de setembro de 1999 — em que
um turco, na altura com 19 anos, fora assassinado por um grupo que dizia
chamar-se “satânico”. Os suspeitos disseram à polícia que acreditavam em “em
Satanás/Diabo”. E que, na data que correspondia ao 13º. dia do mês,
“sacrificaram a vítima por estrangulamento e várias punhaladas”. Depois
violaram-na.
Recorte do
jornal “Público” de dezembro de 2000, altura em que foi adiado o julgamento de
Tojó
As
autoridades escreviam ainda: “As principais características dos satânicos são:
cabelos compridos, pera, cruz no pescoço, vestem-se de t’shirts escuras ou
capas e normalmente ouvem música Rock ou Metal”. A PJ respondeu que tinha
registo de um crime cujo modus
operandi podia assemelhar-se, mas que em relação
aos suspeitos em causa, não tinha qualquer referência.
Um homicídio “impiedoso” e um julgamento cheio
de dúvidas
Os relatos
dos jornais da altura relatam verdadeiras “lavagens de roupa suja” no
julgamento, que chegou a estar marcado para o dia 21 de dezembro de 2000, mas
que acabou adiado para dois meses depois. Foi a 21 de fevereiro de 2001 que
Tojó se sentou no banco dos réus ao lado da ex-mulher, Sara, e do amigo Nuno —
todos acusados de duplo homicídio qualificado. Os arguidos tentaram concentrar
as culpas em Tojó e desresponsabilizar-se do crime.
António
Freitas esteve lá naquele dia. Antes do julgamento, Sara ligou-lhe para a
Antena 3 e pediu-lhe se não se importava de comparecer como testemunha
abonatória pelos seus conhecimentos sobre heavy metal. “Eu disse que não me agradava
muito, mas ela acabou por dar o endereço da rádio (porque não tinha o meu de
casa) e eu acabei por ser convocado e ir pelos meus próprios meios. Na altura
não foi nada barato.”
Em tribunal,
perguntaram-lhe sobre o metal, Ozzy Osbourne e os suicídios nos Estados Unidos
da América, assuntos que rebateu até ao fim. O ambiente era “semi-solene”, e
alguns dos juízes pareciam “bastante indignados”. “O Tojó estava lá sentado num
dos bancos”, lembrou. “Perguntaram-me se o conhecia. A noção que eu tinha dele
é que era um puto como muitos outros que me abordavam com projetos e maquetes e
que era uma pessoa inteligente.”
O caso de John
McCollum
Em 1984, John McCollum, um jovem de 19
anos, suicidou-se na sua casa na Califórnia. Os seus pais acreditaram
que a sua morte era da responsabilidade de Ozzy Osbourne, porque o jovem se
tinha matado ao som do álbum Blizzard of Ozz (1980), que tem o tema
“Suicide Solution”. O caso acabou em tribunal, com os pais de McCollum a
defenderem que “Suicide Solution” tinha um duplo significado e que incentivava
os jovens a pegarem na arma e a matarem-se, algo que Ozzy sempre negou.
A ação judicial foi
rejeitada pelo Tribunal da Califórnia em 1988, depois de ter sido determinado que o
suicídio de McCollum não tinha qualquer relação com a música do Blizzard of Ozz.
Tojó foi um dos primeiros a sugerir que as bandas portuguesas fizessem uma espécie de intercâmbio entre si — que, por exemplo, uma banda de Lisboa fosse a Aveiro tocar e fosse ajudada por um grupo local com estadia e tudo o que fosse necessário. Mais tarde, essa banda receberia em Lisboa o grupo de Aveiro, oferecendo-lhe a mesma ajuda. “Ele foi das primeiras pessoas a ter esse plano. Até tenho isso escrito numa carta dele, o que revela alguém com dois dedos de testa. Tinha uma noção de como se poderia fazer as coisas.”
Já Sara fez
de tudo para passar uma imagem negativa do marido. Alegou que Tojó sempre foi
controlador, que lhe impunha como devia vestir-se. Impedia-a de vestir roupa
colorida. Disse que ao fim de dois anos de casamento chegou mesmo a pensar no
divórcio, mas que não o fez “por medo”. Que tinham ido viver para casa dos pais
dela na sequência de uma agressão de Tojó aos pais e que as discussões entre
ambos eram comuns. Para rematar, afirmou que foi obrigada a mudar o número de
telefone da casa dos pais, para onde Tojó ligava insistentemente da prisão na
tentativa de ouvir a sua voz. Negou qualquer envolvimento no crime e
apresentou-se como vítima.
