sexta-feira, 28 de abril de 2017

Filosofia e Imagem



Filosofia e Imagem


Adoro Filosofia! 

Confesso que me seduz nela a ousadia de criar conceitos, a alegria de tudo repôr permanente em questão, a inevitabilidade de argumentar e o atrevimento, sempre saudável,  de se intrometer em todas as dimensões do existente e, claro, forçosamente, na questão da racionalidade, às vezes, também ela científica.
Aprendemos, desde miúdos, que o homem é um ser racional e isto não nos causa estranheza até que encontramos Edgar Morin que o define como Sapiens-Demens
Sabemos, também, desde Descartes, que a razão “é a coisa do mundo melhor partilhada” e partilhamos com os alunos que esta racionalidade se estende pelo senso comum, pela ciência e pela filosofia.
Recuamos aos gregos e notamos o esforço socrático de encontrar o conceito num convite dialógico que tem como patamar o sempre desafiante “Só sei que nada sei” e vemos, logo a seguir, como os filósofos, em Platão, com a sua racionalidade, estão bem colocados no ranking da  dialéctica ascendente.
Espreitamos Kant e constatamos que o essencial de uma filosofia educadora reside na descoberta da capacidade de cada homem em usar a razão pensando por si próprio.
E é precisamente esta urgência continuada de uma autonomia de pensamento que nos projecta para a necessidade de leituras diversas e diversificadas, nós migrantes digitais  que teimamos passar o muro de Berlim entre o papel e o digital.
Cedo nos apercebemos que o ensino da Filosofia é inseparável da análise do texto, que os leitores oferecendo leituras acabam o texto tal como o espectador  faz em relação à obra de arte e que estes proliferam nos manuais escolares mais antigos. Tarde reconhecemos que a imagem tem de alegrar a partilha dos temas em Filosofia – mas que tal como o texto estas deverão suscitar um ler utilitário sem contudo levarem a uma rendição absoluta 
E porque o texto é primeiro em Filosofia (na ordem do tempo e das preferências dos filósofos) um bom naco de palavras de Eduardo Prado Coelho é-nos facultado exactamente para acender a discussão, a partilha, o (des)encontro de pontos de vista, a riqueza diversa de argumentações e a projecção daquilo que somos e queremos ser – alguns de nós projectam imagens do quotidiano pessoal e profissional.
Há, no entanto, que escolher o texto e a imagem - nem tudo eleva a razáo humana. 
E Porquê? 
É que se todos temos direito ao lixo  mas este deverá ser devidamente contextualizado e  depurado para que não seja exclusivo, logo empobrecedor.
Casamento ou divórcio palavra/imagem na Filosofia?
Casamento, mas por e com amor, porque se impera o interesse a imagem de sedutora e enriquecedora pode dar lugar a uma dimensão manipuladora e castradora – e este não é seguramente o propósito do pensar filosófico.


FILOSOFIA, PALAVRA E IMAGEM

Revisitei o filósofo – Gaston Bachelard. Ele que se instala no próprio conhecimento científico e que, conhecendo bem a ciência do seu tempo, propõe a categoria do Não para que, quer a ciência quer a filosofia, se repense na evolução do pensamento e nos modos de racionalidade.
Filósofo de descontinuidades a nível pessoal (trabalhou durante dez anos nos correios chegando a pesar cartas, licençiou-se em matemática, sonhou ser engenheiro e acaba ensinando filosofia na Sorbone), Bachelard reflecte  o pensamento científico contemporâneo, propondo rupturas e descontinuidades e defendendo que o cogito já não é solitário como em Descartes, mas sim um cogitamus – a ciência é fruto de uma comunidade científica, da intersubjectividade – a cidade científica.
E que pensa Bachelard da imagem?
Ouçamos o filósofo:

“As imagens, como as línguas cozinhadas por Esopo, sáo ao mesmo tempo boas e más, indispensaveis e perigosas; é necessário usá-las maderadamente quando são boas e desembaraçarmo-nos delas quando se tornam inúteis. Toda a imagem usada para descrever um mundo que não se vê, fenómenos que não aparecem, deve permanecer sempre em instância de redução. A história das teorias físicas é também, muitas vezes, uma história da redução das primeiras teorias imaginadas. (...)
Na cultura científica as intuições só podem ser úteis se forem analisadas, discutidas, ordenadas. Especialmente, não podem dar um conhecimento imediato dos fenómenos e é necessário, por vezes, percorrer um largo trajecto para ir das imagens às ideias.”