À medida que
o julgamento avançou, houve dúvidas que continuaram por esclarecer e que não se
dissiparam. Como é que Tojó conseguiu sozinho matar o pai e a mãe com dezenas de
facadas? “A minha mãe não caiu logo com o primeiro golpe que lhe dei no pescoço
e, juntamente com o meu pai, tentou tirar-me a faca. Caímos todos no chão.
Atingi o meu pai no peito, a minha mãe correu para o telefone e depois para
fora de casa. Ficou sem forças ao pé do muro. Tirei a segunda faca e matei-a já
cá fora”, declarou Tojó em tribunal. Uma versão que não convenceu os peritos
nem os juízes. Não era credível que tivesse conseguirdo matar o pai e a mãe à
facada, sozinho.
Também as palavras de Sara foram pouco
convincentes. Na sentença, lida ao fim de dois meses de julgamento, os juízes
consideraram que era ela quem dominava a relação. Que não ficou
provado que ele controlava a sua forma de vestir nem que a agredia com
frequência. Os juízes também não deram como certo que Tojó odiava os pais e que
até desejava a sua morte. Na sentença, lida a 17 de abril de 2001, percebe-se
que ficaram muitas dúvidas por esclarecer. E isso beneficiou Sara e Nuno. “Esta
circunstância e o facto de também não se ter afastado de forma inequívoca a
intervenção de qualquer deles só pode determinar a sua absolvição, quanto mais
não seja porque a isso obriga o princípio in dúbio pro reo“, lê-se na
sentença.
Sara durante o julgamento de 21 de abril de 2001, num recorte do “Expresso”. De acordo com o jornal, a mulher de Tojó “quase não se mexeu durante a leitura da sentença”
Por outro
lado, as palavras de Tojó e a sua descrição do dia do crime fizeram com que os
juízes acreditassem nele. Na sentença lê-se, até, que ele mostrou algum
arrependimento. O tribunal considerou, no entanto, que “o arguido é pessoa sem
qualquer perturbação mental, tem inteligência normal, é uma personalidade
estável” e condenou-o a uma pena máxima de cadeia de 25 anos — 23 anos anos por
cada homicídio em cúmulo jurídico. Consideraram o crime de “acentuada
censurabilidade e forte perversidade”, de “uma insustentável brutalidade e
impiedade” e que “o arguido revelou uma personalidade fria e insensível,
indiferente aos apelos das vítimas”. Já Sara e Nuno acabaram absolvidos, pelas
dúvidas que se mantiveram até ao fim.
O único herdeiro é o homicida
Naquele dia,
Armando Machado dos Santos acordou preocupado. Tinha já tentado falar com o
filho por telefone várias vezes e ele não atendia. A companheira, Conceição
Brandão, recordou ao Observador que o incentivou a dar um pulo a Ílhavo para ir
ver o que se passava. Armando, avô de Tojó, vivia em Coimbra e depressa chegava
lá. “Ligou-me depois a dizer que tinha que ir ao velório do filho. Eu nem
estava a perceber a conversa. Só depois percebi que ele e a mulher estavam
mortos”, contou Conceição, já debilitada pela idade e por um AVC que a abalou
há dois anos.
Conceição
Brandão tem dificuldades em falar, mas a memória não a atraiçoa. Embora seja a
segunda mulher de Armando, partilhou com ele 25 anos de vida e de memórias.
Recorda-se dos passeios que fazia com o “Doutor”, assim se referindo ao pai de
Tojó, seu neto. “Era um rapaz tão sossegado. Eu sempre duvidei que ele tivesse
feito aquilo sozinho.” Conceição diz que o homicídio do “Doutor” arrasou
Armando. “Ele já tinha perdido um filho, também vítima de um crime, e depois
disto começou a ficar doente. A perder a força de viver, até que acabou
acamado”, recordou.
"Ligou-me depois a dizer que tinha
que ir ao velório do filho. Eu nem estava a perceber a conversa. Só depois
percebi que ele e a mulher estavam mortos."
Conceição Brandão, companheira de Armando
dos Santos, avô de Tojó
Antes disso,
e pouco depois do crime, Armando ainda visitou o neto na prisão. Acreditava que
um dia ele lhe ia dizer que era inocente e que não tinha roubado a vida aos
pais. Não encontrava explicações. Tojó nunca lhe mentiu. Também não lhe
apresentou motivos. Então Armando decidiu recorrer para o tribunal para
deserdar o neto, mas quando o quis fazer já tinham passado os prazos. Interpôs
então outro processo contra ele: pediu-lhe uma indemnização pela dor que este
lhe causou ao roubar-lhe a vida do filho e da nora.