       Gaston Bachelard, L’Activité Rationaliste de la Physique Contemporaine, PUF – pp. 94 e 253

Sabemos que os nossos juízos se formam pela imagem. Lembramo-nos, no entanto, que Platão desvalorizou as imagens (eikasia) como forma de conhecimento seguro. Habituamo-nos a lidar mais com o texto do que com a imagem nos filósofos e nos livros.
Se a ligação filosofia/imagem sempre foi complicada  esta tem e deve ser repensada. Sendo os filósofos aqueles que vêem para além da imagem, esta pode ser possibilitadora da pluralidade de leituras, de interpretações, de busca de sentido para o real, num movimento inverso àquele que o velho Sócrates fazia ao partir da experiência para a unificação racional no conceito.
Ouvindo que a verdade é partilhável em riqueza  a imagem e a palavra também o são. Pela motivação que despertam no aluno, pela discussão que provocam, pela troca de sentires, pela empatia que podem despoletar.
Centremo-nos em dois exemplos:

Escola Secundária de Peniche,1987 – ensinava eu Platão recorrendo ao texto delicioso do livro VII da Républica: A Alegoria da Caverna. No manual apenas a palavra. Descobri, por acaso, na turma, uma aluna com um imenso talento para o desenho e pedi para dar uma leitura cuidada pelo referido texto e posteriormente passá-lo para imagem o que resultou num carinhoso acetato a preto e vermelho realçado por um colorido e estrelado SOL amarelo. Aos outros alunos, e porque não pode haver tratamentos de exclusividade pedagógica, fi-los acompanhar a colega nesta tentativa. Menos agradáveis à vista, mas porque também leituras pessoais, acolhi-os com agrado.
Tudo isto – da palavra à imagem!

Escola Secundária de Arouca, 2009 – o tema é “A dimensão discursiva do trabalho filosófico”. Recorro, vinte anos depois, ao texto eterno de Platão. Desta vez pela imagem do acetato elegantemente colorido pela aluna. É que agora estou perante nativos digitais  e eles pensam olhando a imagem que eu vou acompanhando com palavras de modo a levá-los a encontrar o tema, a tese, o problema, os argumentos e os conceitos. E, sobretudo, para mostrar-lhes a pluralidade de leituras antropológica, ética, estética, cosmológica, gnoseológica e existencial do texto de Platão.
Mas agora – da imagem à palavra!

Depois, outras aulas, outras partilhas, outras imagens. A Fonte de Duchamp para falar da obra de arte, do seu significado e dos seus limites, a música de Gabriel, o pensador “Lavagem Cerebral” para dar imagens de atitudes face à diversidade cultural ou mesmo o visionamento de partes do filme “A Troca” para ilustrar a relação EU – OUTRO na identificação da circuncisão que, sendo traço cultural, leva a protagonista do filme a regeitar a criança que ela própria sente não ser o seu próprio filho.
Poderíamos ter seleccionado “A cidade dos Homens” mas assumimos ainda não ter feito esse encontro e, nele, cuidadosamente, apreciar a relação pedagógica que tem como pano de fundo uma aula de História algures leccionada no Brasil favelado.
Aí a imagem transporta-nos para outras vivências, outras partilhas de conhecimento, restando-nos uma certeza: que temos de investir na promoção do aluno que aprende a dizer a sua própria palavra.


ALGUMAS QUESTÔES PÓSTUMAS...

 “O educador não é um científico, mas sim um enamorado, um seduzido por ideais concretos ou sabedorias – sophia significou em grego sabedoria. Não há ciência – nova ciência – dos fins educativos; somente contamos com a filo-sophia de tais finalidades”.

Octavi Fullat y Genis, El educar como absolución imposible o el fracaso teleológico, p. 48

Tenho de confessar .hà muito que a curiosidade de encontrar alguém a falar “destes assuntos da filosofia” que, por serem demasiadamente nossos, se tornam, por isso mesmo, excessivamente prazerosos.
E fui aprendendo a gostar. Do diálogo sábio de quem anda nestas lides e sabe de forma humilde e dialógica partilhar leituras de Deleuze sobre a tatuagem como corpo intensivo  ou a proposta de planificação para uma turma imaginada mas demasiadamente marcada pelas vivências docentes .
Podemos lembrar  a sempre polémica e problematizante questão da objectividade científica que não é mais que uma questão de intersubjectividade já que, como defendia Bachelard, a natureza não fala, é sempre preciso interrogá-la. E a ciência não é mais que uma construção da racionalidade de alguns humanos. Construção e imaginação, diríamos nós. Na inventariação de hipóteses, nas inevitáveis experimentações, nos avanços e recuos. Isto se aceitarmos as palavras de Gunther Stent, professor de Biologia Molecular na Universidade da California, em Berkeley:

“ Relativamente ao processo de descoberta na arte e na ciência não creio que seja assim tão diferente. Por um lado vai-se para as aulas de física a pensar “porque que é que o sol nasce e se põe?”, e falam-nos de gravidade, de Galileu e Newton, e então uma pessoa sente-se bem. Acaba por se perceber o que se está a passar lá em cima. Pois não acho que seja assim tão diferente quando se lê Dostoevsky, digamos, ou quando Shakespeare nos faz ter um lampejo. Compreende-se as pessoas – o que as faz fazer o que fazem. Amplia a compreensão do mundo. Portanto, julgo que, nesse sentido, o acto de descobrir não é assim tão diferente. Mas é um aspecto diferente do mundo.
Quanto ao processo concreto de fazer arte ou ciência, isso é muito diferente, mas o resultado final continua a ser aquele tal prazer psicológico”.
Lewis Wolpert e Alison Richards,Uma paixão pela ciência, pp. 110 e 111.

 Nos, os amantes de Filosofia, somos por excelência os maiores e melhores protagonistas do famoso dito popular “As palavras são como as cerejas” e por isso, ou mesmo por causa disso, deixamo-nos enlevar pelo diálogo e pela sedução das ideias que sendo férteis são sempre um patamar desafiante para a reflexão filosófica.
Quanto a possíveis temas futuros, desde que de filosofia se fale – eu estarei lá!

Por fim, um texto (dos mais belos que li até hoje) fruto da racionalidade de um cientista (prémio Nobel da Física 1979) que, num esforço de investigação cosmológica, se depara com o velho espanto de Aristóteles face a um mundo que desperta leituras... ...algumas das quais sublimes!

“Qualquer que seja o problema cosmológico, pode ter as suas soluções mas, qualquer que seja a solução reconhecida como verdadeira, não será muito confortável.
É quase impossível que os seres humanos não acreditem que existe uma relação particular entre eles e o universo, que a vida não é apenas o resultado grotesco de uma sucessão de acidentes que remontam aos três primeiros minutos da sua criação; mas, é necessário não esquecer que nós fomos concebidos nesse momento. Estou a escrever estas linhas num avião sobrevoando o Estado de Wyoning a uma altitude de 10.000 m, durante a viagem de regresso de S. Francisco a Boston. Lá em baixo a terra parece delicada e confortável – há nuvens fofas aqui e ali, há neve rosada pelo pôr do sol e ruas que se estendem de uma cidade a outra, ligando o país. Sentimos algumas dificuldades em acreditar que tudo isto seja apenas um pedaço minúsculo de um universo esmagador e hostil. Mas, é mais difícil ainda admitir que este universo evoluiu a partir de condições tão desconhecidas que até em imaginá-las temos dificuldade e que terminará por se extinguir num frio interminável ou num calor infernal. Quanto mais compreensível se torna o universo, mais absurdo nos parece.
Investigamos, e se os frutos dessa investigação não nos trazem nenhum alívio, podemos, pelo menos, sentir algum prazer na investigação enquanto tal. Os homens e as mulheres não se contentam com contos de deuses e de gigantes, ou em reduzir os seus pensamentos a problemas do quotidiano; eles constroem telescópios, satélites e acelaradores e depois fecham-se horas sem fim em laboratórios a tentar encontrar o significado dos dados recolhidos.
O esforço empreendido para a compreensão do universo é uma das poucas coisas que eleva a vida humana acima do nível de comédia, conferindo-lhe assim um pouco da dignidade da tragédia”

Steven Weinberg, Les trois premières minutes de l’univers, p. 179

E, claro,...uma imagem





que escolhi para redefinir leituras...silenciosas,  porque...
...a  noção de mistério é parte integrante da condição humana e aponta para a busca de sentido, condição da indagação filosófica, a qual, nascendo da admiração, encontra a sua força na capacidade de interrogação.


Para isso, urge o silêncio. 
Numa sociedade em que predomina o imperialismo do ruído, o silêncio pode e deve orientar-nos para a intimidade, assumindo-se esta como plataforma de profunda afirmação do humano!

Lola

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