Armando
alegou em tribunal que a morte do casal “em especial a de seu filho,
causaram-lhe profunda dor e grande sofrimento, até porque este era o seu único
filho e tinha consigo relações de grande proximidade e afeto”, lê-se no acórdão
do Tribunal da Relação de Coimbra. E pediu uma indemnização de 149.639,36
euros. Tojó refutou o pedido: disse que o avô mentia “tendo referido que (…)
não tinha relações de proximidade com o filho”. Alegou que o valor pedido era
exagerado e que devia ter sido solicitado junto do processo-crime que acabou na
condenação de Tojó.
Armando morreu em 2005, antes de
conhecer a decisão do Tribunal que lhe concedeu uma indemnização de 40 mil
euros, com juros de mora. A advogada que tratava do caso decidiu recorrer do valor
atribuído, em nome da única herdeira de Armando: Conceição, com quem viveu em
união de facto durante 25 anos. O Tribunal da Relação de Coimbra acabou por
fixar, em 2009, o valor da indemnização em 60 mil euros. Mas, 17 anos depois,
Conceição não viu sequer 1 euro.
A viúva de
Armando ainda enviou a sentença para a Comissão de Proteção à Vítimas de Crimes
— um organismo do Estado ao qual as vítimas de crimes violentos podem recorrer
quando os autores dos crimes não têm dinheiro para as indemnizar. Mas a
resposta foi clara: o arguido tem património e pode pagar a indemnização. Mas
Conceição, que vive num apartamento da câmara num bairro de Coimbra, nada
recebeu.
O Observador
não conseguiu apurar que bens Tojó tem à disposição quando sair em liberdade.
Mas uma advogada, que chegou a representá-lo, duvida de que disponha de
dinheiro vivo. Também nas cartas que escrevia aos amigos, a partir da cela da
cadeia de Coimbra, Tojó chegou a pedir dinheiro para comprar produtos básicos
de higiene. Um guarda prisional contou ao Observador que ele chegou a desistir
de alguns dos cursos que frequentou por não ter dinheiro para os livros.
Mesmo a casa
de família, em Ílhavo, onde o crime aconteceu e onde viviam recentemente, não
estava completamente paga. Os pais de Tojó tinham contraído um empréstimo ao
banco, que o Diário
de Aveiro, em 2004, dizia rondar os 125
mil euros. A casa foi vendida, para o pagamento da dívida. E desconhece-se se
sobrou dinheiro.
17 anos depois, a vida mudou
A venda da
casa onde os pais de Tojó foram assassinados não se revelou fácil. Depois de
algum tempo encerrada, exatamente como a GNR a encontrou, foi finalmente
adquirida por uma família que diz não importar-se com o que se lá passou. As
paredes do número 60 da Rua Prior Valente são hoje amarelas, quando antes a
casa era cinzenta, da cor do cimento, e o jardim está cuidado. A casa onde há
17 anos foram descobertos os corpos de Jorge e Maria Fernanda parece outra.
Mas não foi
apenas a casa que sofreu mudanças. Os principais arguidos, Sara, Nuno e Hélder,
também seguiram cada um o seu rumo, tentando distanciar-se ao máximo dos
eventos trágicos daquele verão de 1999, que estão ainda tão frescos na cabeça
de quem os conheceu.
Sara Matos,
atualmente com 40 anos (fará 41 em novembro), vive ainda no concelho de Aveiro
e terá casado outra vez. O marido é guarda prisional. Sara foi também mãe de um
rapaz. O Observador tentou entrar em contacto com ela, mas a antiga baterista
dos Agonizing Terror não mostrou interesse em responder “a mais entrevistas”.
Hélder
Teixeira, amigo do casal — e que também chegou a ser constituído arguido no
processo — tem agora 36 anos e, tanto quanto se sabe, vive ainda no norte de
Portugal, de onde é natural. Continua ligado à música, tendo dado seguimento ao
projeto começado com o amigo Nuno Lima, mas sob outro nome.
Nuno,
atualmente com 37 anos, terá emigrado, mas ninguém parece saber ao certo para
onde. Quando questionados sobre o possível paradeiro, os amigos da altura
limitam-se a atirar países ao ar: talvez Inglaterra, Itália. Uma coisa, porém,
parece ser certa: terminado o julgamento, o músico decidiu que o melhor era
sair do país. Para quem o conhecia, não parece haver dúvidas: “Deram-lhe cabo
da vida”.
Excertos das
cartas de Tojó da prisão
Tojó continua
preso, como há 17 anos, a estudar para conseguir encontrar um trabalho fora da
prisão e para convencer a juíza de que, em liberdade, conseguirá reintegrar-se
na sociedade. Com mais de metade da pena cumprida, Tojó recusou dar uma
entrevista ao Observador. A sua liberdade condicional só será novamente
apreciada por um juiz em março de 2017.
Texto de Rita
Cipriano e Sónia Simões,
ilustração de Andreia Reisinho Costa.
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